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ŐSHAGYOMÁNY

SER E CONSCIÊNCIA À LUZ DA TRADIÇÃO


METAFÍSICA*
András László
Tradução: André Protóclito
Diagramação: San

A
coincidência entre o Ser e a Consciência tem sido discutida em
vários aspectos ao longo da história da filosofia ocidental. Desde
os tempos gregos até os dias atuais, sempre houve tendências filo-
sóficas que, em diferentes abordagens, enfatizaram essa unidade da Cons-
ciência e do Ser, mas geralmente não ousaram chegar a conclusões finais.
Sabemos que mesmo as correntes filosóficas que foram mais longe no idea-
lismo subjetivo sempre, de acordo com os truísmos dos léxicos filosóficos,
pararam onde surgiu o solipsismo epistemológico ou existencial. Solipsis-
mo significa “somente ‘eu’”, “baseado somente em mim”; na primeira pes-
soa do singular e explicitado: eu sou somente eu, não há ninguém e nada
além de mim. Esse “não há ninguém e nada além de mim” não se refere, é
claro, à pessoa humana: obviamente há muitas pessoas, muitas pessoas hu-
manas, mas apenas um sujeito. Portanto, o que deve ser imediatamente
percebido é a multiplicidade de pessoas humanas e a universalidade do su-
jeito, pois a mais vulgar falácia teórica poderia ser produzida se alguém con-
siderasse a existência pessoal, a personalidade humana, como universal. O
sujeito precede o homem e precede o mundo. O sujeito é o centro da cons-
ciência. O “centro da consciência” significa o Senhor da Consciência. E
“Senhor da Consciência” significa “Senhor do Ser”.
O sujeito domina o ser, mas não como uma abstração, não como
uma abstração na teoria do ser. O sujeito é sempre “eu”, o que significa que
só posso tomá-lo na primeira pessoa do singular. Quando falo, falo como
uma personalidade humana e, por meio dessa personalidade humana, falo
* Texto original disponível em: http://oshagyomany.vidya.hu/OH02/OH0201.html
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como um sujeito. O sujeito não pode ser buscado em nenhuma outra dire-
ção que não seja a da primeira pessoa do singular, caso contrário não pode-
rá ser encontrado. A espiritualidade oriental formulou isso de forma mais
clara do que a espiritualidade ocidental: ou revelada de forma bastante di-
reta, ou apenas de forma metafórica (como na cosmologia), mas no Orien-
te essa é a base, o centro, e o objetivo constantes da abordagem. Pois todas
as espiritualidades que buscavam a autotransformação (como a Lei ou ou-
tros caminhos de Realização equivalentes à Lei) não teriam sentido sem o
solipsismo. A visão mais recente e difundida de que esses caminhos de Rea-
lização de fato transformam vários aspectos, atitudes ou orientações da al-
ma humana está errada. Eles tocam o homem pessoal somente na medida
em que desmantelam o homem pessoal da subjetividade que se manifesta
por meio da pessoalidade, pela pessoalidade, mas, ao mesmo tempo, parali-
sada, degradada, e delimitada pela pessoalidade.
Quando as forças subjetivas estão diminuídas na personalidade,
são sempre essas perdas de força, essas deficiências, essas fraquezas, que le-
vam o homem a assumir uma realidade objetiva que existe independente-
mente dele mesmo. Aquele que concebe, sente e experimenta o mundo co-
mo se ele existisse independentemente de si mesmo, não expressa nada
além de sua fraqueza subjetiva: nada além de sua própria fraqueza, sua pró-
pria fraqueza mental. Por quê? Porque a subjetividade, do Aúton grego e
do Ātmā sânscrito, é existencial. O Ser Criador está tão profundamente
por trás da personalidade, no círculo de forças do sujeito diretamente ao
redor do centro, que o ser humano que se perdeu quase completamente
em sua personalidade é incapaz de descobri-Lo em si mesmo. Assim, o pro-
cesso de criação no qual todo o ser é criado é reduzido a uma mera conste-
lação na percepção. O que resta da criação é meramente o que ele percebe.
Ele não se sente mais como o Criador. Por si só, isso seria aceitável, mas ele
não percebe intuitivamente que, em seu estado atual, reduzido a ser uma
criatura, ele também é um criador em potencial. O que resta da criação é
meramente percepção, experiência, conjectura, afirmação.
Se alguém estudasse as funções da própria consciência, descobriria
que o que ainda tem alguma criatividade é o pensamento, mas o pensa-
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mento também é a função da consciência mais fraca, mais fluida, e mais su-
til. As imagens volitivas são mais fortes em comparação, mas a força criati-
va que opera nelas é mais fraca. A imaginação espontânea é ainda mais for-
te, mas o ser subjetivo é ainda mais fraco. Isso mostra que, quanto mais nos
afastamos do pensamento em direção à experiência empírica e à percepção,
mais o existente é projetado, e, quanto menos o sujeito participa dele, me-
nos ele se experimenta como criativo. O fato de que a imagem volitiva é
consideravelmente mais difícil e mais fragmentada e incerta do que, por
exemplo, a imagem espontânea, semelhante a um sonho, é uma caracte-
rística da condição humana. Ou seja, as forças do “Héteron”, o “Estranho”,
o “Outro”, contra o Aúton são comumente e geralmente muito maiores do
que as forças do Aúton. E isso é inseparável de uma visão invertida da in-
tensidade da realidade. Essa visão invertida é descrita em sânscrito por uma
palavra separada, “viparyaya”, “inversão”. E a meta é precisamente “vi-
pari-viparyaya”, ou “inversão da inversão”. Na forma mais antiga do idio-
ma grego, isso era denotado por “metágnoia” e, mais tarde, por “metá-
noia”, que, como “conversão”, sempre significava um despertar conscien-
te, um retorno ao “Eu”. Uma formulação possível é a de voltar-se do ilumi-
nado para a fonte de luz.
