Você está na página 1de 5

Relato de um corpo em quarentena

Por: Lucas Furtado

Trabalho final da disciplina A escrita de si - caligrafias do corpo

Professora Dra.: Mirna Spritzer

Quando me matriculei na disciplina “A escrita de si – caligrafias do corpo”, não


fazia a menor ideia de o que ela era. Na verdade, quando fiz a matrícula e constatei que
os encontros aconteceriam em um palco, no qual faríamos exercícios teatrais relacionados
a algum tipo de escrita que, para mim, ainda não me era compreensível, me senti
empolgado e, ao mesmo tempo, assustado. Talvez, em função de uma formação erratica,
que me levou a diversos territórios diferentes entre si, a ideia de me aproximar do teatro
de uma maneira livre e, ao mesmo tempo, indefinida, tenha descortinado em mim aquilo
que sempre temi a respeito de minha própria formação: um não aprofundamento em
nenhum campo específico, mas diversos vislumbres de áreas afins.

O que teria eu para contribuir em uma aula de pós-graduação em Teatro?

Em um primeiro momento, a resposta mais óbvia – e o motivo principal pelo qual


escolhi fazer essa disciplina e não outra qualquer - diz respeito ao tema “escrita”. Desde
de minha graduação em Cinema, passando pelo meu mestrado em Letras e chegando no
doutorado em Comunicação, meu único interesse norteador sempre foi a busca pelo texto.
Porém, que texto? Quando recém ingressado na graduação e ainda ingênuo, meu único
desejo era o de me tornar escritor. Eu nada sabia a respeito de escrever, mas sabia que
queria escrever. Aos poucos, em contato com diferentes pessoas, diferentes lugares e
diferentes maneiras de se produzir, percebi que, dentre todos aqueles que me rodeavam,
eu com certeza não era o que mais tinha algo a dizer. Minhas vivências, minhas reflexões,
minha habilidade, sempre eram menos relevantes, menos profundas ou menos bem
desenvolvidas do que as dos outros. Fui incapaz de escrever, me senti preso. Descobri
também que o imperativo de me tornar escritor datava de muito antes da entrada em uma
graduação. Por algum motivo antigo, que ainda sou incapaz de compreender, havia uma
cobrança que talvez fosse minha, talvez fosse de outros, talvez nem sequer existisse na
realidade, de que aquela fosse minha trajetória. No entanto, eu sabia que queria escrever.
Resolvi ir para a Letras, berço das palavras, local onde eu descobriria que escrever era
ainda mais difícil do que eu imaginava, mas onde também encontrei outras formas de se
pensar sobre a escrita, sobre o ato de escrever e sobre o ato de se escrever. Foi a primeira
vez que me deparei com a obra de Michel Foucault, mas a qual ainda se mostrava
inacessível, incompreensível, árida. Escrevi uma dissertação às duras penas e foi em seu
processo que iniciei um movimento de libertação do texto. Percebi que, conforme
escrevia, mais me libertava da escrita.

Tudo isso culminou em meu doutorado, momento no qual me encontro agora e


que, aos poucos, me vejo ainda mais livre da escrita. Minha pesquisa diz respeito a
investigação de obras que poderiam ser denominadas como “desnarrativizadas” ou “não-
textocentristas”. Ou seja, conforme me liberto da escrita, me aproximo de um texto menos
escrito, ainda mais livre. Chego, então, na disciplina intitulada “A escrita de si”, nome
também dado a um texto de Michel Foucault que, agora, se mostra não inacessível, não
incompreensível, mas necessário. Encontro aqui, no texto do autor, a ideia de que a escrita
de si não apenas reflete sobre o eu, não apenas fala sobre eu, mas constitui o eu. Não há
eu sem escrita e, conforme a escrita se faz, se faz também o eu. A partir de um texto, um
texto como esse que estou a escrever, me constituo enquanto sujeito, individuo próprio,
uma vez que me narro a mim mesmo.

