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Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade – PUCRS. Especialista em Psicologia do Trabalho –
CEUCEL/RJ. Docente-supervisora do Departamento de Psicologia da Universidade Paranaense – UNIPAR/PR
(Psicologia Clínica – abordagem fenomenológico-existencial). Docente–supervisora da Universidade Estadual
de Maringá – UEM/PR (Psicologia do Trabalho). E-mail: sylviafreitas@brturbo.com.br.Tel: (44)9964.0244 e
(44)8408.1484.
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Comentário de Gerd Bornheim, filósofo e um dos maiores divulgadores do pensamento sartrenano, em
entrevista ao Jornal Existencial. <http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/>
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Desta forma, os processos grupais são definidos pelas práxis singulares de cada integrante do
grupo, como também são revelados por cada consciência em particular. É a partir da relação
do homem com o mundo no qual está inserido, que se formam os grupos sociais, e é a
dialética o princípio motor que possibilita qualquer atividade humana e social (BETTONI,
2002). Perdigão (1995) coloca que cada homem existe no mundo com outros homens,
portanto, há uma multiplicidade de consciências, ou seja, uma inter-subjetividade. No plano
do conhecimento somente posso ter certeza do Outro enquanto objeto, no entanto vamos
além, reconhecemos o Outro como consciência, como um para-si igual a mim, que possui o
poder de nadificação, pois também possui uma consciência intencional. Não vejo o Outro
apenas como uma coisa, o percebo como um “olhar”. Perdigão exemplifica: “não vejo o rubor
da face, mas a vergonha” (1995, p. 137). Apreendo algo ausente. No entanto, a apreensão
deste algo ausente não me faz conhecedor do Outro. Para apreender sua subjetividade deveria
ser o que sou para a consciência dele, o que é impossível, pois desta forma não
reconheceríamos o Outro, seríamos ele. Assim, nossa consciência apreende o Outro apenas
como objeto, da mesma forma que assim somos apreendidos pela consciência do Outro.
Somos para o Outro o que não somos. O Outro é para mim o que não é. Destarte, como
sabemos que existe uma consciência alheia se não podemos sê-la? Perdigão menciona que
neste caso
“[...] só resta uma hipótese: antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, eu já
tenho de ser consciente dele de algum modo. Isto é: minha relação com a
consciência do Outro deve anteceder à primeira aparição mesma do corpo do Outro
frente a mim. O Outro deve fazer parte de minha consciência desde o nascimento,
como parte constituinte do meu Ser. Há uma predisposição ontológica do Para-si
para reconhecer o Outro enquanto sujeito. Assim, o Outro, primeiramente existe
para mim como estrutura do Para-si que sou. Seu corpo aparece depois, quando o
encontro” (PERDIGÃO, 1995, p. 138).
Para que haja este reconhecimento do Outro, tenho que, a priori, reconhecer que o Outro é a
consciência que eu não sou. É por esta negação originária que percebo o Outro como um
sujeito e não como objeto. No entanto, se reconheço o Outro como consciência, liberdade e
projeto, o reconheço como humano. Esta relação humana originária deve-se a vínculos
interiores. Perdigão (1995), no entanto, revela que essa predisposição ontológica é apenas o
ponto de partida, uma vez que resta saber como se dá essa compreensão do Outro enquanto
projeto. O fato de não me reconhecer como algo acabado é que me faz buscar minha
totalização no mundo circundante e neste mundo inclui-se o Outro. Como o Outro me vê?