Portanto, uma das características fundamentais e sérias dessa visão
invertida é justamente o fato de o homem considerar real o que ele é impo-
tente para enfrentar, e, se ele é mais impotente para enfrentar algo, ele o
considera ainda mais real; isto é, ele considera incomparavelmente mais re-
al do que seus próprios pensamentos e funções de pensamento o saco de
duzentos quilos que cai sobre sua cabeça. O que quer que lhe oprima, o
que quer que ele seja impotente para enfrentar, o que quer que não possa
penetrar, é real, e, quanto menos puder penetrar, mais real é. É uma dege-
neração da visão que deve ser revertida nos caminhos intelectuais. Se, no
entanto, a pessoa muda apenas na consciência, ela deu um passo, mas não
um passo muito grande: reformulou algo em si mesma. Essa reformulação
não significa, é claro, que passará a vivenciar o mundo dessa maneira em
geral. Mas, de qualquer forma, em certo sentido, a pessoa se abriu. Mas a
Realização ainda está muito longe: Realização significa que eu me percebo.
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Não no sentido psicológico da palavra; no sentido psicológico da palavra, a
pessoa se realiza quando atinge seus objetivos, planos ou o que quer que se-
ja. Esse não é o caso da Realização Metafísica. Realizar é criar. Desse ponto
de vista, é completamente irrelevante que eu já tenha sido criado; é com-
pletamente irrelevante que eu já me encontre aqui no mundo, como se fos-
se um dado, jogado no mundo (esse é o significado da “Geworfenheit” de
Heidegger), se eu me encontrar no mundo sem ter criado e estabelecido a
mim mesmo, se eu me experimentar como se não o tivesse criado. E se eu
não o criei, então outra pessoa o fez: o Héteron. E o Héteron é o Aúton não-
reconhecido: o outro, meu “eu” não reconhecido. O reconhecimento do
Aúton no Héteron leva à dissolução do Héteron. Para isso, entretanto, é es-
sencial desenvolver uma perspectiva de mundo, uma perspectiva do ser
que não apenas exista como uma visão da existência. Aqui não é suficiente
apenas afirmar o aspecto estático expresso pela palavra “perspectiva”; tam-
bém é essencial ter um aspecto dinâmico, ou seja, estar sempre olhando,
observando, vendo como eu sou. Portanto, não apenas olhar, mas ver, não
apenas perspectiva de mundo, mas cosmovisão; não apenas estrutura e en-
quadramento, mas um processo vivo.
Para olhar para mim mesmo e para o mundo de forma diferente,
para buscar intuitivamente os pontos em que a atividade criativa pode ser
detectada, é claro que posso ser muito ajudado por interpretações de certas
doutrinas e, em particular, pelos ensinamentos orientais. De fato, os ensi-
namentos ocidentais, os dogmas das denominações cristãs, também podem
ser de grande ajuda nesse ponto, pois são precisamente os dogmas do Cato-
licismo, por exemplo, que são muito mais profundos do que a Igreja está
acostumada a extrair deles. Há profundidades nessas doutrinas que podem
ser desvendadas esotericamente, mesmo que isso não seja feito normalmen-
te. A literatura patrística ou a filosofia grega também tocaram em pontos
muito mais profundos do que geralmente se ensina ou se supõe em relação
a elas. O fato de as doutrinas orientais receberem aqui maior destaque do
que as ocidentais não se deve a razões de princípio, mas a razões didáticas,
ou seja, por serem mais ilustrativas. Pois, no Oriente, a Realização como
um caminho e como um fim persiste há mais tempo do que no Ocidente.
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O Hinduísmo, o Buddhismo, o Bön no Tibet, o Taoismo na China, e vá-
rias formas de Šamánismo consideraram a Realização como crucial para a
atividade direta. Por trás deles, como religiões, havia uma tradição espiritu-
al metafísica focada na Realização.
É claro que a Realização sempre esteve viva no Ocidente. Ela viveu
na gnose cristã, viveu na Ordem Templária, viveu na Ordem do Graal, no
verdadeiro Rosacrucianismo. Com relação a este último, é preciso dizer en-
faticamente que ele não tem mais representantes, pois existem mais de trin-
ta organizações rosa-cruzes no mundo todo, cada uma delas afirmando ser
a organização original, autêntica e competente. Mas não há um único rosa-
cruz autêntico entre elas. Você nunca poderia “entrar” no Rosacrucianis-
mo original; você poderia crescer espiritualmente nele, mas nunca poderia
entrar. Todo movimento espiritual autêntico tem um estado, e um estado
espiritual que não pode se propagar e se plurificar em um contexto vulgar e
profano.
O poder da consciência é um poder absoluto. O poder da cons-
ciência é o poder do centro da consciência: o poder do sujeito. A própria
expressão “sujeito”, ou “subiectum”, é, na verdade, um tanto infeliz, pois
significa “sujeição”, “submissão”, enquanto “obiectum” é uma “oposição”,
“projeção”. O sânscrito, por outro lado, deriva a palavra para sujeito da
ação do sujeito, e isso é “kartṛ”, que significa “sujeito”, ou seja, o “faze-
dor”, o “executor”. O processo é “kartum”. E a ação objetivada é o “kar-
ma”. Portanto, as abordagens que primeiro se expressaram em sânscrito,
ou seja, o Hinduísmo e o Buddhismo, abordam a subjetividade a partir da
perspectiva da accionalidade.
