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Introdução

Para cumprir com o proposto no enunciado elaborado pelo professor, ou seja,


para discorrer acerca do conceito de facticidade e sua importância na elaboração do
existencialismo de Sartre, tomarei como base o texto L'existentialisme est un
Humanisme1, no qual encontramos uma tentativa de defesa do existencialismo e,
também, uma definição do Homem (Para-si 2) como um ser condenado a ser livre,
que a partir de si mesmo e do reconhecimento de sua própria condição humana e de
todos os fatos que a acompanham (a facticidade, o mundo das coisas ou o Em-si3)
ele será capaz de se posicionar, de agir, de se construir e atribuir uma finalidade, ou
melhor, uma essência a sua existência. O desenvolvimento do trabalho será pautado
pela exposição do que Sartre considera como condição humana e suas
consequências para a efetivação da liberdade e elaboração do existencialismo,
também tentaremos expor, de forma breve, como o conceito de consciência
desempenha um papel fundamental na realização do ideal existencialista e como
Sartre o comparou com o conceito de intencionalidade de Edmund Husserl4.

1. Facticidade

1
O Existencialismo é um Humanismo, texto que foi elaborado com base nas anotações que Sartre fizera para
ministrar uma palestra em defesa do existencialismo no Club Maintenant em 1945.
2
Conceito utilizado na obra O Ser e o Nada para designar a condição humana, ou melhor, o modo de ser da
consciência. Essa condição é caracterizada pela falta de ser, pelo nada, pela incompletude e, portanto, projeta-
se para fora buscando completar-se, realizar-se. É apenas por meio da consciência que o Para-se (o homem)
consegue identificar que desde o início de sua existência é um ser que ainda não está determinado – que não
possui uma essência – e assim deve buscar a realização da sua essência nas suas ações, nas suas relações, no
mundo (no âmbito do Em-si citado na nota abaixo).
3
Conceito também presente na obra O Ser e o Nada para descrever o mundo das coisas, no qual o ente é pura
positividade e total identidade, não possuindo um “dentro” ou um “fora”, é algo que está aí sem termos
conhecimento de sua origem ou de seu porquê e que só podemos entender como pura contingência.
4
“Essa necessidade para a consciência de existir como consciência de outra coisa que ela, Husserl a nomeia de
“intencionalidade”.” In: Tradução do texto de Jean-Paul Sartre: Une Idée Fondamentale de la phénoménologie
de Husserl: L’intentionnalité.
Para facilitar a descrição do que é facticidade em Sartre e demonstrar como ela é
fundamental para o desenvolvimento de todo o seu existencialismo, usaremos aqui
de alguns conceitos já citados na introdução e retirados da obra L'Être et le néant:
Essai d'ontologie phénoménologique5. Acreditamos que tais conceitos facilitarão a
exposição e interpretação do conteúdo presente na obra O Existencialismo é um
Humanismo – texto base para a resolução do problema proposto pelo professor. O
desenvolvimento será dividido em tópicos que seguirão a economia desta obra,
tentaremos acompanhar os movimentos que Sartre faz desde a definição de que a
« existência precede a essência » até descrição dos conceitos de angústia,
desamparo e desespero que são fatos presentes e inagáveis na condição humana e,
por fim, arriscaremos definir que a realização da liberdade humana – de atribuir a si
mesmo uma finalidade, de construir a sua própria essência – se da na facticidade,
demonstrando que é sempre por meio da consciência de algo (do Em-si) que o
Para-si consegue realizar-se como ser livre e dar a si uma essência, uma utilidade,
uma finalidade – criar-se.

a. A existência precede a essência

“O que é o existencialismo?” essa é a pergunta que Sartre insiste em fazer e


para e repetira, uma de suas tentativas para dar uma resposta a ela está presente
na obra O Existencialismo é um Humanismo, em tal obra ele, Sartre, diz que há algo
em comum entre os existencialistas cristãos (Jaspers e Gabriel Marcel), os ateus
(aqui ele cita apenas Heidegger como exemplo) e também entre os franceses
(incluindo ele): “O que eles tem em comum é simplesmente o fato de todos
considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é
necessário partir da subjetividade.”

