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espaços digitais

HISTÓRIA EM QUADRINHOS E CINEMA:


MEIOS CADA VEZ MAIS PRÓXIMOS
NO AMBIENTE DIGITAL
Márcia Schmidtt Veronezi Cappellari*

Resumo Abstract

A sequência é o principal fator de ligação entre duas The sequence is the main factor that links two of
das mais apaixonantes formas de comunicação de lovely modes of communication of all times: movie
todos os tempos: o cinema e as histórias em quadri- theater and comic stories. The emergence of Internet
nhos. O surgimento da internet e as possibilidades and this media possibilities are providing an approach
que o meio dispõe estão proporcionando uma apro- each bigger between both things. Cybercomics is
ximação cada vez maior entre ambos. Os gaining sound and movement, breaching barriers with
cybercomics estão ganhando som e movimento, what had make when they had been produced
rompendo barreiras com o que antes havia sido pro- analogicalally. In this manner, to define what stills
duzido analogicamente em histórias em quadrinhos. like seriate drawing and what is cinema in the digital
Desse modo, definir o que ainda é desenho seriado world could become only a question of point of view.
e o que é cinema no mundo digital pode acabar se
tornando apenas uma questão de ponto de vista

Palavras-chave Key Words


História em quadrinhos - Arte Seqüencial - Internet Comic Books - Sequencial Art - Internet

A arte sequencial possui diversas formas de de movimento aparente. Para ele, contudo, a mais
expressão. Está presente na pintura, no cinema e adotada é uma que atribui essa sensação à presença
nos quadrinhos. É caracterizada pela disposição no sistema visual de detectores de movimento
de duas ou mais imagens de forma a narrar uma capazes de codificar os sinais que afetam pontos
história. Essa composição estrutural é a principal vizinhos na retina. O olho humano pode não
semelhança entre dois dos mais populares meios perceber a transição de imagens bastante
de comunicação. semelhantes, mas é capaz de notar qualquer coisa
Originários desse princípio semelhante, o de diferente que apareça quebrando uma sequência.
cinema e as histórias em quadrinhos conquistam Aumont (1993, p. 51) explica que “trata-se de uma
espectadores e leitores com a exibição de um perfeita ilusão que repousa sobre as características
movimento aparente. Em ambos os meios, não inatas de nosso sistema visual”.
há ação que seja reproduzida tal qual a realidade.
O que existe são quadros estáticos através dos O cinema utiliza imagens imóveis, projetadas
quais o olho humano realiza uma transição, em uma tela com certa cadência regular, e
provocando uma sensação de movimento. No separadas por faixas pretas resultantes da
caso dos quadrinhos, esta continuidade é visível, ocultação da objetiva do projetor por uma
e feita através da leitura. No cinema, o projetor é paleta rotativa, quando da passagem da
que realiza este papel, de modo a não deixar a película de um fotograma para o seguinte.
platéia perceber onde termina um quadro e onde Ou seja, ao espectador de cinema é proposto
começa o outro. um estímulo luminoso descontínuo, que dá
Jacques Aumont (1993, p. 47) diz que uma impressão de continuidade (Aumont,
uma série de teorias tenta explicar tal fenômeno 1993, p. 51).