Algumas tendências intelectuais, como o Teososimo (embora o ter-
mo originalmente significasse outra coisa) ou o Antroposofismo, não po-
dem ser consideradas metafísicas no sentido estrito da palavra, ou seja, elas
não são direcionadas ou carregadas por nada além do existencial. Aquilo
que visa apenas ao oculto, apenas ao escondido, abrange apenas um seg-
mento muito pequeno da metafísica. A metafísica sempre significa duas
coisas: por um lado, aquilo que está além do natural (metafísica) e, por ou-
tro, aquilo que está além do existente, além do existente. É claro que “além
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do natural” já é mais do que aquilo com que a física, como ciência, se preo-
cupa. O escopo da fisicalidade também inclui outros tipos de estruturas de
espaço e tempo, embora não o escopo da fisicalidade com a qual a física co-
mo ciência natural lida. Entretanto, não se trata apenas de transcender o
que está fora do tempo e do espaço, mas também de transcender o que
existe. E as tendências ocultistas nem sequer alcançam o primeiro significa-
do de metafísica, ou seja, estão presas em uma temporalidade e espacialida-
de estruturadas de forma diferente. E o aprisionamento na temporalidade e
na espacialidade cria ilusões nessas tendências.
Se tentarmos procurar as afirmações mais importantes da verdadei-
ra orientação espiritual metafísica, encontraremos entre elas expressões que
são bastante antipáticas a um tipo de sentimento sentimental. São elas:
“poder”, “força”, “dominação”, “liberdade”. Assim, a maneira pela qual
uma subjetividade que transcende um homem, uma subjetividade que
transcende uma pessoa, deixa a forma terrena de existência, e a fatalidade
associada ao fato de deixar a forma terrena de existência, estão muito mais
intimamente relacionadas às forças da consciência, à presença da consciên-
cia, à dominação da personalidade, dos portadores, do que ao que geral-
mente está implícito na vida de acordo com as categorias morais. Dessa for-
ma, a espiritualidade tradicional sempre concebeu a moralidade de uma
maneira particular. Os preceitos morais são, para o homem elevado, avisos,
lembretes de que nas áreas em que os preceitos prescrevem algo, é necessá-
rio maior cautela, presença e consciência elevada, porque lá o potencial de
fracasso também é maior. Para a pessoa que não é realmente espiritual, o
mandamento é sempre claramente apenas um mandamento; para ela, deve
ser ordenado e ela deve obedecer. O homem elevado também o observa,
mas de um ângulo diferente. Do ponto de vista de que é uma condição de
sua elevação. Ele é advertido de que ali deve estar particularmente presente.
As tendências religiosas que assumiram a forma de seitas (é claro
que “seita”, em si, não significa nada, apenas “cortada”) sempre se concen-
tram no incidental; nos acidentes, nas contribuições, em vez de na essência,
na essência. Certas contribuições são hipertrofiadas e representadas com
imensa agressividade. Uma ênfase exagerada muito mais suave nessas con-
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tribuições seria perigosa; mas se elas forem exageradas de forma agressiva,
isso pode, de qualquer forma, produzir deformações espirituais. Essa tam-
bém é uma característica, embora em um sentido bem diferente, dos cami-
nhos pseudoespirituais e contrainiciáticos.
Trataremos de muitas das dificuldades que surgem aqui em apre-
sentações posteriores. Vale a pena mencionar aqui que o processo de con-
duzir-me cada vez mais de volta a mim mesmo por meio de mim mesmo
pode levar a uma direção diferente. Por exemplo, a consciência pode ser
conduzida a um mundo ou a um estado de consciência (pois o mundo e os
mundos são estados de consciência!) de tal forma que envenena e torna im-
possível tanto o estado de consciência em questão quanto, por meio dele,
suas próprias perspectivas. O envenenamento do ser e da consciência é o
método de certas tendências obscuras contraespirituais e contrainiciáticas.
Essas tendências de fato realizam um rito, uma operação, uma operação,
uma operação do ser: por exemplo, elas introduzem forças da morte em es-
tados nos quais as forças da morte não estão originalmente presentes. As
forças da morte também podem ser introduzidas em estados correspon-
dentes de ser em um sentido positivo — mas essas tendências não realizam
essa operação em um sentido positivo. Cada falácia é imediatamente reco-
nhecível como uma falácia em si mesma pela extensão em que se baseia na
subjetividade. Aqui há espaço para erros, mas eles podem ser evitados com
o devido cuidado. As tendências baseadas em pessoas são facilmente con-
fundidas com as tendências baseadas em assuntos. O potencial de confusão
é certamente muito alto em um nível básico, mas, se alguém realmente co-
nhecer certas doutrinas, se puder mergulhar nelas de forma consensual, o
potencial de confusão será reduzido a quase zero.
Para ilustrar isso, poderíamos pegar um exemplo do Novo Testa-
mento. Quando o Cristo diz: “Eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida”
(João 14:6), isso deve ser entendido, à primeira vista, como se Ele estivesse
dizendo de Si mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida”. Portanto,
Ele é o Caminho, a Verdade, e a Vida. O verdadeiro aprofundamento dis-
so, entretanto, é quando eu digo: “Eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vi-
da”. Como isso deve ser entendido? Como se eu já fosse Eu? Não. Não em
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meu ser pessoal, ou seja, no que realmente se manifesta para mim. Portan-
to, em meu ser pessoal eu não sou — mas posso ser. Eu quero ser, no senti-
do da potencialidade da meta. É por isso que enfatizei anteriormente que
não se pode falar de Deus de uma forma vulgar, como sendo ou não sendo.
A questão do Ser Divino é, de fato, uma questão de julgamentos enfraque-
cidos e prestes a serem descartados. Consequentemente, qualquer resposta
a favor ou contra se enquadra perfeitamente no âmbito desses julgamen-
tos. Deus é o ápice dos fins existenciais. Sua natureza ontológica pode ser
vista no fato de que Ele é o ápice dos fins existenciais.
