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esperar.
O ser humano, pelo contrário, existe antes de ser isto ou aquilo, ou seja, antes de se
definir, de formar a sua essência. Não há nenhuma ideia que se possa fazer de um ser
humano antes de ele existir e agir. A minha personalidade (o que eu sou) não é
construída com base num modelo antecipadamente traçado e para um objetivo
previamente delineado. Sou eu que decido ser isto ou aquilo. Sou eu que escolho
servir tal ou tal fim, comprometer-me neste ou naquele empreendimento.
Sartre liga a negação de uma essência prévia do se humano (não há natureza humana,
não há um destino previamente traçado) à negação de Deus (não há Deus para definir
o que o homem é). A liberdade humana exige a negação da existência de Deus. Ver a
existência como liberdade é correlativo de uma tese ateísta. O que Sartre aqui nega é
um Deus criador assimilado a um artesão superior. Esse Deus conceberia no seu
entendimento uma certa noção ou essência do ser humano e criaria em seguida por
um ato da sua divina vontade a espécie humana, conforme à essência ou ideia
previamente concebida. O ser humano não seria então livre, não teria o poder de
definir através dos seus próprios atos a sua essência, aquilo que é. O conceito de ser
humano, no espírito de Deus, seria semelhante ao conceito de caneta no espírito
daquele que a desenha e constrói. O humanismo ateu de Sartre é uma moral da
liberdade e da ação. Como disse Simone de Beauvoir, sua companheira, «o mal do
homem é imaginar que as suas razões para viver lhe deviam cair do céu já prontas:
somos nós que as temos de criar». Qualquer vocação transcendente – orientação da
existência humana para e por Deus – é entendida como submissão e abdicação do
exercício da liberdade, no qual se funda a dignidade e a autenticidade do ser humano.
Questões Resolvidas
Que significa aqui dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o
homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois
se define. O homem, tal como o concebe o existencialismo, se não é definível, é
porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio
se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O
homem não é mais que o que ele se faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.
Escreveu Dostoievsky: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». É esse o ponto
de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido, se Deus não existe, e,
por conseguinte, o homem encontra-se abandonado, porque não encontra em si, nem
fora de si, a que agarrar-se. Ao começo não tem desculpa. Se, na verdade, a
existência precede a essência, não há determinismo, o homem é livre, o homem é
liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos em face de nós
valores ou ordens que legitimem a nossa conduta. Assim, não temos nem atrás de
nós nem à nossa frente, no domínio luminoso dos valores, justificação ou desculpas.
Estamos sozinhos, sem desculpas. É o que exprimirei dizendo que o homem está
condenado a ser livre.
Condenado, porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque, uma vez
lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer. [...] Se suprimi Deus Pai,
cumpre que alguém invente os valores. Temos de tomar as coisas como elas são. Aliás,
dizer que inventamos os valores não significa senão isto: a vida não tem sentido a
priori. Antes de vivermos, a vida é coisa nenhuma, mas é a nós que compete dar-lhe
um sentido, e o valor não é outra coisa senão o sentido que tivermos escolhido.»
R.: Significa dizer que não há no ser humano nada de predeterminado. Somos o que
vamos sendo ou fazendo de nós. Não existimos para cumprir um plano
preestabelecido nem servir um propósito que nos seja atribuído.
R.: Se o homem não tem uma essência dada, ele é liberdade. Assim, não foi concebido
por Deus porque isso implicaria que nasceria com uma dada natureza e serviria um
dado propósito. Nesta perspetiva, afirmar que Deus é o criador do homem significaria
transformar o homem num objeto, numa coisa. Todos os objetos físicos têm uma
essência – um conjunto de caraterísticas que os definem e determinam o seu
comportamento. Assim, um livro é um objeto que tem certas propriedades que
determinam que não quebra quando cai – ao contrário de um copo –, arde quando
atirado ao fogo e não serve para beber água. Os objetos físicos não têm liberdade. A
sua essência determina como existem, como se comportam sempre e o que lhes pode
acontecer. No caso dos objetos físicos, a essência precede e determina a existência. A
natureza dotou-os de certas qualidades que determinam que se comportarão sempre
do mesmo modo. São aquilo que receberam.
R.: Segundo Sartre, a teoria do propósito é criticável porque seria imoral Deus atribuir
um propósito a outros agentes. Seriam reduzidos à condição de meios ao serviço de
um fim. Que a nossa vida obedeça a um plano superior e exteriormente imposto, que
tenha um propósito ou fim que nos foi atribuído entra em conflito com a crença
assumida por Sartre de que os agentes racionais devem viver de acordo com a sua
própria escolha. A teoria do propósito é incompatível com a dignidade do ser humano.
Faz do dele um objeto. Quanto a este assunto, Sartre estaria de acordo com o que Kurt
Baier afirma em O Sentido da Vida:
«É degradante para um homem ser encarado meramente como algo que serve um
propósito. Se, numa festa, eu perguntar a um empregado “Qual é o seu propósito?”,
estarei a insultá-lo. Poderia igualmente ter-lhe perguntado “Para que serve você?”.
Tais questões reduzem-no ao nível de uma geringonça, um animal doméstico, ou
talvez um escravo. Estaria a sugerir que nós lhe atribuímos as tarefas, os objetivos, os
fins que ele deve procurar alcançar; que as suas aspirações e desejos e propósitos
pouco ou nada contam. Estaríamos a tratá-lo, na expressão de Kant, meramente como
um meio para os nossos fins, e não como um fim em si. [...] [A teoria do propósito]
encara o homem como uma criatura, um artefacto divino, algo a meio caminho entre
um robô (manufaturado) e um animal (vivo), um homúnculo, ou talvez um
Frankenstein, feito no laboratório divino, com um propósito, ou tarefa, que lhe foi
atribuído pelo seu Criador.» Deus estaria a tratar desrespeitosamente a nossa
capacidade para escolher livremente.
Luís Rodrigues