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São Paulo, 26 de março de 2020, 8º dia de quarentena

Prezado Dr. Vanin,

Fiquei impressionado com uma determinada passagem de Schopenhauer, a qual


reproduzo abaixo. De tudo o que segue, é a única coisa útil e proveitosa. O resto são
coisas que me vieram à cabeça e que tive a imprudência de escrever. É que o senhor,
por sua vez, também me havia enviado alguma coisa escrita e achei que lhe poderia
retribuir da mesma forma. Antigamente, os filósofos se correspondiam. Sinto saudade
de um tempo que não vivi: quarentena, peste, medo e tédio. Foram os estímulos para
que Boccaccio escrevesse o Decamerão, leitura obrigatória nos mosteiros e nos
conventos. Vejamos como nós, pós-modernos, vivemos essas coisas. Se o senhor, ao
final, rir um pouco, ganhamos o dia. Bem, como introdução, já é demais. Cuide-se!

“Toda necessidade, como já dito, é relação de consequência a


fundamento e nada mais. O princípio de razão é a forma universal de
toda a aparência; e a ação do ser humano, como qualquer outra aparência,
tem de estar submetida ao princípio de razão. Entretanto, por ser a
vontade conhecida imediatamente, em si mesma, na consciência da
liberdade. Contudo, esquece-se que o indivíduo, a pessoa, não é vontade
como coisa em si, mas como APARÊNCIA da vontade, e enquanto tal já
é determinado e surge da aparência, o princípio de razão. Daí advém o
notável fato de que cada um considera a priori a si mesmo como
inteiramente livre, até mesmo em suas ações isoladas, e pensa que
poderia a todo instante começar um outro decurso de vida, o que
equivaleria a tornar-se outrem. No entanto, só a posteriori, por meio da
experiência, percebe, para sua surpresa, que não é livre, mas está
submetido à necessidade; percebe que, apesar de todos os propósitos e
reflexões, não muda sua conduta e desde o início até o fim de sua vida
tem de conduzir o mesmo caráter por ele próprio às vezes execrado e, por
assim dizer, desempenhar até o fim o papel que lhe coube”
(SCHOPENHAUER, 2015 [O mundo como vontade e representação,
tomo 1], p. 132-133, § 23).

1
O princípio da causalidade e o determinismo a ele associado sempre foram para
mim um grande problema existencial. Não tanto para resolver um conflito entre
liberdade e causalidade em nível meramente teórico (filosofia), mas no nível mais baixo
e prático da vida. Mais recentemente, tenho escutado muito que a filosofia deve prestar-
se, a exemplo do que ocorria na Antiguidade, a possibilitar uma vida feliz (eudemonia)
ou qualquer coisa assim, não apenas a mera satisfação intelectual do conhecimento
puro, do conhecimento pelo conhecimento, da busca pela verdade ou pela luz fora da
caverna platônica. O problema é o desafio sempre renovado de estarmos (pelo menos
eu) sujeitos às paixões de toda a sorte e nem de longe sermos aquilo que gostaríamos de
ser. As críticas existenciais, a baixa autoestima, o sentimento de fracasso, mas também
o remorso, o arrependimento, e não só isso: a ansiedade, a ilusão, o desejo, a esperança.
É um emaranhado confuso, contraditório e inespecífico de sensações, sentimentos,
pensamentos e atitudes. Fico por aqui, mas bastaria lembrar que além de mim, há
também os outros, dos mais próximos aos mais distantes, cada qual com sua própria
complexidade e contradições: somos todos humanos.
Para piorar, qualquer conversa a respeito desse assunto parte de vários
pressupostos. As falácias, os clichês, os lugares-comuns. Nada disso acontece com
Schopenhauer, em especial no texto acima. Note como principia com uma simplicidade
desconcertante:

“Toda necessidade (...) é relação de consequência a fundamento e nada


mais.”

Nada mais fácil de entender. E podemos usufruir da plena liberdade de criticar,


de refletir, de questionar. Não há nenhum problema. É verdade ou é mentira que toda a
necessidade é uma relação de consequência a fundamento? Para mim, é verdade: se
tenho uma consequência, essa consequência é a consequência de um fundamento; dados
os fundamentos, segue-se a consequência. É um pequeno aparelhinho semelhante
àqueles produzidos pela indústria japonesa, que sempre funcionam, são práticos, cabem
em qualquer lugar. Além disso, a afirmação já coloca as coisas nos seus devidos
lugares: o problema da necessidade é um problema de relação e esse problema existe no
pensamento, pelo pensamento e para o pensamento. É aí que está todo manancial
daquelas angústias que acima referi.

