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Projeto de Tese de Doutorado

A poética do curta-metragem brasileiro: uma análise das estruturas narrativas do


curta-metragem

Lucas Furtado Esteves

Orientadora: Dra. Miriam Rossini

Porto Alegre 2021


Sumário

1. Tema .......................................................................................................................................... 3
2. Justificativa ............................................................................................................................... 5
3. Metodologia .............................................................................................................................. 6
4. Fundamentação Teórica .......................................................................................................... 11
5. Objetivos ................................................................................................................................. 16
5.1 Objetivo Geral ....................................................................................................................... 16
5.2 Objetivos Específicos ............................................................................................................ 17
6. Estado da arte .......................................................................................................................... 17
7. Proposta sumário qualificação ................................................................................................ 23
8. Proposta sumário tese .............................................................................................................. 24
9. Análise exemplo de curta-metragem ....................................................................................... 25
10. Referências Bibliográficas .................................................................................................... 31
1. Tema

O curta-metragem é um gênero muito menos difundido e consumido do que o


longa. Em termos comerciais, por não estrearem nas telas e não venderem ingressos, os
curtas não geram lucro para aqueles que os produzem e, portanto, não recebem atenção
dos investidores e nem dispõem de orçamentos elevados. Em alcance de público,
também não há uma grande popularização desse formato, uma vez que sua veiculação
se restringe a festivais, sites da internet e, quando muito, antecedem a exibição de um
longa nas salas de cinema. Na pesquisa acadêmica que investiga obras
cinematográficas, embora haja alguma exploração desse campo, o longa-metragem é
também muito mais valorizado. Há nisso uma grande perda. Os curtas-metragens
exercem total influência sobre a produção de cinema como um todo, uma vez que são o
espaço ideal para a experimentação de novas linguagens. Porém, essa influência não
costuma ser destacada. Os curtas não tem compromisso mercadológico com a indústria
audiovisual. Justamente nesse descompromisso financeiro é que reside uma das
principais atribuição dos curtas, a de experimentarem novas formas, novas linguagens e
novas dinâmicas narrativas, sem medo que isso resulte em perda de dinheiro.

Em função de pesquisas de maior fôlego não investigarem a construção de


curtas-metragens, nota-se que há um déficit de bibliografias a respeito desse gênero.
Embora haja sim uma série de artigos, monografias, dissertações e teses que têm como
objeto de pesquisa os filmes curtos, não existem discussões teóricas mais amplas que
busquem compreender quais as especificidades narrativas de um curta-metragem e no
que elas se diferem dos longas. Ou seja, enquanto os principais livros que discutem a
linguagem cinematográfica dão foco aos filmes de longa-metragem, é raro encontrar
reflexões que pensem sobre as dinâmicas específicas do curta. Mesmo os manuais
técnicos, amplamente difundidos e utilizados como bibliografia nas escolas de cinema,
se ocupam de radiografar as estruturas narrativas de obras longas e fornecer ferramentas
para que os realizadores compreendam como construir seus próprios filmes. E também
as estruturas narrativas mais populares, como é o caso da jornada do herói
(CAMPBELL, 1989), dizem respeito às narrativas de maior duração. Seria possível
identificar essas dinâmicas também em curtas?
Muito produzidos no Brasil, os curta-metragens realizados no país tem ganho
cada vez mais destaque nacional e internacionalmente. Figurando em festivais como
Cannes, Berlim e Veneza, a filmografia de curtas nacionais conta com obras que
renovaram o gênero e colocaram o cinema brasileiro no mapa, tendo sido também
responsáveis por revelarem cineastas que vieram a se consagrar com suas produções.

Em 2019, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema divulgou uma lista dos


cem curtas brasileiros mais importantes de todos os tempos, que compõe o livro “Curta
Brasileiro – 100 Filmes Essenciais” (2019). Nessa lista, destacam-se filmes produzidos
desde 1913 até 2017, que comprovam a pluralidade da filmografia brasileira desde o
inicio do século vinte. Observando essa lista é possível radiografar um panorama
daquilo que se produziu em nosso cinema ao longo dos últimos cem anos em termos de
temáticas, estéticas, linguagens, e formatos. Olhando para ela, talvez seja possível
extrarir, senão uma totalidade, um apanhado de exemplos que contemplam as
possibilidades narrativas do gênero curta e, assim, se faz possível compreender algo de
sua estrutura geral.

O presente projeto pretende construir uma poética geral do curta-metragem


brasileiro observando os cem maiores curtas produzidos no país. Essas obras serão
divididas em grupos que as unifiquem por possíveis estruturas narrativas comuns. Dessa
forma, a análise se dará não de cada obra em especifico, mas de cada grupo,
exemplificando os aspectos a serem analisados nos curtas que compõe esses grupos.
Embora a lista proponha-se como um apanhado de cem curtas-metragens, de partida
algumas questões já se colocam: em primeiro lugar, há filmes que alcançam uma hora
de duração, relativizando fortemente as definições mais conhecidas do que se entende
por curta-metragem. Além disso, não são poucos os documentários que compõe a lista,
fazendo com que uma proposta de estrutura narrativa torne-se mais abrangente e mais
difícil de ser radiografada.

Nesse sentido, duas soluções serão propostas para que as questões supracitadas
sejam resolvidas. Inicialmente, para que a duração dos curta-metragens analisados
obedeça a um critério específico, optou-se por utilizar a Medida provisória Nº 2.228-1
de 06 de setembro de 2001 que, como apontam Rossini e Renner (2015): a lei define
três formatos para a produção audiovisual no Brasoç: o curta-metragem é aquele com
duração igual ou inferior a 15 minutos; o média-metragem possui duração superior a 15
minutos e igual ou inferior a 70 minutos; e o longa-metragem aquele cura duração é
superior a 70 minutos”. Portanto, entende-se que, dos filmes que compõe a lista, serão
tratados como curta-metragens apenas aqueles que não ultrapassem quinze minutos de
duração. No caso dos documentários, optou-se por não considerá-los como parte do
corpous da pesquisa uma vez que a estrutura narrativa desse gênero cinematográfico
obedece a lógicas próprias que, por si só, renderiam uma investigação à parte. Ou seja,
essa pesquisa observará apenas filmes de ficção.

Para que essa pesquisa se faça possível, optou-se por dividir os curtas-metragens
em alguns grupos que unem as obras em uma estrutura narrativa comum. Cada grupo
será analisado em conjunto, através de métodos de análise fílmica, sendo amparados por
diferentes propostas teóricas que embasem a estrutura narrativa em questão. Os grupos
são: o curta-conto; a personagem no curta-metragem; o curta-metragem pós-dramático;
e o mini-longa. Esses grupos terão para si diferentes abordagens teóricas que serão
comentadas no segmento Fundamentação Teórica. Já o critério que originou essas
quatro categorias de análise será comentado em metodologia.

Portanto, nosso problema de pesquisa se estrutura da seguinte forma: quais são


algumas das possíveis especificidades narrativas do curta-metragem brasileiro?