Normalmente, se a pessoa for suficientemente quebrada pela vida,
ou se encontrar impressões de grande magnitude, mesmo de natureza na-
tural, facilmente concluirá que é pequena. Por exemplo, ouvi recentemen-
te que alguém teve que ver as Cataratas do Niágara para perceber que é pó.
Algumas pessoas até atribuem um significado especial à percepção de suas
próprias partículas de pó. Vários fenômenos podem ser mais poderosos do
que eu, mas eu percebo o fenômeno e ele existe apenas na medida em que
eu o percebo, na medida em que eu o vejo, na medida em que eu o experi-
mento. Ele não existe em nenhum outro sentido. Sou sempre mais do que
aquilo que vejo. Sou sempre mais do que aquilo que presumo. E o objetivo
não está em algum lugar lá fora. Essa é a profunda diferença entre latentia
e potentia. A meta não está à espreita em algum lugar que eu alcançarei de-
pois. Não. A meta é alcançada quando eu a alcanço. Não há nenhuma me-
ta que esteja esperando. Eu tenho que criar a meta. Tenho de criar minha
própria meta. As metas não esperam, muito menos nas ordens mais sérias
de magnitude. A vida após a morte não é latente, é potencial. Ela existe pe-
lo fato de eu a perceber. O mundo comum não é diferente: ele também
existe apenas pelo fato de eu o constituir continuamente, embora eu não
reconheça meu poder de autoconstituição nessa constituição.
O estudo de religiões e doutrinas em si, separado de encontrar nelas
uma ferramenta de orientação para mim mesmo, não tem, de fato, sentido.
É por isso que não se trata de uma questão técnica. As religiões e os ensina-
mentos não podem ser realmente estudados do ponto de vista da especiali-
zação. Se você não entende o Ser e não entende a Consciência, você tam-
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bém não entende o Buddhismo. Está em um estado permanente de não-
entendimento. Aquele que não entende a si mesmo, que não entende seus
próprios processos, o que pode entender? É por isso que quase todas as tra-
duções de Livros Sagrados estão, de longe, erradas. No entanto, elas são tra-
duzidas por pessoas competentes que conhecem o idioma e o significado
da palavra em questão no dicionário. No caso de traduções de idiomas oci-
dentais, em que há contato e controle constantes, isso não é tão óbvio. No
caso de idiomas orientais e especialmente arcaicos, entretanto, toda tradu-
ção é uma postura; toda tradução tem uma atitude, ou talvez a atitude este-
ja presente como uma falta de atitude, como uma falta de reflexão adequa-
da sobre si mesma. Por exemplo, o livro As Cinco Religiões do Mundo, de
Helmut von Glasenapp, está à venda na Hungria. Esse homem passou toda
a sua vida lidando apenas com a história da religião. Sua experiência é indis-
cutível. No entanto, sua visão é tão limitada que só podemos nos pergun-
tar. Ele mal entende alguma coisa. É claro que esse livro também pode ter
algum valor segmentar em termos de chamar a atenção para algo do qual se
possa tirar uma conclusão real. É claro que há outras tendências que levam
à obsolescência contínua. Há disciplinas cujo caráter atual é tal que pare-
cem ter sido criadas especificamente para alcançar essa obsolescência. Por
exemplo, quase todos os ramos da psicologia contemporânea são assim. Se
alguém começar a estudá-la, saberá cada vez menos sobre a alma com o pas-
sar dos anos. Ela é construída dessa forma. É claro que cada disciplina pode
ser diferente. Em cada disciplina pode haver vida, pode haver espírito, pode
haver cognição, pode haver elementos, forças que podem ajudar a despertar
outras forças. Mas geralmente não é esse o caso.
O que estou defendendo aqui é, em um sentido de longo prazo,
prático. Essa praticidade seria o objetivo real; não o objetivo direto, mas
um objetivo indireto múltiplo. No mínimo, é uma questão de dissemina-
ção de conhecimento. Há palestras, livros, cursos, etc. especificamente para
esse fim. Olhar para as coisas de forma diferente — no sentido de olhar pa-
ra as coisas de forma diferente e olhar para o mundo de forma autorreflexi-
va. Para isso, é possível obter ajuda, pontos de vista, e vários toques de ins-
piração. Por outro lado, não é possível dar muito mais do que isso nos dias
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de hoje, especialmente de forma direta. E não se deve permitir que aqueles
que afirmam ser capazes de fazer isso aceitem nada por isso. De fato, a pro-
dução de veneno nessa área está em uma escala surpreendente. Os únicos
movimentos intelectuais reais no mundo são um ou dois pequenos bol-
sões. Em contrapartida, há milhares de movimentos pseudoespirituais. A
Europa está infestada de um tipo perigoso: o falso yogī indiano. Na Índia,
como o sânscrito é ensinado nas escolas secundárias e o idioma original
tem alguma semelhança com o sânscrito, e como āsanas e outras coisas são
ensinadas nas aulas de educação física, quase todo indiano inteligente pode
se passar por especialista, yogī e até mesmo guru. Se isso fosse puramente
com o objetivo de enriquecer, poderia ser visto de forma simples e vulgar
como uma série de negócios escusos. Mas o perigo é muito maior. Não es-
tamos nos esquecendo do primeiro, mas o objetivo é muito mais prejudici-
al. Os indianos que atualmente estão se espalhando pelo mundo — e, mais
recentemente, os tibetanos — estão fechando as já muito limitadas oportu-
nidades de Realização. De fato, mesmo que não houvesse nada de sombrio
nessas tendências, elas ainda seriam imensamente perigosas, pois não são
adaptadas ao homem moderno. Por exemplo, há um monastério buddhis-
ta perto de Zurique, onde os europeus às vezes são admitidos com grande
dificuldade. Uma parte importante do aprendizado é a memorização e a re-
citação de Textos Sagrados do Tibet. Quanto mais diligente você for, mai-
or a probabilidade de se meter em problemas. Aqueles que são menos dili-
gentes desistem e percebem que tudo isso é basicamente inútil. E, no mo-
mento, é mesmo. Ler algo costumava significar tanto quanto compreendê-
lo. O homem que sabia escrever não só sabia ler e escrever, mas também
conhecia a essência da escrita, pois não era necessário escrever ou ler coisas
irrelevantes. Assim, antigamente, dizer o texto era entender o texto, e en-
tender o texto era quase fazer o ensinamento. Hoje, mesmo para os tibeta-
nos, não resta nada disso. E menos ainda para os europeus. Portanto, nesse
monastério buddhista, eles estão fazendo algo que foi feito sob medida pa-
ra o alto homem oriental séculos, milênios antes; agora eles estão fazendo
com que alguém o faça primeiro, e quem o faz pensa que está praticando
Zen ou Buddhismo Tibetano ou Yoga ou qualquer outra coisa — e não es-
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tá. Parece que está fazendo isso, mas não tem nada que ver com isso. Não é
a luz da consciência que desperta nele, mas ele mobiliza forças vitais espe-
cíficas, e todas as forças vitais mobilizadas sem a mente transformam-se em
forças de morte: primeiro danificam a consciência, depois danificam o por-
tador da consciência. Toda força vital que é despertada de forma inadequa-
da, ou seja, não imbuída de espírito, funciona como uma força de morte.
