Você está na página 1de 51

A ópera romântica alemã: uma estrada de símbolos

Introdução - Primórdios da ópera romântica na Alemanha

Durante a maior parte do séc. XVIII, as cortes católicas da Alemanha e do


Império Austro-Húngaro (mas também a corte protestante de Berlim)
privilegiaram, a grandes expensas, a ópera de autores italianos, naturalmente
cantada em italiano. Em boa verdade, algumas dessas óperas foram escritas
por compositores alemães que imitavam os paradigmas italianos mais em
voga, seguindo sobretudo os modelos de Alessandro Scarlatti e, mais tarde, de
Giovanni Paisiello. Nos finais do século, após a Revolução Francesa e as
Guerras Napoleónicas, essas mesmas cortes (à excepção de Munique, Dresden
e Viena) encontravam-se porém demasiado empobrecidas para continuar a
investir na ópera “à italiana”, que as obrigava a importar cantores e cenários
imponentes de Itália. As grandes óperas de corte destinavam-se, sobretudo, a
celebrar as glórias das dinastias reinantes, tal como é o caso de La Clemenza
di Tito, de Mozart, estreada em Praga em 1791, e que assinala o fim deste
tipo de ”ópera dinástica”.

No final de setecentos, observa-se outra mudança: a opera buffa (ou cómica)


cede progressivamente lugar à opera seria, associada que está a primeira às
frivolidades dos aristocratas e dos regimes autoritários pré-revolucionários.
Agora o povo queria rever-se nos palcos. Existia já, durante o mesmo século
XVIII, uma ópera em língua nacional que se desenvolvia lentamente e que se
destinava às classes populares, também do tipo cómico, do qual o melhor
exemplo que se poderá dar será Die Zauberflöte ou A Flauta Mágica,de
Wolfgang Amadeus Mozart, que teve estreia em Viena em 1791. As tentativas
que houve no domínio da opera seria em alemão não apresentaram resultados
duradouros na criação de gostos ou de públicos; nomes como Schweizere e
Holzbauer não nos dizem nada atualmente. O certo é que, já em começos do
séc. XIX havia nada mais nada menos que 24 teatros alemães que levavam à
cena óperas em alemão, sendo que muitas dessas óperas eram traduções de

1
óperas italianas e francesas pós-revolucionárias. O mesmo cenário era comum
à Dinamarca e Suécia, onde os esforços para se criarem óperas nacionais
impulsionaram indiretamente o surgimento de uma ópera nacional alemã.
Em Viena, o empenho do imperador José II em criar um reportório alemão não
foi imediatamente recompensado. Foi durante o reinado deste soberano que
Mozart estreou Die Entführung aus dem Serail (O Rapto do Serralho) no
Burgtheater de Viena em 1782, uma ópera cómica que conheceu uma carreira
meteórica ainda em vida do compositor. Mas é ao sucesso no teatro popular
de Mozart com Die Zauberflöte que se deve o incremento do gosto pela ópera
em língua alemã. Se, por um lado, a A Flauta Mágica se insere tematicamente
numa moda local que privilegiava assuntos de natureza exótica e mesmo
surreal, por outro, é à solidez e beleza da composição (evidentemente
amparada por um libreto bem-humorado e de índole moral) que se deve a
repercussão que a obra veio a ter ao longo de todo o séc. XIX, com ela dando-
se início a uma expandida era de óperas “mágicas” de conteúdos simbólicos e
elevatórios.
Imitando o exotismo de Mozart, Peter von Winter compôs então Babylons
Pyramiden (As Pirâmides de Babilónia) em 1791, Das unterbrochene Opferfest
(O sacrifício interrompido) em 1796 – onde se procura dar continuação, de
forma desastrada, à A Flauta Mágica – e Das Labyrinth (O Labirinto) em 1798.
Simon Mayr é outro compositor da época, que situa a acção da sua ópera
Alonso e Cora no Peru (1802). Neste panorama surge a estreia de Fidelio, de
Beethoven (1805), a única ópera do compositor, que teve como título original
Leonora. Num ambiente sedento de exotismo, Fidelio foi, como veremos, uma
espécie de corpo estranho já que, em primeiro lugar, repercute preocupações
de natureza e justiça social e política, oriundas da Revolução Francesa. Um
quotidiano marcado pelas agruras das Guerras Napoleónicas levavam o público
a procurar refúgio e divertimento em temáticas fantasiosas, a deliciar-se com
cantos de sereias e com rondas de elfos. Decididamente, os efeitos da única
ópera de Beethoven – no plano da temática - far-se-ão sentir-se só muito mais
tarde, já em pleno séc. XX, quando o desastre da 1ª Grande Guerra (1914-18)
traz de novo a miséria social para a ordem do dia.

2
I - Uma visão esotérica da ópera A Flauta Mágica de Mozart1

1-Introdução: Papageno
Nos dias 4, 11 e 18 de Maio de 1816, apareceram três artigos de um autor
anónimo numa publicação italiana (Il Corriere delle Dame, de Milão) em que A
Flauta Mágica de Mozart é pela primeira vez descrita como sendo uma obra
esotérica. O personagem Papageno é identificado como o deus Hermes (ou
Mercúrio), o qual todos os dias entrega pássaros às três servidoras da Rainha
da Noite, em troca dos quais obtém como alimento exatamente o mesmo que
os antigos gregos ofereciam a Hermes nos seus altares: figos e mel. Hermes é
também o criador da lira e da syrinx ou flauta de Pan (Pan é filho de Hermes),
um dos atributos mais característicos de Papageno. Para os Gregos, Hermes é
ainda o mensageiro dos deuses; ele leva e traz mensagens (de amor, por
exemplo) tal como Papageno durante o I acto (Papageno é a primeira figura
que tanto Tamino como Pamina encaram quando recuperam a consciência).
Hermes acompanhava o ser humano depois da morte na viagem para o mundo
dos mortos, tal como acompanhava os deuses nesse mesmo mundo.
Hermes era também o patrono dos viajantes; ele era aliás o deus da devoção
dos mercadores viandantes e, como tal, o favorito dos primeiros. É também o
deus da infração - ele mente e é palrador. Por essa razão não obtém de
imediato a confiança dos seus interlocutores. É ambivalente e fugaz como um
pássaro. Hermes usa sandálias aladas e, tal como Papageno, convive com
criaturas aladas. Mas Hermes não tinha na Grécia Antiga uma conotação
negativa; Carl Jung explica que Hermes/Papageno não representa de todo o
Mal, antes exprime algo dele como matéria não trabalhada que mais cedo ou
mais tarde terá que vir à luz do dia. Para além destes aspetos, Papageno é
também idêntico à figura de Hansworst, um personagem típico do teatro
popular vienense, aparentado com o Arlequim da Commedia dell’Arte.

1
Os conteúdos deste capítulo foram extraídos ao monumental estudo monográfico de Michiel van den
Berk intitulado Die Zauberflöte, een alchemistische allegorie (A Flauta Mágica, uma alegoria
alquímica), Tilburg University Press, 1995.

3
Também este é proveniente do reino dos mortos: Arlequim tem uma lágrima
pintada sobre a face porque conhece a verdadeira dor da morte e é por isso
que se pode rir da vida. Os ritos carnavalescos não são mais do que uma
imploração aos deuses por uma nova vida ou um novo ciclo de vida. Muitas
vezes as figuras carnavalescas estão adornadas de símbolos fálicos - uma
imagem de ligação entre aquilo que está morto e o que está vivo - sendo o
próprio título da ópera uma alegoria deste processo de criação de vida.
Porque temos então Papageno na ópera de Mozart e não Hermes? Porque os
seus autores não quiseram recriar uma obra mitológica mas apresentar sim
uma obra esotérica. Mais do que Hermes, Papageno representa o mercúrio,
um elemento fundamental para o trabalho do alquimista. E o conhecimento
hermético é aquele que diretamente deriva dos atributos do deus grego
Hermes. É um conhecimento secreto por não poder cair em mãos erradas,
sendo necessário usar de secretismo enquanto a Magna Obra (o trabalho da
transmutação) se encontra em decurso; tal hermetismo descreve-se
alegoricamente na ópera quando as Três Damas impõem um cadeado a
Papageno.
O período helénico do antigo Egipto (séc. IV-I a.C.) é o período de gestação,
por excelência, do corpo de conhecimentos alquímicos que se irá espalhar
pelo mundo árabe e pela Europa nos séculos subsequentes. Do Antigo Egipto,
os segredos dos embalsamadores e alquimistas passam ao mundo árabe, a
partir do séc. VIII, através dos califados peninsulares de Córdoba e Granada,
célebres pelos seus médicos; e passa ao mundo cristão da Europa meridional,
a partir do séc. XII, infiltrando-se na Ordem do Templo. A ópera A Flauta
Mágica surge a partir das tradições dos Rosacrúzios 2 centro-europeus,
derivando a sua visão da alquimia da obra do filósofo e teólogo Paracelso
(1493-1533), encontrando-se mais próxima de um percurso de procura

2
Irmandade esotérica que aparece referenciada no séc. XVII, 120 anos após a abertura do túmulo de
Christian Rosenkreutz (1378-1484), um cavaleiro alemão que se dedicara aos segredos de Hermes
Trismegistos (ou Hermes Três Vezes Grande). A ordem dos Rosacrucianos demonstra semelhanças com
os cavaleiros míticos do Graal, pertencendo porém muitos do seus membros às estruturas da Maçonaria
por esta se encontrar melhor organizada.

4
espiritual do que da “fabricação” material do ouro, utilizando o laboratório
apenas como cenário de um ritual.

No cerne da alquimia encontra-se a extração de duas substâncias à terra, a


purificação das mesmas, seguida da incorporação destas matérias tendo em
vista a obtenção de uma terceira. Temos portanto uma aliança como imagem
central. Carl Jung descreve esta situação como “conjunctio ou casamento
químico”. N’A Flauta Mágica - tal como na obra de Paracelso - o Opus
Magnum (ou o trabalho do alquimista) desenrola-se à volta da extração em
separado e da purificação e incorporação do mercúrio, cuja personificação é
Papageno, do sal (Pamina) e do enxofre (Tamino). O resultado final é a
alegoria da fertilidade que representa o casamento de Papageno com
Papagena, já que uma nova substância nasce deste processo.

2- Viena e a alquimia
As classes esclarecidas do Império Austro-Húngaro encontravam-se sob o
fascínio da alquimia ao tempo de Mozart. Em Outubro de 1784, Mozart torna-
se membro da Maçonaria 3 que, tal como os Cavaleiros Rosacrucianos
(Rosacruzes ou ainda Rosacrúzios), veiculava ambas as correntes (prática e
metafísica) da alquimia. Em breve trecho Mozart atinge o grau de mestre e
chega a pensar em fundar a sua própria loja. Mozart colaborou ativamente na
elaboração do libreto, atribuído a Schikaneder (também ele maçon), tendo
introduzido alterações no texto para dele extrair uma maior eficácia
dramática e musical. Estas alterações nem sempre foram bem vistas por
Schikaneder, que muitas vezes se pronunciou criticamente acerca do Mozart
libretista. Foi preciso esperar pelo sucesso da ópera junto do público para que
Schikaneder apreciasse devidamente aquilo que o compositor tinha em
mente.

3
Associação secreta fundada em Londres em 1717, orientada pela busca de desenvolvimento espiritual e
que recolhe alguns dos seus símbolos principais no ofício dos famosos pedreiros que construíram as
catedrais medievais. Muito diversificada de país para país, os valores ortodoxos da Maçonaria são os do
racionalismo do Século das Luzes: educação humanista, liberdade, igualdade e fraternidade. A sua
estrutura interna conhece três graus (aprendiz, companheiro e mestre),ao longo de um percurso marcado
por provas iniciáticas.

