Você está na página 1de 14

AUTO DE SÃO LOURENÇO

PERSONAGENS

• GUAIXARÁ - rei dos diabos


• AIMBIRÊ
• SARAVAIA - criados de Guaixará
• TATAURANA
• URUBU
• JAGUARUÇU - companheiros dos diabos
• VALERIANO
• DÉCIO - Imperadores romanos
• SÃO SEBASTIÃO - padroeiro do Rio de Janeiro
• SÃO LOURENÇO - padroeiro da aldeia de São Lourenço
• VELHA
• ANJO
• TEMOR DE DEUS
• AMOR DE DEUS
• CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA
Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaixará chama Aimbirê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a
defende, São Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para
auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimbirê se aproxima. O calor que se desprende dele abrasa os
imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus, e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em
São Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

PRIMEIRO ATO como chefe guardião.


(Cena do martírio de São Lourenço) Minha lei é a inspiração
Cantam: que lhe dou, daqui vou longe
Por Jesus, meu salvador, visitar outro torrão.
Que morre por meus pecados, Quem é forte como eu?
Nestas brasas morro assado Como eu, conceituado?
Com fogo do meu amor Sou diabo bem assado.
Bom Jesus, quando te vejo A fama me precedeu;
Na cruz, por mim flagelado, Guaixará sou chamado.
Eu por ti vivo e queimado Meu sistema é o bem viver.
Mil vezes morrer desejo Que não seja constrangido
Pois teu sangue redentor o prazer, nem abolido.
Lavou minha culpa humana, Quero as tabas acender
Arda eu pois nesta chama com meu fogo preferido
Com fogo do teu amor. Boa medida é beber
O fogo do forte amor, cauim até vomitar.
Ah, meu Deus!, com que me amas Isto é jeito de gozar
Mais me consome que as chamas a vida, e se recomenda
E brasas, com seu calor. a quem queira aproveitar.
Pois teu amor, pelo meu A moçada beberrona
Tais prodígios consumou, trago bem conceituada.
Que eu, nas brasas onde estou, Valente é quem se embriaga
Morro de amor pelo teu. e todo o cauim entorna,
e à luta então se consagra.
SEGUNDO ATO Quem bom costume é bailar!
(Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, Adornar-se, andar pintado,
aos tingir pernas, empenado
quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da fumar e curandeirar,
Guarda, andar de negro pintado.
livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Andar matando de fúria,
Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados) amancebar-se, comer
GUAIXARÁ um ao outro, e ainda ser
Esta virtude estrangeira espião, prender Tapuia,
Me irrita sobremaneira. desonesto a honra perder.
Quem a teria trazido, Para isso
com seus hábitos polidos com os índios convivi.
estragando a terra inteira? Vêm os tais padres agora
Só eu com regras fora de hora
permaneço nesta aldeia prá que duvidem de mim.
1
Lei de Deus que não vigora. De que recurso usaste
Pois aqui para que não nos fugissem?
tem meu ajudante-mor, AIMBIRÊ
diabo bem requeimado, Trouxe aos tapuias os trastes
meu bom colaborador: das velhas que tu instruíste
grande Aimberê, perversor em Mangueá. Que isto baste.
dos homens, regimentado. Que elas são de fato más,
(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele. E fazem feitiço e mandinga,
ele a e esta lei de Deus não vinga.
ajuda, como fazem os índios. Depois de chorar, achando-se Conosco é que buscam a paz,
enganada, diz a velha) no ensino de nossa língua.
VELHA E os tapuias por folgarem,
O diabo mal cheiroso, nem quiseram vir aqui.
teu mau cheiro me enfastia. De dança os enlouqueci
Se vivesse o meu esposo, para a passagem comprarem
meu pobre Piracaê, para o inferno que acendi.
isso agora eu lhe diria. GUAIXARÁ
Não prestas, és mau diabo. Já chega.
Que bebas, não deixarei Que tua fala me alegra,
do cauim que eu mastiguei. teu relatório me encanta.
Beberei tudo sozinha, AIMBIRÊ
até cair beberei. Usarei de igual destreza
(a velha foge) para arrastar outras presas
GUAIXARÁ nesta guerra pouco santa.
(Chama Aimberê e diz:) O povo Tupinambá
Ei, por onde andavas tu? que em Paraguaçu morava,
Dormias noutro lugar? e que de Deus se afastava,
AIMBIRÊ deles hoje um só não há,
Fui as Tabas vigiar, todos a nós se entregaram.
nas serras de norte a sul Tomamos Moçupiroca,
nosso povo visitar. Jequei, Gualapitiba,
Ao me ver regozijaram, Niterói e Paraíba,
bebemos dias inteiros. Guajajó, Carijó-oca,
Adornaram-se festeiros. Pacucaia, Araçatiba
Me abraçaram , me hospedaram, Todos os tamoios foram
das leis de deus estrangeiros. Jazer queimando no inferno.