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O problema é que temos a sensação de liberdade, somos “autônomos” (na
Grécia, ser autônomo era uma patologia, um sujeito antissocial como diríamos hoje) e
com essa sensação a construção de uma percepção de que estamos isentos da
causalidade:

“Daí advém o notável fato de que cada um considera a priori a si mesmo


como inteiramente livre, até mesmo em suas ações isoladas, e pensa que
poderia a todo instante começar um outro decurso de vida, o que
equivaleria a tornar-se outrem.”

Schopenhauer acha “notável” que alguém pensar que poderia ser completamente
diferente do que é. Esse estranho pensamento – talvez até contraditório – decorre do
fato de que imaginamos poder ter outra vida, outra forma de existir (não falo da vida
além-túmulo, mas apenas nesta vida terrena). Essa outra vida seria melhor pois seria a
consequência da nossa liberdade, pelo uso da razão etc. Ainda que tivéssemos
problemas, perdas, sofrimentos, seríamos, num certo sentido, “felizes”, plenos de
realização do nosso próprio ser. Um certo “contentamento” (Espinosa) acompanharia
todas as nossas ações, todas elas repletas de conhecimento de suas causas. A felicidade,
o fim da angústia, a expiação do medo. Tudo seria diferente.
Esse pensamento “notável”, à luz do texto de Schopenhauer, decorre de uma
pequena falha, quase imperceptível, que não tem nada a ver com o eterno conflito
filosófico entre liberdade e necessidade (aquele conflito que achava ser a fonte de
minhas angústias existenciais).
Passa despercebido tratar-se de algo bem mais singelo.
Um pequeno lapso de memória.
Seria praticamente impossível acumularmos na nossa memória, constantemente,
não somente o que é importante como também o que não tem muita relevância. Aqui,
cada um sabe de si: aniversário de casamento, nome de colegas, contas para pagar,
desilusões amorosas. Esquecemos tanta coisa que não seria possível enumerar. Dentre
essas, a que me chama a atenção nesse texto de Schopenhauer, é o fato de esquecermos
da nossa própria consciência. E é de fato difícil lembrar dela o tempo todo.
Precisaria falar aqui um pouco sobre a vontade no sentido de Schopenhauer.
É um pouco difícil escolher uma porta para entrar no tema da vontade. Vou optar
pelo mais intuitivo: a nossa vontade, a vontade humana.

3
Todos sentimos vontade. Ao pensarmos um pouco sobre a vontade, logo
percebemos que não precisamos pensar muito. Ela está ali, presente. Não é necessário
nenhuma reflexão, nenhuma elaboração, nenhum conceito. Na realidade, não é preciso
de nada, pois percebemos a vontade em nossa consciência espontânea e imediatamente.
Ela se apresenta por si mesma e sofre, quando é contrariada por coisas que lhe são
contrárias, ou sente prazer, quando o que nos acontece lhe é conforme. Dor e prazer, a
exemplo da necessidade, é também uma relação.
A singularidade da vontade em nossa consciência é que ela dissolve a relação
entre sujeito e objeto (no pensamento). Qualquer coisa que vejamos ou que pensamos
ou que tenhamos presente em nosso pensamento será sempre um objeto do pensamento
enquanto nós o respectivo sujeito relativamente a esse objeto. Sujeito e objeto
correspondem a uma relação (gramatical) de mútua implicação, de modo que sempre
que há sujeito, há objeto. Não se trata de uma relação causal, porém (por isso
Schopenahuer nega o materialismo e o idealismo). A coincidência entre sujeito e objeto
se verifica entre a vontade e o corpo que é sua aparência. A vontade, em si, não é
“objeto” nem passível de representação enquanto objeto. O corpo (aparência da vontade
em suas ações volitivas), por sua vez, é um objeto como qualquer outro (podemos ver a
nossa mão, p. ex.) e assim está no nível das representações (entendimento), domínio
específico da causalidade e, com ela, a temática da necessidade (supra). Dito isso,
Schopenhauer aduz que a vontade, conhecida imediatamente, é o “em si” do indivíduo,
que se torna tal por sua referência a um corpo. Diante dessa situação, ao indivíduo
(corpo, vontade), enquanto sujeito do conhecimento, abrem-se duas alternativas
excludentes: ou ele admite que, de modo semelhante a ele, o outro (corpo) é igualmente
dotado de vontade, ou não. Na primeira hipótese, ele admite que a vontade, na medida
em que está por trás da aparência (corpo) do outro, será igualmente para o outro o “em
si”, está implicando que a “vontade” é o “em si” das coisas, isto é, dos objetos de suas
próprias representações. Na segunda hipótese, ao negar o “em si” das coisas (negar a
“coisa em si” de Kant), chegará à conclusão de ser o único real. Nesse caso, pondera
Schopenhauer, já não se trata mais de refutar filosoficamente mas de internação em
manicômio. Por fim, dado que a vontade não é o corpo, não é um objeto, não é uma
representação (não está no domínio da intuição onde têm validade o princípio de razão e
a causalidade), não está sujeita ao princípio de razão (ou da causalidade) e, em um
sentido muito específico, é “livre” (na verdade, penso que o conceito de liberdade nem
seria aplicável). A vontade enquanto tal estaria presente em tudo que é aparência.