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CINEMA E QUADRINHOS NOS TEMPOS ANALÓGICOS a humanidade. As imagens são condutoras da nossa
Parecidos na estrutura, os dois meios são bastante vida diária. São elas que, digamos, dão mais graça
diferentes no que se refere à recepção. Os ao dia a dia. Já não pretendem apenas representar,
quadrinhos passam uma mensagem ao posicionar se assumem como simulacros que agem como
quadro a quadro uma determinada situação. Já na “vetos de contemplação, de comunhão com os
tela grande, a exibição também é feita através de outros” (Maffesoli, 1995, p. 91).
imagens fixas e sequenciais, mas cada ação, por Flusser (1998, p. 27) diz que a
mais simples que seja, necessita de uma centena representação imagística foi a primeira a ocorrer
de fotogramas para ser representada. na história da humanidade. Foi neste momento
Uma página de história em quadrinhos que o homem deixou de lado o contato direto com
pode ser lida por partes ou toda de uma vez. A o mundo real para ser intermediado pelas formas
percepção é feita com base na imaginação. A partir simbólicas. Mais tarde, a escrita e a tecnologia
dela, o leitor é capaz de assistir a uma determinada consolidaram de vez esta tendência. Nem sempre,
narrativa. O artista cria um roteiro que será contado porém, foi assim. Na primeira metade do século
através de desenhos e textos que representam uma XX, em que a modernidade ainda era o paradigma
situação de modo a fazer com que uma história dominante de influência, a imagem era vista com
seja criada. Caso este trabalho seja bem feito, desconfiança. Talvez porque novas tecnologias
quem olha os gibis processa em seu cérebro as estivessem surgindo e mostrando que cada vez
ações das personagens. mais a realidade poderia ser simulada quase à
No cinema, o enredo também é contado perfeição no cinema e na televisão. Assim, muita
quadro a quadro, mas não depende apenas de um gente não acreditou quando o homem pisou à lua
processo de conexão do espectador para ser em 1969. A idéia até é bastante coerente, caso se
entendido. Cada fotograma representa a parte considere que um ano antes Stanley Kubrick
ínfima de uma ação. Isoladamente, ele não apresentava ao mundo 2001 – Uma Odisséia no
representa nenhuma história. Entretanto, precedido Espaço, película de efeitos especiais
e prosseguido por outros, compõe uma animação. assustadoramente críveis.
Esta sequência de fatos que serão trabalhados no A emergência da Pós-Modernidade,
filme é definida por um roteiro montado de forma principalmente a partir dos anos 50, modificou
que quem assiste à trama possa compreender a esta situação. A imagem deixou de ser vilã, para
história sem ter que imaginar cada ação ou barulho. se tornar diva das comunicações. O fascínio que
A imaginação no cinema está nas imagens, ela exerce em nossos dias é tanto que algumas
mas tem também outro papel que, por sua vez, é pessoas arriscam dizer que estamos “na era das
exercido pelo conteúdo do filme, o de fazer imagens”. Esta afirmação, no entanto, é exagerada.
conhecer, viajar em outras realidades do mundo As representações gráficas estão presentes na vida
verdadeiro ou da ficção. Morin (1972) explica que do homem desde o princípio da humanidade, logo,
são estas imagens que levam a esse exercício do não é de hoje que a imagem exerce seu poder
imaginário. Em As Estrelas: Mito e Sedução no sobre as pessoas.
Cinema, ele diz que: Transportando-se estes conceitos para o
cinema e as histórias em quadrinhos é possível
As coisas e pessoas do universo da tela são perceber que a diferença entre a Modernidade e a
imagens, duplos. O ator desdobra-se no seu Pós-Modernidade em ambos começa pelo princípio
papel de herói. A projeção do espectador no moral. Enquanto naquela o foco principal era nos
herói corresponde a um movimento de heróis retos de caráter, no tempo do pós-industrial
duplicação. Esse desdobramento [...] os personagens são mais humanos, com
favorece a formação do mito. [...]. Para características boas e ruins, tal qual pessoas
além da imagem, projeções míticas se fixam normais. Antes, as narrativas tinham de ter um
numa pessoa concreta e carnal: a estrela papel quase educativo, no qual se deveria ensinar
(Morin, 1972, p. 67). o que é bom e o que é mau. Agora, se tem noção
de que este dualismo é relativo e que um
Além da sequência, o que as duas artes personagem pode ter as duas características em
têm em comum é o fato de terem na imagem seu seu comportamento.
mais forte atrativo. Isso se justifica no fascínio
que a representação visual sempre exerceu sobre [...] pode-se dizer que esse amoralismo é