5
As práticas alquímicas começaram a ceder às pressões das descobertas
científicas de Lavoisier e de Dalton durante a 2ª metade do séc. XVIII; e a
partir da formação das teorias da indivisibilidade dos átomos, os alquimistas
praticamente desaparecem. Todavia, a actual física quântica presta-lhes
homenagem ao recuperar certos princípios “alquímicos” presentes no actual
enfoque do cosmos como uma unidade, na descrição do tempo curvo e na
análise do mundo subatómico não determinável segundo a lógica conhecida.
O libreto e a música d’A Flauta Mágica consubstanciam, pois, o esquema do
trabalho do alquimista, ou Opus Magnum. O adepto podia evoluir de junior a
magus, ao longo de um percurso que passava por cinco graus. Nos quatro
primeiros graus, o neófito era iniciado nos conhecimentos sobre os quatro
elementos e os sete metais básicos do universo, para além de aprender como
se organizava um laboratório (ao tempo de Mozart havia mais de 6000 em
Viena, desde os mais rudimentares aos mais sofisticados). No 5º grau, ao
iniciado desvelavam-se os segredos das dez operações do Opus, que eram as
seguintes:

1ª - convocação do espírito da Terra no mês de Maio (o mês em que Pamina


foi raptada de casa de sua mãe), quando houvesse tempo sereno;
2ª - recolha de terra virgem na mesma época do ano;
3ª - realização da primeira conjunção caótica, seguida de putrefação, sem
fogo (final do I acto);
4ª-7ª - operações de purificação; a terra tem que ser dissolvida para se obter
a limpeza do sal; o mesmo acontece ao menstruum masculino, que é isolado
(isolamento e prova de silêncio de Tamino no II acto);
8ª - realização da segunda conjunção, ou aproximação do sal e do esperma;
em seguida dá-se a provocação de sangue menstrual masculino (a Tamino é
servido vinho) e o sal retorna à placenta (visita da Rainha da Noite a Pamina
no palácio de Sarastro);
9ª - repetição do processo: solutio, putrefactio, coagulatio, resolutio et
plusquamperfectio salis ad lapidem (operações feitas através das provas de
água e fogo);

6
10ª - multiplicatio et projectio, ou seja, dá-se a multiplicação da substância
mais-que-perfeita ou “pedra filosofal” (aparição conjunta de Papageno e
Papagena).

Este esquema divide-se em três partes maiores, ou fases – nigredo, albedo e


rubedo - correspondendo a primeira a todo o I acto da ópera e as duas
seguintes ao II acto. Sucintamente:

a) O nigredo (ou solutio) inclui o primeiro trabalho de dissolução. Os três


princípios ou substâncias (Tria Principia) são extraídos à terra (sal, enxofre e
mercúrio) após o que sofrem operações de mortificação, separação (espírito e
alma são separados do corpo) e circulação, tendo em vista uma primeira,
ainda que impura, conjunção;

b) O albedo (ou purificatio) decorre durante o II acto até às provas de água e


de fogo. Os três princípios são submetidos a sucessivas provas de purificação
(lavagem das três substâncias, precipitação, formação de cinzas e segunda
separação), tendo estas operações um forte carácter destilador. É a fase das
provações, do sofrimento, do isolamento e do assalto, destinando-se a
permitir uma segunda e mais pura conjunção;

c) O rubedo (ou coagulatio) tem início com as provas de água e fogo,


terminando com a consagração no Templo do Sol. A prova de fogo destina-se a
aquecer os três elementos (Papageno apenas através do vinho, pois o
mercúrio só lentamente se pode aquecer, sob risco de se volatilizar). A seguir
à prova do fogo tem lugar a terceira e mais perfeita conjunctio, em alemão
die letzte Kochung (ou a última cozedura). As operações anteriores são
repetidas, seguindo-se-lhe as operações finais de augmentatio, multiplicatio
et projectio. No final, a exaltatio da substância obtida tem lugar no círculo
de iniciados no templo de Sarastro.

7
3- A pedra filosofal
É o produto final da Magna Obra. Para os iniciados, um grão desta substância
poderia transformar um simples metal em ouro. É o alfa e ómega de todas as
artes. É a matéria germinadora de todos os metais, aos quais antecede em
existência. Não apenas um metal, trata-se de uma essência ou organismo vivo
e incorruptível. Todas as coisas correspondem a uma realidade física e
espiritual cujas manifestações e evolução se interligam. Os alquimistas
acreditavam que os metais e os planetas eram entidades vivas que cresciam,
tal como as plantas. Nada se encontra desligado de nada. Assim também o ser
humano provém desta matéria original, que é simultaneamente uma matéria
espiritual. Por isso o homem pode exercer influência sobre os metais e estes
sobre ele. Homem e metais estão, por sua vez, sob a influência dos planetas e
dos signos zodiacais, tendo a atitude interior do ser humano repercussões
directas sobre o trabalho que ele opera. Quem quiser transformar chumbo em
ouro terá primeiro que transmutar o seu próprio chumbo, através de
operações de purificação. Apresentam-se em seguida alguns exemplos
práticos de operações e elementos alquímicos descritos na ópera de Mozart:

a) A pedra filosofal
Papageno recebe das Três Damas a pedra filosofal em estado bruto, a água da
vida e o cadeado como atributos da Magna Obra: a pedra é imune à ação dos
não iniciados; o cadeado protege o sigilo do trabalho; a água, princípio da
vida, purifica o início da jornada. No início da história, Hermes/Papageno,
provido destes instrumentos, acompanha o príncipe Tamino na sua viagem
pelo submundo. A paisagem é desolada e rochosa, tal como a alma não
trabalhada, não polida, uma visão frequentemente descrita em gravuras da
época.

8
b) O retrato
Tamino recebe o retrato da Magna Obra. O retrato representa Pamina e é
“magicamente belo” pois reúne as três cores do processo inteiro: olhos
negros, cabelos doirados e lábios vermelhos; o casamento em perspectiva é
afinal uma aliança alquímica.

4 – O Sol incendeia-se ao contemplar o retrato da sua amada, a Lua.

9
c) A flauta mágica
Antes das provas de água e do fogo, no II ato, Pamina conta a história da
flauta a Tamino: seu pai, um alquimista transmutador de metais,
transformara uma raiz de um carvalho secular num instrumento de ouro. Isto
acontecera durante “uma hora mágica” e aqui se condensa toda a essência da
Magna Obra, sendo que o carvalho milenar é um dos símbolos mais conhecidos
da alquimia: “numa hora mágica o meu pai arrancou uma raiz das profundezas
da Terra a um carvalho milenar e, através do relâmpago (Fogo), do dilúvio
(Água) e do trovão (Ar)” [...], realizou o sublime trabalho”. Será a flauta de
ouro que conduzirá ambos através do percurso iniciático.

d) A cauda de pavão
O princípio da alquimia é a justeza da proporção. Algo que não seja formado
por uma mistura óptima de elementos terá que morrer naquilo em que está
impuro antes se de poder integrar numa nova fórmula. As fases do Opus
Magnum reconhecem-se pela variação de cor dos elementos intervenientes:
negra (o nigredo) é a primeira; segue-se a cor branca (o albedo) e por fim a
vermelha (o rubedo). Todas as restantes cores - azul, verde, amarelo, etc., -
são cores de passagem. Todas se reúnem finalmente na cauda pavonis, um dos
símbolos herméticos mais importantes e que foi um dos atributos do guarda-
roupa da primeira produção d’A Flauta Mágica ao tempo de Mozart. Na
indumentária desenhada para a estreia da ópera, Papageno foi representado
tendo a sua fronte adornada com uma cauda de plumas. Visto que este
símbolo revela todas as cores do processo alquímico, Papageno só
aparentemente poderá ser considerado uma figura ingénua!

e) A gaiola
Um dos principais adágios dos alquimistas é a fixação das essências voláteis
(fac fixum volatile), justamente o trabalho de captura de pássaros que
Papageno exerce.

10
4 - Uma alegoria alquímica

A alquimia é pois a arte da transmutação dos elementos ou seja, a


transformação de metais impuros em metais nobres (chumbo em ouro;
mineral simples em pedra filosofal). Os ensinamentos de Aristóteles apontam
para uma transmutação omnipresente na natureza: água  vapor de água;
criança  homem adulto; lagarta  borboleta, etc. Para Aristóteles, o ouro é
o produto final de um processo transformativo em que se obtém um metal
formado pelos quatro elementos (Terra, Água, Fogo e Ar) em proporção
perfeita. Os elementos que tiverem entre si uma virtude comum poder-se-ão
transformar mutuamente. Assim, por exemplo, a Terra e o Fogo são secos e
por isso se conjugam, enquanto que a Água e o Fogo são irreconciliáveis.
Através desta apreciação, os alquimistas tentaram realizar a Magna Obra
através da manipulação dos elementos de natureza mineral e de uma série de
operações tais como o aquecimento, a refrigeração, a destilação, a lavagem,
a secagem, a calcinação, a cozedura, a evaporação, a putrefacção, a
cristalização, etc.

5 - Contributos de Mozart para o libreto d’ A Flauta Mágica

a) O tema Egipto
Mozart visitou Pompeia e Herculano quando tinha 14 anos, aquando de uma
digressão por Roma e Nápoles. Um grande templo dedicado à deusa Ísis tinha
sido recentemente escavado e causou uma profunda impressão no jovem
compositor. O templo estava decorado com grandes frescos descrevendo os
mistérios de Ísis. Não surpreende, pois, que alguns destes frescos sejam
perfeitamente reconhecíveis em cenas do II acto de Die Zauberflöte. Além
disso, as muitas serpentes monstruosas que se encontram esculpidas nos
pórticos do templo reportam-nos igualmente à temática de Ísis e Osíris, de
onde provém o ataque do Dragão a Tamino no início da ópera. Nos anos
seguintes Mozart compôs a música de cena para Thamos, Re di Egitto e para Il
sogno di Scipione, que se podem considerar ensaios para A Flauta Mágica:

11
Thamos contém já o Templo do Sol, a dualidade Sol e Lua, sacerdotes, rituais
místicos e uma aliança matrimonial; Scipione é uma obra claramente
esotérica, composta sobre o texto de Cícero com o qual se conclui o texto de
De Republica. Contém como elementos a harmonia das esferas, a imortalidade
da alma e a luta entre a Fortuna e a Constância, sendo esta última, uma das
máximas do trabalho alquímico.

b) Relações entre a música e a alquimia


Mozart lia muitíssimo e era extremamente culto. Visitava bibliotecas e
dispunha em casa igualmente de uma razoável colecção de livros. Nas suas
prateleiras encontravam-se vários livros sobre ciências ocultas, entre os quais
Die Metaphysic in Connexion mit der Chemie (Relações entre a Metafísica e a
Química) de von Oetinger (teósofo, cabalista e alquimista), uma obra datada
de 1770. As teses de Oetinger assentavam no binómio luz/trevas tão típica
d’A Flauta Mágica. A obra contém uma descrição dos quatro elementos e do
modus operandi dos mesmos: um conceito de metafísica como “mistura
original”, tanto aplicável à alma humana como ao antimónio ou outra
substância qualquer. Mas contém sobretudo um conceito de música como
sendo a emanação, por excelência, de ambos os mundos - espiritual e
material -, tal como Pitágoras já o dizia, servindo ao homem para se elevar
animicamente em direcção às esferas mais elevadas. Operações alquímicas
aplicáveis à música são a compositio, a resolutio, a multiplicatio e a divisio,
para além da utilização dos números 2, 3, e 5 como base do estabelecimento
de proporções e definição de afectos (a numerologia interessou Mozart na
formação da sua linguagem harmónica e intervalar, pois acreditava ser a
música o único fluido mágico capaz de pôr em movimento as regiões mais
profundas da realidade humana).

E que forças são essas, sempre presentes durante a ópera, “que conduzem aos
céus”? São forças musicais alquímicas capazes de imprimir ao ser humano uma
poderosa ascensão espiralada. Modulações súbitas e dissonâncias exercem
uma influência direta sobre a alma humana, descobrem as tensões entre luz e
sombra, revelam antagonismos profundos e até há pouco invisíveis. São forças

12
omnipresentes nas correntes da vida, que regem os seus movimentos e
desenvolvimentos.

6. As fases do Opus Magnum no libreto e na música


6.1. Nigredo

Os tria principia de Paracelso consubstanciam-se, como se disse atrás, nos


três elementos ou personagens principais da ópera. As suas qualidades e
modos de comportamento são os seguintes:

Enxofre/Tamino  alma  arde

Mercúrio/Papageno  espírito (agente intermediário)  volatiliza-se

Sal/Pamina  corpo  carboniza-se

As regras das operações obedecem à seguinte lógica: apenas o enxofre podia


purificar o sal, agindo como ácido durante as operações alquímicas de
separação. Por sua vez, tanto o enxofre como o sal apenas através do
mercúrio se podiam unir, tendo este a capacidade de “limpar” tanto uma
substância como a outra. O mercúrio age, portanto, como materia seminalis
(capaz de criar matéria nova, na medida em que a transforma), evoluindo de
um estado inicial de mercúrio vulgar até ao de “mercúrio dos filósofos”. Deste
modo se opera, segundo o mandamento de Paracelso, que reza o seguinte: “O
Sol e a Lua geram o mercúrio através do enxofre e do sal”.
A história tem início após a morte de um rei, subentendendo-se que este
tenha sido o esposo da Rainha da Noite e pai de Pamina. Na sua ausência, é a
mulher quem detém a autoridade no reino das trevas. A autoridade desta
estende-se até às fronteiras da escuridão, isto é, o limite que separa a terra
inferior da superior (aqui situando-se o templo de Sarastro, sacerdote do Sol).
Ela dominará até que seja subjugada. O seu reino é o da terra informe, da

13
qual sairão todas as formas, pois a criação só tem lugar a partir do caos. As
imagens chave do Nigredo são as seguintes:

1ª - A serpente
É o monstro que o príncipe Tamino derrota no início da acção (aqui ocorrendo
a desintegratio da serpente). Tamino, por sua vez, no início do processo cai
desmaiado pois está no estado de massa confusa, unindo-se ao mundo mineral
(o desmaio simboliza a mortificação do enxofre). A serpente é uma
materialização do defunto rei: um símbolo fálico conotado com a criação de
todas as coisas, significando a sua morte a renovação do ciclo da vida. O
sacrifício da serpente é também uma forma de se obter “água real”(os
antigos egípcios utilizavam os fluidos dos ventres de répteis e batráquios para
os processos de mumificação) ou seja, a forma mais pura de água necessária
ao início do trabalho laboratorial. Quando Tamino acorda, abre os olhos para
uma nova realidade; tem à sua frente Papageno, ou uma metamorfose de
Mercúrio (o Hermes Trismegistos dos gregos). Jung explica que o início do
processo do Opus Magnum traz consigo muito sofrimento (tal como as dores
de parto) – a dor primordial – o qual só se dissipa com o avistamento da cauda
pavonis ou luminosidade do amanhecer. Nesta acepção, Papageno é uma
evidência viva da referida cauda de pavão.