Enfim, confraternizamos. Mas há alguns que ao Padre Eterno
Ao ver seu comportamento, fiéis, nesta aldeia moram,
tranqüilizei-me. Ó portento! livres do nosso caderno.
Vícios de todos os ramos Estes maus Temiminós
tem seus corações por dentro. nosso trabalho destroem.
GUAIXARÁ GUAIXARÁ
Por isso Vem tentá-los que se moem
no teu grande reboliço a blasfemar contra nós.
eu confio, que me baste Que bebam, roubem e esfolem.
os novos que cativaste, Que provoquem muitas lutas,
os que corrompeste ao vício. muitos pecados cometam,
Diz os nomes que agregaste. por outro lados se metam
AIMBIRÊ longe desta aldeia, à escuta
Gente de maratuauã dos que as nossas leis prometam.
no que eu disse acreditaram; AIMBIRÊ
os das ilhas, nestas mãos É bem difícil tentá-los.
deram alma e coração; Seu valente guardião
mais os paraibiguaras. me amedronta.
É certo que algum perdi, GUAIXARÁ
que os missionários levaram E quais são?
a Mangueá. Me irritaram. AIMBIRÊ
Raivo de ver os tupis É São Lourenço a guiá-los,
que do meu laço escaparam. de Deus fiel Capitão.
Depois GUAIXARÁ
dos muitos que nos ficaram Qual? Lourenço o consumado
os padres sonsos quiseram nas chamas qual somos nós?
com mentiras seduzir. AIMBIRÊ
Não vê que os deixei seguir - Esse.
ao meu apelo atenderam. GUAIXARÁ
GUAIXARÁ Fica descansado.
2
Não sou assim tão covarde, Sou demônio da alegria
será logo afugentado. e assumi tal compromisso.
Aqui está quem o queimou Vou longe nesta porfia.
e ainda vivo o cozeu. Saravaiaçu me chamo.
AIMBIRÊ Com que tarefa me aprazas?
`Por isso o que era teu GUAIXARÁ
ele agora libertou Ouve as ordens de teu amo,
e na morte te venceu. quero que espies as casas
Há também o seu amigo e voltes quando te chame.
Bastião, de flechas crivado. Hoje vou deixar que leves
GUAIXARÁ os índios aprisionados.
O que eu deixei transpassado? SARAVAIA
Não faças broma comigo Irei onde me carregues.
que sou bem desaforado. E agradeço que me entregues
Ambos fugirão logo encargo tão desejado.
aqui me virem chegar. Como Saravaia sou,
AIMBIRÊ aos índios que me aliei
Olha que vais te enganar! enfim aprisionarei.
GUAIXARÁ E neste barco me vou.
Tem confiança, te rogo, De cauim me embriagarei.
que horror lhes vou inspirar. GUAIXARÁ
Quem como eu nas terras existe Anda logo! vai ligeiro!
que até Deus desafiou? SARAVAIA
AIMBIRÊ Como um raio correrei!
Por isso Deus te expulsou, (Sai)
e do inferno o fogo triste GUAIXARÁ
para sempre te abrasou. (Passeia com Aimbirê e diz:)
Eu lembro de outra batalha Demos um curto passeio
em que Guaixará entrou. Quando volte o mensageiro
Muito povo te apoiou, a aldeia destroçarei.
e, inda que lhes desses forças, (Volta Saravaia e Aimberê diz:)
na fuga se debandou. AIMBIRÊ
Não eram muitos cristãos. Danado! Voltou voando!
Contudo nada ficou GUAIXARÁ
da força que te inspirou, Demorou menos que um raio!
pois veio Sebastião, Foste mesmo, Saravaia?
na força fogo ateou. SARAVAIA
GUAIXARÁ Fui. Já estão comemorando
Por certo aqueles cristãos os índios nossa vitória.
tão rebeldes não seriam. Alegra-te!
Mas esses que aqui estão Transbordava o cauim,
desprezam a devoção o prazer regurgitava.
e a Deus não reverenciam. E a beber, as igaçabas
Vais ver como em nossos laços esgotam até o fim.
caem, logo estes malvados! GUAIXARÁ
De nossos dons confiados, E era forte?
as almas cederam passo SARAVAIA
para andar do nosso lado. Forte estava.
AIMBIRÊ E os rapazes beberrões
Assim mesmo tentarei. que pervertem esta aldeia,
Um dia obedecerão. caiam de cara cheia.