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próprio de toda imagem, que não procura o Especialmente os quadrinhos e as produções
que deve ser em geral, mas descreve o que cinematográficas ficaram mais ricos com estas
se vê aqui e agora, e por isso não se envolve novas possibilidades, que permitiram o fim da
com modelos a imitar ou idéias a realizar, a necessidade de um herói perfeito e do final feliz.
seguir ou a aplicar. [...] a imagem é uma Com todas estas semelhanças em termos
forma que seduz, que atrai, e que, portanto, estruturais e de conteúdo é difícil se pensar em
não tem de fazer qualquer injunção moral como as histórias desenhadas podem ficar ainda
(Maffesoli, 1995, p. 98). mais parecidas com as imagens da tela grande.
No entanto, na rede mundial de computadores
No que tange ao leitor de quadrinhos a algumas inovações contribuem para reforçar este
principal diferença percebida na pós-modernidade namoro. A similaridade digital se dá com relação
é que ele está apreciando menos a aventura, aos filmes de animação, visto que são compostos
buscando temas mais reflexivos e abstratos. As por desenhos em seqüência, no mesmo princípio
histórias começam a ter, agora, total independência dos quadrinhos. Rudolf Arnhein (in Aumont,
em relação a tudo o que já havia sido feito, tanto 1993), reconhece a ligação entre tais formas de
no sentido de negação, quanto no de incorporação. arte. Ele considera, porém, que
Por isso, hoje personagens podem morrer e
reaparecer diversas vezes sem que seja preciso [...] não se deve confundir seqüencialidade
dar uma explicação para isso. Eles também podem e mobilidade: há imagens seqüenciais
ser desonestos, sombrios, ou fracassados. O prazer embora imóveis e obras móveis que não
de ler passa agora pela multiplicidade das histórias, são verdadeiramente seqüenciais. ‘É essa
pela capacidade de estar sempre em transformação. constatação que às vezes levou alguns
Seja pela ironia e bom humor, seja pela incitação autores a considerarem que os
da libido, seja pela nova atitude do (anti) herói, as procedimentos narrativos próprios ao
comic strips do pós-industrial encontraram uma cinema (a articulação de dois níveis
maneira de adentrar no imaginário dos leitores narrativos, o do plano e o da seqüência de
levando a eles seres falíveis, tão humanos quanto planos) eram apenas a retomada e o
eles. prolongamento de procedimentos narrativos
De acordo com Morin (1972), foi a existentes desde sempre nas outras artes.
melhoria das condições de vida propiciadas no Essa observação não é falsa, mas é pena
século XX – principalmente no sentido trabalhista que tenha sido enunciada quase sempre de
– que permitiu o surgimento em cada indivíduo forma inversa: as outras artes teriam sido
do desejo de viver sua vida, ter os seus próprios mera prefiguração do cinema, um “pré-
sonhos. Essa mudança de postura, precedida pelo cinema”’ (Arnhein, 1954, in Aumont, 1993,
culto aos ídolos (heróis), foi o que promoveu uma p. 246).
transformação nos tipos divinizados. Diz ele:
As novas possibilidades desenvolvidas
Uma vez que as necessidades de assimilação com a internet fizeram com que os artistas
afetiva se dirigem em primeiro lugar aos cibernéticos de histórias desenhadas utilizassem
heróis dos filmes [e também dos outros atributos na composição de seus trabalhos
quadrinhos], as estrelas foram o primeiro disponíveis na rede. Muitas destas tiras são
objeto desta transformação. Certamente os animadas e têm sons, tornando-se muito
heróis continuam heróis, isto é, modelos e semelhantes a pequenos curta-metragens
mediadores. Mas, combinando cada vez desenhados. Contudo, ainda podem ser
mais intimamente, e de forma variada, o consideradas quadrinhos por trazerem em sua
excepcional e o habitual, o ideal e o estrutura características clássicas da forma de
quotidiano, eles passam a oferecer a comunicação, como o uso de balões e a divisão
identificação de pontos de apoio mais estática quadro a quadro. É aí que se encaixa a
realistas (Morin, 1972, p. 13). pergunta: onde terminam os quadrinhos e onde
começa o cinema nestas apresentações digitais?
A queda da pseudo-moralidade e da Para responder a esta questão é necessário analisar
pseudo-revolta contra tudo o que já havia sido feito a composição de cada um destes meios de
representou a libertação da imaginação. comunicação.