2ª - O mouro (Monostatos)
Descrito como o carcereiro de Pamina dentro do palácio de Sarastro, o mouro
simboliza o ponto negro na metade branca da dualidade Yin/Yang, isto é, o
poder destrutivo do Sol ou ainda a “cabeça negra” (ou caveira) dos
alquimistas. Pamina é, por sua vez, mortificada (a desintegratio do sal)
através dos avanços sexuais do mouro Monostatos (literalmente, o que está só
ou isolado). A relação entre ambos projeta a ainda a substância da história de
Capuchinho Vermelho e do Lobo Mau. Outra função de Monostatos
(equivalente ao Lobo) é a de quebrar a ligação de Pamina (ou Capuchinho
Vermelho) com a própria mãe (a Avó da história infantil). Tal violência conduz
ao desmaio da princesa. E Papageno será também a primeira criatura que ela
avista quando acorda do seu estado de massa confusa!

14
3ª - A pedra, a água e o cadeado
A água que as Três Damas oferecem a Papageno para a viagem que se inicia
no I acto é a aqua mercurialis, ou a água no seu estado mais puro com que o
alquimista inicia as suas operações. A pedra que elas lhe dão (em vez de algo
mais doce e suculento) é um símbolo de uma gema nobre – a draconite ou
seja, a pedra preciosa que ornava a serpente, símbolo da antiga alquimia (em
grego, “pedra” é draco) - o que ele ainda não entende; quando Papageno
protesta dizendo que “a pedra não se consegue comer”, isto significa que o
mercúrio ainda está no início do processo de transformação. Os seus protestos
são calados pela imposição do cadeado na boca, símbolo do hermetismo, ou
secretismo da operação: só um iniciado sabe calar.

4º - O retrato
Sob a ação do remédio mercurial que se concentra no retrato de Pamina, tem
lugar a exuberatio de Tamino: um estado analgésico de transporte sensorial
que antecipa a união com a filha da Rainha da Noite. O retrato simboliza o
encantamento do processo de transmutação dos elementos, ao qual Tamino se
sente definitivamente submetido.

Fig. 6 – Muitas deusas pré-clássicas da fertilidade são representadas como tendo um lado
luminoso e outro obscuro.

15
5º - A Rainha da Noite
O Opus Magnum inicia-se debaixo da terra, o domínio uterino da obscura
foemina, onde predomina a rainha das sombras ou da noite - é na escuridão
que toda a gestação tem lugar, tal como no mundo vegetal. Os iniciados
acreditavam que, no princípio do mundo, a luz e a escuridão formavam uma

16
unidade harmoniosa. A atração dos sexos derivava, portanto, de uma unidade
primordial consubstanciada em seres andróginos. A separação levada a cabo
pelo agente criador que os vários mitos cosmogónicos aceitam (entre os quais
a versão bíblica da Criação, Deus separando as águas da terra e a luz das
trevas, isolando assim o Bem do Mal), está na origem da busca de
conhecimento dos alquimistas: a chave da lógica da vida e do sentido físico da
existência.

6º - Regressão
Há forças regressivas na natureza e na ópera que, tal como a gravidade,
contrariam a acção progressiva. Os elementos que resistem às transformações
encontram-se subentendidos às seguintes situações: Pamina deseja
constantemente regressar para junto da mãe; Tamino desconfia de Sarastro
até ser interpelado pelos dois guardas do templo; Papageno é medroso e quer
sempre voltar atrás; os três personagens principais circulam ao longo do I acto
até serem “fixados” por Sarastro, que esclarece a razão do rapto de Pamina e
os trabalhos que a esta e a Tamino esperam para que se unam em felicidade
(é a primeira conjunctio, ou primeira união de metais impuros, à qual se
segue nova separatio).

6.2. Albedo

O albedo tem início com a reunião dos sábios sob a tutela de Sarastro. Este
traz luz à estrutura do Opus Magnum, explicando que, sob Isis e Osíris, terá
lugar a rutura da ligação entre Pamina e a sua mãe e a iniciação de Tamino
nos mistérios do templo. Nesta fase do processo destacam-se os seguintes
símbolos:

7º - O sal (Pamina)
Na 7ª cena do II acto a Lua ilumina o rosto de Pamina. O albedo está sob o
signo da Lua pois as suas mutações ou fases são sinal de inconstância ou
loucura (só o Sol oferece estabilidade). A primeira solutio de Pamina teve

17
como agente Monostatos, através das tentativas de violação; a segunda ocorre
com a visita furtiva da Rainha da Noite ao templo de Sarastro, como símbolo
da “doença da Lua”, incumbindo a filha de matar Sarastro antes de regressar
ao mundo da escuridão; a terceira mortificatio de Pamina é o voto de silêncio
de Tamino, que a isola e a afasta de si. Após estas provações Pamina está
prestes a suicidar-se, no que é impedida pelos Três Rapazes, agentes do Sol,
do templo e de Sarastro. Por aceitar a morte como provação limite, ela está
pronta a entrar num novo ciclo de purificações (as provas do fogo e da água),
desta vez ao lado de Tamino.

8ª - O Enxofre (Tamino)
No início do II acto, Pamina sofre a separação simultânea de Tamino e
Papageno. Na alquimia esta situação corresponde à fase da separação de
corpo, por um lado, e do espírito e da alma, por outro. Pamina é, neste caso,
o corpo, Papageno o espírito e Tamino (o enxofre, a chama), a alma. Jung
descreve esta tradição como a necessidade de mortificação da carne,
aproveitando o dado químico que enxofre e mercúrio formam uma
combinação relativamente fácil de se conseguir. Por sua vez, a mortificação
de Tamino consiste no voto de silêncio, que é uma forma de se tornar imune
ao elemento feminino, naquilo que este contém de possessivo.
Após esta prova, o terceto que envolve Sarastro, Pamina e Tamino é uma
precipitatio alquímica: sobre um ritmo galopante, Sarastro impele os dois
seres amantes a separarem-se. Sete vezes seguidas, ele profere as palavras
Die Stunde slägt! (Está na hora!). O recomeço do novo ciclo de purificações
segue sempre a mesma lógica: separar, limpar e dissolver. O ácido nítrico era
utilizado, ao tempo, para separar a prata do ouro, dissolvendo a primeira sem
corromper o segundo. Era uma operação que fascinava todos os alquimistas.
Assim, o “ácido” Sarastro dissolvia a argêntea Pamina, separando-a do áureo
Tamino 4. Após esta mortificação, e depois das purificações através de água e
do fogo, o enxofre e o sal reúnem-se numa conjunção mais perfeita, da qual
resulta um mineral (a pedra filosofal) que se pode fundir com o mercúrio –
uma operação dificílima! Esta fusão com o mercúrio, que possibilitaria a
4
As testemunhas das récitas da ópera sob a direcção de Mozart era unânimes em considerar que o tempo
em que ele dirigia o terceto era extremamente rápido.

18
multiplicação deste, é alegoricamente representada na apresentação de
Papagena a Papageno como casal e no seu desejo de procriar, sendo o produto
desta fusão entendido pelos alquimistas como uma matéria com qualidades
andróginas.

6.3. Rubedo

É a fase da obtenção da pedra filosofal purificada. É também a fase do último


aquecimento dos metais no forno, o que no séc. XVIII, naturalmente, colocava
muitos problemas de controle da temperatura. Sucintamente: Pamina e
Tamino, o par principesco, passam pelas provas de fogo e água (estas
conduzidas pela mulher, a legítima descendente de Ísis), conduzindo à
fertilidade, que é simbolizada pelas cores da cauda pavonis, visíveis durante a
separação de Papageno em Papagena. Esta última ocorria laboratorialmente
sob a forma de coitus in vitro. Nesta cozedura, os elementos são os seguintes:
in vitro: ar e água; no exterior, fogo e terra. As provas do fogo e da água
simbolizam, por sua vez, a submissão aos quatro elementos, tal como Pamina
canta quando conduz Tamino pela mão, explicando também a origem da
flauta mágica (talhada por seu pai de um carvalho milenar). Para os iniciados,
a flauta representava o pénis de Osíris, feito a partir de uma cana por Ísis que
a impõe sobre o cadáver do deus, massacrado por Seth, com ele copulando e
desse coito nascendo Hórus – o senhor do Reino dos Mortos (muito similar ao
Hermes que Papageno encarna). Mas este milagre surge apenas discretamente
na ópera, quando se refere que a flauta tem poderes mágicos. A substância
resultante da multiplicação de Papageno simboliza a matéria renovada, isto é,
a criação de uma vida totalmente nova. Era algo que a alquimia sabia ser
possível mas nunca chegou, que se saiba, a concretizar. As imagens nucleares
desta fase são:

9ª - O mercúrio (Papageno/Papagena)
A separação do enxofre e do mercúrio era a operação crucial do Opus
Magnum, posto que o espírito (Papageno/Mercúrio) era o elemento mais frágil

19
e difícil de isolar ou fixar. Daí que Papageno, ao longo de todo o libreto, sofra
do princípio de solve et coagula, a um tempo sendo ajudado e contrariado.
Segundo a tradição alquímica, o mercúrio continha duas essências: uma
divindade terrena masculina (deus terrenus) e a alma feminina do mundo
(anima mundi). Sendo uma matéria andrógina, a sua separação e
multiplicação produz uma matéria que em tudo lhe é semelhante, como que
duplicando-se.

10ª - A Prova do Fogo


Aplica-se também a Papageno mas de uma maneira especial. Ele é isolado nos
subterrâneos do templo, ficando separado das labaredas (que, no exterior,
Tamino e Pamina enfrentam) por uma porta metálica. Papageno tem que
aquecer devagar para não evaporar, e para isso é-lhe finalmente servido o tão
desejado vinho, acompanhado de uma refeição para ele conseguir “resistir”
ao aquecimento. O vinho simboliza todo o princípio de transmutação. Só
depois de ter sido coagulado (fixado, imobilizado), Papageno é autorizado a
beber, dando-se início à sua fase rubedo. Antes disso, a primeira reductio
(contenção ou humilhação) de Papageno, tinha-lhe sido imposta pelas Três
Damas, aquando da sua visita a Pamina, no templo, no II acto. Depois, no
novo ciclo de purificações, a bruxa (a futura Papagena, em disfarce ou “em
bruto”), propõe-lhe água (água mercurial), pão e isolamento se ele não quiser
casar com ela. Papageno recusa, mas não totalmente, - inconstante como é -,
pois ainda não está pronto para se multiplicar. Após a recusa, morto de medo,
cai prostrado no chão.

Página seguinte: Fig. 7 – O casal real sob as provas de fogo e água.

20

21
11ª - A queda da Rainha da Noite
Este personagem reina até à obtenção da nova matéria, após o que morre,
reunindo-se na escuridão da terra ao dragão vencido no início da ópera (como
foi dito, uma alegoria de Osíris). Mas o seu princípio não desaparece, pois
contém em si o perpétuo sal da sabedoria, pronto a ressuscitar e a iniciar um
novo ciclo de vida. Segundo o lema dos maçons alquimistas, “A NATUREZA
AMA A NATUREZA, A NATUREZA CONTÉM A NATUREZA E A NATUREZA VENCE A
NATUREZA“.