2. Justificativa

O consumo de curtas é irrisório se comparado ao consumo de longas. Isso se


deve, entre outras coisas, a maneira como assistimos cinema. Não faz sentido sair de
casa, comprar um ingresso e sentar em uma sala escura para ver um filme de dez
minutos. Porém, infelizmente, em função de não haver espaços adequados para o
consumo dos curtas, boa parte deles é vista por meia dúzia de pessoas e depois é
esquecido. Por um tempo, tentou-se passar um curta-metragem antes de um longa nas
salas de cinema, como no caso do projeto “Curta nas Telas” que foi extinto em 2014.
Restou ainda a possibilidade de assisti-los em festivais, que são, no entanto, ambientes
de públicos mais restritos. Hoje em dia, com a popularização da internet, muitos deles
estão disponíveis em diversas plataformas de streaming. Porém, nenhuma dessas formas
de exibição ajudou a elevar o status do curta. Cinema, para a grande maioria das
pessoas, é sinônimo de longas-metragens.
Há nisso uma grande perda. Os curtas-metragens exercem total influência sobre
a produção de cinema como um todo, porém essa influência é pouco percebida. Por não
figurarem nos principais espaços dedicados a exibição de filmes, como é o caso das
salas de cinema, os curtas não possuem um compromisso mercadológico para com a
indústria audiovisual. Isto é, não há uma exigência por parte dos grandes estúdios de
que os curtas deem lucro, pois eles nem sequer são exibidos para o grande público. Em
função disso, os curtas detém uma função de extrema importância. É na realização deles
que se faz possível experimentar novas formas de linguagem, pois se derem errado ou
se não funcionarem bem com o público, não haverá perda de dinheiro. Além disso, os
curtas-metragens possuem uma forma especifica de se contar histórias, que é
completamente diferente da maneira de narrar longas. Porém, pouco se discute a
respeito dessas especificidades narrativas.
Levando isso tudo em consideração, mostra-se importante estudar de maneira
mais aprofundada as formas especificas de se contar uma história em um curta-
metragem. Os livros mais conhecidos sobre roteiro, como o “Manual do roteiro” (2001),
de Syd Field, “Story” (2015), de Robert Mckee ou, e “Da criação ao roteiro” (2009), de
Doc Comparato, se debruçam exclusivamente nas reflexões sobre longas-metragens.
Não há livros conhecidos que abordem as especificidades narrativas dos curtas e
ofereçam uma reflexão sobre sua construção – há somente estudos históricos sobre o
impacto do curta na história do cinema. Nesse sentido, se faz necessário que uma
pesquisa teórica inicie uma investigação nesse campo.

3. Metodologia

Enquanto assistia aos curta-metragens que compõe a lista, uma pergunta me


vinha à cabeça: como desenvolver um método de análise para observar narrativas
curtas? Incapaz de responder essa pergunta de imediato, fez-se necessário retornar a um
questionamento essencial: como se estrutura uma narrativa?. Essa indagação mostrou-se
pertinente, uma vez que se faz essencial para minha pesquisa compreender até onde as
narrativas cinematográficas se assemelham e, a partir de quando, se distanciam. Isto é, é
possível identificar paralelos entre a narrativa de um longa e de um curta-metragem? E é
possível identificar diferenças? Como já demonstrado anterirmente, a primeira, e talvez
principal diferença entre ambas, diz respeito a sua duração. Mas aquilo que estrutura as
diferentes durações de ambas as narrativas reconhece um modelo comum?

Ao fazer apontamentos sobre a fenomenologia da narração, Christian Metz


(2019), afirma que toda narração possui um inicio e um fim, o que indica que ela é,
então, uma sequência temporal. Nesse sentido, o autor afirma que, possivelmente, a
narração têm como função essencial transpor um tempo para outro tempo. Então, torna-
se necessário observar o que ocorre ao longo dessa sequência temporal dentro da
estrutura narrativa. Gerard Genette, em Figuras III (2017), estabelece uma comparação
entre o tempo do cinema e o tempo da literatura.

A dualidade temporal tão vivamente acentuada aqui, e que os teóricos


alemães designam pela oposição entre erzahlte Zeit (tempo da história) e
Erzahlzeit (tempo da narrativa) é um traço característico não somente da
narrativa cinematográfica, como também da narrativa oral em todos os seus
níveis de elaboração estética, incluindo esse nível plenamente “literário” que
é o da recitação época ou da narração dramática (GENETTE, 20017, p. 91)

Nesse trecho, o autor afirma que, no que se refere ao cinema, há apenas dois
tipos temporais. Poderíamos entendê-los, como define Christian Metz (2019), como o
tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa. Ou seja, há o tempo do significado e o
tempo do significante. E é essa a dualidade que torna possível realizar distorções
temporais, como mostrar anos da vida de um personagem em duas frases de um
romance ou em alguns planos de uma montagem cinematográfica. Nesse sentido, é
possível afirmar que a diferença mais evidente entre o curta o longa metragem diz
respeito a duração da obra, ou seja, o tempo de significante. Mas, no que diz respeito às
possibilidades de se distorcer o tempo do significado, a partir de elipses temporais e idas
e voltas no tempo, há alguma diferença entre ambos? Para responder essa pergunta, é
necessário compreendermos mais a fundo quais as principais caracteristicas estruturais
de uma narrativa. Isto é, que tipo de acontecimentos ocorrem nessa sequência temporal
que nos leva de um inicio a um fim?

Conforme eu assistia aos curta-metragens selecionados para adentar meu corpus


de pesquisa, busquei identificar padrões entre eles, no sentido de tentar evidenciar se
havia algum tipo de semelhança estrutural entre as narrativas. De partida, estabeleci um
critério básico de observação: compreender como se construiam os conflitos nos filmes.
Como afirma Joseph Campbell, o elemento fundante de uma peça dramática diz respeito
a forma como seu conflito se estrutura: “Um erro - aparentemente um mero acaso -
revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação com forças que não são
plenamente compreendidas” (CAMPBELL, 1989, p. 32), ou seja, as narrativas
dramáticas, em sua maioria, se estruturam a partir da construção do conflito, é esse o
traço fundamental que as inicia, as movimenta e que possibilita que elas avancem.
Como o próprio autor definiu, esse ponto de partida de uma narrativa ficcional,
intitulado “o chamado a aventura”, é que possibilita que uma narrativa tenha inicio. Ou,
como Campbell afirma: “Esse primeiro estágio da jornada mitológica que denominamos
aqui "o chamado da aventura" significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe
o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida”
(CAMPBELL, 1989, p. 34). Isto é, ao convocar o herói, o conflito leva-o a um território
desconhecido que será desbravado conforme a narrativa prossegue. Nesse sentido, é
possível afirmar que um dos principais motores que inicia uma narrativa – ou seja, que
dá partida em uma sequência temporal – é o conflito. Portanto, me pareceu uma boa
alternativa buscar compreender de que maneira os conflitos das obras em questão eram
desenvolvidos ao longo dos filmes.

Syd Field, em Manual do Roteiro (2001), também evoca a ideia de conflito ao


afirmar que, na sequência inicial de uma narrativa cinematográfica, somos apresentados
a “situação dramática” que fará com que a história siga à diante. É nesse contexto
também que surge a “necessidade dramática”, aquilo que o personagem precisa resolver
ao longo da narrativa. O autor afirma também que, é em busca da resolução de seu
conflito, que o personagem enfrenta uma série de obstáculos que dificultam seu
caminho, fazendo com que essa sucessão de fato que acontecem ao longo do filme,
ocorram sucessivamente. Nesse sentido, se torna possível perguntarmo-nos: será, então,
necessário que a duração da obra – seu tempo de significante – seja mais extendido para
que esses conflitos sejam desenvolvidos e explorados? É possível desenvolver uma série
de conflitos em uma obra de duração curta?

A partir dessas perguntas se estabelecem os dois primeiros critérios de análise. O


primeiro deles, intitulado “Mini-longa”, busca compreender se a estrutura narrativa de
um longa, ou seja, o acumulo de diversos conflitos que ocorrem sucessivamente, podem
também estar presente em um curta-metragem. Esse critério terá como base de análise
as etapas da jornada do herói propostas por Joseph Capbell (1989), com o intuito de
identificar a presença desses momentos em diversos curtas da lista.

O segundo critério de análise buscará observar se a presença dos conflitos em


uma obra curta se desenvolvem de uma forma diversa a dos longas, com uma sucessão
própria e uma organização exclusiva. Para isso, busca-se um referencial bibliográfico
nas teorias literárias que tentam diferenciar o conto do romance, uma diferenciação que
oferece paralelos produtivos com a diferença entre o curta e o longa-metragem.
Trabalharemos autores como Ricardo Piglia (2004) e Julio Cortazar (2006), observando
as especificidades do conto na literatura e buscando relacioná-las com o curta-metragem
para identificar suas particularidades de estrutura e linguagem. Portanto, esse critério
será denominado de “curta-conto”.

