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O existencialismo é um humanismo.
José Rogério de Pinho Andrade

O texto de Sartre “O Existencialismo é um humanismo” é uma defesa do existencialismo “de


uma série de críticas que lhe foram feitas.” (p.3) Das acusações feitas ao existencialismo destacam-
se as seguintes:

“Em primeiro lugar, acusaram-no de incitar as pessoas a permanecerem no imobilismo do


desespero.” (p.3) É a crítica feita pelos comunistas, pois eles entendem que, no existencialismo,
todos os caminhos estariam fechados impossibilitando a ação neste mundo. Assim, o existencialismo
desembocaria em uma filosofia contemplativa.

Uma segunda crítica diz respeito ao fato de que o existencialismo enfatizaria a ignonímia
humana, pois que ele nega “a solidariedade humana.” (p. 3) A acusação é a de considerar que o
homem vive isolado, pois parte da pura subjetividade, do cogito cartesiano, ou ainda

“do momento em que o homem se apreende em sua solidão – o que me


tornaria incapaz de retornar, em seguida, à solidariedade com os homens que
existem fora de mim e que eu não posso alcançar no cogito.” (p. 3)

A crítica oriunda dos cristãos afirma que o existencialismo nega a realidade e a seriedade dos
empreendimentos humanos. Por tal perspectiva, estariam suprimidos os mandamentos de Deus e os
valores eternos, assim cada um faz o que quer.

Como antecipação e resposta às críticas apresentadas Sartre diz:

“(...) concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida


humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação
implicam um meio e uma subjetividade humana.” (p. 3)

O aspecto básico das críticas ao existencialismo está em que o acusam de enfatizar o lado
negativo da existência humana. Então Sartre aponta alguns exemplos de que o termo existencialismo
ou existencialista é utilizado pejorativamente. Em contraposição, tenta por meio de outros exemplos
demonstrar que “conteúdos” existencialistas podem ser encontrados em outras literaturas bem como
em alguns provérbios, como: “a caridade bem dirigida começa por si próprio” ou “ama quem te serve
e serás desprezado; castiga quem te serve e serás amado.”

Sartre antevê que o que atemoriza (ou poderia atemorizar) no existencialismo é o fato de que
ele deixa uma possibilidade para o homem. Mas, para se saber, é preciso recolocar a questão o que
é existencialismo? em termos filosóficos.

A argumentação rebatedora das críticas compreende que o termo existencialismo é utilizado


sem a definida compreensão e justificativa. Segundo Sartre, “essa palavra assumiu atualmente uma
amplitude tal e uma tal extensão que já não significa rigorosamente nada.” (p. 4)

Para ele, o existencialismo é menos escandaloso e mais austero e “destina-se


exclusivamente aos técnicos e aos filósofos.” (p. 4) No entanto, a doutrina existencialista é de fácil
definição. O que a torna confusa e mais complicada para aqueles que não a entendem é que existem
dois tipos de existencialistas: os cristãos e os ateus. Contraditórios entre si, possuem em comum “o
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fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário
partir da subjetividade.” (p. 5)

Para esclarecer exatamente o que isto quer significar, Sartre se vale do exemplo em que se
mostra que “uma visão técnica do mundo em função da qual é possível afirmar que a produção
precede a existência.” (p. 5) O exemplo em questão é a produção de um livro ou um corta-papel que
é fabricado por um artífice a partir de um conceito e de uma determinada técnica de produção, bem
como uma utilidade. Assim, seria impossível fabricar um corta-papel sem uma essência antecipando
a sua existência. Aquela, neste caso, determina esta.