7. O libreto
7.1. Os autores do libreto
A Emanuel Schikaneder (1751-1812) é legitimamente atribuída a autoria do
libreto. Este astuto empresário teatral, para além de excelente actor, cantor,
autor dos libretos e partituras de dezenas de óperas e Singspiele que ele
próprio encenou em toda a Alemanha, era também um notório membro da
mesma loja maçónica a que pertencia Mozart em Viena. Foi diretor do
Wiednerthater onde A Flauta Mágica foi estreada, em Viena e foi o seu
primeiro encenador, tendo personificado o primeiro Papageno da história.
Recentemente, graças a uma profunda investigação levada a cabo por Michiel
van den Berk5, foi demonstrado que não só a intervenção constante do próprio
Mozart no libreto lhe deu a forma que se lhe conhece, como há um terceiro
contributo de importância para o elenco de autores do libreto que é o de Karl
Ludwig Gieseke (1761-1833),membro da equipa técnica do Wiednertheater,
autor do texto de que Mozart se serviu na Kleine Freimauerkantate KV 622
(Pequena cantata maçónica) e do libreto da ópera esotérica Oberon, musicada
por Wratntizky. Gieseke possuía profundos conhecimentos de alquimia e
mineralogia, estando hoje praticamente provado ter sido sua a criação do
personagem Sarastro e respectivo círculo de sacerdotes. Além disso, foi
também Gieseke quem sistematizou o percurso simbólico alquímico
subjacente ao libreto da ópera dado que Schikaneder só possuía umas noções
muito rudimentares sobre o Opus Magnum, tendendo constantemente a

5
Ob. cit., p. 301-317.

22
escamotear esse desconhecimento através do enxerto de longas tiradas de
humor bonacheirão.
Há, porém, que referir uma outra “autoria”, esta tão indireta quanto
poderosa, não só do libreto de A Flauta Mágica mas de todo o trend instalado
nos teatros alemães em finais do séc. XVIII em torno de temas esotéricos:
trata-se da figura e obra do filósofo, crítico literário e novelista Christoph
Martin Wieland (1733-1813), que Mozart conheceu pessoalmente e que era
venerado na casa paterna do compositor. Wieland foi um profícuo autor de
novelas de carácter mágico e esotérico que serviram de fonte de inspiração
não só a Mozart, Schikaneder e seus contemporâneos, mas a várias gerações
de poetas e músicos que se lhes seguiram, podendo-se considerar que
contribuiu decisivamente para a difusão do modelo do caminho iniciático do
herói em busca da perfeição tão característico do romantismo alemão. Tal
conformidade é inclusive tangível no percurso dos personagens Siegfried e
Parsifal criados por Richard Wagner. As obras de Wieland que melhor
exemplificam o novelista pré-romântico são o conto Oberon (o qual Gieseke
adaptou no “seu” Oberon, numa época em que a noção de direitos de autor
era praticamente inexistente) e a compilação de contos intitulada
Dschinnistan (ou Terra das Fadas). Desta antologia de contos saíram 3
volumes, publicados entre 1786 e 1798, perfazendo 1000 páginas, embora o
plano original de Wieland fosse a de escrever e publicar 10 tomos,
Aparentemente, a falta de interesse dos editores fê-lo abandonar tão
ambicioso desígnio. De Dschinnistan constam histórias com títulos
surpreendentes tais como Lulu, oder Die Zauberflöte (Lulu, ou a Flauta
Mágica) e Die Stein der Weisen (A Pedra dos Sábios). A filosofia de Wieland
radica na convicção de que o percurso do ser humano o deverá sempre impelir
a reencontrar um estado original de perfeição que a civilização fez esquecer.
Como característica constante das aventuras dos seus personagens encontra-
se um caminho semeado de obstáculos, ao longo do qual a sabedoria (ou o seu
contrário) dos heróis é posta à prova de modo que, progressiva mas
inexoravelmente, o medo ceda à coragem e a fraqueza dê lugar a um bem
moral de altíssimo sentido. Sobretudo nos contos Lulu e Die kluge Knaben (Os
Meninos Inteligentes) encontra-se a maior parte da trama dramática de que

23
Schikaneder e Gieseke se serviram para construir o libreto de Die Zauberflöte,
ficando nós perplexos perante as impúdicas semelhanças que se detetam
entre o tão conhecido libreto da ópera de Mozart e passagens inteiras das
novelas de Wieland.

Resumo do libreto

I ato
Um príncipe (Tamino), e um caçador de pássaros (Papageno), atendendo ao
apelo de uma rainha (a Rainha da Noite), tentam resgatar a princesa
(Pamina), sequestrada num castelo. Para cumprir essa missão, Tamino e
Papageno recebem da Rainha da Noite, por intermédio das suas damas, um
carrilhão e uma flauta, ambos contendo poderes mágicos. Por caminhos
diferentes, Tamino e Papageno chegam ao palácio de Sarastro. Pamina está
lá, realmente, prisioneira, atormentada pelo escravo mouro de Sarastro
(Monostatos), que tentara violá-la na ausência do amo. Chega Papageno e
Monostatos foge. Entretanto Tamino discute com um sacerdote do templo de
Sarastro: este diz-lhe que Sarastro não é mau, mas nobre e justo e que um
dia, ele, Tamino, compreenderá tudo. Isto abala completamente os propósitos
iniciais de Tamino. De volta ao palácio, Sarastro manda chicotear o escravo,
explica a Pamina que sua mãe, a Rainha da Noite, é uma mulher perigosa e
determina que Tamino e Papageno sejam submetidos a duras provas como,
por exemplo, a prova do silêncio. Se passarem por tais provas entrarão para a
irmandade; Tamino receberá ainda a mão de Pamina e Papageno o que ele
mais deseja na vida: uma mulher para se casar.

II acto
Numa sala do Templo do Sol, Sarastro e os seus sacerdotes discutem as
virtudes de Tamino e o caminho a dar-lhe para que se torne um seu igual.
Noutra divisão, Pamina, adormecida, desperta de novo a luxúria de
Monostatos. Eis então que chega a Rainha da Noite e que oferece à filha,
cheia de ódio, um punhal, para que esta assassine Sarastro, após o que
desaparece. Monostatos, que viu tudo, chantageia Pamina. Contudo Sarastro

24
intervém, expulsa o mouro e tranquiliza a rapariga, dizendo que naquele
templo não há lugar para a vingança. Por seu lado, Tamino vai passando nas
provas mas Papageno não consegue sequer ficar calado, acabando por ser
expulso do templo. Pamina vai encontrar-se com o príncipe mas não
compreende porque ele não lhe dá resposta. Julgando que Tamino não mais a
ama, fica desesperada, pensa em suicidar-se com o punhal, no que é impedida
pelos três génios (ou os Três Meninos, guias ao serviço do Templo do Sol). De
volta ao templo, Pamina obtém permissão para acompanhar Tamino nas suas
últimas provas: a do fogo e a da água, o que os dois conseguem superar com
sucesso, protegidos pelo som da flauta mágica. Vagueando pelos bosques,
Papageno, inconsolável, pensa também no suicídio, mas também ele é salvo
pelos Três Meninos. Estes sugerem-lhe que ele, Papageno, toque o seu
carrilhão mágico: ao som do instrumento aparece-lhe o que mais desejava:
uma companheira. Na escuridão da noite chegam a Rainha da Noite e o seu
séquito, guiados agora por Monostatos, que se lhes aliou contra Sarastro, ante
a promessa da mão de Pamina: têm planos para destruir o templo e matar
Sarastro e seus sacerdotes. Mas estes irrompem com o poder da bondade e
aniquilam as pérfidas criaturas. Pamina e Tamino casam-se com grande
pompa e com muitas congratulações pela sua coragem, fidelidade e virtude,
enquanto que a Raínha da Noite retorna à escuridão do seu reino subterrâneo.

25
II - Fidelio de Beethoven

A ópera Fidelio de Beethoven, atualmente obra incontornável de reportório,


representa uma suspensão temporária da temática mágica e iniciática de que
tratamos neste curso. É todavia indispensável a sua abordagem não só devido
ao seu valor musical intrínseco, mas também por causa da sua futura
repercussão nos palcos alemães, ainda que se tratando de um futuro
longínquo relativamente à data da sua génese. O libreto de Leonora (ou
Fidelio) resulta de uma adaptação alemã do drama francês Léonore, ou
l’Amour conjugal de J. N. Bouilly, que tinha já sido posto em música em Paris
em 1797 por Pierre Gaveaux. O mesmo libreto foi em seguida aproveitado por
Ferdinando Paer, numa versão italiana da autoria de Carpani para o teatro de
ópera de Dresden, em 1804. Beethoven, que já tinha uma versão preparada
em alemão do mesmo drama, lança-se ao trabalho e estreia a sua ópera no
ano seguinte.
O assunto condutor do drama – o resgate de um prisioneiro injustamente
condenado através da ajuda de um amigo que põe a própria vida em risco –
pode equiparar-se ao da trama de três das óperas de Luigi Cherubini (1760-
1842), compositor italiano radicado em França que teve uma enorme
influência no romantismo alemão e que Beethoven considerava ser o maior
génio do palco do seu tempo. O enredo de Fidelio, embora simples, é de
grande nobreza e clareza, o que não deixa de ser uma novidade num período
da história da música em que intrincadas situações derivadas das antigas
óperas de corte ainda exerciam um poderoso fascínio sobre os públicos.

1.Resumo do libreto de Fidelio e o contexto da estreia

Pizarro, governador de uma prisão de estado em Espanha, mantinha uma


duradoura inimizade para com Don Florestan, um aristocrata local. Pizarro
consegue arranjar motivos para mandar deter Don Florestan, enviando-o para
uma masmorra imunda com a intenção de o fazer morrer à fome. A mulher
dedicada de Florestan, Leonora, disfarça-se então de homem e, sob o

26
sugestivo nome de Fidelio, obtém admissão na prisão como ajudante do
guarda prisional Rocco. Quando Pizarro é informado da visita iminente do
ministro Ferdinando que fazia uma inspecção às prisões de estado, tenta
persuadir Rocco a matar Florestan. Rocco, se bem que recusa a proposta,
concorda porém cavar uma sepultura para Florestan no caso de este vir a
cometer suicídio. Quando Leonora ouve esta conversa secreta, aproveita-se da
paixão que sentiu fazer despertar, disfarçada de rapaz, na filha do carcereiro
Rocco, o personagem Marcellina. Esta, que por sua vez é noiva do porteiro
Jaquino, e pensando que a vida de Florestan pode de facto vir a ser
sacrificada, persuade o seu pai a deixar Leonora/Fidelio acompanhá-lo à
masmorra como assistente. Entrando na cela, Leonora reconhece
imediatamente o seu marido pela voz, mas esconde as suas emoções,
ajudando Rocco a cavar a sepultura. Quando tudo está pronto, Pizarro desce à
masmorra e tenta esfaquear o prisioneiro. Neste momento, Leonora,
revelando a sua verdadeira identidade, coloca-se entre Pizarro e seu marido.
Pizarro em fúria prepara-se para matar ambos os esposos quando Leonora lhe
aponta uma pistola que trazia escondida. Neste preciso momento, as
trombetas dos arautos anunciam a chegada do ministro do rei e Pizarro vê-se
obrigado a abandonar a masmorra para ir ao encontro do seu superior; os
esposos podem finalmente abraçar-se. Toda a conspiração é em seguida
exposta ao ministro que destitui Pizarro do seu lugar e recompensa a coragem
de Leonora, permitindo-lhe que ela solte as cadeias que prendem seu marido
com as suas próprias mãos e o devolva à liberdade.