GUAIXARÁ Velhos, velhas, mocetões
Ao sinal de minha mão que o cauim desnorteia.
os índios te entregarei. GUAIXARÁ
E à força sucumbirão. Já basta. Vamos mansinho
AIMBIRÊ tomá-los todos de assalto.
Preparemos a emboscada. Nosso fogo arda bem alto.
Não te afobes. Nosso espia (Vem São Lourenço com dois companheiros. Diz Aimbirê:)
verá em cada morada AIMBIRÊ
que armas nos são preparadas Há um sujeito no caminho
na luta que se inicia. que me ameaça de assalto.
GUAIXARÁ Será Lourenço, o queimado?
Muito bem SARAVAIA
és capaz disso Ele mesmo, e Sebastião.
Saravaia meu vigia? AIMBIRÊ
SARAVAIA E o outro, dos três que são?
3
SARAVAIA Não se esforçam por orar
Talvez seja o anjo mandado, na luta do dia a dia.
desta aldeia o guardião. Isto é fraqueza, de certo.
AIMBIRÊ AIMBIRÊ
Ai! Eles me esmagarão! Sua boca respira perto
Não posso sequer olhá-los. do pouco que Deus confia.
GUAIXARÁ SARAVAIA
Não te entregues assim não, É verdade, intimamente
ao ataque, meu irmão! resmungam desafiando
Teremos que amedrontá-los, ao Deus que os está guiando.
As flechas evitaremos, Dizem: "Será realmente
fingiremos de atingidos. capaz de me ver passando?"
AIMBIRÊ SÃO SEBASTIÃO
Olha, eles vêm decididos (Para Saravaia:)
a açoitar-nos. Que faremos? Serás tu um pobre rato?
Penso que estamos perdidos. Ou és um gambá nojento?
(São Lourenço fala a Guaixará:) Ou és a noite de fato
SÃO LOURENÇO que as galinhas afugenta
Quem és tu? e assusta os índios no mato?
GUAIXARÁ SARAVAIA
Sou Guaixará embriagado, No anseio de devorar
sou boicininga, jaguar, as almas, sequer dormi.
antropófago, agressor, GUAIXARÁ
andirá-guaçu alado, Cala-te! Fale eu por ti.
sou demônio matador. SARAVAIA
SÃO LOURENÇO Não vás me denominar,
E este aqui? pra que não me mate aqui.
AIMBIRÊ Esconda-me, antes, dele.
Sou jibóia, sou socó, Eu por ti vigiarei.
o grande Aimbirê tamoio. GUAIXARÁ
Sucuri, gavião malhado, Cala-te! Te guardarei!
sou tamanduá desgrenhado, Que a língua não te revele,
sou luminosos demônio. depois te libertarei.
SÃO LOURENÇO SARAVAIA
Dizei-me o que quereis desta Se não me viu, safarei.
minha terra em que nos vemos. Inda posso me esconder.
GUAIXARÁ SÃO SEBASTIÃO
Amando os índios queremos Cuidado que lançarei
que obediência nos prestem o dardo em que o flecharei.
por tanto que lhes fazemos. GUAIXARÁ
Pois se as coisas são da gente, Deixa-o. Vem de adormecer.
ama-se sinceramente. SÃO SEBASTIÃO
SÃO SEBASTIÃO A noite ele não dormiu
Quem foi que insensatamente, para os índios perturbar
um dia ou presentemente? SARAVAIA
os índios vos entregou? Isso não se há de negar.
Se o próprio Deus tão potente (Açoita-o Guaixará e diz:)
deste povo em santo ofício GUAIXARÁ
corpo e alma modelou! Cala-te! Nem mais um pio,
GUAIXARÁ que ele quer te devorar.
Deus? Talvez remotamente SARAVAIA
pois é nada edificante Ai de mim!
a vida que resultou. Por que me bates assim,
São pecadores perfeitos, pois estou bem escondido?
repelem o amor de Deus, (Aimbirê com São Sebastião.)
e orgulham-se dos defeitos. AIMBIRÊ
AIMBIRÊ Vamos! Deixa-nos a sós,
Bebem cuim a seu jeito, e retirai-vos que a nós
como completos sandeus meu povo espera afligido.
ao cauim rendem seu preito. SÃO SEBASTIÃO
Esse cauim é que tolhe Que povo?
sua graça espiritual. AIMBIRÊ
Perdidos no bacanal Todos os que aqui habitam
seus espíritos se encolhem desde épocas mais antigas,
em nosso laço fatal. velhos, moças, raparigas,
SÃO LOURENÇO submissos aos que lhes ditam
4
nossas palavras amigas. Na comunhão se depura
Vou contar todos seus vícios, da mais funda perdição
Em mim acreditarás? a alma que o bem procura.