Em argumentação análoga, Deus é comparado a um artífice superior que, ao criar o homem,


sabe de antemão o que está criando. O homem seria a materialização de algum conceito que exista
na inteligência divina. No entanto, a século XVIII acaba eliminando Deus por meio do ateísmo
filosófico, mas não põe fim do ateísmo filosófico, mas não põe fim à ideia de que a essência precede
a existência. Em vários pensadores está a noção de que

“o homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o


conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa
que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o
homem.” (p. 5)

O existencialismo ateu afirma

“que se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede
a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer
conceito: este ser é o homem, ou como diz Heidegger, a realidade humana.”
(p.6)

O significado da afirmação de que a existência precede a essência é justamente o de que, em


primeira instância, o homem existe, encontra-se a si mesmo, surge no mundo. De início nada é, por
isto mesmo, não é passível de receber uma definição, pois que não é nada: “Só posteriormente será
alguma coisa e será aquilo que fizer de si mesmo.” (p. 6)

É este o primeiro princípio do existencialismo: “O homem nada mais é do que aquilo que ele
faz de si mesmo.” (p. 6) A este princípio Sartre denomina de subjetividade, subjetividade esta que se
constitui em projeto de si mesmo, assim, o homem será o que projetou ser e não o que quis ser.

Mas Sartre complementa a condição da subjetividade com a da responsabilidade. Como ele


mesmo diz: “(...) se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é.”
(p. 6) Mas não é uma responsabilidade egoísta, pois que ela diz respeito a todos os homens:

“(...) o primeiro passo do existencialismo é o de por todo homem na


posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua
existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por
si mesmo , não queremos dizer que o homem é responsável pela sua
estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os
homens.” (p. 6)

Deste modo ele ressalta o subjetivismo como “impossibilidade em que o homem se encontra
de transpor os limites da subjetividade humana.” (p. 6) E é a esse subjetivismo que Sartre utiliza
como fundamento do “sentido profundo do existencialismo.” o outro subjetivismo é aquele visto como
escolha individual por si próprio. É, portanto, esta condição de, ao escolher a si mesmo, escolher-se a
todos os homens que funda o engajamento da responsabilidade individual por toda a humanidade.
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Sartre considera que é tudo isto que nos permite entender o que subjaz às palavras como
angústia, desamparo, desespero. Ele considera que a angústia está vinculada a este engajamento,
pois que o homem engajado “não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda
responsabilidade.” (p. 7) O não engajamento, ou o seu mascaramento, Sartre denominará de má-fé.

A angústia para o existencialista não conduz à inação. Pelo contrário, “é a própria angústia
que constitui a condição de sua ação (...).” (p. 8) É ela que possibilita encarar os múltiplos caminhos
possíveis, as múltiplas possibilidades de escolha e que, feita a escolha, o valor está na própria
escolha e não no caminho ou possibilidade escolhido.

Quanto ao desamparo, Sartre se refere ao fato de que “Deus não existe e que não é
necessário levar isto às últimas consequências.” (p. 8) Para o existencialista, a posição a ser tomada
em relação “a certo tipo de moral laica que gostaria de eliminar Deus com o mínimo de danos
possível” (p. 8) é de contrariá-la. Ele considera “que é extremamente incômodo que Deus não exista,
pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu
inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e
perfeita para pensá-lo, não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser
honestos, que não devemos ser honestos, que não devemos mentir já que nos colocamos
precisamente num plano em que só existem homens. (p. 9)

Se tudo é permitido ao homem, pois que Deus não existe ele encontra-se desamparado
“porque não encontra nele próprio e nem fora dele nada a que se agarrar.” (p. 9) Não há como
desculpar-se tendo por referência uma natureza humana dada e definitiva, pois que a existência
precede a essência.

Ora, não existindo determinismo, o homem existe como liberdade. Se Deus não existe como
conduta não pode ser legitimada por valores ou ordens existentes a priori. Assim, estamos sós e
condenados a sermos livres. Em seus termos:

“É o que posso expressar dizendo que o homem condenado a ser livre.


Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre,
uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz.” (p. 9)

O existencialista, diz Sartre, “pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está
condenado a inventar o homem a cada instante.” (p.9) É deste modo que o filósofo define o
desamparo: “O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo
e angústia caminham juntos.” (p. 12) Ele é, portanto, junto com a angústia e o desespero a existência
da própria liberdade.