Beethoven compôs Fidelio já numa fase de plena maturidade criativa, nela


vertendo poderosos traços dramáticos e uma dimensão sinfónica até então
nunca atingida no teatro alemão. Aqui se encontram as verdadeiras raízes da
ópera wagneriana, se não na temática, pelo menos na arquitectura de grande
fôlego, de arcos de desenvolvimento gigantescos onde as vozes e a orquestra
se encontram em plena fusão textural. Mas, tal como n’A Flauta Mágica,
Fidelio contém traços palpáveis da tradição do Singspiel, onde entre as cenas
cantadas há diálogos explicativos da acção, sem qualquer tipo de

27
acompanhamento instrumental, deste contraste ressaltando um
aprofundamento das emoções quando a música se segue à palavra falada.
Fidelio foi estreado no teatro Kärtnerthor de Viena a 20 de Novembro de
1805, tendo os ensaios sido rodeados de grandes dificuldades devido aos
problemas técnicos levantados pelas partes vocais. Os cantores queixavam-se
de que as suas partes eram literalmente impossíveis de cantar e de que
Beethoven não estava disposto a alterar nada do que escrevera. Por seu lado,
a orquestra deparava-se com uma obra repleta de passagens de complexidade
sinfónica, bem longe dos acompanhamentos mais ligeiros a que estava, por
rotina, habituada. Destes conflitos Beethoven guardou uma memória amarga,
confessando ao seu amigo Schindler que “o negócio da ópera” era a coisa mais
acabrunhante do mundo...
As circunstâncias que rodearam a estreia foram de igual modo desfavoráveis,
já que o exército de Napoleão tinha chegado a Viena sete dias antes,
encontrando-se a cidade desertada da sua aristocracia e personalidades mais
notáveis. Houve então três récitas em dias seguidos, após o que, a pedido do
próprio compositor, a ópera foi retirada de cena. A obra voltou a ser
representada no ano seguinte, com muitas alterações da mão de Beethoven e
com uma nova abertura, mas o seu sucesso permanecia incerto. A propósito
disto, o mais importante biógrafo de Beethoven e seu assistente pessoal –
Anton Felix Schindler – disse que “o Mestre escrevia para o futuro”, e que
ninguém em Viena abarcava a profundidade desta obra-prima. Houve outra
produção em 1814, com novas alterações e nova abertura (a quarta que
Beethoven compôs para Fidelio), mas mesmo nessa ocasião o verdadeiro
reconhecimento não chegava, como nunca chegou em vida de Beethoven.
Fidelio permanece, todavia, como modelo para muitas da óperas do
romantismo italiano – de Verdi, sobretudo -, repercutindo-se em assuntos
onde a moral e a justiça se confundem com a criação de uma música nacional
italiana que contribuísse para a formação de uma consciência política
favorável à unificação aquela nação. Até mesmo entrado o séc. XX, se
pressente a perenidade da mensagem de Fidelio: a ópera Wozzek de Alban
Berg é também ela uma obra onde se reflectem preocupações sociais e onde
se critica caricaturalmente o abuso do poder.

28
2. Depois de Fidelio

A popularidade das óperas de Cherubini, Méhul e Lesueur na Alemanha mostra


até que ponto Fidelio, no seu tempo, foi um fenómeno de passagem,
caracterizado que está por um forte moralismo e até um por certo realismo
social. Mas a alma alemã clamava por magia e fantasia...
Sobretudo Cherubini apelou ao imaginário alemão, fundindo-se com o surto
literário e romanesco de princípios do séc. XIX. E. T. A. Hoffmann, escritor,
compositor e crítico, numa sede de identificação de tudo o que fosse
“romântico”, proclamava ter encontrado no personagem central do Don
Giovanni de Mozart o paradigma do herói dos novos tempos: um ser marcado
pela celebração do Mal, capaz de uma expressão musical tingida de
satanismo. Aqui jaz, de facto, um traço identitário importante da ópera
romântica alemã, um tipo de herói satânico e maligno, e onde afinal se
esconde um anti-herói.
A moda do satanismo na literatura e no teatro nasceu, porém, em Inglaterra,
graças à figura de Satan em Lost Paradise (O Paraíso Perdido) do pintor e
escritor Milton. E foi outro inglês, o romancista e poeta Lord Byron, que
através do seu exemplo de vida dissoluto, para além de uma obra
imensamente apreciada no continente europeu, consolidou esse ideal de
personagem que se auto-consome em vida. Os alemães, por seu turno,
possuíam já um personagem satânico oriundo da literatura: o Faust, de
Goethe (que aliás é uma reedição do Doctor Faust de Christopher Marlowe,
um autor inglês do séc. XVII). Este Fausto goethiano vai-se tornar a pouco e
pouco num símbolo do germanismo puro, uma reencarnação do arquétipo de
Don Juan, mas agora nascido no norte da Europa. Ele é um intelectual, um
místico reflexivo, completamente diferente do personagem sensual do sul,
que era uma amálgama de instintos primários ibéricos e italianos. A primeira
ópera alemã sobre este assunto, o Doktor Faust de Ignaz Walter, estreada em
Bremen em 1797, não teve porém qualquer sucesso musical. Na esfera do
fantástico de filiação inglesa, assinale-se ainda que Reichardt e Zumsteeg
estrearam ambos em 1798 óperas inspiradas em A Tempestade de
Shakespeare.

29
III - Weber

Um sucesso mais marcante foi conseguido em 1800 com a ópera Das


Waldmädchen (A Menina do Bosque) de Carl Maria von Weber (1786-1826), o
compositor de ópera mais representativo do primeiro romantismo alemão. Um
sucesso ainda mais digno de nota se se atentar ao facto de que Weber tinha à
data apenas 14 anos. Após esta primeira experiência no mundo do teatro
musical, onde Weber a pouco mais se limitou do que a imitar Mozart, segue-se
Peter Schmoll und seine Nachbarn (Peter Schmoll e seus vizinhos), de 1803,
que se trata de uma comédia burguesa de inspiração francesa. Em meados da
década seguinte, Weber, reconhecido chefe de orquestra (também era
encenador e cenógrafo), em plena maturidade criativa, dedicou-se a divulgar
a um público recalcitrante as óperas de Mozart, Fidelio de Beethoven, as
melhores óperas francesas da época e ainda alguns compositores alemães de
importância histórica muito limitada mas que, tal como hoje, dominavam o
panorama das encomendas oficiais. Entre estes, Louis Spohr (1784-1859) e o
seu Faust (1813), mereceram as honras de uma apresentação pública sob a
batuta de Weber. Spohr era um violinista virtuoso com uma sólida formação
musical, ao contrário de Weber que sofria de algumas lacunas na educação
musical, vivendo uma vida agitada entre postos e cidades, de algum modo
encarnando o ideal do artista romântico errante, brilhante e incompleto.
Spohr era um intelectual sem grande génio criativo, mas que nutria uma
predileção por assuntos manifestamente românticos e grandiloquentes, postos
em música num estilo que oscilava entre um Mozart e um Cherubini em
segunda mão. Apesar de encerrar alguns encantos, o seu Faust peca por uma
harmonização demasiado consensual e amável, o que impede a obra de se
tornar verdadeiramente emocionante.
Uma outra ópera que Weber admirava era Ondine de E. T. A. Hofmann, criada
em Berlim em 1816, baseada num conto de La Motte Fouqué, e que narra a
história de uma sereia apaixonada por um homem de carne e osso. Entre as
páginas mais originais da partitura contam-se aquelas em que o compositor
procura descrever a natureza, tais como ambientes ao luar, o movimento das
águas e uma tempestade. Um século atrás, já os barrocos franceses tinham

30
descrito fenómenos naturais como, por exemplo, tempestades, mas os
alemães acrescentaram a este tipo de ilustração musical uma nuance
tipicamente germânica: traços de misticismo e um pendor supersticioso que
são elementos formativos das mentalidades nórdicas. Weber escreveu uma
longa crítica sobre Ondine, onde se lhe refere como a “ópera alemã ideal”,
uma soma perfeita de todos os elementos que a compõem. Ondine poderia
até ter tido mais sucesso, tivesse Hofmann dado ao público ocasião de
aplaudir mais vezes... Mas Hofmann, sempre em busca da veracidade
dramática, encadeia uma cena na outra sem interrupção, criando
involuntariamente um protótipo simples do drama wagneriano. O mundo
feérico de Ondine exige, do princípio ao fim, “uma abolição temporária da
incredulidade”, nas palavras de Weber, uma atitude que só nos finais do séc.
XIX obteria o respeito do público.
A primeira ópera de maturidade de Carl Maria von Weber surge após a
publicação do conto Der Freischütz (livremente traduzido por O Caçador
Furtivo), da autoria de Johann August Apel (1771-1816). Weber pediu a um
certo Kind que lhe escrevesse o libreto para uma ópera mas Kind imaginou
uma peça interminável, com demasiada música de cena não cantada. Weber
viu-se ele próprio obrigado a encurtar o libreto e os encenadores alemães
encurtaram-no ainda mais depois dele. O assunto retorna às lendas dos bailes
mágicos com a participação do Diabo, que são velhas de séculos nas terras
germânicas. A acção passa-se na Boémia (na actual República Checa) e, em
lugar de damas e cavalheiros, os personagens são habitantes de uma floresta.
Uma das principais atrações da ópera, estreada em Berlim em 1821, foi o
emprego de cantos populares, onde se faz sentir uma forte influência do
primitivo lied sem acompanhamento. Na altura, público e críticos louvaram o
aparecimento de uma ópera que, finalmente, tinha raízes verdadeiramente
populares, mas a verdade é outra. Weber, apesar de utilizar em frequentes
momentos uma música coral de harmonia extremamente simples (tónica e
dominante), cria um tipo de melodia que é estruturalmente erudito e que
dificilmente poderia ser cantado pelo homem da rua. Para todos os efeitos,
Weber soube criar um sucesso duradouro no universo da música de cena alemã
que veio preencher o espaço do reportório imorredouro deixado vago entre

31
Beethoven e Wagner. Nesta ópera, inclusive o jovem Wagner (n. 1813), via o
produto acabado do “mais alemão de todos os compositores alemães”, amado
no estrangeiro mas compreendido apenas na sua mística pátria. Der
Freischütz ilustra bem a moda do satanismo nos palcos alemães, sendo o
personagem principal um certo Caspar que inevitavelmente vende a sua alma
ao Diabo. Mas trata-se de um satanismo que deriva de uma conceção da
piedade cristã estranha à atmosfera moral das óperas italianas. Como reação
a este culto do satanismo, a religião, sobretudo a católica, vai entrar cada vez
mais frequentemente e cada vez mais fundo na ópera do romantismo, não
dispensando nenhuma ópera já em meados do século XIX a sua oração ou o seu
Padre Nosso, não escapando sequer Wagner a esta tendência.
O sucesso de O Caçador Furtivo trouxe a Weber novas encomendas. O
primeiro resultado destas foi Euryanthe, levada à cena em 1823, tendo a
estreia obtido num sucesso efémero. A história foi extraída a uma fábula
francesa da Idade Média e era demasiado vaga e descosida para servir de
libreto a uma verdadeira ópera, apesar de nela Weber ter depositado algumas
das suas melhores páginas. Euryanthe foi finalmente eclipsada pelo Lohengrin
de Wagner, ao qual serviu de modelo. Mas Euryanthe foi uma tentativa
consciente de Weber para criar a ópera alemã ideal, onde se aproxima de
Hofmann no sentido em que a música evolve sem interrupções e onde, entre
excelentes árias, os diálogos cantados (espécie de recitativos com
acompanhamento orquestral) possuem uma vivacidade e um realismo
psicológico perfeitamente inexcedíveis.
A seguir a Euryanthe, Weber compõe Oberon para o teatro de ópera mais
importante de Londres, que era (e continua sendo) o Covent Garden, onde em
1824 O Caçador Furtivo obtivera um sucesso fulgurante. Viria a ser a sua
última ópera, estreando em 1826. Surpreendentemente, o libreto de J. R.
Planchet não corresponde no seu todo ao da “ópera ideal alemã”, e se Weber
tivesse vivido mais anos, teria sem dúvida introduzido profundas alterações
tanto no libreto como na música. A história apoia-se num poema narrativo
homónimo, da autoria do nosso já conhecido Christoph Martin Wieland,
contendo enxertos de The Tempest de Shakespeare e influências de The Fairy
Queen de Purcell, tendo esta amálgama dado origem a uma partitura talvez

32
demasiado longa, a um canto demasiado narrativo intercalado de diálogos
para os quais Weber nunca chegou a escrever música, e a uma ação
profusamente dispersa em tempos e lugares. No entanto, o luxo dos cenários
e a requerida dose de feérie da história pareceram suficientemente
“modernos” ao libretista e ao director do teatro para levar o projecto em
frente. O teatro de ópera de Londres contava com uma multidão de atores
que não sabia cantar e Weber deu-se ao trabalho de aprender inglês (recebeu
cerca de 150 aulas!) para poder ensaiar. A estreia colheu um sucesso
retumbante, tendo o compositor, à batuta, sido obrigado a repetir inúmeras
passagens. Numa carta enviada a sua mulher, Weber exprimia a sua surpresa
pelo maior sucesso da sua vida de compositor. Não obstante, Oberon
permaneceu uma raridade desde então na programação dos teatros de ópera
ingleses (e continentais), tendo alguns compositores alemães ousado
instrumentar o que Weber deixou em branco (as secções narradas). Porém,
sobre a qualidade da música, nada a Weber poderá ser censurado,
ultrapassando-se o verdadeiro obstáculo que constitui a trama dramática. Os
coros de fadas serviram de exemplo a Mendelssohn para a sua música de cena
sobre o Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare e as cenas orientais
possuem um colorido extraordinário. Em comparação com Der Freischütz, não
há muito de “alemão” em Oberon. Pelo contrário, ao representar assuntos e
gentes dos países mediterrânicos e orientais, Oberon pertence ao mundo
inteiro e é uma obra de arte universal.
Sob o ponto de vista simbólico, Oberon estabelece uma ponte segura para
com o período vienense de finais de setecentos onde se inscrevem tanto A
Flauta Mágica de Mozart como as Zauberopern (óperas mágicas) dos seus
contemporâneos, fascinados pelo sobrenatural quer pela via alquímica quer
ainda pela literária. Tal como no caso d’A Flauta Mágica, o enredo de Oberon
é de natureza iniciática, empurrando o destino os seus protagonistas
principais ao longo de um périplo de dificuldades, no fim do qual o verdadeiro
amor e a perseverança subjugam o medo e o desânimo. Ao par
Sarastro/Rainha da Noite sucedem-se agora Oberon, rei dos Elfos, e sua
esposa Titânia, os quais encontramos desavindos no início da peripécia, após
uma discussão sobre as diferenças entre homens e mulheres no tocante à