SÃO SEBASTIÃO Se depois de arrependidos
Tu não me convencerás. os índios vão confessar
AIMBIRÊ dizendo: "Quero trilhar
Têm bebida aos desperdícios, o caminho dos remidos".
cauim não lhes faltará. - o padre os vai abençoar.
De ébrios dão-se ao malefício, GUAIXARÁ
ferem-se, brigam, sei lá! Como se nenhum pecado
SÃO SEBASTIÃO tivessem, fazem a falsa
Ouvem do morubixaba confissão, e se disfarçam
censuras em cada taba, dos vícios abençoados,
disso não os livrarás. e assim viciados passam.
AIMBIRÊ AIMBIRÊ
Censura aos índios? Conversa! Absolvidos
Vem logo o dono da farra, dizem: "na hora da morte
convida todos à festa, meus vícios renegarei".
velhos, jovens, moçocaras E entregam-se à sua sorte.
com morubixaba à testa. GUAIXARÁ
Os jovens que censuravam Ouviste que enumerei
com morubixaba dançam, os males são seu forte.
e de comer não se cansam, SÃO LOURENÇO
e no cauim se lavam, Se com ódio procurais
e sobre as moças avançam. tanto assim prejudicá-los,
SÃO SEBASTIÃO não vou eu abandoná-los.
Por isso aos aracajás E a Deus erguerei meus ais
vivem vocês freqüentando, para no transe ampará-los.
e a todos aprisionando. Tanto confiaram em mim
AIMBIRÊ construindo esta capela,
Conosco vivem em paz, plantando o bem sobre ela.
pois se entregam aos desmandos. Não os deixarei assim
SÃO SEBASTIÃO sucumbir sem mais aquela.
Uns aos outros se pervertem GUAIXARÁ
convosco colaborando. É inútil, desista disso!
AIMBIRÊ Por mais força que lhes dês,
Não sei. Vamos trabalhando, com o vento, num dois três
e ao vícios bem se convertem daqui lhes darei sumiço.
à força do nosso mando. Deles nem sombra vereis.
GUAIXARÁ Aimbirê
Eu que te ajude a explicar. vamos conservar a terra
As velhas, como serpentes, com chifres, unhas, tridentes,
injuriam-se entre dentes, e alegrar as nossas gentes.
maldizendo sem cessar. AIMBIRÊ
As que mais calam consentem. Aqui vou com minhas garras,
Pecam as inconseqüentes meus longos dedos, meus dentes,
com intrigas bem tecidas, ANJO
preparam negras bebidas Não julgueis, tolos dementes,
pra serem belas e ardentes por no fogo esta legião,
no amor na cama e na vida. Aqui estou com Sebastião
AIMBIRÊ e São Lourenço, não tentem
E os rapazes cobiçosos, levá-los à danação.
perseguindo o mulherio Pobres de vós que irritastes
para escravas do gentio... de tal forma o bom Jesus
Assim invadem fogosos... Juro que em nome da cruz
dos brancos o casario. ao fogo vos condenastes.
GUAIXARÁ (Aos santos.)
Esta história não termina Prendei-os donos da luz!
antes que desponte a lua, (Os santos prendem os dois diabos.)
e a taba se contamina. GUAIXARÁ
AIMBIRÊ Basta!
E nem sequer raciocinam SÃO LOURENÇO
que é o inferno que cultuam. Não! Teu cinismo me agasta.
SÃO LOURENÇO Destes provas que sobejam
Mas existe a confissão, de querer destruir a igreja.
bem remédio para a cura. SÃO SEBASTIÃO
5
(A Aimberê:) meu irmão, estou doente.
Grita! Lamenta! Te arrasta! Das minhas almas presente
Te prendi! farei a ti, prá que em boa
AIMBIRÊ hora as cucas lhes rebentes,
Maldito Seja! Leva o nome destes monstros
(Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido.) e famoso ficarás.
ANJO ANJO
E tu que está escondido E onde lhes foste ao encontro?
será acaso um morcego? SARAVAIA
Sapo cururu minguá, Fui pelo sertão a dentro,
ou filhote de gambá, lacei as almas, rapaz.
ou bruxa pedindo arrego? ANJO
Sai daí seu fedorendo, De que famílias descendem?
abelha de asa de vento, SARAVAIA
zorrilho, maritaca, Desse assunto pouco sei.
seu lesma, tamarutaca. Filhos de índios talvez.
SARAVAIA Na corda os enfileirei
Ai vida, que me aprisionam! presos todos de uma vez.
Não vês que morro de sono? Passei noites sem dormir,
ANJO nos seus lares espreitei,
Quem és tu? fiz suas casas explodir,
SARAVAIA suas mulheres lacei,
Sou Saravaia pra que não possam fugir.