O terceiro critério de análise foi desenvolvido da seguinte maneira: partindo


ainda da premissa de que a proposição de um conflito é o ponto essencial de uma
narrativa dramática, buscou-se observar não mais o conflito em si, mas o sujeito que o
movimenta. Ou seja, para que a narrativa seja desenvolvida é preciso que alguém faça
com que ela se movimente, então, nos cabe olhar para a personagem.

Em sua Poética, Aristóeles (2008), afirma que a imitação existe a partir dos atos
das personagens. É sua construção que possibilita que as obras tenham contorno e se
desenvolvam. Segundo o filósofo, é a partir da semelhança com o homem que as
melhores personagens se constorem. Campbell (1989), afirma que o herói é o sujeito
que se transforma ao longo da narrativa, é ele que a guia. Ao longo desse percurso, o
herói revê sua visão de mundo e passa por um renascimento. Ou, como afirma o autor:

[...] pequeno ou grande, e pouco importando o estágio ou grau da vida, o


chamado sempre descerra as cortinas de um mistério de transfiguração um
ritual, ou momento de passagem espiritual que, quando completo, equivale a
uma morte seguida de um nascimento. O horizonte familiar da vida foi
ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e padrões emocionais, já não são
adequados; está próximo o momento da passagem por um limiar.

Ou seja, é possível concluir que o conflito da narrativa só existe se houver um


personagem que o enfrente, ambos estão diretamente embricados.

Nesse sentido, o terceiro critério, intitulado “o curta da personagem”, diz


respeito a observação da construção dos mesmos. Os personagens de um filme de
duração curta conseguem ser desenvolvidos de forma aprofundada? Quais as
características especificas da elaboração de uma personagem?

Para que seja possível responder a essa questão, iremos analisar alguns dos
curtas a partir de uma bibliografia que discorre a respeito do tema. Usaremos o livro A
personagem de ficção (2017), dando foco aos textos de Paulo Emílio Salles Gomes e
Antonio Candido. Ademais, trabalharemos com o livro A personagem (1985), de Beth
Brait. Dessa forma, será possível identificar a quais caracterísiticas da construção de
uma personagem o curta-metragem se filia e em quais aspectos ele se diferencia.

Por fim, nosso último critério de análise observará os filmes que não se
aproximam de nosso critério essencial, que é a construção de conflito. Ou seja,
analisaremos as obras que possuem uma ausência de conflito, demoniando esse critério
de “curta pós-dramático”. A teoria do pós-dramático foi desenvolvida por Hans Thies
Lehmann (1999), quando discorreu sobre uma transformação da dramaturgia teatral que
abria mão da construção de um conflito. A partir desse novo fenômeno, iniciado nos
anos sessenta, o autor buscou observar as características estruturais dessas obras para
identificar quais suas particularidades e de que maneira elas se diferenciavam da
dramaturgia tradicional. A partir de suas reflexões, uma série de outros pensadores
também expuseram suas visões dessa temática e uma bibliografia se constituiu. Nesse
sentido, iremos nos servir dessa bibliografia para observar se esse fenômeno também
está presente no curta-metragem brasileiro e de que maneira ele se coloca. Além dos
textos de Lehmann, utilizaremos “A poética do drama moderno” (2017), de Jean-Pierre
Sarrazac, “Por um novo romance” (1969), de Alain Robbe-Grillet e “O pós-dramático”
(2019), organizado por J.Guisburg e Sílvia Fernandes.

A partir desses quatro critérios, os curtas foram divididos. Assistindo aos filmes,
observou-se que cada tantos se aproximam mais de um dos critérios e, por fim, chegou-
se a esse resultado:

Mini-longa
A velha a fiar (1964), de Humberto Mauro; Meow
(1981), de Marcos Magalhães; “Os óculos da vovó
(1913), de Francisco Santos; Exemplo Regenerador
(1919), de José Medina; Frankenstein Punk (1986) de de
Cao Hamburguer e Eliana Fonseca.

Curta-conto Couro de gato (1962), de Joaquim Pedro; Fantasmas


(2011), de André Novais; O dia em que Dorival encarou
a guarda (1986), de Jorge Furtado; Cartão-Vermelho
(1994), de Laís Bodanzky; Carro de boi (1974), de
Humberto Mauro; O rei do cagaço (1977), de Edgard
Navarro.
Curta da personagem
Sangue Corsário (1979) de Carlos Reichenbach; Esta rua
tão agusta (1968), de Carlos Reichenbach; O tigre e a
gazela (1977), de Aloysio Raulino; Palindromo (2001),
de Philippe Barcinski; Dov'è Meneghetti? (1989), de
Beto Brant; Guida (2014), de Rosana Urbes.

Curta pós-dramático
Alma no Olho (1974), de Zózimo Bulbul; Texas Hotel
(1999), de Cláudio Assis; O ataque das araras (1975), de
Jairo Freitas; Carolina (2013), de Jeferson De;
Animando (1983), de Marcos Magalhães; H.O (1979),
de Ivan Cardoso.

4. Fundamentação Teórica

Para esse tópico, irei demonstrar brevemente alguns dos conceitos que serão
propostos para que se observem os dois primeiros critérios de análise. São eles: o conto-
curta e o conto pós-dramático.

O curta-metragem e o conto possuem uma série de semelhanças em suas


especificidades narrativas. Em primeiro lugar, como diz Cortázar (2006, p.157): “O
contista sabe que não pode proceder cumulativamente, que não tem por aliado o
tempo”. O mesmo vale para o curta. Enquanto o longa-metragem e o romance têm a
possibilidade de narrar uma história aos poucos, a partir de um acúmulo de conflitos e
situações, o conto e o curta precisam encontrar outras soluções de construção narrativa
para contarem suas histórias, já que não dispõem de um longo tempo para construir suas
tramas. Cortázar argumenta da seguinte maneira: “seu único recurso [o do conto] é
trabalhar em profundidade, verticalmente, seja acima ou abaixo do espaço literário”. Ou
seja, o autor propõe uma definição extremamente útil para pensarmos a construção da
narrativa curta. No caso de uma narrativa longa, a linha do tempo se dá na horizontal,
pois há uma construção passo a passo da história. No caso da narrativa curta, a linha do
tempo deve ser na vertical, o que significa que todos os aspectos da narrativa estariam
sobrepostos e em profundidade e, por isso, o conto e o curta proporcionam diversas
camadas de compreensão.

Cortázar ainda diz:


O excepcional reside em uma qualidade parecida com a do ímã; um bom
tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor e, mais
tarde, no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e
até ideias que flutuam virtualmente em sua memória ou sua sensibilidade
(CORTAZAR, 2006, p. 154)

Nesse trecho, o autor afirma que, para que a construção narrativa do conto seja
bem sucedida, o importante é que as camadas sobrepostas nessa linha de tempo vertical
evoquem elementos da história que não estão contidos em seu curto espaço de tempo,
mas presentes no passado e no interior das personagens. Isso significa que a narrativa
curta tem a missão de dar conta de uma totalidade de elementos muito mais amplos do
que a história narrada entre a primeira e a última página. Ou, no caso do curta, entre o
primeiro e o último minuto de filme.
Essas reflexões de Cortázar relacionam-se diretamente com as “Teses sobre o
conto” de Ricardo Piglia (2004). Em suas reflexões, o autor postula que nem tudo o que
é contado em um conto está em sua superfície mais acessível. É possível, portanto,
identificarmos na própria narrativa indícios de que há outras camadas de compreensão
da história.
É importante atentar para o fato de que não estamos falando da mera
interpretação de um texto narrativo. Ou seja, “as teses” de Piglia não dizem que um
conto pode sugerir múltiplas interpretações que o encaixem em um contexto social, em
uma crítica política, ou em uma metáfora. Ele fala da possibilidade de identificarmos
mais de uma camada de histórias a serem contadas dentro de um texto literário. Nas
palavras de Piglia (2004, p. 89):

Num dos seus cadernos de notas, Tchekhov registra essa anedota: “Um
homem em Monte Carlo vai a um cassino, ganha um milhão, volta para casa
e suicida-se”. A forma clássica do conto está condensada no núcleo desse
relato futuro e não escrito.
Contra o previsível e o convencional (jogar-perder-suicidar), a intriga se
oferece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo
e a história do suicídio. Essa cisão é a chave para definirmos o caráter duplo
da forma do conto.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.

