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Despersonalização e a ausência de limites fixos: o

budismo como possibilidade para se pensar o caráter


existencial de saúde e doença
João Pedro Ferreira Barbosa Matias

“Ó Shariputra, a ausência de delimitações é a natureza de


todas as coisas. Ela não nasce nem aparece, não se
macula nem é purificada, não cresce nem decresce. A
ausência de delimitações não é limitada pela forma, nem
por sensações, percepções, inclinações ou
discernimento. Ela está livre de olhos, ouvidos, nariz,
língua, corpo e mente; livre de visão, som cheiro, sabor,
tato e qualquer objeto da mente; livre das esferas
sensoriais, incluindo a esfera mental. Ela está livre da
ignorância e da extinção da ignorância. A ausência de
delimitações está livre da velhice e da morte e livre da
extinção da velhice e da morte. Ela está livre do
sofrimento, da origem, da cessação e do caminho, e livre
de sabedoria e realização.”

- Sutra do Coração da Realização da Sabedoria Além da Sabedoria

A despersonalização como ausência de delimitações é uma possibilidade de


se pensar o conceito, já calcificado, nas concepções naturalistas do DSM-5 e do CID-
10. Deste modo, o objetivo deste trabalho é apontar a despersonalização não apenas
como uma necessidade na contemporaneidade, como também engendrar uma
despersonalização alinhada ao conceito de ausência de limites fixos, apresentado
pelo budismo mahayana. Junto a isso, considerar as contribuições da filosofia do
absurdo de Albert Camus, da fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger e da
dialógica de Martin Buber.
O budismo em sua conjuntura histórica e filosófica, não apenas contribuiu com
práticas de alívio cognitivo, mas forneceu uma filosofia de um expurgo do Eu. Sim, um
expurgo do indivíduo e da subjetividade. Deste modo, Sidarta Gautama, o Buda
histórico, não apenas formulou um pensamento, mas percebeu o fluxo existencial da
própria vida. Tal característica de perceber o fluxo existencial, está além de um mero
ato reflexivo, pois nas palavras de Yoka Daishi, antigo mestre zen-budista: “Caro
amigo, não vês este homem do satori que parou de estudar e está inativo? Ele nem
procura afastar as ilusões nem encontrar a verdade” (p. 16, 1978). Satori refere-se,
portanto, a iluminação, o estado com o qual se alcança a plena sabedoria. No entanto,
as palavras de Daishi exprimem um valor que se encontra além do que se refere o
satori, pois para ele, não se trata de uma busca, mas “abrir-se” a possibilidade de
experimentar o absurdo existencial (Camus), com o qual todos somos atravessados.
A não busca por uma formulação conceitual do satori, trata-se, desta forma, de
um esquecimento da estrutura egóica, que circunda a vida, ditando o caminho a ser
atravessado. Considera-se com isso, o cosmos, não como uma parte integrante da
vida, e sim como a própria vida, com a qual todos os seres fazem parte, inclusive o
homem obscurecido no seu si-mesmo. Este conceito que retira do homem seu caráter
subjetivo, leva o nome de shunyata (ausência de limites fixos). Nas palavras de
Suzuki, um mestre zen-budista:
O intelecto cumpre sua missão quando trabalha como um intermediário – e o
zen não tem nada a ver com um intermediário, exceto quando deseja
comunicar sobre si mesmo para os outros. Por esse motivo todas as
escrituras são meramente vagas e provisórias; não há finalidade nelas. O fato
central da vida como é vivida é o que o zen tenta abraçar, e isso da maneira
mais direta e mais vital. (p. 28, 2019)

