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A LIBERDADE EM SARTRE ATRAVÉS DE TRÊS NOÇÕES

SEMINAIS EM SUA OBRA: CONSCIÊNCIA INTENCIONAL,


ANGÚSTIA E MÁ-FÉ1.
Gilberto Miranda Junior 2
gil-jr@uol.com.br

Resumo
Para desenvolver a proposição de que a Liberdade é a condição de possibilidade para toda ação
humana, Sartre se utiliza de três noções seminais que dão suporte e sustentação ao conceito de
Liberdade dentro do existencialismo; são eles: o caráter intencional da Consciência, a Angústia e a
Má-fé. O presente artigo tem por objetivo descrever esses conceitos e articular, à luz do pensamento
sartreano, as relações entre eles e a Liberdade enquanto condição inescapável do agir humano frente
ao momento contemporâneo em que o capitalismo determina e constrange a liberdade a favor de sua
manutenção perene. Para tanto, serão utilizados, principalmente, os escritos de sua principal obra ‘O
Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica’ além de ‘A Transcendência do Ego’ e
‘Existencialismo é um Humanismo’, assim como alguns artigos científicos que tocam com relevância as
noções a serem trabalhadas. A ação humana dá-se por móbeis a partir de uma consciência que se
projeta na possibilidade de uma situação distinta da vivida e é por poder escolher sem nenhum tipo
de constrangimento que o homem se faz. Ao se dar conta de que não há uma essência ou uma
teleologia que determine quem ele é, o homem toma consciência de que é um ser histórico e que,
com suas escolhas, faz a si mesmo e toda a humanidade, sobrevindo, assim, a angústia a partir do
peso da responsabilidade decorrente. A má-fé é o recurso pelo qual o ser humano mascara a angústia
e lida com a necessidade incessante da escolha para agir sem que nada ulterior a ele fundamente sua
ação, apenas sua própria consciência e as escolhas livres que faz.

Palavras-chave

Existencialismo, liberdade, má-fé, consciência, angústia, Sartre.

1
Trabalho selecionado para ser apresentado no VII ENCIC 2015 – Encontro Nacional Claretiano de
Iniciação Científica.
2
Graduando de Licenciatura em Filosofia no Centro Universitário Claretiano e estudante membro do
CEFIL (Centro de Estudos de Filosofia) ligado à UFVJM, registrado no CNPQ.
1 Introdução

A importância do estudo de Sartre nessa segunda década do sec. XXI diz respeito
a uma clara percepção da crise da consciência de liberdade e representatividade
institucional que o ser humano experimenta na atualidade. As perguntas que Sartre
fez a si próprio a partir da sua experiência na ocupação nazista de França, seu
engajamento e rompimento com o comunismo e a escolha pela matriz marxista para
a compreensão do sujeito histórico com o auxílio da Fenomenologia de Husserl, são
pertinentes hoje na medida em que vivemos a colonização cultural de um sistema
que tem em seu modus operandis a privação da liberdade como determinação das
relações sociais a partir de uma estética de produção que se mascara por um
discurso difuso e falsamente ‘desideologizado’ ou, poderíamos dizer: naturalizado via
reificação. Compreender de que forma nossas escolhas são feitas, por que
voluntariamente escolhemos a não liberdade e a prisão da consciência na razão de
meios, instrumental, encontra no pensamento existencialista um rico cabedal de
conceitos que emergiram da própria vivência de seu principal autor. As contradições
do sujeito na história desembocam na própria experiência de vida de Sartre, que tem
na radicalidade da liberdade a própria experiência radical na história, pois “sempre
tentou compreender, acompanhar e participar dos acontecimentos da única forma
que lhe parecia possível: no calor da contingência, na emergência da denúncia, na
defesa intransigente da liberdade – o mais autêntico critério de coerência” (SILVA,
2009, p. 106).