Piglia, no trecho acima, defende que, quando há uma constituição paradoxal


entre as ações narradas, há indícios de que uma outra história escondida também está
sendo contada. No momento em que a narrativa de Tchekhov apresenta um homem que
acaba de viver algo positivo, mas comete suicídio, o texto está nos indicando que há
mais a ser contado para entendermos o que houve:
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato
do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do
contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um
relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e
fragmentário (PIGLIA, 2004, p. 89-90).

Com isso, torna-se mais compreensível a tese que Piglia está defendendo. Para
ele, sempre haverá uma história submersa enquanto a história visível estiver sendo
narrada. Cabe ao texto apresentar indícios cifrados ao longo da narrativa para que
venhamos a entender que história secreta é essa.
Uma analogia possível para a tese de Ricardo Piglia é a imagem do iceberg.
Aquilo que é narrado explicitamente é a parte superior do iceberg, mas aquilo que está
por trás da história (uma história secreta) é a parte submersa daquela narrativa:

O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido


oculto que dependa da interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma
história contada de modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço
dessa narração cifrada. Como contar uma história enquanto se conta outra?
Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas
variantes (PIGLIA, 2004, p. 91).

Aqui, fica claro que, além da segunda história não ter relação com uma
interpretação do conto, ela é imprescindível para que ele exista. Piglia define conto
como aquele tipo de narrativa que consegue efetivar essa mistura de uma história visível
e outra secreta. E infere que a grande questão a ser debatida diz respeito aos recursos
técnicos utilizados pelos autores para que essa história submersa apareça
esporadicamente na história visível.
Por fim, diz Piglia (2004, p. 94): “o conto é construído para revelar
artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma
experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade
secreta”.
Os estudos a respeito do teatro pós-dramático já não são de hoje. O crítico e
professor Hans-Thies Lehmann, responsável por cunhar o termo, publicou seu primeiro
livro a respeito do assunto em 1999. A necessidade de discutir essa ideia, partiu de uma
reflexão de Lehman a respeito de uma tipo de teatro que estava se produzindo desde os
anos 70 e que, segundo ele, abordavam a dramaturgia de uma maneira diferente.

Lehman aponta:
O adjetivo “pós-dramático” designa um termo que se vê impelido a operar
para além do drama, em um tempo após a configuração do paradigma do
drama no teatro. Ele não quer dizer negação abstrata, mero desvio de olhar
em relação à tradição do drama. Após o drama significa que esse continua a
existir como estrutura – mesmo que enfraquecida, falida – do “teatro normal”
(…) Pode-se então descrever assim o teatro pós-dramático: os membros ou
ramos do organismo dramático, embora como um material morto, ainda estão
presentes e constituem um espaço de uma lembrança “em irrupção”.
(LEHMAN,2007, p. 33-34)

Ou seja, o teatro pós-dramático não nega o drama, ele compreende sua tradição e
busca uma reapropriação de seus dispositivos. Porém, é importante compreendermos
um pouco mais quais são as características específicas do teatro pós-dramático para
pensarmos sua relação com o cinema.

A primeira característica atribuida por Lehman é a da Parataxe. Para o autor, no


teatro pós-dramático há uma des-hierarquização dos recursos teatrais que faz com que
eles não se mantenham mais concatenados. Um exemplo, seria o texto já não sendo
mais o protagonista do desenvolvimento das ações, mas, no seu lugar, o uso de
elementos como a iluminação, as sombras, o figurino ou os objetos. Não há uma
harmonia entre o uso de um objeto e a ação do ator, mas um tensionamento que pode
colocar ambos em oposição ou gerando diferentes tipos de significados. Para Lehman, a
principal consequência disso é de que o espectador irá estabelecer uma relação diferente
com o espetáculo. Ao assistir, aquele que vê não encontrará um significado imediato e
nem uma relação de causa e efeito entre as ações.

Outra característica apontada por Lehman, é a da Simultaneaidade. O autor


afirma que, em contraste com o teatro dramático, que dá foco a determinadas ações ou
gestos, o teatro pós-dramático lida com diversos elementos cenicos ocorrendo
simultaneamente. Nesse sentido, não há como o espectador absorver tudo o que está
ocorrendo no palco, ele irá percorrer os diferentes estimulos e extrair do conjunto
significados muito menos delimitados.
Outra característica que Lehman atribui ao teatro pós-dramático é de irrupção do
real. Para o autor, há uma diferença na forma como o real é apreendido no teatro
dramático e no teatro pós-dramático.

O autor afirma:

A ideia tradicional de teatro parte de um cosmo ficticio fechado, de um


universo diegético, que pode ser assim chamado ainda que resulte dos
recursos da mímesis (imitação), a qual normalmente é contraposta à diegeses
(narração). Embora o teatro conheça uma série de rupturas
convencionalizadas (…) a representação cenica é compreendida como
diegesis de uma realidade distinta e “emoldurada”, na qual imperam leis
próprias e um nexo interno dos elementos que se destacam como realidade
“encenada” da realidade em torno. (LEHMAN, 2007, p. 163)

Ou seja, no teatro dramático a separação da encenação para com o real fica


muito delimitada, como se o ambiente do palco servisse de moldura para um quadro.
Porém, em relação ao teatro pós-dramático, Lehman afirma:

O elemento estético não pode ser compreendido por nenhuma determinação


de conteúdo, mas apenas como via de fronteira, como conversão continua
não de forma e conteúdo, mas de contiguidade “real” (conexão com a
realidade) e construção encenada. É nesse sentido que se diz que o teatro
pós-dramático é teatro do real. Ele busca cultivar uma percepção que efetue
por própria conta o vaivém entre a percepção estrutural e o real sensorial.
(LEHMAN, 2007, p. 167)

A partir desse trecho, é possível observar que, tanto no teatro pós-dramático


como no dramático, há uma noção de que o que está sendo encenado não é real, mas, no
caso do pós-dramático, a partir de seus estimulos sensoriais, se estabelece uma outra
conexão para com a realidade. Isto é, há um movimento pendular que afirma a condição
estrutural da obra em questão, mas há também uma tentativa de se apreender a relação
que aquela obra estabelece com a realidade.
Jean-Pierre Sarrazac, diretor, dramaturgo e professor, observa limitações nas
definições de Lehman a respeito do pós-dramático. Para Sarrazac, Lehman define bem
questões relacionadas a fenômenos iniciais desse tipo de teatro, mas o que ocorre no
contemporâneo já não se aplica mais à maioria desses pensamentos. Sarrazac, em suas
cartas para Bernard Dort, afirma que está correta a ideia de Lehman em retirar o teatro
do “textocentrismo”, ou seja, da centralização do fazer teatral no texto dramaturgico.
Mas Sarrazac também alerta que não se pode, a partir disso, vigorar o “cenocentrismo”.

Segundo o autor, o drama segue vivo e encontra-se em um novo momento,


mesmo que o paradigma possa ser outro. Ele afirma que muito do que se produz hoje
em termos de dramaturgia, diz respeito a outros tipos de ferramentas que não o texto.
Sua principal crítica ao trabalho de Lehman é de que sua ideia de pós-dramático sugere,
por vezes, o fim do drama. Em contrário a isso, Sarrazac acredita em mutações do
drama, mantendo-se ele vivo, porém diferente. Sarrazac propõe, então, o conceito de
drama-da-vida. Essa proposta consiste na ideia de que o teatro contemporâneo possui
caracterísitcas do drama, mas as utilizam de formas distintas: os personagens são
menores, os eventos e os conflitos não possuem grande peso, as aflições dos
personagens ocorrem em terreno muito mais íntimo e introspectivo, e a ação dramática
será muito menos uma ação ativa do que uma ação passiva.