Esse é um processo contra-alquímico realizado pelo Héteron, ou seja, o
“eu” não-reconhecido. Não há inimigo maior do que o “eu” não-reconhe-
cido. Ele é o protótipo de todos os inimigos. O princípio satânico está to-
talmente relacionado a isso. “Satanás” significa “Acusador”, “Inimigo”,
“Adversário”. Mas não há nenhum Satanás oposto a Deus. Satanás está
apenas oposto à condição humana. Ou seja, não há Satanás oposto ao meu
próprio fim, mas há Satanás oposto à minha posição inicial.
Em sânscrito, a palavra para “ser” é a mesma para “essência”: “ sat”.
“Sat” condensa ambos ao mesmo tempo. O “não-ser” e a “não-essência”
são “asat”. A palavra grega para “verdade” é “alétheia”. “Alétheia” está re-
lacionada a “não-esquecimento”. O que pode ser o “não-esquecimento”
que tem peso metafísico? Obviamente, o que é decisivo é o esquecimento
ou o não-esquecimento da origem metafísica do “eu” a partir do “Eu”. Vi-
ver no não-esquecimento, no esquecimento do esquecimento, ou seja, no
esquecimento superativo metafísico, é viver na verdade. Em sânscrito,
“verdade” é “satya”. “Satya” é a cognição, o ensino e a vida de acordo com
o ser e a essência. Portanto, o que é insubstancial, o que não é substancial,
o que não é essencial, não é verdadeiro desse ponto de vista. De fato, a
questão do substancial e do verdadeiro era, nas culturas tradicionais, uma
questão menor. Não que não fosse em grande parte — mas essa não era a
ênfase; sempre havia algo muito maior a ser entendido pelo que em latim
aparecia em conexão com verdades espirituais como “veritas” e em cone-
xão com verdades legais como “iustita”. O equivalente grego de “iustitia” é
“díke”, enquanto o de “veritas” é “alétheia”.
Esses remanescentes proverbiais e clichês, como “a luz da verdade”,
mesmo em sua forma muito desacreditada, representam a relação entre a
verdade e a luz. Ou seja, a “verdade”, “alétheia”, “satya”, “veritas”, estão
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todas relacionadas à luz; a luz está relacionada à natureza essencial da cons-
ciência. A luz é a natureza da consciência. A “luz da mente” é quase um
pleonasmo, ou seja, a aplicação de um único termo em uma série. A luz do
espírito é a luz da consciência. A escuridão também é a escuridão da cons-
ciência. Pois a consciência é mais abrangente do que o espírito e a luz. O es-
pírito sempre significa que o centro da consciência, ou seja, o sujeito, está
em ação. Ele está em ação, ou seja, está na culminação das ações. Subiectum
in actu — isso é espírito em minha definição. O sujeito no ato. E o ato
consciente do sujeito é espírito, ou seja, luz. Não se trata principalmente de
luz física. Não é em relação à luz física, luz natural, que a luz espiritual re-
cebere um nome semelhante. O que experimentamos como luz no sentido
físico é a luz que foi perdida, deslocada. Por causa da luz espiritual, há tam-
bém a luz externa. O Sol não é associado a Deus porque vemos o Sol. Não.
Existe um Sol porque existe um deus solar. O ser de luz autocriador é o
Aúton. Consequentemente, ele deve ter uma marca no Mundo Físico, que
é o corpo celeste. Mas não é o nome nem, acima de tudo, sua existência
que deriva disso. Como é patético quando as pessoas tentam derivar religi-
ões e espírito de fenômenos naturais, enquanto se esquecem de por que
existe alguma coisa. Nenhum espírito jamais foi derivado de qualquer fe-
nômeno natural, em qualquer sentido. É sempre o espiritual e sempre o su-
perior que é primário: tanto em essência quanto, se houver uma projeção
temporal, como no caso que acabamos de mencionar, também no tempo.