O presente artigo tem por objetivo articular três noções seminais em Sartre
para a compreensão do que ele entende por Liberdade dentro da Filosofia
Existencialista. Toma por base os seguintes textos: sua obra máxima O Ser e o Nada:
Ensaio de Ontologia Fenomenológica (escrito em 1943), seu texto A Transcendência
do Ego (de 1937), em que ele articula as noções que vai desenvolver em O Ser e o
Nada e o texto em que ele procura responder às críticas sobre sua filosofia,
Existencialismo é um Humanismo , escrito em 1946. É imprescindível para a
compreensão da Liberdade em Sartre que percorramos, mesmo que suscintamente,
a forma como ele entende a Consciência enquanto posicionamento intencional do
sujeito no mundo, a Angústia enquanto condição do homem ver-se responsável por
sua própria construção a partir da existência e a Má-fé enquanto enfrentamento
pouco ético, de fuga, dessa responsabilidade e do sentimento de angústia
proveniente dela.

Antes de adentrarmos a essas importantes noções, porém, é preciso nos


aproximar do que Sartre entende como Ser Humano. Dentro de um existencialismo
ateu como o que ele professa, a antropologia de Sartre coloca o ser humano como o
único ser cuja essência (aquilo que ele é e o distingue enquanto gênero) é
construída na história, a partir de sua existência. Ou seja, daquilo que se pode
entender por ser humano, concebê-lo e aponta-lo como distintivo, não é possível
recorrer a nada ulterior a ele próprio enquanto fenômeno. Portanto, é o próprio
homem que se faz na história.

A antropologia de Sartre não tem respaldo apenas em um ateísmo de fundo,


mas, sobretudo, na evidência histórica de que, apesar de todos os atributos dados ao
homem pelas filosofias idealistas (inclusive as de fundo iluminista, laicas) a história
sempre contradisse a capacidade de o homem agir de acordo com sua essência
propagada. Até as filosofias mais pessimistas, do próprio iluminismo, que
preconizavam o homem como essencialmente mau, carecem de fundamento.
Portanto, muito mais do que pressuposto, o ateísmo de fundo no existencialismo de
Sartre se dá como emergência da falta de fundamento ao enxergar o homem na
história a partir de seus atos e compromissos, e não por qualquer tipo de condição
de possibilidade que o determine a ser de uma forma ou de outra. O desembaraço
que Sartre procura fazer está em seu postulado de que, no homem, sua existência
precede sua essência:

O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa


que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no
mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o
concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada:
só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si
mesmo. (...) O homem nada mais é do que aquilo que ele fizer de si
mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. (SARTRE, 1970, p. 4)

O que distingue o homem de todos os outros seres vivos para que ele tenha
essa característica de autoconstrução de sua essência após sua existência, é,
justamente, a dimensão de liberdade que o constitui a partir da emergência de certa
forma de ser que chamamos Consciência.

2 Desenvolvimento

2.1 A Consciência Intencional

Tendo como pontos de partida o cogito cartesiano e a noção de


intencionalidade husserliana, porém distanciando-se tanto de Descartes quanto de
Husserl para construir uma visão própria, Sartre postula que nossa consciência é um
ato, um modo de ser do próprio sujeito e não uma coisa (ou res cogitans cartesiana),
pois é destituída de conteúdo e só é enquanto consciência de algo, ou seja,
posicionamento 3:

Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa


que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto
transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não tem ‘conteúdo’.
(...) O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas
da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a
saber, a consciência como consciência posicional do mundo. Toda
consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um
objeto, e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção
na minha consciência atual está dirigido para o exterior, toda a minha
afetividade do momento, transcendem-se, visam a mesa e nela se
absorvem. Nem toda consciência é conhecimento (há consciências afetivas,
por exemplo), mas toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento
de seu objeto. (SARTRE, 2008, p. 22)

Para Sartre, a divisão entre fenômeno e coisa-em-si de Kant carece de


sentido, pois aquilo que aparece (φαινόμενον - phainômenon) não tem como
fundamento algum SER para além do que aparece (νοούμενoν – nômenon). Ou seja,
o Em-si das coisas, seu Ser, é sua relação fenomênica com um sujeito que toma
consciência da coisa. E qual seria, então, o Ser da consciência?