Sarrazac também discorre a respeito da ideia de “ação”. Segundo ele, uma dos
principais argumentos daqueles que falam a respeito da morte do drama é de que o
teatro contemporâneo já não contém mais ações como no teatro dramático. Porém, o
autor propõe um alargamento da ideia de “ação”. Para ele, a ação não necessariamente
consiste no gesto do ator que determina a cena, mas poderia dizer respeito a uma ação
mais contida, uma ação interna ou uma ação desdramatizada.

Os outros dois critérios de análise, que dizem respeito a construção da


personagem e ao mini-longa, ainda estão sendo formulados de acordo com as
bibliografias citadas no tópico Metodologia.

5. Objetivos

5.1 Objetivo Geral


Compreender algumas das possíveis especificidades narrativas do curta-
metragem brasileiro.

5.2 Objetivos Específicos

a) Investigar quais as especificidades narrativas do curta-metragem brasileiro a


partir de critérios pré-determinados;
b) Estudar as teorias do gênero conto na literatura e relacioná-las com a
estrutura do curta-metragem;
c) Investigar de que maneira as teorias a respeito da construção de personagens
possibilitam compreender a estrutura narrativa de curtas-metragens;
d) Compreender como as reflexões a respeito do pós-dramático contribuem
para estudarmos curta-metragens brasileiros;
e) Observar de que forma alguns curta-metragens tentam se filiar a estrturas
narrativas de longa-metragens;

6. Estado da arte

A produção acadêmica acerca das narrativas de curtas-metragens já é vasta e


aponta para diferentes direções. Porém, ela se divide em duas vertentes, como é o caso
de qualquer estudo que diga respeito a uma área criativa. Em primeiro lugar, existem os
livros que dão foco a discussão sobre o fazer cinematográfico em si. Ou seja, livros
“técnicos” que são destinados àqueles que querem aprender a fazer cinema. É o caso,
por exemplo, do livro “Criação de curta-metragem em vídeo digital: uma proposta para
produções de baixo custo” (2009), de Alex Moletta. Por outro lado, há a produção
científica que se debruça em analisar curtas-metragens a partir de diferentes pontos de
vista e com objetivos distintos. Para esse trabalho, ambas as bibliografias serão úteis,
uma vez que se mostra importante analisar diversas obras e também compreender sua
realização. Em meu estado da arte, apresento, inicialmente, uma breve história do
curta-metragem como gênero narrativo para, em seguida, me debruçar sobre as
pesquisas sobre curtas-metragens contemporâneos no cinema brasileiro.
Há cinco momentos fundamentais na produção de curtas-metragens ao longo da
história do cinema. O primeiro deles, ainda na era do cinema mudo, é o das comédias
pastelão, que narravam as peripécias de personagens atrapalhados.

Em primeiro lugar, para as comédias ligeiras, de humor visual, que contavam


histórias que se resolviam satisfatoriamente em um tempo médio de 15
minutos - uma tradição que vem do cinema mudo, é claro, com os filmes
curtos de Chaplin, Buster Keaton, Max Linder, toda a história do pastelão
(ASSIS BRASIL, 2001)1.

Depois desses, diversos curtas passaram a ser realizados por cineastas


experimentais. É nesse momento, principalmente a partir da década de 1920, que o
curta-metragem começa a exercer uma de suas principais funções: testar novas formas
de se utilizar a linguagem audiovisual e contribuir para o avanço das técnicas
cinematográficas.

Em segundo lugar, o curta surge como duração adequada para o cinema


experimental, desde 1928, quando Luis Buñuel e Salvador Dali realizam "Um
Cão andaluz", provavelmente o filme mais chocante, surpreendente e
revolucionário da história do cinema - e tudo isso em apenas 17 minutos de
duração. A partir daí, boa parte dos "filmes-manifesto" buscam a duração
curta para as suas experiências radicais de linguagem, tanto as bem sucedidas
quanto as apenas curiosas ou mesmo as insuportavelmente chatas.(ASSIS
BRASIL, 2001)

Ou seja, mesmo que sejam filmes de duração reduzida, os curtas produzidos


nessa época influenciaram o cinema como um todo. Nesse sentido, se faz necessário
estudar suas narrativas mais a fundo para compreendermos mais a respeito de sua
construção.
O terceiro momento importante para a produção de curtas-metragens foi no
campo dos documentários. Diretores como John Grierson e Basil Wright, nos anos
1940, criaram o documentário social e utilizaram as narrativas curtas para contarem
histórias que retratassem a realidade de seus países. Foi a partir deles que o gênero
documentário se difundiu ao longo dos anos e ganhou a importância que conhecemos
nos dias de hoje.
Alguns anos antes, outro tipo de produção de curtas-metragens foi igualmente
importante para história do cinema: os curtas-metragens de animação.

1
Artigo publicado no site da Casa de Cinema de Porto Alegre em 2001. Disponível em:
http://www.casacinepoa.com.br/as-conex%C3%B5es/textos-sobre-cinema/por-que-curta-metragem.
Acessado em 08/10/2018. Todas as citações de Giba Assis Brasil são referentes a esse artigo.
Entre as décadas de 20 e 30, Walt Disney e outros pioneiros definem 6 a 8
minutos como o tempo ideal para os filmes de animação. Ainda que o próprio
Disney vá mais tarde constituir um verdadeiro império com seus longas
animados, foi com os curtas que ele ganhou a maior parte dos seus mais de
30 Oscars. E foi também a partir do curta de animação, de seu ritmo e forma
de utilização da linguagem, de sua evolução em termos de capacidade de
síntese e impacto visual (ASSIS BRASIL, 2001)

Mesmo que nos anos seguintes Disney viesse a construir seu império em cima de
longas de muito sucesso, a empresa nunca deixou de produzir curtas, mantendo esse
costume até os dias de hoje.
O último momento de grande importância do curta-metragem foi a difusão de
sua produção no Brasil. Isso ocorreu a partir dos anos oitenta fazendo com que o curtas
brasileiros viessem a ganhar prêmios no mundo inteiro e se tornassem respeitados ao
redor do globo.

Ainda está para ser devidamente estudada a importância do cinema brasileiro


na revitalização mundial do curta-metragem ocorrida nos últimos 20 anos:
seja pela quantidade de festivais dedicados ao formato, pelo espaço aberto
nas televisões ou pelos inúmeros fundos de apoio à produção, a verdade é que
o curta não é mais apenas espaço de experimentação, ou restrito a gêneros
específicos, ou apenas ensaio para a produção de longas. Curta-metragem é
hoje nem mais nem menos que um formato de cinema. (ASSIS BRASIL,
2001)