33
fidelidade no amor. Decidem então separar-se até encontrarem um par de
mortais que permaneça fiel um ao outro nas maiores adversidades.
Convencido de que um tal par existe, Oberon expede o seu emissário Puck
(uma variante de Papageno) em busca desses dois eleitos. Puck regressa com
um cavaleiro franco, Huon de Bordeaux, que em duelo matara um filho de
Carlos Magno; como expiação de tão grande imprudência, o Imperador
ordenara então a Huon que este partisse para Bagdad, entrasse na sala de
banquetes do Califa, matasse o comensal sentado à esquerda deste, beijasse a
Reiza, filha do Califa, e a fizesse sua mulher. Tem assim início uma complexa
odisseia onde sonhos mágicos e aventuras insólitas ocorrem nos quatro cantos
do Mediterrâneo, nela não faltando piratas nem o próprio Carlos Magno, no
final da história, acolhendo o ditoso par Huon/Reiza, quais Tamino/Pamina,
para sempre unidos em casamento celestial. Será interessante observar que
elementos desta construção simbólica se reencontram no Parsifal de Richard
Wagner, também esta uma ópera sobre um assunto iniciático e onde de novo
um périplo de sofrimento conduz personagens “em bruto” à catarse, à
redenção e à iluminação.

34
IV - Richard Wagner e o drama musical

1.Respostas a Schlegel

Num opúsculo intitulado Gespräch über die Poesie (Conversa sobre a poesia),
datado de 1800, Friedrich Schlegel esboçou com clareza o problema central
da nova poesia alemã, afirmando que a ela faltava um centro, tal como a
mitologia fora o centro do conceito e práticas de vida para os Antigos. Na sua
opinião, os produtos poéticos da sua época não atingiam o mesmo nível do dos
autores do Classicismo Grego e Latino (sobretudo o primeiro) pela seguinte
razão: “Nós não temos uma mitologia. Mas devo acrescentar que estamos
perto de alcançar uma, ou antes, que deveríamos conjugar esforços para
produzir uma nova mitologia”6. Na esteira de Schlegel, outros criadores
alemães, ao longo de todo o séc. XIX, reiteraram a mesma necessidade. Entre
outros, o dramaturgo Schiller em Die Götter Griechenlandes (Os deuses da
Grécia), o poeta Hölderlin em Brot und Wein (Pão e vinho) e, mais tarde, o
poeta Rilke nas suas célebres Duineser Elegien (Elegias de Duíno). Todos se
lamentaram, com nostalgia, da falta de um novo Olimpo, com o qual o homem
da cultura de oitocentos pudesse medir-se, tal como os Gregos outrora o
tinham feito.
Na cultura alemã do romantismo tardio, nos testemunhos do filósofo
Nietzsche e do romancista Thomas Mann, repercute-se porém a ideia de que
Richard Wagner (1813-1883) havia já fornecido um território mitológico ao
universo cultural germânico através da Tetralogia O Anel do Nibelungo. Se tal
veio a acontecer, este facto possui uma lógica inegável: Schlegel tinha
sugerido aos poetas alemães que voltassem a sua atenção para a antiga saga
do Nibelungenlied – uma cosmogonia germânico-escandinava conhecida no
Ocidente através de traduções gregas de relatos orais7 − o que Wagner veio a
fazer de modo estruturado. Para se compreender o sentido de ordem que
Wagner deu a essa amálgama de mitos, há que regressar a Schlegel e a um

6
Daverio, John: Nineteenth Century Music and the German Romantic Ideology, Schirmer Books, New
York, 1993, p.183.
7
Lamas, Maria: Mitologia Geral II. Referência/Editorial Estampa, Lisboa 2000, p. 16-7.

35
outro escrito seu, o Fragmento 116, publicado em 1799 na revista Athenäum,
e que continuou perenemente a ecoar por todo o séc. XIX na Alemanha. Se a
importância deste fragmento para os compositores de lied e de música
instrumental foi enorme, permitindo que se melhor se compreendam os
universos de, por exemplo, Schumann, Chopin e Liszt, no campo da ópera não
teve menor impacto. Este texto, em particular, contém como que o programa
original da poética romântica alemã:

A poesia romântica é uma poesia universal-progressiva [sic.]. O seu destino não se


confina a reunir todos os géneros poéticos particulares e a pôr a poesia em contacto
com a filosofia e a retórica. Ela deseja misturar e fundir poesia e prosa de imediato,
originalidade e crítica, poesia artística e natural; [e deseja] tornar-se viva e
sociável. [...] Ela abraça tudo o que é unicamente poético, desde os grandes
sistemas artísticos − que por sua vez contêm outros sistemas − até ao suspiro ou
beijo que uma criança-poeta emite numa canção simples. Ela também poderá
perder-se naquilo que representa de tudo ser e tudo não ser, que é o melhor meio
de um autor exprimir o seu espírito completamente; e assim pode acontecer que um
autor, ao pretender escrever uma novela, incidentalmente se represente a si
próprio. Por si só, ela [a poesia], como um poema épico, pode tornar-se num espelho
do mundo em seu redor, uma imagem da sua época.8

Se esta primeira parte do fragmento incide sobre o carácter universalista das


novas poesia e estética, o elemento progressista vem explicado a seguir:

[A poesia] será capaz dos mais elevados e versáteis desenvolvimentos, não só do


interior para o exterior, mas também o seu contrário; porque a organização das suas
partes é semelhante a um todo produtivo, abrindo-se assim a perspetiva de um
classicismo em desenvolvimento ilimitado. [...] O tipo poético romântico encontra-
se ainda em processo de formação; na realidade, isto até é a sua essência: o de
nunca se tornar e o de nunca se completar. Não poderá exaurir-se numa teoria e só
um criticismo divinatório poderia tentar definir o seu ideal. Em si mesma é infinita
e só ela é livre. 9

8
V. Daverio, ob. cit., p. 155-6.
9
Ibidem, p. 156.

36
Esta segunda parte do texto é fulcral para a compreensão tanto da
necessidade que Wagner sentiu em reestruturar a conceção de drama musical,
como em fazê-lo a partir da conceção de um “todo funcional”, onde a
liberdade pessoal do criador converge para um novo classicismo, não fechado
em si mesmo mas em movimento. É a resposta a Schlegel em dois planos: o
preenchimento profético da uma nova mitologia e o provimento de uma obra
de arte global, funcionando como um organismo completo, universal-
progressivo, que em si funde sistema e liberdade. Liberdade, já que as partes
do seu todo respeitam a forma de fragmento universal e aberto.
Esta afirmação parece padecer de paradoxo mas atente-se ao seguinte
excerto de uma carta que Wagner endereçou em 1856 a Mathilde Wesendonk,
uma sua admiradora e provável amante:

A minha maior obra de arte é a gradual e delicada transição na grande cena do II


acto de Tristão e Isolda. O início da cena apresenta uma vida florida com as mais
violentas emoções − tendo no seu final o mais solene e sentido desejo de morte.
Estes são os pilares: e repara agora, menina, como eu juntei estes pilares, e como
um leva até ao outro. Isto é, finalmente, o segredo da minha forma musical, a qual,
na sua unidade e clareza, sobre um arco que engloba todos os detalhes, eu me
atrevo a dizer que nunca sequer alguém sonhou.10

A essência da construção formal na música de Wagner surge, pois, aqui


descrita como funções orgânicas graduais e imperceptíveis, as suas partes
estando em íntima conexão entre si, onde detalhes se relacionam diretamente
com a grande forma. Tecnicamente, na arte da transição, Wagner procede
através da variação motívica, recorrendo a um vasto alfabeto de motivos
referentes a pessoas e assuntos poéticos − a técnica do leitmotiv, ou “motivo
condutor” − assim criando subtis laços de união entre a miríade de parcelas
formais que constituem a formidável construção de cada uma das suas óperas.

10
Wagner, Richard: Selected Letters, J.M.Dent and Sons, London & Melbourne, 1987, p. 475.

37
2. A obra de arte total

O desejo de convergência de todas as artes sob a égide da música encontrou


em Wagner o seu maior defensor. Wagner ambicionava patentear um novo
tipo de ópera, fazendo fluir para o “drama musical” todos os meios de
expressão: poesia, pintura, dança, música e arquitectura. É evidente que,
para tal, era necessário que um texto dramático servisse de legenda ao todo,
isto é, teria que haver um programa que fornecesse uma base suficientemente
sólida a esse todo universal. Antes de Wagner, um outro compositor, Liszt,
traduzira já teoricamente este desejo (quase necessidade), de fazer aderir a
música a um programa extra-musical, sendo que o problema que mais
apaixonou Liszt foi o da rutura ou transformação das formas clássicas. A
forma-sonata, que representava o que havia de mais equilibrado na cultura
musical do Classicismo Vienense, tornou-se uma fonte de constrangimentos
para as gerações seguintes: um obstáculo no caminho do caminho ideal da
liberdade romântica. E Berlioz, através do exemplo de forma pós-clássica que
a sua Sinfonia Fantástica consubstancia (trata-se de uma obra programática),
alimentou a “revolta” de Liszt. A música programática responderia então a
uma dupla necessidade: a) conjugar as artes, abolindo entre estas fronteiras
artificiais, tendo em vista uma expressividade tão universal quanto possível;
b) utilizar modelos linguísticos expressivos e conceptuais (precisamente, o
“programa”), para destruir as velhas formas musicais criando novas, às quais
os músicos irão aderir progressivamente.
Liszt considerava que este desenvolvimento − música provida de um programa
poético − não representava um sintoma de decadência nem de impotência
criativa, antes uma conquista e uma revolução. A música pura (sempre
segundo Liszt), aquela que traduzia uma inspiração exclusivamente musical,
tinha em si graves “lacunas”. Em primeiro lugar, ela prestar-se-ia pouco a
comunicar para além de um círculo restrito de entendidos capazes de decifrar
os seus códigos intrínsecos; em segundo lugar, a “música pura” evoluía de
forma demasiado lenta, já que a reutilização de materiais exclusivamente do
foro musical reduz a capacidade de invenção de novas formas e de insuflar

38
nova vida nas formas conhecidas 11. À figura do músico intelectual,
remexendo nas velhas fórmulas e materiais, Liszt opõe a do “músico-poeta”,
alguém que quebra as correntes que entravam o livre voo da fantasia. Através
de um programa poético, o compositor pode então dar um conteúdo mais
preciso às suas ideias, descrever-lhes o caminho, manifestar o seu ponto de
vista pessoal de criador, etc. Assim sendo, a sinfonia programática e o poema
sinfónico apresentavam-se a Liszt como os géneros musicais de eleição para o
futuro, os únicos onde poderia operar-se a fusão perfeita entre as obras-
primas da literatura e a música, sendo esta última o veículo ideal de
comunicação da universalidade dos caráteres. Neste ponto estamos já longe
da mentalidade dos primeiros românticos, para quem a ausência de precisão
na expressão (isto por muitos desconhecerem o detalhe de alguns escritos de
Schlegel, que está longe de propor o caos como nova moldura de produção)
era considerada como o mais belo privilégio da música, o que a fazia ascender
a um absoluto indiscutível. Liszt não se contentava com a música na aceção
de som puro: ela devia pintar, descrever e explorar. Incluindo a poesia no seu
seio, o músico seria assim obrigado a transpor os limites dos seus próprios
códigos.