Logo após afirmar que os existencialistas compartilham que a existência


precede a essência Sartre nos apresenta o exemplo do corta-papel para ilustrar um
caso no qual a essência precede a existência. Quando o artífice (a causa eficiente
se lembrarmos de Aristóteles) pensa em fazer tal objeto, o corta-papel, ele não pode
esquecer-se de que esse objeto terá uma utilidade, desempenhará uma finalidade,

5
O Ser e o Nada: um ensaio de ontologia fenomenológica.
ou seja, antes mesmo dele produzir o objeto (coloca-lo em existência) ele terá de
atribuir-lhe uma essência (que é “o conjunto das técnicas e das qualidades que
permitem a sua produção e definição” 6). Após citar o homem como artífice do corta-
papel Sartre busca expandir seu exemplo, evocando a concepção de Deus criador
(como se Ele fosse um artífice superior, a causa eficiente que imprime a essência
nos homens), dizendo que Ele, o Deus criador, está para o Industrial, assim como o
homem está para o corta-papel7.

Ao fazer essa analogia Sartre procura criticar as doutrinas “como a de


Descartes e Leibniz”, que definiam o homem como criatura, como produto de um
ordenador que preestabeleceu uma essência, uma natureza humana anteriormente
de qualquer existência. Após criticar Descartes e Leibniz ele faz um elogio ao
ateísmo filosófico do século XVIII, mas com ressalvas, pois a noção de Deus é
descartada e considerada uma hipótese extravagante, “porém não suprimem a deia
de que a essência precede a existência.” Diderot, Voltaire e Kant são filósofos que
sustentam teorias que mesmo emancipadas do Artífice superior ainda assim
mantem a ideia de que a essência precede a existência, afirmando que o homem
possui uma natureza humana, ou seja, que todos os homens compartilham “as
mesmas características básicas”.

b. A inexistência de um a priori, a impossibilidade de uma natureza


humana

O existencialismo que Sartre representa deve ser, necessariamente, ateu,


pois ao afirmar a inexistência de Deus e considerá-lo como uma hipótese inútil, toda
a concepção de natureza humana cai por terra. Portanto, é no ateísmo que Sartre
encontra uma maneira de inverter a ordem das palavras afirmação que vinha sendo
feita até então: a essência precede a existência e, consequentemente, consegue
depositar na mão do homem a responsabilidade de criar-se, de definir sua própria
finalidade, sua própria essência, assim, é com o existencialismo ateu que a condição

6
Pp.3
7
“Assim o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do
industrial; Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção,
exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica.” Pp.4
do homem torna-se a de existir antes mesmo do que qualquer definição, antes
mesmo de ser enjaulado8 pelo conceito de natureza humana. Cabe agora
explicarmos quais são as consequências desse ateísmo e do decorrente abandono
de uma concepção de natureza humana.

c. A defesa da subjetividade – o primeiro princípio do


existencialismo:

Ao abandonar a concepção de natureza humana e recusar que há um Artífice


superior que concede a essência antes mesmos de todas as coisas existirem, Sartre
busca elaborar o ele chama de “primeiro princípio do existencialismo”, que a
subjetividade. Segundo ele é ela que nos possibilita construir uma essência para nós
mesmos a partir do nada originário que acompanha a nossa existência, pois somos
seres que vem a existência inacabados 9 (com falta de ser) e somos condenados a
se forjar e moldar a partir do cogito:

“[...]o homem existe, encontra a si mesmo, surge


no mundo e só posteriormente se define... de início, não é
nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo
que ele fizer de si mesmo. Assim não existe natureza
humana, já que não existe um Deus para concebê-la... O
homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si
mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É
também a isso que chamamos de subjetividade... o
homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num
futuro, e que tem consciência de estar se projetando no
futuro.”10

A partir dessa citação já conseguimos extrair uma esboço do que Sartre


considera como condição humana, condição na qual o homem se vê em posse da
8
Forçando aqui uma imagem utilizada por Weber com o conceito Stahlhartes Gehäuse, conceito que ele utiliza
para atacar os adventos da modernidade, atacar principalmente a racionalização e a burocracia que criam uma
espécie de modus operandi que é passado de maneira irrefletida para as próximas gerações, criando assim uma
espécie de a priori que determina o modo de agir dos que nasceram num determinado sistema burocrático.
9
“O homem faz-se; ele não está pronto logo de início; ele se constrói [...]” Pp. 15
10
Pp. 4
maior das responsabilidades, a responsabilidade total sobre sua própria existência,
sobre todos os seus atos e, também, por todos os homens, pois de acordo com
Sartre é “escolhendo-se, [que] ele [o homem] escolhe todos os homens. De fato, não
há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja
criando, simultaneamente, uma imagem do o homem tal como julgamos que ele
deva ser.”11 Não somos responsáveis apenas por nossa existência, mas pela
existência de todos, e também dependemos de todos os outros para sabermos
projetar que gostaríamos de ser, ou para saber que somos, fato que nos demonstra
como a condição humana faz com que o homem não fique preso apenas em sua
subjetividade e perca toda sua solidariedade, o homem necessita do outro para
realizar-se, para compor-se, necessita do Em-si para suprir a necessidade de ser do
Para-si. “Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio
determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras:
escolhendo-me, escolho o homem.” 12