Ou seja, como afirma Assis Brasil, em função desses cinco momentos


fundamentais da produção do curta-metragem, ele se tornou um formato de cinema por
si só. Porém, isso não foi suficiente para torná-lo tão popular e valoroso quanto o longa-
metragem. E, nesse sentido, é fundamental dar continuidade aos estudos referentes ao
curta.
A pesquisa acerca do curta-metragem brasileiro contemporâneo se debruça
principalmente na análise fílmica de obras. Diversos trabalhos, que vão desde artigos,
monografias, dissertações e teses, buscam analisar determinados curtas com o objetivo
de compreender sua construção fílmica em diferentes áreas do fazer audiovisual. No
caso da construção narrativa existem algumas pesquisas que buscam compreender quais
são as especificidades do curta-metragem na sua maneira de contar histórias. É o caso,
por exemplo, do livro “A linguagem do cinema” (2013), de Robert Edgar-Hunt, John
Marland e Steven Rawle, que em um de seus capítulos faz uma proposta de quais
seriam as características narrativas que um curta-metragem deve possuir. Segundo os
autores, o curta-metragem deve conter poucos personagens, não deve apresentar
subtramas e deve se passar em poucas locações (2013). São essas, ideias simples, talvez
óbvias, e não necessariamente absolutas no que diz respeito as estruturas narrativas do
curta-metragem. Além disso, no livro “Curta-metragem: entrevistas sobre curtas”
(2017), de Rafael Spaca, diversos cineastas afirmam que a linguagem do curta é própria
para experimentações. Segundo alguns deles, foi graças aos curtas-metragens que
realizaram antes de dirigir seus primeiros longas que aprenderam a operar o dispositivo
audiovisual como um todo (2017). Nesse sentido, é possível perceber que muitas das
inovações narrativas do cinema, surgiram inicialmente no formato curto para depois
migrarem para os longas-metragens. O montador Daniel Rezende afirma que que o que
lhe agrada na feitura dos curtas é a síntese, que o tempo para se contar a historia é muito
menor e que isso exige mais daqueles que escrevem os roteiros (2017). Ele diz também
que um curta-metragem não pode almejar ser um longa, pois caso faça isso ficará no
meio do caminho entre uma narrativa de maior fôlego e uma menor, e não funcionará
enquanto filme (2017). Porém, Rezende não afirma em maiores detalhes quais são as
diferenças entre a narrativa curta e a narrativa longa. Nesse mesmo livro, a produtora
Cláudia da Natividade, diz que acredita que o curta-metragem poderia ocupar o mesmo
lugar que o conto e a poesia ocupam na literatura (2017), mas não comenta mais nada a
respeito disso.
Um dos livros mais populares no Brasil sobre a realização de curtas-metragens,
“Criação do curta-metragem em vídeo digital: uma proposta para produções de baixo
custo” (2009), de Alex Moletta, não é uma obra de caráter teórico, mas um livro técnico
que visa auxiliar profissionais da área do cinema a produzirem seus próprios filmes. O
texto não tem como foco uma reflexão aprofundada sobre aspectos estruturais do fazer
cinematográfico, mas sim traçar um passo a passo das etapas envolvidas na produção de
um filme. No entanto, cabe observarmos algumas das considerações do autor.
Há no livro um capítulo em que o assunto principal é a confecção do roteiro.
Porém, não são mencionados particularidades da narrativa curta, à exceção de uma frase
em que Moletta diz que, por se tratar de vídeos de curta-metragem, de uma forma breve
e intensa de histórias, é necessário preocupar-se muito mais com o momento que se quer
mostrar (MOLETTA, 2009). Mas, na sequência, não há um detalhamento do que isso
significa. O autor cita Aristóteles, afirmando que, para o filósofo, a estrutura narrativa
se divide em três partes: apresentação, desenvolvimento e desfecho. Logo em seguida,
estabelece uma relação entre essa estrutura e a jornada do herói, desenvolvida por
Joseph Campbell, que diz que, em uma narrativa, primeiro herói afasta-se do mundo
comum, depois penetra em um mundo desconhecido e, então, retorna com um poder
que enriquece sua vida. Por fim, Moletta cita Cristopher Vogler, que também afirma
haver uma divisão em três partes da estrutura narrativa, um início (mundo comum), um
meio (mundo especial) e um fim (retorno ao mundo comum). Todas essas divisões
estruturais, segundo Moletta, compõe as chamadas “peripécias”, responsáveis por
provocarem reviravoltas ao longo da narrativa. Contudo, essa exposição de pensamentos
a respeito de narrativa, não são repensadas para se adequarem a narrativa curta. E, por
mais que possam contribuir para a reflexão a respeito de diversas formas de estrutura
narrativa, parecem ser insuficientes quando essas estruturas demandam novos
paradigmas. É possível desenvolver personagens em um curta? Há uma incidência de
diversas peripécias ao longo de suas narrativas? O herói percorre uma jornada? Essas
são perguntas ainda em suspenso.
Na bibliografia internacional, outro livro nos é útil para compreendermos um
pouco mais a respeito das especificidades do curta-metragem, “Writing short films:
structure and content for screenwriters” (2005), de Linda J. Cowgill. Em sua obra, a
autora propõe algumas ideias a respeito das especificidades narrativa do curta:

In a short film, the set-up functions much the same as in a feature film. Its
goal is to orient the audience to the characters, backdrop, time frame, mood,
as well as give them a clue as to the direction of the film and theme, and
present the conflict [...] But instead of taking ten or fifteen pages (minutes) to
set the tone, characters and action, the short film must accomplish all this
right up front (COWGILL, 2005, p. 125)

No trecho acima, a autora estabelece uma comparação entre o longa e o curta-


metragem atestando que ambos possuem funções similares, como a de desenvolver um
personagem, apresentar um conflito e indicar quais são os caminhos possíveis daquela
história. Porém, no caso do curta, esses elementos devem ser explicitados o mais cedo
possível, pois não há tempo para desenvolve-los. A autora diz que diversos curtas-
metragens falham quando há uma demora excessiva na exposição do que é essencial, se
estendendo na apresentação dos personagens e na caracterização de seu universo.
(COWGILL, 2005).
Na sequência, a autora diz:
For most shorts, the set-up is complete once the inciting incidente starts the
story’s forward montion in earnest. The inciting incident is like a catalyst. It
forces the conflict into the open and demands the hero respond and take
action. This action puts the protagonist on the path toward his goal
(COWGILL, 2005, p. 127)

Ou seja, para Cowgill, o processo de desenvolvimento dos personagens deve


estar associado ao incidente incitante. No momento em que o conflito é iniciado,
acompanhamos a maneira com o personagem irá lidar com ele para que, através disso,
suas características se evidenciem. Isso significa que, diferente do longa-metragem, no
qual as narrativas partem de um mundo comum, que sofre uma transformação, no caso
do curta, o incidente incitante é o ponto de partida da narrativa e, a partir dele, todas as
outras informações relevantes virão à tona.
Ainda em seu livro Cowgill, dedica um subcapítulo à discussão sobre as
diferenças entre o curta e o longa-metragem. Nesse trecho, sua principal reflexão diz
respeito ao fato de que, além da diferença de duração entre o longa e o curta, outro
aspecto que difere ambos os gêneros é a estrutura do conflito. Enquanto no longa, o
conflito se apresenta aos poucos e capilariza para uma série de outros conflitos de
menor relevância, o curta possui apenas um único conflito que não necessariamente será
esmiuçado ao longo da narrativa, mas que trará apenas um vislumbre de um universo
mais amplo que ocorre antes e depois da fatia exibida na tela. Porém, embora a autora
tome cuidado em ressaltar que existem diferenças estruturais entre os gêneros, suas
ideias não mais longe. Após fazer essas afirmações, Cowgill realiza um movimento
similar ao de Moletta, falando a respeito da jornada do herói, da importância dos
personagens e das peripécias envolvendo o desenvolvimento da história. Portanto, em
ambas as obras, embora algumas das considerações estruturais nos ajudem a pensar
sobre o curta-metragem, ainda há diversas limitações a respeito da compreensão das
especificidades desse gênero narrativo.
Em termos de pesquisas acadêmicas acerca da temática das especificidades
narrativas do curta-metragem brasileiro há uma série de trabalhos que tomam conta de
analisar obras em específico, filmografias de diretores e relações entre curtas diversos.
Estou realizando uma lista de trabalhos acerca do tema e observando seus paralelos,
porém, até então, nenhum deles se debruça sobre uma análise estrutural da narrativa do
curta-metragem brasileiro e nem tendo como corpus a lista realizada pela Abracine.
Lista de alguns trabalhos sobre a temática:

Gomes, Allan Henrique. “ OLHOS VENDADOS” : A EXPERIÊNCIA CRIADORA NA


PRODUÇÃO DE UM CURTA-METRAGEM' 01/07/2011 151 f. Mestrado em PSICOLOGIA
Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, FLORIANÓPOLIS

SILVA, DENISE TAVARES DA. Vida longa ao curta' 01/09/1999 187 f. Mestrado em MULTIMEIOS
Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, CAMPINAS Biblioteca
Depositária: Bibliotecas: Central e do Instituto de Artes da UNICAMP

Reis, Jaider Fernandes. “ A DESCOBERTA DO HOMOEROTISMO EM CURTAS-METRAGENS


BRASILEIROS' 01/12/2008 115 f. Mestrado em ARTES Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE
FEDERAL DE MINAS GERAIS, BELO HORIZONTE Biblioteca Depositária: Escola de Belas Artes e
Bibl. Universitária

SILVA, EDMILSON FELIPE DA. O CINEMA BRASILEIRO DE CURTA METRAGEM - UMA


ANÁLISE DA PRODUÇÃO DE JOSÉ FURTADO E ARTHUR OMAR.' 01/08/1996 116 f. Mestrado
em CIENCIAS SOCIAIS Instituição de Ensino: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO
PAULO, SÃO PAULO Biblioteca Depositária: CENTRAL/ PÓS-GRADUAÇÃO

DEBS, VANIA FERNANDES. CURTA-METRAGEM: A TRAJETORIA DOS ANOS 80.'