A suposição de não-consciência, especialmente no sentido excessi-
vamente enfatizado em que é feita na psicologia profunda, é, de fato, tanto
uma ofensiva contra os poderes de cognição do homem quanto uma falá-
cia explícita. Alguns, por exemplo, reconhecem na tendência junguiana
uma espiritualidade real, enquanto a tendência de Jung é peculiarmente
antiespiritual. Ela é antiespiritual porque deriva a consciência da não-cons-
ciência. Como se o inconsciente fosse primordial, em oposição ao consci-
ente. Obviamente, isso não é tão difundido ou tão vulgar na abordagem de
Jung como é no Freudianismo, mas certamente está presente. Mas não
existe algo como o “inconsciente”. A consciência tem atualidade e potenci-
alidade, e tem uma potencialidade que está aberta ao Infinito. É óbvio que
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essa potencialidade tem dimensões intimamente individuais, coletivas, fa-
miliares, cósmicas, e outras. Nesse sentido, falar de camadas de consciência
é simplesmente uma metáfora, de longe uma metáfora; há potencialidades
inferiores e superiores. Existem potencialidades que, quando atualizadas,
destroem a consciência; e existem potencialidades que, quando atualizadas,
estão relacionadas ao aumento da consciência. Toda essa questão deve ser
levantada apenas em termos de atualidade e potencialidade. Caso contrá-
rio, teríamos uma imagem da consciência que sugeriria que há algum tipo
de naturalidade oculta original em segundo plano. Se o que a psicologia
chama de inconsciente tem algum efeito, não é porque o inconsciente de-
sempenha alguma função oculta, mas porque é inconsciente, porque é
“héteron”, porque é “outro”. O inconsciente, de fato, não é “eu”, e tudo o
que não é “eu” está, de certa forma, trabalhando contra mim. Isso deve ser
entendido com a devida sutileza e percepção, porque se não for, será ime-
diatamente mal interpretado. Isso não significa que todas as pessoas e o
mundo inteiro são meus inimigos, mas que, se tudo permanecer no estado
em que está, então tudo está de fato se preparando para a morte, não ape-
nas como um evento biológico, mas também em um sentido mais amplo.
O mundo existe para me levar de volta a mim mesmo. Ou, o que
significa a mesma coisa em um sentido diferente: ele existe para me separar
de mim mesmo. Para separar o mundo como mundo, como Héteron, de
mim mesmo — e para levar o mundo como Aúton potencial de volta para
mim mesmo.
A unidade é o objetivo. A unidade é a unidade do Aúton. O que
parece sair da unidade é o Héteron. O que parece sair da unidade eu quero
levar de volta para mim mesmo, não como Héteron, mas como Aúton. Ou
seja, preciso reconhecer o Aúton antes de poder levá-Lo de volta.
De acordo com a doutrina tântrica, tudo no mundo pode ser per-
cebido e vivenciado como yoga. Isso é especialmente verdadeiro para o ser
humano individual. Portanto, se os poderes de cognição necessários tive-
rem sido desenvolvidos, cada ser humano pode ser visto como manifestan-
do algo: sua vida simboliza algo. Quanto mais intimamente eu conheço al-
guém, mais intensamente isso se manifesta. Algumas pessoas parecem estar
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especificamente associadas a símbolos que representam claramente forças
de destruição. É claro que isso deve ser entendido com uma diferenciação
muito ampla, pois não existe apenas branco ou preto, mas em um único
ser humano há uma riqueza inaudita de qualidades; e isso pode ser dito
não apenas em relação ao homem, mas também em relação às espécies ani-
mais e até mesmo, em certo sentido, aos indivíduos animais. Como a maio-
ria das relações entre homens é realizada em um nível insignificante, deve-
mos pelo menos olhar para os indivíduos mais importantes dessa maneira:
o que ele representa, o que é expresso nele? E aqui realmente temos de ir
fundo, porque o papel das impressões que fazemos é muito pequeno nesse
aspecto.
Portanto, não há outro tipo de ser, há apenas ser consciente: há ser
consciente no sentido de que há objetividade consciente. Portanto, não
posso dizer que tenho relação com o que não tenho, e não posso dizer que
não tenho relação com o que tenho. Sem dúvida, existe objetividade. Mas
em que sentido ela existe? Realidade objetiva existindo independentemen-
te da consciência — não existe tal coisa, não tem sentido. A razão pela qual
não digo que é o maior absurdo da história da filosofia é porque, na verda-
de, não se encaixa na história da filosofia. Há uma séria contradição interna
aqui, ou seja, se sei que algo existe porque sei que existe, isto é, porque está
em minha consciência, então declaro que existe mesmo que não esteja em
minha consciência. De fato, ela existe mesmo que nunca tenha estado em
minha consciência. A propósito, isso não se aplica apenas a toda a realidade
objetiva e não apenas às esferas da vida após a morte, mas também a algo
muito mais concreto. Se estivermos suficientemente atentos, podemos ver
que uma entidade que não está presente tem uma posição ontológica mui-
to específica. Qualquer pessoa que pense que está indo para casa porque
encontra seu apartamento lá é um realista ingênuo. O que significa “estar
lá”? Significa que vários estados imaginários de existência do apartamento
em questão podem surgir em algum momento. Caso contrário, ele não
tem ser. Por que é sempre possível encontrar algo com tanta regularidade?
É porque o poder constitutivo do homem está tão profundamente enraiza-
do, tão profundamente afastado da esfera de poder que o homem pode
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controlar em sua consciência comum, tão grande é sua inércia — que as
coisas podem ser encontradas. É por isso que sabemos que, quando formos
buscar, encontraremos as coisas. O que seria fundamentalmente diferente
é se você tivesse poder mágico permanente sobre tudo o que existe. Esse
poder mágico, embora não esteja ao nosso alcance imediato, existe como
uma possibilidade, é claro, já que o próprio poder é uma possibilidade de
poder. Se esse potencial de poder for atualizado, não se trata mais de magia
demoníaca, quando o mágico ainda não assumiu o poder sobre si mesmo
e, portanto, os poderes aparecem na forma de seres. O surgimento do po-
der mágico na forma de seres, que não foi totalmente assumido, é apenas
uma realização parcial do domínio e pode ser perigoso e fatal, pois esses po-
deres na forma de seres são muito reais. O mago demoníaco exerce domí-
nio sobre essas forças, mas não sobre si mesmo. Em contraste com a magia
goética ou demoníaca, a magia teúrgica, por outro lado, é de tal natureza
que nela o poder do Aúton começa a aumentar até a ilimitação e é, acima
de tudo, um poder sobre si mesmo, de modo que o mago exerce seu poder
sobre os seres e as forças, ou seja, sobre o Héteron, como um poder sobre si
mesmo.