d. A trindade sartriana, a facticidade – Angústia, Desamparo e


Desespero – e a condição humana

O que intento em chamar de trindade sartriana também nos ajuda a entender


em que tipo de mundo (os fatos, a situação, a condição na qual) o homem foi
“jogado” e condenado a ser livre. De acordo com Sartre ser condenado a liberdade
trás uma série de consequências, dentre elas temos as três principais: a angústia, o
desamparo e o desespero. Essa trindade constitui um fato cru e bruto do qual não
podemos renunciar ou escapar, pois são elas componentes necessários da
condição humana. Os fatos citados participam da existência humana independente
de qualquer escolha ou vontade, isto é, todo ser humano ao existir e com o tempo
ao construir-se por meio de seus atos vai se confrontar com certos fatos que não
são passíveis de escolha ou recusa, são fatos que constituem toda a trama da
existência humana. Pense bem se há a possibilidade de escolhermos a data e o
local de nosso nascimento, ou escolher quem serão os nossos pais e a nossa
condição social, ou nossas aptidões e limitações físicas, ou o fato mais cruel e

11
Pp. 5
12
PP.5
inegável: há como escolher não morrer? Conseguimos escapar desse fato que é
marcado pela nossa condição efêmera, transitória e morrediça? Conseguimos negar
a morte? Não. Querendo ou não, a única certeza que temos é de que um dia
seremos ceifados e deixaremos de existir, esse é o fato dos fatos, fato que nos faz
projetarmos em direção ao mundo para criarmos razões para o nosso existir e agir,
fato que direciona nossa consciência para algo (Em-si) com a finalidade de construir
a nossa essência (o Para-si).

E qual a importância de se discutir acerca da condição humana e definir toda


uma facticidade que, inegavelmente, choca-se com a existência humana? Para
Sartre definir o que compõem a facticidade na qual o homem foi jogado é
fundamental para que possamos estipular como esse ser condenado a ser livre
(Para-si) se constituirá em relação ao mundo (Em-si), ou melhor, é por meio da
definição da condição humana que ele entrega ao homem o encargo sobre sua
própria existência. O existencialismo de Sartre busca definir a condição humana, a
condição de ser livre e suas duras consequências para assim demonstrar a
incapacidade do ser humano de virar as costas para a facticidade e, também, tenta
definir como a ação livre de atribuir essência a sua própria existência, de atribuir
para si suas próprias finalidades, de constituir-se realiza-se apenas quando o
homem se depara com a angústia, com o desamparo e com o desespero causados
pela consciência que tem de sua própria incompletude, evento que o faz buscar nos
seus atos perante o outro e o mundo a completude, a construção de sua essência:

“[...] o homem que se alcança diretamente pelo


cogito descobre também todos os outros, e descobre-os
como sendo a própria condição de sua existência. Ele se
dá conta de que só pode ser alguma coisa (no sentido em
que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é
ciumento) se os outros reconhecerem como tal. Para
obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu
considere o outro. O outro é indispensável à minha
existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho
de mim mesmo.”13

13
Pp. 13
e. Facticidade (condição humana) e consciência – uma relação
necessária para o construir-se:

Na Tradução do Texto de Jean-Paul Sartre: Une Idée Fondamentale de la


Phénoménologie de Husserl: L’Intentionnalité encontramos a equiparação que Sartre
pretende fazer entre o seu conceito de conscience14 e o conceito intentionalität15 de
Husserl. É a partir do uso desse conceito que Sartre elaborará seu existencialismo e
toda uma nova maneira de se posicionar no mundo. Agora, tentaremos explorar
como o conceito de consciência constitui e se relaciona o que Sartre chama de
situação ou condição humana.

“[é] impossível encontrar em cada homem uma


essência universal que seria a natureza humana,
consideramos que exista uma universalidade humana de
condição [...] Por condição eles entendem [...] o conjunto
dos limites a priori que esboçam a sua situação
fundamental no universo. As situações históricas variam:
o homem pode nascer escrevo numa sociedade pagã ou
senhor feudal ou proletário. O que não muda é o fato de
que, para ele, é sempre necessário estar no mundo,
trabalhar, conviver com os outros e ser mortal [...] há uma
universalidade do homem; porém, ela não é dada, ela é
permanentemente construída. Construo o universal,
escolhendo-me; construo-o entendendo o projeto de
qualquer outro homem, de qualquer época que seja.”