Inimigo dos franceses. (Amarra-o o anjo e diz:)
ANJO ANJO
Teus títulos são só estes? Quantas maldades fizeste!
SARAVAIA Por isso o fogo te espera.
Sou também mestre em tocaia, Viverás do que tramaste
porco entre todas as reses. nesta abrasada tapera
ANJO em que pro fim te pilhaste.
Por isso és sujo e enlameias SARAVAIA
tudo com teu negro rabo. Aimberê!
Veremos como pateias AIMBIRÊ
no fogo que a gente ateia. Oi!
SARAVAIA SARAVAIA
Não! Por todos os diabos! Vem logo dar-me a mão!
Eu te dou ovas de peixe, Este louco me prendeu.
farinha de mandioca, AIMBIRÊ
desde que agora me deixas, A mim também me venceu
te dou dinheiro aos feixes. o flechado Sebastião.
ANJO Meu orgulho arrefeceu.
Não te entendo, maçaroca. SARAVAIA
As coisas que me prometes Ai de mim!
em troca, de onde roubaste? Guaixará, dormes assim,
Que morada assaltaste sem pensar em me salvar?
antes que aqui te escondeste? GUAIXARÁ
Muito coisa tu furtaste? Estás louco, Saravaia
SARAVAIA Não vês que Lourenço ensaia
Não, somente o que falei. maneira de me queimar?
Da casa dos bons cristãos ANJO
foi bem pouco o que apanhei; Bem junto, pois sois comparsas,
Tenho o que trago nas mãos, ardereis eternamente.
por muito que trabalhei. Enquanto nós, Deo Gratias!,
Aqueles outros têm mais. sob a luz da minha guarda
Para comprar cauim viveremos santamente.
aos índios, em boa paz, (Faz uma prática aos ouvintes)
dei o que tinha, e demais, Alegrai-vos, filhos meus,
pois pobre acabei assim. na santa graça de Deus,
ANJO pois que dos céus eu desci,
Vamos! Restitui-lhes tudo para junto a vós estar
o que tiveres roubado. e sempre vos amparar
SARAVAIA dos males que há por aqui.
Não faças isto, estou bêbedo, Iluminado esta aldeia
mais do que o demo rabudo junto de vós estarei,
da sogra do meu cunhado. por nada me afastarei -
Tem paciência, me perdoa, pois a isto me nomeia
6
Deus, Nosso Senhor e Rei! junto aos que bem vão guardar
Ele que a cada um de vós no coração que é leal,
um anjo seu destinou. e aos pés de Deus repousar.
Que não vos deixe mais sós, (Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede.)
e ao mando de sua voz Cantemos todos, cantemos!
os demônios expulsou. Que foi derrotado o mal!
Também Esta história celebremos,
São Lourenço o virtuoso, nosso reino inauguremos
Servo de Nosso Senhor, nessa alegria campal!
vos livra com muito amor (Os santos levam presos os diabos os quais, na última repetição
terras e almas, extremoso, da cantiga choram.)
do demônio enganador. CANTIGA
Também São Sebastião Alegrem-se os nossos filhos
valente santo soldado, por Deus os ter libertado.
que aos tamoios rebelados Guaixará seja queimado,
deu outrora uma lição Aimbirê vá para o exílio,
hoje está do vosso lado Saravaia condenado!
E mais - Paranapucu, Guaixará seja queimado,
Jacutinga, Morói, Aimbirê vá para o exílio,
Sariguéia, Guiriri, Saravaia condenado!
Pindoba, Pariguaçu, (Voltam os santos)
Curuça, Miapei Alegrai-vos, vivei bem,
E a tapera do pecado, vitoriosos do vício,
a de Jabebiracica, aceitai o sacrifício
não existe. E lado a lado que ao amor de Deus convém.
a nação dos derrotados Daí fuga ao Demo-ninguém!
no fundo do rio fica. Guaixará seja queimado,
Os franceses seus amigos, Aimbirê vá para o exílio,
inutilmente trouxeram Saravaia condenado!
armas. Por nós combateram
Lourenço, jamais vencido, TERCEIRO ATO
e São Sebastião flecheiro. Depois de São Lourenço morto na grelha o Anjo fica em sua
Estes santos, em verdade, guarda,
das almas se compadecem e chama os dois diabos, Aimbirê e Saravaia, que venham sufocar
aparando-as, desvanecem os
(Ó armas da caridade!) imperadores Décio e Valeriano que estão sentados em seus tronos.
Do vício que as envilece. ANJO
Quando o demônio ameaçar Aimbirê!
vossas almas, vós vereis Estou chamando você.
com que força hão de zelar. Apressa-te ! Corre! Já!