Sartre postula que é tanto movimento, ou seja, a consciência é somente


enquanto consciência de alguma coisa, quanto a própria coisa de que é consciência.
Sendo posicional, a consciência sempre terá por seu próprio ser um objeto que não é
ela própria. Ela, repousada sem ser consciência de algo, é Nada, pois não pode ser

3
Em nota do tradutor, “posicionamento” refere-se ao grego thésis: ato de colocar algo como existente
no mundo – tese.
posicional de si mesma, já que não está no mundo e todo mundo está fora dela.
Enquanto consciência é consciência da presença do objeto visado e se esgota nele
de forma plena. No Para-si, mundo da própria consciência, é constatado o nada na
medida em que ela sempre é reflexiva. Na reflexão de si a consciência se esgota
naquilo que ela mesma atribui significado a partir da reflexão que faz e constata que,
por mais que atribua conteúdo ao que reflete de si mesma, aquilo que permanece
consciência de si mesma não é refletido ao mesmo tempo em que se esgota na
reflexão. O que sobra é o Nada constituinte de seu Ser. É o caráter intencional da
consciência o que a define, já que ela é Nada se não é consciência de alguma coisa e
não pode ser coisa para si mesma. Portanto, ao se fazer, o homem se faz nos
posicionamentos que assume a partir de sua consciência posicional no mundo, o que
significa que ele é um ser aberto ao mundo, descentrado, mas catalisado no
movimento intencional da consciência que o constitui como dinâmica relacional,
formando uma síntese de si como Ego no Em-si, no mundo.

Sendo intencionalidade, portanto, a consciência existe pelo modo de não-Ser,


ou devir. Nesse não-Ser, ela precisa ser também consciente do que é. Ter consciência
de uma mesa, segundo Sartre, é ter consciência de ser consciente de uma mesa:

É uma condição necessária: se minha consciência não fosse consciência de


ser consciência de mesa, seria consciência desta mesa sem ser consciente
de sê-lo, ou, se preferirmos, uma consciência ignorante de si, uma
consciência inconsciente – o que é absurdo. (SARTRE, 2008, p. 23)

Há, portanto, um desdobramento da consciência para dizer que temos


consciência: a consciência do objeto visado implica, necessariamente, a consciência
de que há uma visagem. E essa consciência da visagem exclui da consciência da
mesa a própria consciência de si, portanto, na visagem, a consciência se constitui
sempre por negatividade: “(...) ela se transcenderia, e, como consciência posicional
do mundo, esgotar-se-ia visando seu objeto. Só que este objeto seria uma
consciência” (Idem).

O receio de um círculo-vicioso onde, ao ser consciência da consciência,


poderíamos regredir infinitamente como consciência da consciência da consciência, é
revogado por Sartre na medida em que postula que é da própria natureza da
consciência existir em círculo: “toda existência consciente existe como consciência de
existir” (Ibidem, p. 25). Em termos mais conceituais:

A consciência imediata de perceber não me permite julgar, querer,


envergonhar-me. Ela não conhece minha percepção, não a posiciona: tudo
que há de intenção na minha consciência atual acha-se voltado para fora,
para o mundo. Em troca, esta consciência espontânea de minha percepção é
constitutiva de minha consciência perceptiva. Em outros termos, toda
consciência posicional do objeto é ao mesmo tempo consciência não-
posicional de si. (Ibidem, p. 24)

Dessa forma, destituída de conteúdo, voltada totalmente para fora em sua


negatividade e existente enquanto processo – quando vemos uma árvore, a árvore é
exterior, e minha consciência da árvore também é totalmente fora de si – toda
descrição da consciência é, de fato, uma descoberta da liberdade. Essa existência
exterior e destituída de conteúdo da consciência é, justamente, seu caráter
intencional, portanto nossa radical condição de liberdade.