3. Raízes da conceção wagneriana do drama musical

A amizade que uniu temporariamente o compositor Richard Wagner ao filósofo


Friedrich Nietzsche (1844-1900), consubstanciada em obras teóricas sobre a
tragédia e o drama musical que um e outro publicaram (para além da
abundante correspondência entre ambos), é um dos momentos mais
fascinantes e ricos da história da estética europeia. O pensamento de cada
uma destas figuras ilumina o pensamento do outro. Wagner publica, a partir
de 1851, uma série de obras de crítica e reflexão que serve de
enquadramento à sua produção futura: A obra de arte do futuro e A arte e a
revolução (1849), Ópera e drama (1850-1851), A ópera alemã (1851), para
citar os títulos mais importantes. As ideias de Wagner sobre a obra de arte,
neste corpo de publicações, não difere muito das de contemporâneos seus,

11
Liszt, Franz, Gesammelte Schriften IV, Reimpresso Wiesbaden, p. 312.

39
nomeadamente de Liszt, tirando a construção argumentativa algo complexa.
Toda a sua teoria repousa sobre a conceção aristotélica da arte como reflexo
ou imitação da natureza, sendo que para Wagner a vocação da arte é a
expressão última da vida e a música o ponto de convergência de todas as
artes12. Esta aspiração de Wagner vai, porém, mais longe do que Liszt, na
medida em que ela não se limita ao conceito de música programática.
Enquanto que, ao ler-se Liszt, se conclui que ao compositor é legítimo e
necessário ir buscar a legenda da sua obra a uma linguagem artística extra-
musical, para Wagner, o músico, qual alter Deus, é quem concebe esse
projecto artístico total, desde o início, produzindo todos os elementos que
constituem “a obra de arte total”. E, mais do que isso, o novo drama musical
contém um programa político explícito, que é o de refundar a nação alemã,
contribuindo para a reunificação − mental e geográfica − num só estado. Para
Wagner, o Gesamtkunstwerk (a obra de arte total), é um drama que não se
identifica verdadeiramente com a ópera tradicional, que era na sua opinião
uma “paródia”, uma corrupção progressiva e uma mistificação. O drama
wagneriano não é um género musical nem literário, nem sequer uma nova
forma de arte: é a única forma de arte completa, verídica e concebível, a
linguagem artística que dará à expressão do seu criador uma unidade e um
poder de comunicação mais autênticos do que nunca. O erro da ópera
tradicional, segundo Wagner, consistia em que um meio de expressão (a
música), fora tomado como fim em si mesmo, ao passo que a meta da
expressão (o drama), tinha sido tratado como meio 13. Para além disto,
Wagner considerava que a música não se podia bastar a si própria; sendo,
como ela é, a “linguagem do coração” por natureza, não pode exprimir nada
em particular, faltando-lhe, pois, precisão. Toda a história da música
ocidental se tornava então para Wagner a história de uma materialização
progressiva da arte dos sons e das tentativas para a remediar, sendo que as
últimas obras de Beethoven anunciam a expressão mais dolorosa desta
situação. É apenas na 9ª Sinfonia que se entrevêem as reais possibilidades da
música, com o Hino à Alegria abrindo novos horizontes e novas possibilidades
que Wagner se irá encarregar de tornar reais. Beethoven procurava a sua
12
V. Wagner, Richard: A Obra de arte do futuro, Antígona, Lisboa, 2003, p. 73.
13
Ibidem, p. 124 e seguintes.

40
dimensão de poeta, e justamente para conseguir esta fusão, socorreu-se dos
versos de Schiller, “dos quais brotaram as mais sublimes melodias da obra”14.
A última sinfonia de Beethoven ficará no pensamento de Wagner, e mais tarde
no de Nietzsche, como uma referência inabalável, um símbolo de uma
grandiosa conceção histórica onde cada etapa do desenvolvimento exclui as
precedentes, aglutinando-as, onde tudo está encadeado e objetivamente
ligado às condições ético-sociais que lhe deram origem, pois que a arte é
simultaneamente uma expressão total do homem e da vida.

Para melhor se compreender a dimensão da conceção wagneriana do drama, é


necessário recuar à visão que Wagner apresenta da origem da linguagem, a
qual deriva de forma evidente dos filósofos Rousseau (1712-1778) e Herder
(1744-1803)15. Na base da ideia de Gesamtkunstwerk repousa a ideia de
unidade primordial da palavra e da música na linguagem primitiva. As vogais
acentuadas representariam o elemento emotivo, musical e melódico,
enquanto que as consoantes transmitiriam a dimensão “plástico-intelectual”,
concreta e fixadora dessa mesma linguagem. Trata-se, bem entendido, de
uma avaliação ou suposição de um período mítico da história da humanidade.
No entanto, é algo que a antropologia contemporânea em parte corrobora, ao
conceber uma unidade primitiva entre som e significado no decurso de cantos
que acompanhavam tarefas repetitivas de subsistência tais como a moagem
de cereais16. Wagner afirma que, na sua contemporaneidade, a linguagem se
havia cristalizado em fórmulas alienadas das suas raízes primitivas. Como tal,
um poeta que utilizasse este tipo de linguagem produziria algo de
exclusivamente intelectual, dirigido à inteligência; tratava-se então de um
produto explicativo, sem uma verdadeira força emotiva. No reverso da
medalha, segundo Wagner, encontra-se o músico, jogando com sons,
manipulando também ele fórmulas ocas que só poderiam ser plenamente

14
V. Ópera e Drama, Introdução, http://www.britannica.com/EBchecked/topic/429821/Opera-and-Drama

15
Este, de especial interesse para o caso de Wagner. Herder ocupa um lugar muito importante na história
da literatura alemã pelo movimento de ideias que provocou e pelo impulso que deu às novas gerações,
particularmente à do jovem Goethe. Insistiu também no carácter natural evolutivo da linguagem, que teria
surgido da imitação dos sons da natureza.

16
Leroi-Gourhan, André: O gesto e a palavra 2 – memórias e ritmos. Edições 70, Lisboa, 1983, p. 124-6.

41
fruídas por um círculo restrito de eruditos. No máximo, a música dita pura
poderia entender-se como a arte do inconsciente, do inexprimível ou seja,
uma arte de sensações imprecisas. O drama wagneriano vai portanto procurar
encontrar o caminho de retorno a uma linguagem de propriedades
“autênticas”. Nas palavras do próprio compositor, “no seu orgulho, a música
transformou-se no seu contrário; destinada ao coração, ela encaminhou-se
para a inteligência”17. Para sair desta situação de bloqueio expressivo, o
poeta deveria recorrer ao órgão primitivo dos sentimentos íntimos da alma − a
linguagem dos sons − já que o destino da música é devolver à palavra o lirismo
e o sentimento de que carece. Em seguida, Wagner apresenta uma metáfora
que se tornou célebre: “Todo o organismo musical é feminino por natureza;
ele tem a faculdade de conceber, não de procriar; a força produtiva está fora
dele e, se ele não for fecundado por esta força, ele não poderá gerar o que
nele está contido”. Ora, esta força masculina procriadora é, segundo Wagner,
a palavra, a única da qual a música poderá depender. Estas palavras, no
âmbito do drama, não deverão todavia equivaler ao canto tradicional do tipo
“melodia com acompanhamento”, antes terão que ir ao encontro de uma raiz
comum, onde palavra e música se justificam mutuamente, se entrelaçam em
profunda emoção 18. Neste abraço reside o fundamento do drama musical
wagneriano, apoteose de todas as artes, cuja vocação última é um utópico
serviço da humanidade e a glorificação do homem. Citando o próprio
compositor:

A obra de arte coletiva superior é o drama; na riqueza que lhe é possível, o drama só
pode existir quando nele cada modalidade artística existir na sua máxima riqueza. O
drama verdadeiro só é pensável enquanto impulso do produto coletivo de todas as
artes para mais imediata comunicação a um público coletivo. 19

Eis em substância o pensamento de Wagner, cujos desenvolvimentos e


ramificações são numerosos nos seus escritos, em estilo enfático e retórico,
profético e historicista, e por onde perpassa uma incomensurável auto-

17
In A obra de arte do futuro, p. 99.
18
Ibidem, p.73-4.
19
Ibidem, . 178.

42
confiança. Sob os pontos de vista estético e filosófico, o seu pensamento
constitui uma espécie de síntese da ideologia romântica, para onde confluem
todos os temas já presentes nos filósofos, letrados e músicos que escreveram
depois de Herder.

4. Wagner e Nietzsche

É todavia importante evocar a obra de Nietzsche A origem da tragédia, de


1871, precisamente dedicada a Wagner, tanto em nome da amizade como da
afinidade de ideias. Para Nietzsche, também a música se encontra no centro
das suas reflexões filosóficas, sendo ela a arte por excelência e a origem de
todas as outras artes. Tal como Wagner, Nietzsche partilha da aversão
relativamente às concepções hedonistas da arte, onde os códigos internos não
extravasam os limites dos círculos de iniciados. Nietzsche faz repousar a sua
ideia de música sobre uma visão própria do mundo grego, dominada por duas
divindades simbólicas capitais: Apolo e Dionísio. Na civilização grega existia,
segundo o filósofo, um contraste enorme (tanto na origem como no destino)
entre uma arte figurativa de Apolo e a arte não figurativa de Dionísio. As duas
tendências permaneciam em conflito, tentando encontrar um vocábulo
comum em cada obra de arte acabada. À tragédia clássica, Nietzsche define-a
com um milagre metafísico, um símbolo de uma unidade possível entre estas
duas tendências. Na tragédia, a música apresenta-se, para lá de uma
linguagem artística privilegiada, como uma “categoria do espírito humano”,
aquilo que exprime a essência irracional do mundo. O deus da música seria,
pois, Dionísio, o deus da embriaguez, que se quer convencer do prazer eterno
da existência mas que nos obriga a perceber que tudo o que vê a luz do dia
está já condenado ao declínio20. A música representa, pois, a origem, o
contacto e a identificação com a força geradora e instintiva mais íntima do
homem. Mas nem toda a música jorra da taça de Dionísio. Para o filósofo, a
verdadeira música dionisíaca apresenta-se-nos como um espelho universal da
vontade do mundo. Mas quando ela tenta despertar o nosso prazer através de
analogias exteriores entre acasos da vida, da natureza e de certas figuras

20
Nietzsche, Friedrich: A origem da tragédia. Guimarães Editores, Lisboa, p. 83.

43
rítmicas ou melódicas, ela perde o seu carácter mítico e torna-se uma imagem
infinitamente mais pobre do que o fenómeno imitado. Na tragédia grega teria
inclusive havido momentos de equilíbrio perfeito entre Apolo e Dionísio, mas
mesmo neste universo, nem todos os autores dramáticos souberam realizar a
fusão ideal entre ambas as tendências, sendo que, para Nietzsche, Sófocles
fora mais bem sucedido do que Eurípides, tendo este último privilegiado Apolo
em desfavor de Dionísio.

À luz destas coordenadas, Nietzsche interpreta as grandes etapas da


civilização musical desde a tragédia grega até à ópera do seu tempo. A
cultura do teatro musical de então surgia-lhe como o primado de uma música
inteiramente “exterior”, incapaz de transmitir um verdadeiro misticismo. Na
sua opinião, a ópera sua contemporânea tinha-se afastado incrivelmente da
tragédia antiga, encarnando a vitória do teórico sobre o poeta. Além disso, a
ópera tinha contaminado toda a música; com uma rapidez inquietante, ela
havia despojado a música da sua missão universal e dionisíaca, imprimindo-lhe
um carácter fantasmagórico de puro divertimento. Nietzsche observava,
porém, que o espírito dionisíaco dava sinais de despontar na Alemanha,
procurando uma ascese vigorosa e luminosa, manifestando-se já pontualmente
de Bach a Wagner 21. Mas é justamente nesta posição que germina já
silenciosamente o conflito que oporá irremediavelmente Nietzsche a Wagner.
Numa primeira fase, Nietzsche reconhece no drama musical de Wagner o
elemento mítico, dionisíaco e universal que o leva a crer na vanguarda e
privilégio da música alemã como renascimento da arte autêntica. Mas mais
tarde, o filósofo diverge do papel que o libreto assume na ópera wagneriana,
considerando-o “decadente”, sentindo que a música a ele se submete e
subordina cegamente, falseando esta hierarquia o projeto inicial de íntima
coesão22.

21
Ibidem, p. 37-8.
22
Alguns anos após a publicação de A origem da tragédia, Nietzsche escreve num artigo de
crítica intitulado “Richard Wagner em Bayreuth” (1874) estas linhas que surpreendem: “ A
música pura é a única música legítima e a música dramática deve tambem ela ser música
pura”.

44
Wagner levou até às últimas consequências a conceção de um drama unitário
onde palavra e som se fundem, numa perspetiva naturalista influenciada por
Herder, enquanto que Nietzsche vai a pouco e pouco tender para a primazia
da música pura como garante supremo da sua condição mítica dionisíaca. O
elemento musical, mais do que um ponto de convergência de todas as artes,
deveria ser, para Nietzsche, o fermento de todas as criações estéticas: “a
inspiração dionisíaca precede e domina a criação apolínea, mas um dia Apolo
falará a linguagem de Dionísio ”. Poderá considerar-se, por um lado, que o
romantismo termina em Nietzsche, na medida em que este rejeita sinais de
decadência como, por exemplo, a celebração do cristianismo tal como esta se
apresenta no Parsifal de Wagner (para Nietzsche, o cristianismo simbolizava a
perda de liberdade e o cancelamento do espírito primordial helénico); por
outro lado, no seu elogio da cultura mediterrânica, expresso na sua
apreciação da ópera de Bizet Carmen, a conceção nietzscheana da música
como geradora de todas as artes é romântica por excelência, representando a
súmula e o pico de todas as investigações filosóficas românticas sobre a arte
dos sons que surgiram na Alemanha de oitocentos.