Na culminação, o mago se torna o criador, sustentador, e transmu-
tador do mundo inteiro. Ele percebe que o mundo existe porque foi criado
e sustentado — no sentido hindu Īśvara-Trimūrti: como Brahmā, Viṣṇu,
e Śiva. E foi sempre ele quem criou, sustentou, e transmutou o mundo.
Mas essa não é apenas uma questão de mero reconhecimento, mas também
uma questão de realização: uma questão de realização além da pessoa. O
mago realizado não apenas percebe sua própria pessoa, sua própria perso-
nalidade, mas é ele quem percebe toda a existência. Se houvesse um único
aspecto da existência que fosse deixado de fora da Realização, isso tornaria
impossível o que chamamos de Despertar Metafísico. A onipotência não é
uma consequência, mas uma pré-condição da Realização Metafísica. Por
onipotência, é claro, entenda-se onipotência sem qualquer limitação. E is-
so não é apenas onipotência, mas também oniagência. Não apenas onipo-
tência, mas também onipotência onipoderosa. Não há nada no mundo
que não seja operado pelo mago com propósito. Quem é o mago com um
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propósito? Eu mesmo, quando alcanço meu objetivo. Existe algum outro
mundo além do mundo da consciência? Não. Existe algum outro centro
de existência consciente além de mim mesmo como sujeito? Não se pode
dizer que sim. Portanto, o mundo inteiro surge de mim. No entanto, se eu
não o vivenciar como surgindo de mim, isso significa que não estou total-
mente no centro de mim mesmo. Ou eu poderia dizer que não sou total-
mente eu mesmo. Se eu fosse plenamente eu mesmo, eu me perceberia co-
mo criador, sustentador e transformador. O significado disso é ilimitado.
O significado disso é infinitamente grande para aquele que não se acomoda
em seu próprio estado, pois aquele que se acomoda em seu próprio estado
sairá dele, mas para baixo. Aquele que não se esforça para subir, cairá para
baixo. Pois a simples desaceleração da descida requer forças extraordinárias
de subida, sem mencionar a parada e a reversão.
Quando olhamos para uma vida humana comum, vemos, por um
lado, a magnificência teleológica da Providência Divina e, por outro lado,
sua total negação e destruição. Essas são questões de poder. Enquanto o
homem ocupar a forma de existência humana terrena, ele estará, de fato,
em um desdobramento. Em desdobramento, não em desenvolvimento.
Qualquer pessoa que veja esse processo como uma analogia para desenvol-
vimento está fundamentalmente equivocada. É uma questão de ocupação
de uma forma de existência. É claro que as forças da morte são imediata-
mente ativadas no início da conquista da forma de vida, mas elas só predo-
minam se o homem não resistir. Mas o homem espiritual resiste às forças
da morte. O que isso significa? Significa, e deve significar, que o homem,
nem mesmo no sentido de Realizações elevadas, mas simplesmente em ter-
mos de sua própria personalidade, por mais tempo que viva, deve estar
sempre no estágio mais elevado de sua vida, no último momento de sua vi-
da. Pois, se ele viver até os cento e vinte anos, naturalmente estará em um
nível mais elevado aos cento e vinte anos do que aos cento e dezenove anos;
e em um nível muito mais elevado do que aos cinquenta anos. É claro que
esse não é o caso normalmente. Não é comum que aqueles que vivem até
uma idade avançada estejam “in floribus” em seus últimos meses. Isso sig-
nifica que uma força estranha começa a operar, uma força estranha que
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não é essencialmente estranha, mas que, no momento, é estranha à expe-
riência. Um efeito é criado. Sabemos que a doença nunca é causada pelo
que parece causá-la. Assim, de fato, o embotamento mental nunca é real-
mente causado pela arteriosclerose cerebral e, de fato, a morte por cólera
nunca é causada pelo agente causador da cólera e, de fato, nada é causado
pelo que se pensa que é. São sempre companheiros, associações, e desem-
penham um papel na periferia da causa. Obviamente, não se pode dizer de
um patógeno, uma bactéria patogênica, que ela não tem nada a ver com a
doença, mas ela nunca tem tudo a ver com a doença. Toda doença é um
destino. Quando dizemos generosamente que Héteron e Aúton, de fato,
uma multiplicidade imensurável e uma multiplicidade diferenciada de for-
ças semelhantes à entidade héteron, e atos diferenciados de tomar e perder
o poder do “eu” como Aúton estão presentes e acontecendo — esse é o des-
tino real. São eles que criam situações de destino, de modo que, a partir
dessas situações de destino, os ataques são lançados contra a forma atual de
ser. O ataque ocorre no físico profundo, no corpo, e na mente. O ataque
ocorre na fisicalidade profunda, e a isso se somam, associados na periferia,
os gatilhos. As causas reais estão em outro lugar e, desse ponto de vista, as
causas das doenças estão mais no campo da causalidade. Elas de fato têm
uma causalidade, mas não é uma causalidade de primeira, segunda ou ter-
ceira ordem, mas uma causalidade muito mais multiordenada. É por isso
que combatê-las não pode criar curas fundamentais. Na periferia, pode ha-
ver uma cura completa, mas não na base. A possibilidade de um processo
de cura ocorrer em uma multiplicidade de planos e aspectos era quase im-
possível mesmo em épocas muito mais antigas e puras.