Sendo assim, a despersonalização em seu modo saudável, que está além do


caráter patológico-naturalista, revela o modo mais próprio de sermos, isto é, anicca
(impermanência), dukkha (vida cíclica) e anatta (não-eu). Anicca, diz respeito ao fluxo
existencial, na qual o homem se encontra – significa dizer, portanto, que não se há
fechamento para a transitoriedade, pois tudo é da ordem do acontecer, inclusive o
mundo; Dukkha, por sua vez, refere-se a vida em seu caráter cíclico, pois traz consigo
a insatisfação do viver, ou seja, ela não permite uma estabilidade permanente dos
sentimentos e emoções (ex.: não sou felicidade e nem tristeza, estou sendo felicidade
e tristeza, não estou sendo felicidade e tristeza); Anatta, é o não-eu ou a não-mente,
isso significa, a falta de essência composta no ser humano, uma fuga da metafísica
contemporânea, por exemplo, que trata o homem meramente como fruto de sua
cognição, ou que vê nele apenas um amontoado de células, rebaixando-o ao nível
biológico.
Constato com isso, o caráter mais próprio de sermos, o da impermanência, este
que serve de contraste à despersonalização saudável, que reconhece sobretudo o
seu absurdo. Pois segundo Albert Camus, o absurdo existencial, traz à tona uma
espécie de despersonalização, pois
O que é verdade para sentimentos já especializados, será ainda mais para
emoções cuja base é tão indeterminada, ao mesmo tempo tão confusas e tão
“certas”, tão distantes e tão “presentes” quanto aquelas que a beleza nos
oferece ou que o absurdo suscita. (CAMUS, p. 25, 1948)
As palavras de Camus extraídas de seu ensaio “O mito de Sísifo”, assim como
no budismo, com o conceito de shunyata, nos apresenta a facticidade do homem em
se constituir enquanto ser lançado no mundo, na qual é desprovido de uma
determinação (Heidegger), revelando assim, a ausência de limites fixos que
engendram a vida como modelo calcificado, como por exemplo, a ideia de transtorno
acerca da despersonalização.
A perspectiva já sedimentada de um transtorno de despersonalização enquanto
puro biológico, permite a consideração de Heidegger sobre o conceito de doença:
A doença não é a pura negação da condição psicossomática da saúde. O ser
sadio, o estar bem, o encontrar-se bem, não está simplesmente ausente: está
perturbado. A doença é um fenômeno de privação. Toda privação implica a
co-pertinência essencial de alguma coisa que se privou de outra e que precisa
desta outra coisa (HEIDEGGER, p. 73, 2001)

A doença como fenômeno de privação, permite a abertura para a discussão


sobre as implicações do neoliberalismo sobre o körper (corpo vivencial). O körper diz
respeito as estruturas afetivas desdobradas em que o homem se apossa em sua
existência, configurando assim, uma atitude körperlich (corpórea) perante o mundo.
No entanto, a característica de körper, tem cedido espaço para o leib, onde este se
manifesta enquanto leiblich (corporal). Por leiblich deve-se compreender o
funcionamento meramente orgânico e objetivo do corpo que o sente.
O leib como característica que se alinha ao modelo naturalista de se conceber
o homem, constitui a valorização demasiada da dominação do corpo. Tal dominação
permite o engendramento do conceito de despersonalização, como
um distúrbio do processamento da emoção. O portador de DP/DR se sente
desconfortavelmente desconectado de seus próprios sentidos e eventos que
o envolvem, como se fosse um observador externo ao ambiente e pessoas
que o cercam. (SILVA et al., p. 338, 2016)