5. O lugar de Parsifal na produção wagneriana

Nos primeiros anos da década de 40 do séc. XIX, Wagner concebe as primeiras


óperas que o tornarão conhecido, se bem que não amado. São estas Rienzi,
Der Fliegende Holländer (O Navio Fantasma) e Tannhäuser. Em 1843, Wagner
tem a visão panorâmica de Die Meistersinger von Nürnberg (Os Mestres
Cantores de Nuremberga) e no ano seguinte esboça Lohengrin. O esquema do
poema intitulado Mythe des Nibelungen (O Mito dos Nibelungos), que servirá
de base à Tetralogia − formada por Das Rheingold (O Ouro do Reno), Die
Walkyrie (As Valquírias), Siegfried e Götterdämerung (O Crepúsculo dos
Deuses) − fica pronto em 1848 (o mesmo poema contém já a matéria prima de
Parsifal); apenas Tristan und Isolde pertencem à década seguinte (1854-58).

45
Se bem que a Tetralogia se tenha completado apenas em 1874 e o Parsifal em
1882, a década de 40 assistiu a um milagre de visão literalmente inatingível
para a compreensão humana. Uma nova conceção de linguagem harmónica,
de forma musical, de relação entre palavras e música, de entendimento e
realização de drama musical e ainda do espaço cénico onde aquele deverá ter
lugar, ocorreu na mente de um só homem, provendo a civilização do Ocidente
de novos arquétipos musicais, intelectuais e emocionais. A partir desses
primeiros anos de 40, em cascata, poemas dramáticos e partituras de grandes
proporções materializam o sonho utópico wagneriano, centrado na perspetiva
da criação do mundo segundo a Lenda dos Nibelungos − uma cosmogonia
aquática, tal como a mesopotâmica, mas também a cristã 23. Ao lado deste
gigantesco fresco mitológico pagão, Tristan und Isolde e Parsifal pontuam
como glosas marginais, em díptico, do amor pagão e da piedade cristã. Se
Tristan contém, segundo o próprio Wagner, o que de melhor o compositor
produziu na “arte da transição”, Parsifal manifesta outro tipo de
preocupação, dando voz a um modo de compor que se situa entre duas
maneiras possíveis no tocante às relações da parte com o todo: a) uma junção
de fragmentos epigramáticos cuja justaposição deriva de uma noção de
dialética retórica; b) um tecido de nós apertados de ideias musicais, reunidos
pela técnica de transição, sim, mas numa perspetiva de variação
transformativa. Na realidade, nesta ópera, Wagner realiza a súmula destas
duas tendências, fundindo o fragmento romântico com a técnica da
“composição de desenvolvimento” (durchkomponieren), cuja separação
perspetivava uma dolorosa crise desde meados do séc. XIX, dividindo a prática
de composição em dois campos opostos, competindo os “brahmsianos” com os
“wagnerianos”. Pela introdução de elementos de repetição e pelo uso
consequente (e insistente) da recorrência temática em Parsifal, Wagner foi
considerado “decadente” por críticos seus contemporâneos, cedendo ao que
parecia ser um conformismo que prestava vassalagem aos cânones do
Classicismo Vienense. Mas na verdade, não deixando de prestar tributo aos
arautos do primeiro romantismo, a prodigiosa técnica de fusão subjacente ao

23
Para uma cronologia detalhada da composição da óperas que formam O Anel dos Nibelungos, v. “O
fim”, artigo de Paulo Ferreira de Castro no programa de O Crepúsculo dos Deuses, ed. Teatro Nacional
de São Carlos, Lisboa, 2009, p. 133.

46
seu Parsifal abre trilhos para o futuro, inclusive para os processos construtivos
e de multiplicação que serão característicos da música de Segunda Escola de
Viena. Wagner conseguiu provar aí que a ordem não é necessariamente
inimiga da espontaneidade fragmentária.

O assunto principal do Parsifal é o mito do Graal: o cálice sagrado onde o


sangue de Cristo agonizante teria sido recolhido. Durante a ocupação da
Palestina pelos Cruzados, os cavaleiros da Ordem do Templo (ou Templários),
teriam tido o Santo Graal à sua guarda, até à invasão de Jerusalém pelos
Sarracenos. A partir de então o cálice andara perdido pela Europa ou fora
escondido por alguma ordem secreta ou esotérica, tendo-se criado diversos
mitos ou versões do seu destino. Wagner baseou-se no célebre poema épico
em língua alemã Parzival, atribuído a Wolfram von Eschenbach (1170-1220),
escrito provavelmente no 1º quartel do séc. XIII. O poema é, em parte, uma
adaptação de uma outra epopeia, da autoria do francês Chrétien de Troyes
(1135-1183), Perceval ou le conte du Graal, o qual por sua vez se baseia nas
lendas inglesas arturianas do cálice sagrado... A lenda tem provavelmente
raízes hindustânicas (norte da Índia), tendo chegado ao conhecimento dos
autores europeus por via de poetas árabes residentes nos califados de Córdoba
e Granada, não tendo desde então cessado de ser traduzida e aumentada. O
libreto de Wagner retrata no personagem principal um ser ingénuo e de
coração puro que, por direito, se torna rei. Nada ingénua é esta variante
wagneriana da lenda, já que Wagner a germaniza definitivamente, nela se
subentendendo que um líder supremo de uma ordem, estado ou mesmo do
mundo proviria legitimamente de solo alemão. Não por acaso foi sempre esta
a ópera de Wagner mais contestada e debatida, sucedendo-se as
interpretações dos seus conteúdos temáticos de par com regimes políticos e
seus opositores.

47
6. Parsifal: resumo do libreto

Antecedentes:
A primeira regra da Ordem do Graal é a renúncia ao amor carnal como
condição para receber a força milagrosa do cálice. Um certo cavaleiro que
não se sentira capaz de cumprir esta regra, Klingsor, chegou ao ponto de se
fazer castrar. Mas a comunidade dos cavaleiros não o aceitou de volta no seu
seio. Como vingança, Klingsor criou um castelo fantasmagórico, não muito
longe do Castelo do Graal, cheio de belas e jovens mulheres, para que estas
seduzissem o maior número de cavaleiros possível e que estes quebrassem os
seus votos. Antes de a ópera ter início, Klingsor tinha roubado a lança sagrada
de Amfortas, ferindo-o com ela. O rei Amfortas fica então à mercê da chegada
de um néscio de coração puro, cuja compaixão o ilumine e lhe traga a lança
de volta.

I Ato, 1ª cena
Estamos na Idade Média. No território do Castelo do Graal, em Montsalvat,
amanhece. Kundry, uma antiga sedutora, tinha sido condenada a vaguear
eternamente npelo mundo, sem poder chorar por ter escarnecido do Salvador
quando Este ia a caminho da crucificação. A partir de então e para se redimir,
ela pratica o bem e serve humildemente a todos os cavaleiros do Graal,
trazendo unguentos raros para tentar sarar a ferida de Amfortas. Gurnemanz,
um destacado cavaleiro do Graal, explica por que razão a ferida não pode
sarar e conta aos demais uma profecia: um dia aparecerá um néscio de
coração puro que salvará o rei. Entretanto, um jovem desconhecido entra no
território do Graal após matar um cisne com uma flecha. Quando lhe pedem
explicações pela vergonhosa morte deste ser vivo, ele parte o seu arco.
Parece ser ao mesmo tempo um ignorante e alguém capaz de compaixão e
arrependimento. Cheio de esperança, Gurnemanz leva o jovem consigo para o
castelo.
2ª cena
Na sala grande do castelo do Graal. De cada vez que o Graal é destapado,
aumenta a dor de Amfortas. Mas os cavaleiros clamam pelo seu alimento

48
espiritual e o rei vê-se obrigado cumprir os rituais litúrgicos. O rapaz néscio
assiste a tudo sem nada dizer nem compreender. Um Gurnemanz
decepcionado expulsa-o do castelo.

II ato
No castelo mágico de Klingsor. Kundry serve os cavaleiros do Graal, mas
seguindo as ordens de Klingsor. Este ordena a Kundry que seduza o rapaz
néscio que se aproxima. As jovens magas começam então a atraí-lo mas
Kundry, com um beijo apenas, faz despertar nele o amor, chamando-o pelo
nome: Parsifal. Isto faz com que a consciência da sua origem desperte nele,
recordando a sua mãe. Parsifal sente então compaixão por todos os seres
vivos, compreende a causa dos sofrimentos de Amfortas e recusa mais avanços
de Kundry. Klingsor, louco de raiva, atira-lhe a sagrada lança roubada, mas
esta fica suspensa no ar, sem atingir Parsifal. O jovem faz então o sinal da
cruz com ela e o castelo virtual de Klingsor desaparece.

III Ato, 1ª cena


É primavera no território de Monstalvat. Amfortas há meses que não descobre
o Graal e os cavaleiros, sem o seu alimento espiritual, já não se atrevem a
sair do território como portadores da paz, levando uma existência miserável
no bosque. Entretanto, Parsifal, nas suas deambulações pelo mundo,
amadurecera e aprofundara a compaixão pelos homens. Regressa a Montsalvat
vestido de negro trazendo consigo a lança de Amfortas para o curar (o
encantamento de Sexta-Feira Santa). Gurnemanz condu-lo pela segunda vez
ao castelo, não sem antes o ungir em privado como Rei do Graal; nesta
condição, o primeiro acto de Parsifal é o de baptizar Kundry.

2ª cena
No castelo do Graal. O pai de Amfortas, Titurel, acaba de morrer. Os
cavaleiros exigem que o cálice seja descoberto, o que Amfortas recusa. É
nesse momento que Parsifal assume publicamente as funções de soberano.
Com a lança, cura a ferida de Amfortas. Redimida, Kundry cai morta.

49
7. Simbologia

A simbologia a que o assunto e as pessoas de Parsifal se prendem é


praticamente inesgotável, já que deriva, entre outras fontes, dos valores mais
sagrados da Cristandade e, como tal, dos mais documentados também.
Refiram-se porém alguns aspectos reveladores da filiação simbólica remota
que coloca a última ópera de Wagner em conjunção com A Flauta Mágica, de
Mozart:

1.
Quando os Gregos partiram para Tróia, quiseram seguir o exemplo dos
Argonautas e de Heracles (referenciados por Homero), oferecendo um
sacrifício sobre o altar de Chrysé − ninfa da ilha do mesmo nome − para se
assegurarem de uma boa travessia do Mar Egeu. Entre esta tripulação de
Gregos, um apenas, Filocteto, soube descobrir o local onde se encontrava o
santuário de Chrysé, nele indo ao encontro da infelicidade. Há três versões
deste episódio: a) uma tradição veiculada por Carl Jung conta que uma
serpente guardava o altar, tento atacado e mordido Filocteto no pé 24; b)
segundo o dramaturgo grego Sófocles (em Filocteto), o guerreiro feriu-se
numa das suas próprias flechas envenenadas; c) segundo um autor anónimo da
Patrística medieval, Chrysé tinha começado por oferecer o seu amor ao herói,
o que ele recusara, desencadeando assim a ira e a maldição da ninfa sob uma
das formas acima descritas. Em qualquer dos casos, Filocteto cai num longo
sofrimento físico, mantendo-se a sua ferida por sarar. Filocteto, tal como
Héracles, simboliza tanto na Antiguidade como na Idade Média o rei ferido e
doente. N’A Flauta Mágica, uma variante de Filocteto apresenta-se sob a
forma do Príncipe Tamino, prestes a ser mordido por uma serpente (ou
dragão) no início da história. Apesar de não ter sido realmente mordido,
Tamino está ferido de ignorância e só poderá ser redimido através da
“santidade” das provas de silêncio, fogo e água. Tanto num caso como no

24
Jung, C. G: L’âme et ses symboles. Georg, Genéve, 1993, p. 490.

50
outro, a serpente encarna a sabedoria hermética (ou secreta) que reside num
processo iniciático e transformativo a que um noviço se submete.

2.
Um outro ponto comum é o processo transformativo de Parsifal, que, através
do beijo de uma mulher − simbolizando o amor puro −, passa de um ser néscio
a um homem completo e a um ser iluminado. Esta passagem corresponde
também ela ao fenómeno das provas de purificação através da Água e do
Fogo, que levam na ópera de Mozart, à multiplicação do Mercúrio ou seja, a
meta da Magna Obra alquímica, o entendimento da criação e da vida.

51

Você também pode gostar