Santos e índios sereis AIMBIRÊ
pessoas de um mesmo lar. Aqui estou! Pronto! O que há!
Tentai Será que vai me pender
velhos vícios extirpar, de novo este passarão?
e as maldades cá da terra ANJO
evitai, bebida e guerra, Reservei-te uma surpresa:
adultério, repudiai tenho dois imperadores
tudo o que o instinto encerra. para dar-te como presa.
Amai vosso Criador De Lourenço, em chama acesa,
cuja lei pura e isenta foram ele os matadores.
São Lourenço representa. AIMBIRÊ
Engrandecei ao Senhor Boa! Me fazes contente!
que de bens vos acrescenta. À força os castigarei,
Este mesmo São Lourenço e no fogo os queimarei
que aqui foi queimado vivo como diabo eficiente.
pelos maus, feito cativo, Meu ódio satisfarei.
e ao martírio foi infenso, ANJO
sendo o feliz redivivo. Eia, depressa a afogá-los.
Fazei-vos amar por ele, Que para o sol sejam cegos!
e amai-o quanto puderdes, Ide ao fogo cozinhá-los.
que em sua lei nada se perde. Castiga com teus vassalos
E confiando mais nele, estes dois sujos morcegos.
mais o céu se vos concede. AIMBIRÊ
Vinde Pronto! Pronto!
à direita celestial Sejam tais ordens cumpridas!
de Deus Pai, ireis gozar Reunirei meus demônios.
7
Saravaia, deixa os sonhos, traze a tua muçurana.
traz-me de boa bebida Urubu, jaguaruçu,
que temos planos medonhos! traz a ingapema. Sús
SARAVAIA Caborê, vê se te inflama
Já de nego me pintei, pra comer estes perus.
ó meu avô jaguaruna, (Acodem todos os quatro com suas armas)
e o cauim preparei, TATAURANA
verás como beberei Aqui estou com a muçurana
nesta festa da fortuna. e os braços lhe comerei;
Que vejo? Um temiminó? A Jaguaraçu darei
Ou filho de guaianá? o lombo, a Urubu o crânio,
Será esse um guaitacá e as pernas a Caborê
que à mesa do jacaré URUBU
sozinho vou devorar? Aqui cheguei!
(Vê o Anjo e espanta-se.) As tripas recolherei,
E este pássaro azulão, e com os bofes terei
quem será que assim me encara? a panela a derramar.
Algum parente de arara? E esta panela verei
AIMBIRÊ minha sogra cozinhar.
É o anjo que em nossa mão JAGUARUÇU
põe duas presas bem raras. Com esta ingapema dura
SARAVAIA as cabeças quebrarei,
Meus capangas, atenção! e os miolos comerei.
Tataurana, Tamanduá, Sou guará, onça, criatura,
vamos com calma por lá, e antropófago serei.
que esses monstros quererão CABORÊ
por certo me afogar. E eu que em demandas andei
AIMBIRÊ aos franceses derrotando,
Vamos! para um bom nome ir logrando,
agora contigo irei
SARAVAIA estes chefes devorando.
Ai, os mosquitos me mordem! SARAVAIA
Espera, ou me comerão! Agora quietos! De rastros,
Tenho medo, quem me acode. não nos viram. Vou à frente.
Sou pequenino e eles podem Que não escapem da gente.
tragar-me de supetão. Vigiarei. No tempo exato
AIMBIRÊ ataquemos de repente.
Os índios que não se fiam (Vão todos agachados em direção a Décio e Valeriano que
nesta conversa e se escondem conversam)
se os mandam executar. DÉCIO
SARAVAIA Amigo Valeriano
Têm razão se desconfiam, minha vontade venceu.
vivem sempre a se lograr. Não houve arte no céu
AIMBIRÊ que livrasse do meu plano
Cala a boca, beberrão, o servo do Galileu.
só por isso és tão valente, Nem Pompeu e nem Catão
moleirão impertinente! nem Cesar, nem o Africano,
SARAVAIA nenhum grego nem troiano
Ai de mim, me prenderão, puderam dar conclusão
mas vou por te ver contente. a um feito tão soberano.
E a quem vamos devorar? VALERIANO
AIMBIRÊ O remate, grão-Senhor
A algozes de São Lourenço. desta tão grande façanha
SARAVAIA foi mais que vencer Espanha.
Aqueles cheios de ranço? Jamais rei ou imperador
Com isto eu vou mudar logrou coisa tão estranha.
meu nome, de que me canso. Mas, Senhor, esse quem é
Muito bem! Suas entranhas que vejo ali, tão armado
sejam hoje o meu quinhão. com espadas e cordel,
AIMBIRÊ e com gente de tropel
Vou morder seu coração. vindo tão acompanhado?