Segundo ABDO (2011), Sartre faz um encurtamento do campo transcendental


e o reduz à própria consciência, enquanto que para Kant, Husserl e mesmo
Heidegger a consciência pertenceria a esse campo; estaria contida nele. Em
contrapartida Sartre promove, conceitualmente, o alongamento do Ser desde A
Transcendência do Ego . Ainda segundo ABDO, a representação como acontecimento
transcendental não existe para Sartre: “assim, não retira apenas (...) o Ego do campo
transcendental, mas sim tudo que possamos pensar que exista, propiciando o
conceito de ser-em-si como aquilo que a consciência não é” (ABDO, 2011, p. 3). Nas
palavras de Sartre:

O campo transcendental, purificado de toda estrutura egológica, recobra sua


limpidez primeira. Em certo sentido ele é um nada, já que todas as
verdades, todos os valores estão fora dele, já que meu “Mim” cessou ele
próprio de fazer parte dele. Mas este nada é tudo já que ele é consciência
de todos estes objetos. (SARTRE, 2010, p. 221)
2.2 A Angústia

Na medida em que o Ego perde seu primado na concepção de consciência


intencional em Sartre e passa a compor (embora não totalmente4) o mundo como
um Em-si – em contrapartida ao Para-Si que é a própria consciência intencional que
nadifica o homem – esta deixa de possuir (já que é destituída de conteúdos por não
ser coisa – res) um polo condensador e criador de suas manifestações. Instaura-se,
dessa forma, a radicalidade de uma Liberdade constitutiva do Ser da Consciência
enquanto Para-si. A constituição desse Para-Si é, portanto, trinitária: é Nada (fora de
todo Em-Si), é Liberdade e, também, Angústia. É angústia, como o próprio Sartre
diz, não como prova da liberdade humana, mas na medida em que “(...) existe uma
consciência específica de liberdade e esta consciência é angústia. Buscamos
estabelecer a angústia, em sua estrutura essencial, como consciência de liberdade”
(SARTRE, 2008, p. 77). Há, destarte, uma ambiguidade entre consciência de
liberdade e a consciência da ignorância daquilo que determina nossos atos. Parecem
coisas distintas, mas que se manifestam da mesma maneira na angústia:

A liberdade que se revela na angústia pode caracterizar -se pela existência


do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que
meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura
ineficiente dos motivos é que condiciona minha liberdade. (Ibidem, p. 78)

Essa estrutura ineficiente dos motivos convoca sempre a consciência para dar
significação ao que pode ser o móbil para nossos atos. Esse é um ato radical de
liberdade, pois em última instância, sempre somos nós que escolhemos,
racionalizamos e constituímos os móbeis para nossos atos e comportamento a partir
da própria intencionalidade da consciência. Sartre, emblematicamente, exemplifica
essa questão:

Descobrimo-nos, pois, em um mundo povoado de exigências, no seio de


projetos ‘em curso de realização’ (...), porém, basta que a empresa a
realizar se distancie de mim e eu seja remetido a mim mesmo porque devo
me aguardar no futuro, descubro-me de repente como aquele que dá ao
despertador seu sentido, que se proíbe, a partir de um cartaz, de andar por
um canteiro ou gramado, aquele que confere poder à ordem do chefe,
decide sobre o interesse do livro que está escrevendo – enfim, aquele que

4
Embora tenha limpado o campo transcendental de toda estrutura egológica e reduzido esse campo à
consciência posicional, não podemos dizer que, com isso, Sartre tenha colocado o Ego como empírico
no mundo. Sartre, em sua fundamentação, descobre que esse Ego “nem é transcendental e nem é
empírico, mas, no limite de sua existência, representa ambos os conceitos” (VIOLANTE, 2001, p. 82)
faz com que existam os valores, cujas exigências irão determinar sua ação.
(SARTRE, 2008, p. 84)