01/12/1989 242 f. Doutorado em CIENCIAS DA COMUNICACAO Instituição de Ensino:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, São Paulo

Abes, Christian. Cinema-Literatura Proposta de curta-metragem teórico-prático a partir de As


ruínas circulares de Jorge Luiz Borges' 01/03/2009 114 f. Mestrado em LITERATURA Instituição de
Ensino: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, FLORIANÓPOLIS

Valente, Eduardo Novelli. Cinema universitário : trajetórias em desenvolvimento : os filmes e o


curso de cinema da ECA-USP nos anos 90.' 01/10/2005 147 f. Mestrado em CIÊNCIAS DA
COMUNICAÇÃO Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, São Paulo

7. Proposta sumário qualificação

1. Introdução
2. Estado da arte
3. Metodologia de análise
4. Fundamentação teórica
5. O curta-metragem: definições preliminares
6. Os 100 maiores curtas do cinema brasileiro: acepções possíveis
7. O curta-conto
7.1 A narrativa aparente e a narrativa secreta
7.2 As temporalidades verticais
7.3 O efeito único
7.4 Fragmentação, velocidade, intensidade

8. Proposta sumário tese

1. Introdução
1.1 Justificativa e problema de pesquisa
1.2 Objetivos
1.3 Metodologia de análise
2. O curta-metragem: definições preliminares
3. Os 100 maiores curtas do cinema brasileiro: acepções possíveis
4. O curta-conto
4.1 A narrativa aparente e a narrativa secreta
4.2 As temporalidades verticais
4.3 O efeito único
4.4 Fragmentação, velocidade, intensidade
5. O mini-longa
5.1 A pequena jornada do herói
5.2 Os atos
5.3 Os usos da faca
6. O curta de personagem
6.1 O sujeito em apresentação
6.2 O sujeito em desenvolvimento
6.3 O sujeito em transformação
7. O curta pós-dramático
7.1 O drama recusado no cinema
7.2 A forma e o conteúdo
7.3 A personagem sem caráter
8. Considerações
9. Referências Bibliográficas

9. Análise exemplo de curta-metragem

A partir das reflexões a respeito do gênero do conto, iremos analisar o filme 3


Minutos (1999), de Ana Luiza Azevedo, para tentarmos compreender sua estrutura
narrativa. Diversos outros curtas poderiam ter sido analisados, mas a escolha dessa obra
ocorreu em função do caráter didático que sua análise propicia. Em seis minutos de
duração, ele dá conta dos aspectos tratados até aqui sobre a dupla estrutura do conto.
Em função disso, a análise terá como foco investigar aspectos da estrutura narrativa da
obra, partindo de um filme em específico para tentar compreender se esse tipo de
estrutura pode ser comum ao gênero de modo geral.

3 Minutos conta a história de uma mulher, dona de casa, que cogita abandonar o
marido e buscar uma vida nova. No ato de cozinhar uma galinha para o almoço, essa
mulher é tomada pelo impulso de ir embora e, já fora de casa, deixa um recado para o
marido explicando sua motivação de fugir. Essa seria a sinopse do filme. Inicialmente,
algo importante que podemos observar sobre o gênero curta de modo geral é que uma
sinopse da obra mostra-se, muitas vezes, pouco eficiente ou imprecisa. Como afirma
Cowgill (2009), a história que é contada em um curta-metragem nem sempre é exposta
como um todo no tempo que lhe é reservada e, algumas das informações importantes
sobre os personagens e seus conflitos não são necessariamente apresentadas na ordem
cronológica em que a história acontece.

Portanto, em uma sinopse que visa organizar linearmente a história de um filme,


informações cruciais podem ser antecipadas, já que na obra há uma grande chance de
elas serem reveladas mais tardiamente ou ficarem apenas subentendidas. Essa
constatação, por si só, já diz muito a respeito da estrutura narrativa dos curtas-
metragens, pois ela atesta que o mais importante para que o curta consiga narrar aquilo
que deseja, não está na história em si, mas na forma como ela é narrada. Ou, como
afirma Cortázar (2008) a respeito do conto, o tempo e o espaço da narrativa tem de estar
condensados e submetidos a uma alta pressão espiritual e formal para que o conto seja
bem sucedido. Ou seja, não é apenas a história em si que importa, mas a forma como ela
é narrada que define o quanto ela é eficiente em condensar as informações necessárias
para seu desenvolvimento.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita, é importante discutir uma das


principais diferenciações entre literatura e cinema que serão relevantes ao observarmos
um filme em relação às teorias do conto. O conceito de “tempo” de leitura e o de
exibição de um filme são completamente diferentes. Como afirma Genette (2017), o
filme possui uma duração específica (90 min, 120 min) e, embora possa ser assistido de
forma intervalada, sua duração é fechada. Ademais, como afirmam Rossini e Renner
(2018), o curta-metragem no Brasil tem sua duração definida por lei. Ou seja, a
extensão de uma obra audiovisual curta não apenas está circunscrita a um tempo
delimitado para ser assistido, como também foi determinado que ela não ultrapasse os
15 minutos. No caso da literatura, como dito anteriormente, o tempo de leitura está
diretamente ligado ao espaço que o texto ocupa na página, e cada leitor irá depositar
uma quantidade de horas distintas na consumação das mesmas obras. Nesse sentido, já
fica claro que a estrutura do curta-metragem está submetida mais diretamente à um
tempo específico, diferente do conto, que pode possuir uma quantidade de páginas
variada e pode ser lido em diferentes tempos. Portanto, a problemática do conto,
apresentada por Piglia (2004) e Cortázar (2006 ou 2008), de que a narrativa precisa ser
condensada para se encaixar em um tempo diminuto, se intensifica quando falamos a
respeito do curta.

Outra diferença patente entre o cinema e a literatura reside nas ferramentas de


linguagem que ambos os campos dispõem. Enquanto a literatura possui apenas a
linguagem verbal, o cinema reúne uma série de elementos distintos que compõem seu
discurso. Ou, como diz André Bazin: “tanto pelo conteúdo plástico da imagem quanto
pelos recursos de montagem, o cinema dispõe de todo um arsenal de procedimentos
para impor aos espectadores sua interpretação do acontecimento representado” (BAZIN,
1991, p. 68). Ou seja, há uma série de informações não verbais que também fazem parte
da composição fílmica e que possuem tanta relevância quanto às verbais.

3 Minutos inicia com um close em uma mão feminina fazendo uma ligação em
um telefone público. Não é possível ver o rosto da personagem, nem onde ela está, mas
apenas que faz um telefonema. Logo em seguida, somos levados à casa onde um
telefone toca, na qual vemos uma televisão exibindo uma corrida e uma jarra com água
fervendo (Figura 1).
Figura 1: imagens iniciais do filme 3 minutos

Até esse ponto, apenas informações visuais e sonoras nos são apresentadas,
todas em close e sem nenhuma relação aparente entre si, à exceção de que o telefonema
realizado no orelhão provavelmente é direcionado à casa em que há a televisão e a jarra.
Ou seja, pelo uso dos closes, que nos dão pouca informação, nada ainda é claro, pouco
sabemos sobre a narrativa.