SARAVAIA DÉCIO
E os que não nos acompanham É o grande deus nosso amigo,
sua parte comerão. Júpiter, sumo senhor,
(Chama quatro companheiros para que os ajudem.) que provou grande sabor
Tataurana, com o tremendo castigo
8
da morte deste traidor. Ô Castelhano!
E quer, para reforçar Bom Castelhano parece!
as penas deste rufião, Estou bem alegre mano,
nosso império acrescentar que Espanhol seja o profano
com sua potente mão, que no meu fogo padece.
pela terra e pelo mar. Vou fingir-me castelhano
VALERIANO e usar de diplomacia
Mais me parece é que vem com Décio e Valeriano,
a seus tormentos vingar, porque o espanhol ufano
e a nós ambos enforcar. sempre guarda a cortesia.
Oh! que cara feia tem! Oh, mais alta majestade!
Começo a me apavorar. Beijo-vos a mão mil vezes,
DÉCIO por vossa grã-crueldade
Enforcar? pois justiça nem verdade
Quem a mim pode matar, guardastes, sendo juizes.
ou mover meus fundamentos? Sou mandado
Nem a exaltação dos ventos, por São Lourenço queimado,
Nem a braveza do mar, levá-los à minha casa,
nem todos os elementos! onde seja confirmado
Não temas, que meu poder, vosso imperial estado
o que os deuses imortais em fogo, que sempre abrasa.
me quiseram conceder, Oh, que tronos e que camas
não se poderá vencer eu vos tenho preparadas,
pois não há forças iguais. nessas escuras moradas
De meu cetro imperial de vivas e eternas chamas
pendem reis, tremem tiranos. de nunca ser apagadas!
Venço a todos os humanos, VALERIANO
e posso ser quase igual Ai de mim!
a esses deuses soberanos. AIMBIRÊ
VALERIANO Vieste do Paraguai?
Oh, que terrível figura! Que falais, em Carijó.
Não posso mais aguardar, Sei todas línguas de cor.
que já me sinto queimar! Avança aqui, Saravaia!
Vamos, que é grande loucura Usa tu golpe maior!
tal encontro aqui esperar. VALERIANO
Ai! ai! que grandes calores! Basta! Que assim me assassinas,
Não tenho nenhum sossego. não tenho pecado nada!
Ai, que poderosas dores! Meu chefe é a presa acertada.
Ai, que férvidos ardores, SARAVAIA
que me abrasam como fogo! Não, és tu que me fascinas,
DÉCIO ó presa bem cobiçada.
Oh, paixão! DÉCIO
Ai de mim, que é o Plutão Ó miserável de mim,
chegando pelo Aqueronte, que nem basta ser tirano,
ardendo como tição nem falar em castelhano!
a levar-nos de roldão Que é do mando em que me vi,
ao fogo do Flegetonte. e o meu poder soberano?
Oh, coitado AIMBIRÊ
que me queimo! Esse queimado Jesus, Deus grande e potente,
me queima com grande dor! que tu, traidor, perseguiste,
Oh, infeliz imperador! te dará sorte mais triste
Todo me vejo cercado entregando-te em meu dente,
de penas e de pavor, a que, malvado, serviste.
pois armado Pois me honraste,
o diabo com seu dardo e sempre me contentaste
mais as fúrias infernais, ofendendo ao Deus eterno.
vêm castigar-nos demais. É justo pois que no inferno,
Já nem sei o que hei falado palácio que tanto amaste,
com angústias tão mortais. não sintas o mal do inverno.
VALERIANO Porque o ódio inveterado
O Décio, cruel tirano! do teu duro coração
Já pagas, e pagará não pode ser abrandado,
Contigo Valeriano, se não for já martelado
porque Lourenço cristão com a água do Flegeton.
assado, nos assará. DÉCIO
AIMBERÊ Olha que consolação
9
para quem se está queimando! com cães hão de ladrar.
Sumos deuses, para quando VALERIANO
adiais minha salvação, Que ferida!
que vivo estou me abrasando? Tira-me logo esta vida
Ai, ai! Que mortal desmaio! pois, minha alta condição,
Esculápio, não me acodes? contra justiça e razão
Oh, Júpiter, porque dormes? veio a ser tão abatida
Que é do vosso raio? que morro como ladrão!