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Estando a vontade na nossa consciência, por um lapso, esquecemos que somos
sua aparência. Esse pequeno esquecimento (para alguns, talvez, ignorância) possibilita
um ilusão de sermos livres mesmo sentido em que a vontade é livre, sem atentar que a
“liberdade” da vontade não está no nível das aparências (onde se situa o conflito entre
necessidade e liberdade).
O aspecto negativo desse esquecimento, ou melhor, dessa ilusão (talvez cegueira
para a aparência, em especial a nossa) e suscitar uma idealização praticamente
irrealizável. Muitos de nós temos dificuldades para seguir uma dieta. O que poderíamos
dizer se o plano for ser outra pessoa? O hiato entre o que se é e o que se deve ser (ou o
que se supõe estar dentro do poder de vir a ser), conforme seja maior ou menor o grau
de esquecimento ensejará mais ou menos sofrimento, angústia.
Então não adianta ir ao nutricionista? Pau que nasce torto morre torto? Vejamos
a parte final do texto:

“No entanto, só a posteriori, por meio da experiência, percebe, para sua


surpresa, que não é livre, mas está submetido à necessidade; percebe que,
apesar de todos os propósitos e reflexões, não muda sua conduta e desde
o início até o fim de sua vida tem de conduzir o mesmo caráter por ele
próprio às vezes execrado e, por assim dizer, desempenhar até o fim o
papel que lhe coube.”

Não acredito que Schopenhauer – embora pessimista – seja contra dietas ou


cético quanto à possibilidade de transformação, de superação individual etc. Ele próprio
estava “condenado” a ser comerciante (influência paterna) mas acabou permitindo-se
ser filósofo (liberdade que lhe foi concedida pela mãe). Não acho que, por sua história
de vida, Schopenhauer acreditasse que está tudo “escrito nas estrelas”, que ao herói
nada resta senão cumprir o vaticínio do oráculo, muito embora tudo isso tenha seu peso.
Em outro texto, Schopenhauer afirma que a vida é mais semelhante a uma linha
do que um plano. O curso de nossa vida não percorre um plano semelhante a um mapa,
sobre o qual podemos traçar vários destinos alternadamente etc. Nossa vida seria mais
parecida com uma linha, apenas. Podemos ir para um lado ou para outro, fazermos
zigue-zague etc., mas será sempre uma única linha. Quando avaliamos nossa vida a
posteriori, para nosso desconcerto, constatamos que somos o que somos e
desempenhamos o papel que nos cabia. Não há, pelo menos pelo que examinei aqui,

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nada que nos detenha de “melhorar” (para quem admite esse tipo de absurdo) ou de
“progredir”, seja lá o que isso signifique. Dizer que o sujeito “não muda sua conduta”,
pelo que entendi, significa apenas que ele não deixa de ser o que ele é e quaisquer
esforços que venha a fazer são sempre esforços no nível da aparência e sujeitos também
aqui à causalidade.
Aqui se abre uma outra discussão, a saber, sobre a responsabilidade moral
individual em Schopenhauer. Por ora, gostaria de dizer apenas o seguinte: não é
interessante que a consciência da vontade enquanto revelação da coisa em si na
consciência do sujeito não o induza a enganar-se sobre si mesmo, esquecendo-se que é
aparência dessa vontade mesma e, esquecido disso, imagina-se absolutamente livre? E
diante dessa imaginação não acabe ficando decepcionado consigo mesmo por não ser o
“super-homem” que gostaria de ser, de ter o poder de ser qualquer coisa diferente dele
mesmo? De minha parte, achei interessante.

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