Volto, então, às aulas. O palco, que antes se faria de presença física, se faz na
presença ausente. Uma pandemia nos prende, impede que a liberdade do texto tenha
continuidade, faz com que a escrita de si deixe de estar lá fora.

Recebo, então, um email da professora informando que não compareci à primeira


aula. Me vejo ainda mais ausente, mais preso. No mesmo email, um tema de casa. Uma
reflexão a partir da lista mais recente que fizemos. Nessa mesma época, estou voltando
para casa de minha mãe para lhe fazer companhia durante a quarentena. Mais uma
liberdade que me escapa, a vida de independência que conquistei se faz adiada. Mais uma
prisão se coloca sem escolha. Estamos – eu e minha mãe – presos um ao outro.

Sem saber das discussões ocorridas na primeira aula, me encontrava perdido no


que escrever. O que se esperava de mim? O texto que fiz, escrito também às duras penas,
não foi exposto em aula, embora a professora incentive os alunos a fazerem isso. Não fui
capaz.

Eis o texto:

O que levar

- Dois pijamas

- Computador

- 2 calças

- 2 blusões

- 2 camisetas

- Bermuda esportiva

- Carregador de celular

- A história de um novo sobrenome, Elena Ferrante

Retornar à casa não traz consigo a alegria de um retorno breve, em que o


acumulo de saudade corresponde a exata duração da permanência no local para o qual
se volta. Retornar, porém, não carrega o peso de uma tristeza decorrente de um fim, de
um rompimento, de uma separação que nos leva à porta do lar materno como que
alegando que algo no caminho não saiu como o planejado. Dessa vez, retornar é apenas
um fio que se estende, se tenciona, mas não se rompe. Retornar é esperar, é enclausurar-
se no que é físico, é esconder o corpo do mundo para que sua exposição a luz do dia não
seja também sua sentença. O corpo se adapta ao espaço, mas a mente, presa ao corpo,
se recusa a permanecer entre quatro paredes, atrás da porta trancada. Pela primeira
vez, a mente percebe que o corpo talvez seja incapaz de levá-la a todos os futuros que um
dia ela enxergou. Pela primeira vez, a mente percebe que também é corpo e que sua
finitude não é apenas tão breve como a do corpo, mas mais consciente, mais real. O
corpo responde ao que lhe infere a mente, mas a mente vislumbra um futuro para o corpo
que nem mesmo ele é capaz de saber que lá está. O corpo, quando definha, deixa de
existir no ponto mais longínquo que foi capaz de alcançar, no ápice de sua jornada, nos
calos do tempo, nas transformações da vida. Já a mente, quando se vai, termina
lembrando de tudo aquilo que um dia quis que corpo experimentasse, mas que não pode
fazer chegar até ele. Enfim, uma lista que, em suma, atende a todas as necessidades do
corpo, de mantê-lo aquecido, de mantê-lo em movimento, de mantê-lo, acima de tudo.
Porém, há também aquilo que mantem a mente que, embora, a cada novo dia perceba
que seu definhar é tão ou mais certo que o do corpo, insiste em procurar a luz de um dia
que ainda não amanheceu

Quando escrevi esse texto eu ainda não sabia, mas sua ideia principal, a que
problematiza as fronteiras entre corpo e mente, viriam a ser tópico de discussão das aulas
subsequentes. Poucos dias depois, nos foram apresentadas as reflexões de Artaud a
respeito do corpo sem órgãos e alguns textos que traziam diários de pessoas que
resolveram relatar suas experiências corporais como que emulando o que seria um corpo
disruptivo, um corpo que não possui em si uma estrutura clara. Importante salientar que,
o corpo sem órgãos ao qual se refere Artaud, não diz respeito a um corpo no qual os
órgãos são inexistentes, mas um corpo que transcende a ideia dos próprios órgãos. Não
um corpo que, na falta das peças que o alimentam a vida, sucumbe à morte. Um corpo
que vive acima de tudo, que existe para além de sua constituição física.