Quanto ao desespero, “ele significa que só podemos contar com o que depende de nossa
vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível.” (p. 12) Deste
modo, a ação a ser desempenhada deve ater-se àquilo que se vê, isto é, não deve ser firmada tendo
em vista a realização de um ideal que não existe e que não se sabe se existirá.

Isto não significa que o homem deva abandonar-se ao quietismo. De modo contrário, o
homem deve engajar-se, mas não pode ter a ilusão quanto ao que irá acontecer, pois, como entende
Sartre, “a realidade não existe a não ser na ação.” (p.13) E acrescenta: “o homem nada mais é do
que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos,
nada mais que a sua vida.” (p. 13)

Por isto mesmo, o existencialismo é acusado de pessimismo. Contudo, Sartre vê em tudo isto
justamente o oposto, isto é, o que ele vê é um otimismo “duro”. O que o homem é, resulta daquilo que
ele faz a partir de seu engajamento com a existência:
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“(...) o covarde se faz covarde, o herói se faz herói; existe sempre, para o
covarde, uma possibilidade de não ser mais covarde, e, para o herói, de
deixar de o ser. O que conta é o engajamento total, e não é com um caso
particular, que alguém se engaja totalmente.” (p. 14-15)

Considerando respondidas as críticas feitas ao existencialismo, Sartre retomará os aspectos


característicos do mesmo. Primeiramente ele afirma a característica de que o existencialismo “não
pode ser considerado como uma filosofia do quietismo”, “nem como uma descrição pessimista do
homem” e “nem como uma tentativa de desencorajar o homem de agir.” Suas razões são: para o
existencialismo o homem é um ser de ação, é otimista, pois coloca nas próprias mãos do homem o
seu destino e, por fim, deposita a única esperança na ação do homem.

Para reforçar a sua defesa do existencialismo, Sartre afirma que ele “é a única teoria que
atribui ao homem uma dignidade, a única que não o transforma num objeto.” (p. 15) em sua
fundamentação, o existencialismo considera que a subjetividade que se alcança pelo cogito leva à
descoberta dos outros, inclusive como condição de sua própria existência. Fala-se, assim, da
intersubjetividade como o mundo em que “o homem decide o que ele é e o que são os outros.” (p. 16)

Além do mais, se não é possível encontrar em cada um dos homens uma essência universal
entendida como natureza humana, é possível existir uma universalidade humana de condição e, por
meio dela, a universalidade do homem não é dada, é construída permanentemente.

Como é o homem que se auto constrói, e o faz por meio de suas escolhas, seja o que quer
que ele faça, pois é impossível não escolher, também é impossível que ele não tenha uma total
responsabilidade em relação a esse problema.

É o engajamento existencial que dá à escolha uma direção determinada, não um objetivo pré-
determinado, mas a construção de uma realidade vivida. Tem-se, deste modo, a compreensão de
que os “os homens de boa-fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto
tal.” (p. 19) Aqui, fala-se de uma moral que tem como fundamento a defesa da liberdade como
liberdade de todos, isto é, cada indivíduo que age de boa-fé buscando a sua liberdade, age
preservando a liberdade dos outros, pois “a liberdade, enquanto definição do homem, não depende
de outrem, mas logo que existe um engajamento, sou forçado a querer simultaneamente, a minha
liberdade e a os outros.” (p. 19)

A moral existencialista fundada no engajamento tem no homem a origem dos seus próprios
valores. Como diz Sartre: “(...) dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão
que a vida não tem sentido a priori.” (p. 21) É de um humanismo que se fala, mas de um humanismo
que não tem o homem como meta, visto que ele está em construção, sempre por fazer. É de um
humanismo existencialista que se trata.

De tal humanismo existencialista, decorre um esforço de tirar todas as conseqüências de ”de


uma postura atéia coerente.” (p. 22) Ao contrário de outras posturas ateístas que pretendem
demonstrar que Deus não existe, o ateísmo existencialista declara que: “mesmo que Deus existisse,
nada mudaria.” (p. 22) Ou seja, existindo ou não existindo Deus, o homem não tem como salvar-se
de si mesmo.

Bibliografia:

SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução Rita Correia Guedes. 3 ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores)

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