Na sequência, a ligação cai na caixa postal e uma voz masculina gravada diz a
seguinte frase: “Nem mesmo eu posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Por
favor, deixe seu recado depois do sinal”. Em seguida, uma voz feminina começa a
gravar um recado. Ela se identifica como Marília e, ao longo de uma extensa fala,
explica ao homem, seu marido, que está indo embora, pois quer uma vida nova.
Conforme ela fala, um travelling, sem nenhum corte, passeia pela casa, exibindo uma
série de elementos que nos ajudam a compreender quem são os dois personagens.

Figura 2: travelling da casa

Fonte: filme 3 Minutos

No momento em que vemos a geladeira repleta de recados (Figura 2), Marilia


diz que o marido nunca os lê. Na sequência, vemos uma faca com sangue, mas em
seguida compreendemos que é uma faca de mentira. Ao mesmo tempo que observamos
os elementos cênicos, ouvimos a fala de Marília dizendo que já deve estar longe e que
ninguém irá compreendê-la pela decisão de fugir. Ou seja, conforme vemos objetos do
casal, fotografias de seu passado (Figura 3) e outros detalhes, a narração de Marília os
ressignifica, oferecendo novas camadas de leitura às suas funções narrativas e nos
revelando cada vez mais sobre si mesma e sobre o marido.

Quando a câmera finalmente sai da casa, descobrirmos se tratar do trailer de um


mágico (Figura 3). Isso nos informa que o marido da personagem exerce essa profissão.
O travelling segue seu percurso, ainda sem nenhum corte e, enfim, descobrimos que o
orelhão encontra-se a poucos metros de distância do trailer. Marília ainda está lá, depois
de terminar de deixar seu recado, segurando seu avental de cozinha e pensando sobre o
que fazer (Figura 3). Enfim, veste o avental e decide retornar ao trailer. Ao chegar lá,
desliga o fogão, a televisão e deleta o recado do gravador (Figura 4).

Figura 3: fim do travelling

Fonte: Filme 3 Minutos

Figura 4: Retorno à casa

Fonte: Filme 3 Minutos


Simples, mas eficiente, o curta-metragem de Ana Luiza Azevedo parece realizar
aquilo que Piglia (2004) e Cortázar (2008) compreendem como uma narrativa curta bem
sucedida. Inicialmente, como propõe Cortázar (2008), o curta parte do momento ápice
de tensão do conflito, no qual já somos inseridos instantaneamente. Não há uma
narrativa prévia que nos informa a respeito do passado dos personagens, mas, sim, um
momento significativo que atrai, como um imã, uma série de informações que não estão
explicitadas no filme.

Um primeiro elemento que exerce a função de embutir fragmentos do passado


dos personagens são os objetos da casa. Através das fotos, dos utensílios do mágico e
dos eletrodomésticos, conjugadas à fala da personagem, torna-se evidente que o casal
tem pouco diálogo e que o marido é um homem ausente. Além disso, a presença do
fogão ainda ligado e a corrida que passa na televisão servem como um possível
simbolismo do conflito enfrentado pela personagem. Ela sente uma pressão imensa a
respeito da decisão que deve tomar e, junto com isso, parece correr em círculos no
processo de se libertar da vida que leva. E um último elemento que também informa
indiretamente é o avental utilizado pela personagem. Se ela ia fugir, porque levou
consigo o avental? Cortázar (2008) também afirma que um bom conto deve partir de um
acontecimento limítrofe que evoque uma série de outros temas que não estão
diretamente presentes em sua narrativa. No caso desse curta, muitos assuntos estão
representados, porém apenas tangencialmente. O avental, por exemplo, serve como
símbolo da vida que a personagem é incapaz de deixar para traz. E, com isso, uma
temática mais ampla se descortina, a respeito do papel das mulheres em um casamento,
de sua condição enquanto donas de casa, de seus desejos pouco valorizados.

Outro aspecto da narrativa curta destacado por Cortázar (2008) é da importância


da forma na estrutura da história. Como também afirmado por Cowgill (2005), a
maneira como se escolhe organizar os acontecimentos do que se conta é tão ou mais
importante do que o enredo em si. Nesse sentido, 3 Minutos” (1999), possui um método
formal bastante especifico. O uso do travelling, que nos revela aos poucos os elementos
da vida dos personagens enquanto esses elementos são ressignificados pela mensagem
da protagonista, é o ideal para a forma bem-sucedida proposta pelos autores. Do
contrário, não seríamos surpreendidos com a revelação final, na qual a personagem
encontra-se ainda na eminência da decisão sobre voltar para casa ou fugir. E é essa
estrutura, que logo de início nos apresenta um conflito, mas que só aos poucos expõe os
acontecimentos antecedentes, que consegue construir uma linguagem, de acordo com
Cortázar (2008), como de alta pressão formal.

Isso nos leva à tese sobre o conto de Ricardo Piglia (2004). Como visto
anteriormente, o autor defende que toda narrativa curta conta duas histórias, a história
aparente e a história secreta. No caso do curta de Ana Luiza Azevedo, poderíamos
afirmar que isso ocorre, pois, de início, somos levados a crer que o filme narra a
trajetória de uma mulher em fuga, mas, ao fim, descobrimos que ele conta a história de
uma mulher que não consegue fugir. Nesse sentido, é notório que a forma como o filme
se estrutura compõe significativamente a realização do filme, pois, como afirma Piglia
(2004), o que causa a surpresa do desfecho de um conto é o encontro entre a história
aparente e a história secreta. Em 3 Minutos (1999), descobrimos apenas no trecho final
que a personagem ainda não decidiu se realmente vai fugir e, assim, sofremos o choque
do encerramento da narrativa.

Diversos curtas-metragens poderiam ter sido analisados para observarmos


aspectos referentes à estrutura do conto. Nem todos, é claro, contém todos os elementos
observados em 3 minutos, mas características do conto apontadas pelos autores estão
presentes em outros filmes. É o caso de O dia em que Dorival encarou a guarda (1986),
de Jorge Furtado, que também escolhe uma situação limítrofe para apresentar o conflito
do filme. E que, além disso, constrói pequenas cenas a respeito dos personagens para
que seja possível compreender que há outros conflitos construídos em subtexto e que a
temática vai além de um simples banho desejado pelo personagem. Há também o caso
de Fantasmas (2010), de André Novais, que possui uma construção formal especifica
para narrar a história e isso contribui para que haja uma surpresa em seu desfecho. A
câmera, que está sempre parada, revela-se parte da narrativa, demonstrando que um dos
personagens está filmando tudo sem o consentimento do outro. Isso amplifica o choque
do final, revelando que há uma outra camada de compreensão para a história. Por fim,
seria possível mencionar o filme A outra margem (2015), de Nathália Tereza, que
através de uma narrativa sutil, com poucas informações sobre o personagem
protagonista, insere diversos elementos fragmentados que ajudam a compreender que,
conforme o personagem vaga sozinho pela cidade, há uma outra história, sobre solidão e
incapacidade de estar ao lado de outra pessoa, que está sendo contada.

Nesse sentido, torna-se claro que as teorias a respeito estrutura narrativa do


conto contribuem fortemente para que possamos observar a forma como as histórias dos
curtas-metragens são construídas. Embora seja impossível enquadrar toda uma
filmografia nas mesmas características estruturais, essa relação entre o campo do
cinema e da literatura serve como ponto de partida para que nova compreensões da
forma curta-metragem sejam possíveis.

10. Referências Bibliográficas

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Roteiro. Curitiba: Arte e Letras, 2015.
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de baixo custo. São Paulo: Summus Editorial, 2009

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ROSSINI, Miriam; RENNER, Aline. A produção audiovisual ficcional para web: formas e
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09/2018
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Filmografia:

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