Além da preocupação em relação aos problemas do conhecimento a


fenomenologia vai se voltar, principalmente com o pensamento de Sartre, para uma
direção ética, política e até social. Pois a defesa do aspecto subjetivo, da
consciência feita pelo existencialismo não visa tornar o indivíduo inerte, solitário e
preso em si, assim não é a partir de uma “espiritualidade”, de um refúgio da

14
Consciência
15
Intencionalidade
consciência que vamos nos descobrir, mas sim a partir da característica fundamental
da nossa consciência, a característica de ser “consciência de”16, de precisar se
projetar no mundo para conhecer, para viver, para adotar e até formular uma postura
ética e política: “tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo entre os
outros. Não é em não sei qual retiro que nós nos descobriremos: é nas estradas, nas
cidades, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre os homens.” 17 A
consciência para Sartre é um movimento em direção às coisas, um movimento “para
fugir de si, um deslizamento para fora de si; se pela impossibilidade, vós entrares
“numa” consciência, vós seríeis agarrado por um turbilhão e rejeitado para fora,
perto da árvore, na plena poeira, pois a consciência não tem “dentro”; ela não é
nada senão o fora dela mesma e é essa recusa absoluta, essa recusa de ser
substância que a constitui como uma consciência.” O homem, ser dotado de
liberdade e principalmente de consciência, tem como característica essa busca pelo
externo, sem querer e sem decidir ele, o homem, projeta-se para fora, ele recorre ao
mundo, aos fatos e sua facticidade para realizar-se, não tem como escapar dessa
condição.

A fenomenologia seria então uma maneira de purificar a nossa relação com o


mundo, purificar a relação sujeito-objeto, pois é a partir da limpeza e do
esvaziamento de tudo que está dentro da nossa consciência (aliás, não há mais
dentro) que reconhecemos o nada que somos, assim acabamos por nos projetar no
mundo buscando uma completude, buscando conhecer, buscando agir para assim
construir uma essência para esse nada original. É ao recuperar o vazio da
consciência que Sartre da o movimento que a intencionalidade já tinha em Husserl,
que é o movimento já citado acima, o movimento para fora, para as coisas, a
consciência é sempre “consciência de” alguma coisa, ou seja, ao projetar-se em
direção aos objetos os posiciona e nesse movimento a consciência toma sua
posição também, é ao conhecer o mundo que conhece a si mesma. Toda a
ontologia sartriana é baseada nessa oposição entre o vazio da consciência (desse
simples movimento), o Para-si, e as coisas do mundo com suas características, o
Em-si, assim nós e nossa consciência podemos ser considerados um movimento
que visa chegar em nós mesmos, um movimento que busca lá fora quem somos,
pois é lá que estamos (lembre-se da nota 17). O sujeito não mais volta-se para si,
16
“Toda consciência é consciência de alguma coisa” Pp. 106 Veredas FAVIP
17
Pp. 107 Veredas FAVIP
buscando em seu interior quem ele é, mas sim volta-se para fora, logo, o Para-si
aqui significa “para fora”. A consciência é um constante transcender-se, ela está
sempre em movimento para fora de si:

“Não é preciso mais nada por colocar um fim à


filosofia delicada da imanência, onde tudo se faz por
compromissos, mudanças protoplásmicas, por uma morna
química celular. A filosofia da transcendência nos lança
sobre a grande estrada, no meio de ameaças, sob uma
obcecante luz. Ser, diz Heidegger, é ser no mundo.
Compreendeis este “ser-no” no sentido de movimento.
Ser é manifestar-se no mundo, é partir de um nada de
mundo e da consciência para de repente se manifestar-
consciência-no-mundo.” 18

Assim, podemos concluir que a facticidade, ou melhor, a realidade humana é


caracterizada pelo nada, ou seja, o humano tem seu ser fora de si, está jogado em
um mundo indiferente e condenado a projetar-se sobre ele por meio de sua
consciência e liberdade. Concluímos, então, que se não houvesse toda uma
esquematização acerca da condição humana, dos fatos que circundam e compõem
o homem livre e dotado de consciência, o existencialismo jamais conseguiria fazer a
sua tradução do conceito de intencionalidade, de direcionar-se em direção ao mundo
para obter a porção de ser que falta a esse nada, a empresa do existencialismo de
colocar a existência antes da essência não poderia realiza-se sem o conceito de
intencionalidade.

18
Pp.106

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