Todas as abordagens espirituais — e a abordagem oriental enfatiza
isso de modo especial — não tratam o retorno ao “Eu” como um fim, mas,
na verdade, o incluem na esfera das operações de início, só que estão cien-
tes de que essa operação de início também pode, é claro, aparecer como um
fim na esfera de início. No entanto, as operações de Realização não podem
se tornar obrigatórias para ninguém, nem mesmo se pode dizer que elas são
explicitamente recomendadas para todos. E uma das características dos atu-
ais caminhos equivocados é precisamente o fato de que eles enfatizam mui-
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to que todos sigam algum caminho definido — o que não é surpreendente,
já que eles deliberadamente fornecem caminhos equivocados e, portanto, é
de seu interesse impô-los. Há, entretanto, abordagens mais sérias e bem-
intencionadas, mas elas também propagam essas coisas. Não se trata de a
Realização Metafísica ser adequada a todos, embora, em última análise, ela
esteja aberta a todas as pessoas — mas apenas em última análise. Porque, a
rigor, ela está aberta à maioria das pessoas apenas em uma extensão muito
limitada. De fato, ela está aberta àqueles que representam a imagem ascen-
dente e aspirante do homem único, o homem espiritual e universal, como
uma possibilidade em si mesma mais forte do que a mera potencialidade.
Portanto, a Realização Metafísica está, em última análise, aberta a todos, e
eu mesmo, experimentando a mim mesmo em tudo, posso despertar — is-
so é, na verdade, uma doutrina, e significa simplesmente que todos podem
fazê-lo. Deduzir disso que eu tenho uma chance — especialmente quando
não se aspira a isso — é, na minha opinião, geralmente levantado por aque-
les que não aspiram ao Despertar Metafísico, mas que foram informados
de algum lugar que é nominalmente inteligente estabelecer tais metas. Es-
sas pessoas acreditam que eu deveria realmente me esforçar porque isso é
bom e significativo, e que tenho uma chance, mesmo que não esteja fazen-
do nada a respeito, e que farei algo a respeito quando tiver tempo.
Se alguém reconhece a lei que representa, reconhece o que o Hin-
duísmo e o Buddhismo em sânscrito chamam de svadharma. O svadhar-
ma é sua própria regra, sua própria lei de existência. Não se trata apenas de
qual é sua missão e o que deve fazer, mas sim de como pode encontrar o ca-
minho que deve seguir para voltar a si mesmo. No retorno completo, en-
tão, tanto o Dharma quanto o svadharma são eliminados, pois aquele que
alcançou a meta se torna o mestre do Dharma. Portanto, não há Dharma
aplicável a ele: ele não tem svadharma. Entretanto, o caminho é determi-
nado pelo svadharma.
Por fim, há o karma, que é muito mal utilizado. “Karma” significa
“ação”. E “karma-vāda”, “karma-tan”, significa que toda ação no mundo
está relacionada a toda ação. É claro que a ação do “eu”, ou seja, o que eu
vivencio como ação do “eu”, está ainda mais intimamente relacionada ao
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meu “eu” pessoal. Na doutrina do karma, é claro, está embutido o princí-
pio da ação-reação, bem como a noção do karma como uma algema, em-
bora os dois não sejam a mesma coisa. Ainda assim, o karma, no sentido
geral, tende a ser confundido com “karma-bandha”, o “vínculo kármico”.
O karma-bandha é a escravidão. Por que esse vínculo funciona? Será que
funciona porque a pessoa infeliz faz alguma coisa? Será que é porque é
uma algema? De jeito nenhum. É uma algema porque a ação não é comple-
tamente autorrealizada. O Héteron é uma algema porque o Héteron está
sempre presente em cada ação. É somente por causa do Héteron que o kar-
ma se torna uma escravidão kármica, “vinculum” karmicum, “algema”,
“fardo”, “rede”. Isso se deve ao fato de ele não ser o executor. É porque ele
é meramente um coexecutor. Mesmo em seu pensamento, ele é apenas um
coexecutor, embora no pensamento o Héteron tenha o menor papel. E é
por essa última razão que todos os caminhos de Realização podem e devem
começar com o pensamento, não porque ele seja o mais poderoso, o mais
elementar. Não é. A razão pela qual todos os caminhos devem começar
com o pensamento é o fato de que a pessoa é mais ela mesma nesse mo-
mento. Mesmo que comece por trilhas completamente diferentes e falsas
no pensamento, a própria função de pensamento tem características que
podem servir como ponto de partida para uma metamorfose. Além disso,
o menor sentimento é muito mais poderoso do que o pensamento, mas os
sentimentos são tão heterofuncionais que não podem ser usados como
ponto de partida. A realização não pode ser construída apenas com base no
sentimento. Em um determinado estágio da Realização, é claro, os senti-
mentos também devem ser levados em conta, pois estão entre os elementos
mais importantes da vida.
Portanto, só posso alcançar — e esse é um princípio básico da me-
tafísica oriental — o que nunca deixei de fato. Eu não o deixei “de fato”,
mas estou muito distante daquilo que nunca deixei de fato. Só posso che-
gar ao que nunca deixei.
“Se aqueles que vos guiam vos disserem: ‘Olhai, o reino está no
céu!’, então as aves do céu vos precederão. Se vos disserem: ‘Está no mar’,
então os peixes os precederão. Pelo contrário, o reino está dentro de vós e
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fora de vós. Quando conhecerdes a si mesmos, então sereis conhecidos e
percebereis que são filhos do Pai Vivo. Mas, se não conhecerdes a si mes-
mos, então existireis na pobreza, e sereis a pobreza” (Tomé 3:1–5).

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