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CINEMA E QUADRINHOS NOS TEMPOS DIGITAIS numa “linguagem” que se vale da experiência
O cinema é formado por três matrizes linguísticas: visual comum ao criador e ao público. Pode-
sonora, visual e verbal. Se caracteriza pela exibição se esperar dos leitores modernos [sic] uma
rápida de uma série de fotografias – ou desenhos compreensão fácil da mistura imagem-
– de modo a criar na tela um movimento aparente, palavra e da tradicional decodificação do
simulando a realidade. É uma criação dos irmãos texto. A história em quadrinhos pode ser
Lumière de 1895. Começou como registro de chamada “leitura” num sentido mais amplo
pequenas cenas do cotidiano e acabou tornando- que o comumente aplicado ao termo (Eisner,
se um meio predominantemente de ficção, embora 1989, p. 7).
documentações da vida real continuem ocorrendo.
Iniciou preto-e-branco e mudo, ganhou som, cor É inquestionável, contudo, a supremacia
e efeitos especiais. Na atualidade começa a ser da imagem sobre as palavras nas histórias em
feito e montado através de tecnologias digitais, quadrinhos. Sem os desenhos, seria apenas mais
como câmeras e computadores1. uma forma de narrativa em prosa, semelhante a
Segundo Moya (1977), a origem da outras existentes. Essa marca registrada do meio,
história em quadrinhos remonta à Pré-história, a ilustração, não pode ser feita de qualquer jeito.
quando os primeiros homens começaram a Por mais abstrata ou perfeccionista que seja, esta
representar situações de caça através de desenhos imagem precisa remeter ao imaginário do leitor, a
nas paredes das cavernas. Na Antiguidade, foi fim de que ele entenda exatamente aquilo que se
usada no Egito, nas pinturas de pirâmides e vasos, pretende passar, como noções de movimento e
e no Império Romano, nos “noticiários” dados emoções das personagens.
pelos “césares” aos seus súditos. Os quadrinhos Outro elemento estrutural das historietas
propriamente ditos surgiram no auge da é, ainda segundo Eisner (1989), o timing narrativo.
Modernidade, ao que se seguiu à Segunda O tempo – quantidade de quadrinhos que
Revolução Industrial. O momento era de demonstram uma determinada ação – é essencial
imperialismo, guerras (mundiais e Fria) e para explorar a emoção na leitura em sequência.
desesperança. Uma das características mais marcantes desta
Nesse contexto, se abriu uma lacuna no forma de comunicação, contudo, é a escrita em
imaginário humano, ao que se necessitava de um balões. Inicialmente, ela teve a função de separar
divertido consolo no jornal diário, tão cheio de a fala do desenho para marcar bem sua função de
catástrofes e destruição. Assim, nasceram as tiras diálogo. Depois, com os contornos diversos o
de heróis e super-heróis. Os primeiros eram do recurso passou a servir para identificar diferentes
tipo bondoso, honesto, sempre disposto a ajudar; formas de expressão. Por exemplo, um balão com
os outros, seres dotados de poderes sobre- linha contínua se refere a uma fala, o em formato
humanos, capazes de acabar com todo o tipo de de nuvem é um pensamento e o tremido revela
injustiça e “mal”. um som de rádio ou telefone.
Através da leitura de Will Eisner (1989) é Com o advento da internet, muitas tiras
possível concluir que se convém chamar de passaram a ser feitas por computador para serem
história em quadrinhos a forma narrativa em que lidas em rede. Foi no ciberespaço que alguns
ilustrações e textos se complementam formando artistas começaram a ousar na composição delas,
em um mesmo espaço uma trama que deve ser hibridando características fundamentais dos
lida em conjunto dentro de certo enquadramento. quadrinhos com ferramentas de outros meios.
Para ele, “as regências da arte [...] e as regências Dessa forma sons e algumas animações passaram
da literatura [...] superpõem-se mutuamente” a fazer parte destas narrativas, mudando o modo
(Eisner, 1989, p. 8). Tal forma de comunicação de se enxergar as histórias em quadrinhos.
utiliza uma série de imagens repetitivas, de modo
a formar um código de cumplicidade com o leitor. Hoje vivemos no [imaginário] da tela, da
Mesmo quando não têm narração ou falas, os interface e do redobramento, da
comics se utilizam dos recursos verbais – como contigüidade e da rede. Todas as nossas
palavras desenhadas – para contar determinada máquinas são telas, e a interatividade dos
situação. homens transformou-se na das telas. Nada
do que se inscreve nas telas é feito para ser
As histórias em quadrinhos comunicam decifrado em profundidade, mas sim para