Esta questão é uma tentativa de me totalizar através do Outro. Como vejo o Outro? Desta
mesma forma totalizo o Outro. Uma tentativa fracassada, uma vez que assim sempre serei o
“eu-para-o-Outro”, aquele que não sou, ou seja “o não-eu” e o Outro será “o-Outro-para-
mim”, aquele que não é, o não-Outro. Eis aí, criado o conflito nas relações humanas. A
consciência enquanto liberdade de escolha confere ao indivíduo sua condição de humano. As
coisas são fechadas em si, a consciência é um nada, um fluir contínuo de acordo com sua
intencionalidade. Quando me deparo com Outra consciência que também é livre, esta pode me
captar de outra forma que não a minha. Minha consciência então passa para a dimensão de
exterioridade, situando-se no mundo, enquanto coisa, não mais como subjetividade. Assim, ao
ser visto, experimento a objetivação do meu Ser. É somente desta forma que podemos obter
qualquer verdade objetiva a nosso respeito. Dependo do Outro para que eu possa fazer uma
representação de mim. Só posso saber-me corajoso ou covarde, magro ou gordo, por exemplo,
porque este tipo de auto-conhecimento passou antes pelo Outro. Sozinhos não poderíamos nos
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adjetivar. Destarte, mesmo que minha subjetividade seja revelada pelo Outro, “[...] não somos
capazes de apreendermos efetivamente essa visão que ele tem de mim. O Outro me vê de fora,
de um modo como nunca poderei, a rigor, me ver. Não posso captar-me tal como apareço ao
Outro” (PERDIGÃO, 1995, p. 144), fazemos somente uma representação nossa de acordo
com o como o Outro me vê. Somos totalização-em-curso, mas o olhar do Outro limita nossas
possibilidades. Para o Outro somos um em-si, desprovido de um projeto livre, mesmo que
haja um reconhecimento ontológico do humano em mim. “O olhar do Outro representa uma
encarnação do mito de Medusa: ele petrifica o meu Ser. É uma forma de opressão: o sentido
profundo da subjetividade alheia é existir como negação objetivadora da minha subjetividade”
(ibdem). O Outro fazendo de mim o que quer, minha liberdade é ameaçada pela liberdade do
Outro. O Olhar do outro me censura, torno-me objeto de aprovação ou reprovação do Outro,
daí a famosa frase de Sartre (1997) “O Inferno são os Outros”. Como se dá então os processos
grupais, uma vez que para existir uma consciência livre a outra é objetivada? Como podem
ser travadas então, relações construtivas? Baseando-se no reconhecimento da humanidade de
todos os homens, por cada homem (Para-Si-Para-Outro), Sartre (2002) mostra que mesmo
quando os homens estão em conflito há relações de reciprocidade. Para que eu objetive o
Outro, é porque o reconheço anteriormente como um projeto em ação no mundo, como
liberdade, caso contrário não precisaria objetivá-lo, pois ele já estaria assim. Na reciprocidade
negativa, objetivamos o Outro para atingirmos nosso fim. O Outro não passa de um meio para
atingir meu projeto. Da mesma forma posso assim sê-lo para o Outro. Neste caso ocorre o
conflito de liberdades. Na relação de reciprocidade positiva ou cada um mantém seus
respectivos fins em separado ou ambos (eu e o Outro) visamos um fim único (PERDIGÃO,
1995). Sartre (1997) menciona que o fundamento da ação humana encontra-se na necessidade.
O homem é lançado no mundo e depende dele. Ao nascer o homem já encontra um mundo
pronto, criado por Outros, um mundo Prático-Inerte, que não possui condições para suprir as
necessidades de todos, mas para que construa sua essência o homem precisa deste Prático-
inerte. Ao mesmo tempo em que o Prático-Inerte é um obstáculo para o homem, também é um
incentivo para que o homem o supere. É na tentativa de superar o Prático-inerte e sua escassez
que pode levar os indivíduos a reunirem-se em grupos para vencê-lo (BETTONI, 2002). Sem
o Prático-Inerte, a união dos homens jamais se daria. A práxis do grupo surge para negar uma
negação (o Prático-Inerte). O modo de existência social denominado pelo Prático-Inerte é
chamado por Sartre (2002) de série (coletividade serial). Na série, a relação entre os
indivíduos não é capaz de levar a cabo uma iniciativa em comum. Bettoni (2002) coloca como
exemplo de série, o modo de ser dos indivíduos congregados apenas em relações formais,
como na fila de um ônibus, as compras do mercado. No entanto, é dentro desta mesma série e
a partir dela, que os grupos se formam, quando os indivíduos que compõem a série tomam a
iniciativa de vencerem juntos esta mesma condição – de série, imposta pelo Prático-Inerte.
Surge então o grupo contra a série, o grupo como negação do coletivo. O grupo é formado a
partir do momento que cada indivíduo da série sente-se em comum com os outros e não em
conflito com eles, por captar consciências alheias que os observam de fora. Neste caso, o
grupo seria formado pela vivência do nós-objeto. Pode ser formado também quando a
vivência aparece sob a forma do nós-sujeito. Neste, todos da série observam um objeto
exterior ou vivem um destino comum imposto pela matéria Prático-Inerte. Em ambos os
casos, o grupo apresenta uma formação elementar, denominado por Sartre (2002) como
grupo-em-fusão, uma vez que este é constituído contra uma ameaça comum a todos. Há aí um
projeto em comum , uma práxis em comum. A experiência do “nós”, segundo Perdigão
(1995), é ilusória, pois é um recurso psicológico usado para sentirmo-nos no meio dos outros.
A unidade real desejável de grupo não se realiza. Não ocorre uma unificação concreta dos
Para-si. Não somos todos em um, ou seja, não existe um Ser do grupo. O grupo apesar de ser
motivado por um objetivo comum não pode ser um Ser-concreto, algo fixo e permanente. As
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liberdades agrupadas não dão bases definitivas de existência do grupo. Atingido o objetivo, o
grupo corre o risco de se dissolver e cada indivíduo dá continuidade a sua práxis individual.
Para que o grupo continue é preciso estabelecer novos projetos (BETTONI, 2002). Uma das
formas de impedir o regresso à série é a invenção prática dos membros do grupo: o juramento.