Percebi, ao escrever o texto a respeito de corpo e mente, que a presença do corpo


em nossas vidas havia aberto um novo paradigma no contexto de uma pandemia que nos
mantém isolados porque nosso próprio corpo se faz frágil, somado a isso, compreendi
também uma espécie de reação inconsciente de meu próprio corpo, nunca antes em minha
vida eu havia me dedicado com tanto esmero ao seu cuidado. Ao longo de minha
adolescência e inicio de vida adulta, minha vida se resumia ao cuidado da mente. Nunca
fui bom em praticar esportes. Sempre fui magro, o que atrasou, até certa idade, a
preocupação com uma desatenção às mudanças que a vida geram em nosso organismo. O
alimento que sempre dei ao meu corpo, foi um alimento pouco refletido, pouco cuidadoso.
No entanto, feliz coincidência, foi a de que poucos meses antes de iniciarmos nosso
isolamento, adquirimos uma esteira ergométrica, aparelho dedicado ao corpo. Passei
horas correndo sobre ela, correndo sem ir a lugar nenhum, no entanto sentindo em meu
corpo o movimento de não estar nunca no mesmo lugar. Foi então que, após entrar em
contato com as reflexões de Artaud a respeito do corpo sem órgãos, passei a observar com
maior atenção minha preocupação com meu corpo e decidi realizar um experimento.
Baixei um aplicativo de corridas, inseri minha localização no mapa e comecei a correr na
esteira. Em poucos minutos, o aplicativo já dizia que eu estava na rua debaixo. Dizia que
se eu virasse a esquina, encontraria uma lomba. Meus batimentos cardíacos aumentaram.
Era noite. Passei em frente ao mercadinho de meu bairro que há tempos não frequento.
Minhas pernas sentiam as falhas no asfalto, provavelmente provocadas por alguma
tempestade ocorrida décadas atrás. Em poucos minutos estava em uma longa avenida que
corta a cidade. Pela primeira vez lembrei de um medo que, desde que havia me isolado,
não recordava mais que me habitava. O medo da rua. Medo de ser atacado, medo de ser
roubado, medo de ser agredido, medo da fragilidade de expor meu corpo. No entanto,
segui em frente. Dobrei a esquerda do bar que frequentava com meus amigos. Também
fechado. Já não se podia dizer que um dia estivemos ali. Aquele mundo, antes tão banal
e provável, já não deixava vestígios. A presença de um corpo já não deixa vestígios. Aos
poucos, sentia que a cidade, em si, é que era um corpo sem órgãos. Não há estrutura, não
há linearidade, mas há vida. Havia vida. Percebi que o corpo que definha, é o corpo da
cidade. Os corpos, que antes davam vida à rua para manterem-se vivos, fazem com que o
corpo-cidade morra aos poucos no gargalo de suas ausências. A cidade sem vida me faz
querer voltar pra casa, mas sinto que não posso voltar pra casa, meu corpo alimenta o
corpo da cidade e, assim, ela se faz viva novamente, ela se faz corpo novamente. Foi então
que percebi. Não há vida com um só corpo. São os corpos em conjunto que fazem a vida.
São os corpos em conjunto que misturam seus órgãos, oferecem seus órgãos, abrem mão
de seus órgãos. A cidade morre, pois os corpos já não se encontram. O encontro dos
corpos é que faz um corpo sem órgãos.

Acordo de um movimento que só se fez fora do corpo. Não estive livre de meu
próprio corpo para que não precisasse teme-lo. Não estive livre de meu próprio corpo
para que pudesse deixa-lo. No entanto, lembro que ao me escrever, me liberto, que ao me
escrever, faço das minhas palavras meu corpo. Talvez, nessas palavras, faça um corpo
sem órgãos, mas com vida. No dia em que meu corpo já não tiver mais vida, já não tiver
mais órgãos, ele estará aqui. Ao escrever esse texto, abro mão de meus órgãos e crio um
corpo com vida. Se um dia alguém precisar de um novo corpo, ofereço aqui meu corpo
sem órgãos, mas com vida. Aqui está. Pode ficar com ele.

Você também pode gostar