Este fenômeno não se refere, como pensam os cientistas naturalistas, de uma


saída de si mesmo, mas como apego a estrutura egóica que circunda a sociedade
pós-moderna.
Segundo Martin Buber, filósofo da relação, o mundo se dá como duplo para o
homem, pois é a partir de sua atitude, que se profere as palavras-princípio, Eu-tu e
Eu-isso (BUBER, 1979). O modo de ser do Eu-tu, regozija-se na presença com o
outro, este outro o leva a relação. Uma degustação existencial – trata-se, portanto, de
uma contemplação do sagrado, da obra de arte, da árvore, etc., não se findando na
relação face-a-face com o outro homem, mas ganha tonalidades na abertura para o
outro. No entanto, o modo de ser do Eu-isso, está atrelado aos objetos de uso, de
conhecimento ou da mera experiência de um Eu; é a utilização do outro para um fim;
o outro como sombra do Eu.
A despersonalização segundo os manuais diagnósticos, por sua vez, tem dado
investidas para o desmonte, ao menos conceitual da palavra-princípio Eu-tu. Tal
fenômeno se revela, quando a relação com o mundo é tida como “desconfortável” para
o desdobramento do homem, pois, deste modo, ele foge de seu si-mesmo
obscurecido pela ação individualizante da contemporaneidade. Ou seja, não há
espaço para a contemplação, e sim para a “coisidade”, que investe no bem-estar em
uma tentativa de expurgo da alteridade do outro e da vida.
O expurgo do outro, como visto, traz consequências não apenas conceituais,
mas implicam em como se dá a dinâmica social. Ressalto, para tanto, uma tentativa
de abandono do mistério em prol das verdades calcificadas, que demonstram
tentativas massivas em transformar o homem em máquina. Mas, Fernando Pessoa,
em Grandes Mistérios Habitam, escreve: “Grandes mistérios habitam, / O limiar do
meu ser, / O limiar onde hesitam” (1-2-3). Sendo assim, Pessoa nos fornece uma
compreensão ontológica do homem, na qual não escapamos. Eis o mistério do que é
o viver; eis a tentativa de se estabelecer a tecnocracia na vida. A tecnocracia modifica
a ontologia fundamental do mistério na vida? Aponta Heidegger:
Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo
técnico. E por isso nunca experimentaremos nossa relação para com a sua
essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico,
satisfizermo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados,
permaneceremos, sem liberdade, atados à ela, mesmo que a neguemos ou
a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos
entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa
representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar
homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica.
(p. 376, 2007)

Por fim, cabe considerar as palavras de Heidegger como um alerta não


somente à ciência naturalista, mas também à cultura, pois é no privilegiamento da
noção de “neutralidade”, que se desconsidera a despersonalização, por exemplo,
como um modo de engendramento para se tornar sempre outro.
O ser-no-mundo heideggeriano como ontologia fundamental, é com isso
também, o anatta do budismo mahayana. Esta associação acontece, porque o
obscurecimento conceitual acerca da vida existencial, se retém nas hipóteses
fundadas pelas noções de um Eu subjetivo, e ao mesmo tempo individual. Anatta,
portanto, como não-eu, permite reconhecer o papel interrelacional dos sujeitos para
se tornar um outro.
Destarte, é se afastando das noções e conceituações equivocadas da pós-
modernidade, que se faz possível uma despersonalização não patológica, e sim da
digestão existencial como produtora de saúde.
REFERÊNCIAS

TANAHASHI, Kazuaki. O Sutra do Coração: um guia abrangente para o clássico do


Budismo Mahayana. 3. ed. Tradução: Marcelo Nicolodi. Teresópolis, RJ: Lúcida Letra,
2018.

DAISHI, Yoka. Shodoka: O Canto do Satori Imediato. Tradução: Sonia Carneiro Leão.
São Paulo: Editora Pensamento, 1978.

SUZUKI, D. T. Uma Introdução ao zen-budismo. 1. ed. Tradução: Eloise de Vylder.


São Paulo: Mantra, 2019.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. 16. ed. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. Rio
de Janeiro: BestBolso, 2021.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 1. ed. Tradução: Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientiae studia, v. 5, p. 375-398, 2007.


Disponível em: https://www.scielo.br/j/ss/a/QQFQSqx77FqjnxbGrNBHDhD/?lang=pt.
Acesso em: 5 dez. 2022.

BUBER, Martin. Eu e Tu. 2. ed. Tradução: Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo:
Cortez e Moraes, 1979.

PESSOA, Fernando. Cancioneiro. 1. ed. Organização: Jane Tutikian. Rio de Janeiro:


L&PM, 2007.

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