Todos os membros do grupo “juram” respeitar a permanência do grupo. O juramento serve
para garantir que os membros não usem de suas liberdades para escolher “não-escolher-o-
grupo”. Seria um voto de fidelidade eterna, quando seus membros “[...] já não estão mais
presentes uns aos outros, mas distanciados, talvez solitários. Trata-se de criar uma unidade na
separação, um laço de ausência” (PERDIGÃO, 1995, p. 225). Na tentativa de evitar que a
alteridade ressurja no grupo, este, através do juramento, tende a controlar a prática individual,
agora não mais como série, mas no quadro de uma prática coletiva do grupo. Enquanto no
grupo-em-fusão há uma tentativa de assim se rebelar contra o Prático-Inerte, no juramento, a
inércia é construída pelos próprios membros do grupo, no exercício da livre escolha. Sartre
(apud BETTONI) coloca que “devemos tomar cuidado para não confundi-lo com um contrato
social. [...] O grupo tenta fazer de si mesmo sua própria ferramenta contra a serialidade que
ameaça dissolvê-lo; ele cria uma inércia factícia para proteger contra as ameaças do Prático-
Inerte” (BETTONI, 2002, p. 71). A palavra dada pelo grupo não basta para mantê-lo vivo.
Desta forma o grupo necessita se organizar internamente, criar uma estrutura para si. De
grupo juramento passa para grupo organizado. Começa-se a divisão de tarefas. A práxis não
acontece mais no aqui-e-agora como no grupo-em-fusão, de forma espontânea e homogênea.
A distribuição de funções faz com que cada membro realize sua missão. O grupo organizado
atua em múltiplas práxis individuais para um fim comum. Perdigão coloca que “O grupo
organizado, pela divisão de tarefas, redunda em algo como uma ‘ampliação’fantástica da
práxis individual: o grupo (não por ser numeroso, mas por ser mais complexo do que qualquer
organismo individual) obtém resultados que nenhum indivíduo poderia alcançar sozinho,
ainda que multiplicando a sua força e habilidade” (PERDIGÃO, 1995, p. 231). Como cada
membro realiza sua função, há o distanciamento destes, bem como a mistura com os não-
agrupados. O contágio do meio Prático-Inerte é uma ameaça ao grupo. Pela impossibilidade
de configurar-se como Ser-concreto, há a necessidade de uma constante reorganização interna
do grupo. Agindo cada vez mais intensamente sobre si mesmo, transforma sua práxis em
processo. Cria-se então o grupo institucional, com medidas mais poderosas que o juramento, a
fraternidade-terror e a função (PERDIGÃO, 1995). No grupo institucional os membros
recorrem às estruturas de inércia, que assumem um poder cada vez maior, tornando a ação
individual de cada membro cada vez mais passiva. Podemos assemelhar este momento do
grupo com a produção por série. Um subgrupo depende da matéria trabalhada por outro
subgrupo, que por sua vez repassará para um terceiro subgrupo. O objetivo final é comum a
todos os subgrupos, mas cada subgrupo tem uma tarefa em particular que a cumpre
isoladamente dos demais. Segundo Sartre (2002) esta práxis-processo acarreta a esclerose do
grupo, mas ainda é uma saída para não caírem na serialidade absoluta. No entanto, o grupo
institucional é um sistema fechado, burocrático, hierárquico, regido por leis e punições, que
retira de seus membros o poder e delega-o ao que Sartre (2002) chama de Soberano. “A
instituição da soberania destrói todo o resíduo de integração social. E esta estabilidade se dá
claramente através de uma prática e em torno de um sujeito que já não estão no grupo e nem a
ele pertencem: ‘os indivíduos sentem-se unificados apenas através de algo que se encontra no
seu exterior’” (BETTONI, 2002, p. 73). No grupo institucional há a petrificação do grupo. O
processo grupal, como compreende Sartre (2002), é uma experiência circular: o grupo nasce
da série e à série retorna. Há sempre um fracasso do grupo quando tenta alcançar o status de
um Ser acabado. Sua existência, tal como de um indivíduo, é de uma totalização-em-curso,
um ser em aberto, que ao caminhar para o crescimento, caminha também para sua finitude. A
ordem do movimento do grupo, aqui exposta, é assim explicado por Sartre (2002) para uma
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melhor compreensão do leitor. Não necessariamente os grupos vivenciam seu processo nesta
ordem cronológica, tampouco necessitam passar por todas as etapas descritas. Sendo o
homem livre para escolher, o rumo de sua história é sempre imprevisível.
REFERÊNCIAS
BETTONI, Rogério. A formação dos grupos sociais em Sartre. Em: Metavnoia. São João del-
Rei/MG, n. 4, p. 67-75, jul., 2002.
PERDIGÃO, Paulo. Existência & Liberdade: uma introdução a filosofia de Sartre. Porto
Alegre: LP&M, 1995.
________. Critica da razão dialética – tomo I: teoria dos conjuntos práticos. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.