Dessa forma, a angústia, embora consciência imediata de si, ao mesmo tempo


se torna presença na negação das exigências do mundo quando nos desprendemos
do que havíamos nos comprometido como sinal de nossa irrevogável liberdade em
significar, dar sentido e aceitar os valores para essas exigências. Ao homem,
destituído de uma essência que preceda sua existência, não lhe resta senão o Nada
que o constitui para respaldo de suas escolhas e decisões. Não há, por ser nada,
qualquer tipo de referencial ético, religioso e político pelos quais o homem possa se
guiar, tornando-o solitário e desamparado diante das escolhas irresistíveis que
precisa fazer no mundo. Esses fatos não se referem à falta de fundamento nesses
referenciais (embora eles não tenham nenhum fundamento fora do mundo dos
homens, segundo Sartre), mas sim se referem ao fato de que a consciência
intencional, ao visar uma situação para a escolha do sujeito, esgotar-se totalmente
nessa visagem sem que esses referenciais (mesmo que heteronômicos) estejam no
campo transcendental em que ela tem plenitude de seu ser. O esgotar-se no que visa
faz com que a consciência se reporte somente à situação na hora da escolha e o
Sujeito se vê desamparado e em desespero porque sente e vive a falta de princípios
suficientes para suas decisões: um cenário de solidão e ausência de sentido
angustiante.

Exemplarmente, em Existencialismo é um Humanismo , quando Sartre


responde aos críticos do existencialismo a questão da falta de ética dessa concepção,
há importantes considerações quanto a angústia enquanto consciência da liberdade
e, principalmente, enquanto responsabilidade:

O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal


afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta
de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um
legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira,
não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda
responsabilidade. (SARTRE, 1970, p. 5)

Logo, para além da responsabilidade de escolher diante da falta de motivos


ulteriores aos que a consciência tem como consciência de motivos, constatando
assim uma liberdade angustiante diante da decisão, ao decidir o homem não faz
apenas a si próprio, mas constrói e é responsável pela própria forma de ser da
humanidade: “na angústia, a liberdade se angustia diante de si porque nada a
solicita ou obstrui jamais” (SARTRE, 2008, p. 79).

Viver a angústia enquanto consciência de liberdade e do peso da


responsabilidade de decidir a própria natureza do homem, faz com que o homem
vivencie uma situação de solidão e desamparo que pode, simplesmente, fazê-lo abrir
mão de decidir e escolher. Na própria consciência de ser nada, ao homem resta-lhe
transformar-se em coisa, exteriorizar-se. Por isso emerge a má-fé como resposta e,
principalmente, como fuga.

2.3 A Má-Fé

Os motivos que levam a nossos comportamentos sempre são significados a


partir de uma consciência intencional que, da forma que é, estabelece a radicalidade
de nossa liberdade. Se a forma como nossa consciência é estabelece o nada como
sua constituinte e a posiciona no mundo como visagem que se esgota no próprio
objeto visado, então sua característica principal é a radicalidade da liberdade, o que
significa a falta completa de fundamentação para os motivos que nos levam a nos
comportar de certa maneira. A cada escolha que o homem faz – e com elas faz a si
próprio – faz a partir dessa consciência intencional que tira do nada (que é ela em si)
os motivos que fundamentam sua atitude. Portanto, a consciência dos motivos que
nos levam a fazer algum ato ou escolha não implica, necessariamente, que esses
motivos são aqueles que nos levaram a fazer o ato e a escolha. Entre os motivos e o
ato há valores que a consciência usa para fundamentá-los como móbeis. Nela
mesma, enquanto Nada, esses valores não existem. A má-fé, portanto, consiste em
atribuir aos próprios objetos os valores norteadores de nossas escolhas. Para fugir da
responsabilidade de ser consciência de suas próprias escolhas e de si mesmo, o
homem encarna o que Sartre define como ‘espírito de seriedade’, “que capta os
valores a partir do mundo e reside na substancialização tranquilizadora e coisista dos
valores” (SARTRE, 2008, p. 84).