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ser explorado instantaneamente, numa ab- outra, além do formato convencional.
reação imediata ao sentido, num curto- Por vezes, esta animação é, realmente,
circuito dos pólos da representação. [...] A contínua, como num filme. A presença de balões
leitura de uma tela é completamente com falas e a forma como a história é desenhada,
diferente da do olhar. É uma exploração porém, insinuam que se trata de quadrinhos,
digital, em que o olho circula segundo uma mesmo que os ditos “quadradinhos” não apareçam.
linha constante. A relação com o interlocutor Esta é uma consequência da entrada do meio na
na comunicação é da mesma ordem: tátil e web, pois como afirma Negroponte (1995, p. 48),
exploratória. [...] Todo o paradigma da “ser digital é optar por ser independente [dos]
sensibilidade mudou [...] A tela é virtual, padrões confiantes”.
logo, intransponível. Por isso ela se presta A atração no mundo digital se dá
a essa forma abstrata, definitivamente exatamente por esta variedade de exemplares
abstrata, que é a comunicação (Baudrillard, disponíveis na quase infinita rede. Pré-modernas,
1997, p. 62-63). modernas e pós-modernas, as narrativas lá
disponíveis agradam os mais diversos
Sedutores no papel – conforme explicita espectadores. Há heróis, anti-heróis, histórias com
Cirne em Quadrinhos, Sedução e Paixão (2001) moral, tramas pervertidas, desenhos detalhistas e
– os quadrinhos podem ser ainda mais fascinantes garranchos informais. A maior parte do que já foi
na internet, onde, auxiliados por outras tecnologias feito e coisas que nunca antes se havia visto em
ganham contornos estéticos inusitados. Na rede, quadrinhos dividem espaço neste mar de Pós-
além de cores e roteiros, pode-se combinar som e Modernidade eletrônica.
movimento para animar os quadros, utilizando O que está em discussão aqui, entretanto,
outros sentidos do leitor além da visão. Com isso, não é se o que se vê é parte de um meio ou de
as histórias podem ser perpassadas ao espectador outro, mas a queda de barreiras entre as duas
de forma mais eficaz, pois os apetrechos não formas de comunicação. A “antiga” – ou moderna
transformam, mas ressaltam elementos essenciais – divisão entre mídias quentes e mídias frias, usada
da arte seqüencial. As cores ficam mais vibrantes para qualificar veículos de recepção pessoal ou
com as múltiplas possibilidades do computador, a coletiva, não faz mais sentido. A internet hibrida
fonte (letra) dos textos ganha uma gama de opções os diversos formatos de mídia permitindo contato
imensa, não precisando necessariamente copiar a individual e grupal simultaneamente. Este é o
escrita manual. O desenhar fica mais fácil, reflexo de uma forte tendência que se evidencia
proporcionando que pessoas sem muita habilidade nos tempos pós-modernos. A condição em que
com canetas, mas grande talento no mouse possam vivemos clama pela multiplicidade em todas as
fazer impressionantes criações. O ciberuniverso formas de interação social. Desse modo, não é de
de imagens das bandes dessinées inclui desde o se admirar que a rede, o mais pós-moderno de
clássico até formas psicodélicas. todos os meios, venha a unificar diversas formas
A semelhança dos quadrinhos cibernéticos de comunicação.
é com o princípio da imagem em movimento.
Enquanto em seu formato analógico, as historietas [...] o declínio do individualismo [é] que da
narram aventuras que podem ser vistas, mas o forma à pós-modernidade social. Para dar
leitor não vê o movimento propriamente dito. Ele conta das relações sociais contemporâneas,
é induzido a imaginar tal situação. No meio digital, não podemos falar mais a partir de uma
em muitas histórias a ação realmente ocorre, sendo perspectiva individualista, contratual, a
possível vislumbrá-la, tal qual em um filme. partir de uma estrutura mecânica que
Ao contrário do que acontece no cinema, marcou a modernidade. Pelo contrário,
no entanto, a animação das histórias em quadrinhos devemos estar atentos aos múltiplos papéis
da web nem sempre é contínua. Em algumas delas, dos sujeitos sociais (Lemos, 2002, p. 71).
o leitor é convidado a assistir a uma ação e, depois,
precisa apertar um botão para seguir adiante. Mas Para o internauta, pouco importa do que
este é apenas um tipo de formato que pode ser se trata aquilo que ele vê. O relevante é a diversão
visto na rede. Existem histórias interativas, cujo resultante desta multiplicidade, que torna ainda
final é o leitor quem escolhe, tramas em formato mais divertida uma forma de comunicação já
“gif”, que ficam oscilando entre uma “cena” e consagrada. Com um toque de narrativa