Para Sartre a consciência da angústia (que, por sua vez é consciência da


liberdade, que por sua vez é consciência do nada constituinte da consciência
posicional) faz com que o homem assuma condutas de fuga. Não que haja um
determinismo nesse sentido. Ao homem ele pode escolher a própria angústia como
modo de ser; fato inexorável de se assumir livre radicalmente. Mas em geral a
conduta padrão ao homem comum é a conduta de fuga diante da angústia. Essa
fuga, chamada por Sartre de má-fé, se constitui no determinismo psicológico que o
próprio homem se impõe como “fundamento de todas as condutas de fuga” (Ibidem,
p. 85). Porém, na verdade, sem ter como ir contra a evidência de nossa liberdade, o
determinismo se apresenta como crença de fuga, um autoengano.

Sartre exemplifica o mecanismo da má-fé como uma espécie de alheamento


dos possíveis em nós diante de nossas escolhas. Só conseguimos fazer algo porque,
em alguma medida, torno alheio a mim os possíveis distintos do que me comprometi
em fazer. Entre o futuro que planejei – que depende de meus atos e escolhas – e o
agora, existe somente um Nada. Mil possibilidades de atos e escolhas entre o
resultado futuro esperado e o agora se abrem sem que um leve ao outro
necessariamente. A consciência sendo posicional, ela será o próprio ato que
escolhemos a partir do Nada que nos constitui existencialmente. É preciso que
dissimulemos para nós mesmos o fato de que todos esses possíveis, na verdade,
somos nós, e precisamos nos determinar ser apenas um possível que leve, a partir
do agora, ao resultado que desejamos. Determinar-se em um único possível é má-fé.
Mas nesse caso, é condição de possibilidade de realização de planos. Por outro lado,
também, é revogação de nossa condição fundamental de liberdade e alheamento de
nossa responsabilidade diante do mundo. Agir de acordo com o que planejamos sem
que ajamos de má-fé, é conviver com a angústia enquanto consciência da
radicalidade da liberdade que nos constitui. Ao fugir da angústia pela má-fé,
podemos realizar coisas, mas também fugimos da responsabilidade que nos cabe
diante de nossa condição existencial. Essa fuga, destarte, também nos justifica ao
mundo e a nós mesmos aquilo que no fundo queremos fazer, mas não temos como
justificar. Ou seja, nos determinamos pela má-fé a escolhas cujos móbeis possuem
valores inconfessáveis, mas que satisfazem nossos desejos também inconfessáveis
via alheamento.

Há, porém, uma forma própria no ser desse autoengano ou esse ato de mentir
para si mesmo. Sartre aceita a má-fé como autoengano desde que se possa
distinguir da simples mentira:
A essência da mentira, de fato, implica que o mentiroso esteja
completamente a par da verdade que esconde. Não se mente sobre o que
se ignora; não se mente quando se difunde um erro do qual se é vítima; não
se mente quando se está equivocado. O ideal do mentiroso seria, portanto,
uma consciência cínica, que afirmasse em si a verdade, negando-a em suas
palavras e negando para si mesma esta negação. (...) Por certo, para quem
pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou
apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência,
portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu
mesmo escondo a verdade de mim mesmo. Assim, não existe a dualidade
do enganador e do enganado. A má-fé implica por essência, ao contrário, a
unidade de uma consciência. (SARTRE, 2008, p. 93 e 94)

A má-fé se constitui em um conjunto de processos da própria consciência (que


se constitui mesmo em um projeto da própria consciência enquanto angústia) que se
dá na captação de nosso possível evitando considerar todos os outros possíveis que
estão como horizonte a partir do nada constituinte de nossa consciência. A esses
outros possíveis “convertemos em possíveis de um outro indiferenciado; não
queremos ver esse possível sustentado no ser por uma pura liberdade nadificadora,
mas tentamos apreendê-lo como engendrado por um objeto já constituído” (SARTRE,
2008, p. 88). Esse objeto, segundo Sartre, é nosso Eu, descrito para e pela
consciência como se fosse a pessoa de um ‘outro’.