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cinematográfica, as histórias têm uma nova não nos ateremos em muitos detalhes à história do cinema.
revolução, capaz de torná-las ainda mais atuais e
interessantes para seu público cativo. REFERÊNCIAS
É importante ressaltar, contudo, que a
incorporação dos quadrinhos na Internet não AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, SP: Papirus,
1993.
interfere em nada na forma tradicional deste meio.
As histórias em revistas continuam tendo o mesmo BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal: ensai-
êxito que tinham antes do advento da web, assim os sobre os fenômenos extremos. Campinas, SP: Papirus,
como ocorre no cinema. As novas tecnologias 1992.
______. Tela Total: mito-ironias da era do virtual e da
criam possibilidades, mas são incapazes de excluir imagem. Porto Alegre: Sulina, 1997.
aquilo que já havia sido feito.
A aproximação entre cinema e quadrinhos CIRNE, Moacy. Quadrinhos, Sedução e Paixão.
na cibercultura é uma decorrência natural da rede Petrópolis: Vozes, 2001.
mundial de computadores. A rede, que une em COELHO NETTO, José Teixeira. Moderno Pós Moder-
seu interior um pouco de tudo o que já se havia no. São Paulo: Iluminuras, 1995.
feito em comunicação, comporta possibilidades
ainda incontáveis que permitem tanto a utilização DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para Ler o
Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. Rio
comum das velhas formas de troca de informação de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
quanto à realização de experiências de transição
entre as diversas mídias. No que tange às imagens, EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Pau-
um meio que conjuga fotografias, desenhos, arte, lo: Martins Fontes, 1995.
televisão e animações, possui probabilidades FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para
infinitas de conjugação. Wolton (2003) confirma: uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
[...] as novas tecnologias encorajam a
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio
capacidade de criação. Existe na realidade de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990.
um imaginário, e uma criação ligada à Net,
que retoma um pouco a cultura dos HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna: uma pes-
quisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo:
quadrinhos, as imagens da televisão, a
Loyola, 1993.
velocidade, as grafites e se interessa em
descobrir uma outra escrita. A Internet [...] LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social
relança um imaginário, uma procura de na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.
estilos e de forma que exprimem a [pós] LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna.
modernidade (Wolton, 2003, p. 87). 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

Na constante inclusão da Pós- MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Por-


to Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
Modernidade, o velho é a raiz de tudo o que surge
de novo. A hibridação é uma das características MOYA, Álvaro de. Shazam! São Paulo: Perspectiva,
mais em voga na atualidade, especialmente no que 1977.
se refere às novas tecnologias. Assim, talvez não ______. História da História em Quadrinhos. São Paulo:
Brasiliense, 1993.
se deva questionar se boa parte dos cibercomics
são quadrinhos ou são cinema. Possivelmente MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema.
sejam algo novo, uma mistura, capaz de seduzir Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
os leitores-espectadores com atributos das duas
NEGROPONTE, Nicholas. A Vida Digital. São Paulo:
mídias. Companhia das Letras, 1995.

RAHDE, Maria Beatriz Furtado. Imagem: estética mo-


derna & pós-moderna. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
NOTAS
ROSNAY, Joël de. O Homem Simbiótico: perspectivas
*
Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Univer- para o terceiro milênio. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
sidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail:
marciasv1980@gmail.com WOLTON, Dominique. Internet, e depois? Uma teoria
crítica das novas mídias. Porto Alegre: Sulina, 2003.
1
Como este artigo versa sobre as histórias em quadrinhos,

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