3 Conclusão

Ao fim dessa exposição que procurou, na visão do existencialismo em Sartre,


entender como a liberdade se relaciona com as três noções seminais de sua obra, é
importante salientar os aspectos que justificaram o desenvolvimento do presente
artigo. Falávamos ao início que a importância desse estudo “diz respeito a uma clara
percepção da crise de consciência da liberdade e representatividade institucional que
o ser humano experimenta na atualidade”. É impossível, portanto, deixar de vincular
essa importância aos conceitos de reificação e alienação, ensejando um diálogo,
mesmo que post-mortem, entre Sartre e Lukács. Esse diálogo foi feito por István
Mészáros no livro A Obra de Sartre: busca pela liberdade e desafio da história5. O
presente estudo poderia levar ao aprofundamento do existencialismo em direção ao

5
Obra em que Mészáros procura fazer justiça à Sartre por ocasião das críticas recebidas por Lukács
antes de Sartre escrever a Crítica da Razão Dialética . (GAJANIGO, 2012)
marxismo que consta da obra Crítica da Razão Dialética de Sartre, mas não seria o
foco dessa conclusão.

A má-fé, caracterizada pela autodeterminação a um único possível, encerra em si


dimensões necessárias e alienantes que Sartre explora na obra mencionada e que
explica, com contundência, as condições pelas quais o ser humano não goza de sua
radical liberdade na construção coletiva da superação da escassez e em direção a
uma vivência mais autêntica de sua subjetividade no coletivo. Muitas vezes usamos a
liberdade que nos constitui radicalmente para nos colocarmos em um cativeiro que
apazigue a angústia da consciência dessa liberdade. Obviamente que a necessidade
e a escassez se colocam como condições objetivas da impotência do sujeito em
exercer sua liberdade, mas não revoga a liberdade de escolher buscar formas de
superação e emancipação, seja dessas condições, seja da má-fé como fuga de nossa
condição essencial de angústia. A má-fé como fenômeno de uma falsa consciência se
coloca como urgência de problematizações consequentes.

Esperamos ter cumprido nosso intento e ter aberto espaço para maiores
aprofundamentos futuro numa compreensão mais ampla da realidade que nos cerca.

4 Referências bibliográficas

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ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia, [online], v. 8, n. 1, jan./jun. 2011. ISSN 1809-8428.
Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/cognitio/article/view/6296. Acesso em 24/06/2015.

GAJANIGO, P. Justiça a Sartre (Resenha). Margem Esquerda, São Paulo, v. 19, 2012.

SARTRE, J.-P. Existencialismo é um Humanismo. Tradução de Rita Correa Guedes. Paris: Les
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SARTRE, J.-P. O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução de Paulo


Perdigão. 16ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

SARTRE, J.-P. A Transcendência do Ego - Esboço de uma descrição fenomenológica. Cadernos


Espinosanos, São Paulo, v. XXII, p. 183-228, 2010. ISSN 1413-6651. Tradução: Alexandre de
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http://www.revistas.usp.br/espinosanos/article/view/89393/92254.
SILVA, F. L. E. Sartre. In: VÁRIOS AUTORES - ORG. ROSSANO PEGORARO Os Filósofos Clássicos
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VIOLANTE, T. M. O Avesso do Ego no Existencialismo de Sartre. Toledo PR: Dissertação


(Mestrado em Filosofia)- Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2001.

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