Por que é que não me socorres? SARAVAIA
AIMBIRÊ Não é outro o galardão
Que dizeis? que concedo aos meus criados,
De que mal vós padeceis? senão morrer enforcados,
Que pulso mais alterado. e depois, sem remissão,
É grande dor de costado ao fogo ser condenados!
este mal, que morreis! DÉCIO
Haveis de ser bem sangrado! Essa é a pena redobrada
Há dias que esta sangria que me causa maior dor:
se guardava para vós que eu, universal senhor,
que sangráveis, noite e dia, morra morte desonrada
com dedicada porfia na forca como traidor.
aos santos servos de Deus. Ainda se fosse lutando,
Muito desejo eu beber dando golpes e reveses,
vosso sangue imperial. pernas e braços cortando,
Oh, não me leveis a mal como fiz com os franceses,
que com isso quero ser acabaria triunfando.
homem de sangue real. AIMBIRÊ
DÉCIO Parece que estais lembrando,
Que dizeis? Que disparate, poderoso imperador,
e elegante desvario! quando, com bravo furor,
Joguem-me dentro de um rio matastes, traição armando,
antes que o fogo me mate, Felipe, vosso senhor.
ó deuses em que confio! Por certo que me alegrais
Não quereis e se cumpre meus anseios
socorrer-me, ou não podeis? ante desabafos tais,
Ó malditos fementidos, porque o fogo em que queimais
ingratos desconhecidos, provoca tais devaneios.
que pouco vos condoeis DÉCIO
de quem fostes tão servidos! Bem entendo
Se agora voar pudesse, que este fogo em que me acendo
vos iria derrocar merece-me a tirania,
dos vossos tronos celestes, pois com tão feroz porfia
feliz, se a mim me coubesse aos cristãos martirizando
no fogo vos projetar. pelo fogo os consumia.
AIMBIRÊ Mas que em minha monarquia
Parece-me que é chegada acabe com tal pregão
a hora do frenesi, pois morrer como ladrão
e com chama redobrada, é muito triste agonia
a qual será descuidada e dobrada confusão.
dos deuses a quem servis. AIMBIRÊ
São armas Como? Pedis confissão?
dos audazes cavaleiros Sem asas quereis voar?
que usam palavrório humano. Ide, se quereis achar
E por isso, tão ufano, aos vossos atos perdão,
hoje vindes acolhê-los à deusa Pala rogar.
no romance castelhano. Ou a Nero,
SARAVAIA esse cruel carniceiro
Assim é. do fiel povo cristão.
Pensava dar, de revés, Aqui está Valeriano,
golpes de afiados aços vosso leal companheiro,
mas enfim, nossos balaços buscai-o por sua mão!
se chocaram através DÉCIO
com bem poucos canhonaços. Esses amargos chistes
Mas que boas bofetadas e agressões
lhes reservo para dar! me acrescentam em paixões
Os tristes, sem descansar, e mais dores,
à força de tais pauladas com tão profundos ardores
10
como de ardentes tições me chamar Cururupeba.
E com isto crescem mais Como eles,
os fogos em que padeço. mato os que estão em pecado,
Acaba, que me ofereço e os arrasto em minhas chamas.
em tuas mãos, Satanás, Velhos, moços, jovens, damas,
ao tormento que mereço. tenho sempre devorado.
AIMBIRÊ De bom algoz tenho fama.
Oh, quanto vos agradeço
por esta boa vontade! QUARTO ATO
Eu, com liberalidade Tendo o corpo de São Lourenço amortalhado e posto na tumba,
quero dar-lhe bom refresco entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus, a encerrar a obra, e
para vossa enfermidade. no fim acompanham o santo à sepultura.
Na cova ANJO
onde o fogo se renova Vendo nosso Deus benigno
com ardores perenais, vossa grande devoção
os vossos males fatais que tendes, e com razão,
aí terão grande prova a Lourenço, o mártir digno
das agruras imortais. de toda a veneração,
DÉCIO determinam, por seus rogos
Que fazer, Valeriano, e martírio singular,
bom amigo! a todos sempre ajudar,
Testemunharás comigo para que escapeis dos fogos
desta pena em que os maus se hão de queimar.
envolvido na cadeia Dois fogos trazia n'alma,
de fogo, deste castigo. com que as brasas resfriou,
VALERIANO a no fogo em que se assou,
Em má hora! Já são horas... com tão gloriosa palma,
Vamos logo dos tiranos triunfou.
deste fogo ao outro fogo eternal, Um fogo foi o temor
lá onde a chama imortal do bravo fogo infernal,
nunca nos dará sossego. e, como servo leal,
Sús, asinha! por honrar a seu Senhor,
Vamos à nossa cozinha, fugiu da culpa mortal.
Saravaia! Outro foi o Amor fervente
AIMBIRÊ de Jesus, que tanto amava,
Aqui deles não me afasto. que muito mais se abrasava
Nas brasas serão bom pasto, com esse fervor ardente
maldito quem nelas caia. que co'o fogo, em que se assava,
DÉCIO Estes o fizeram forte.
Aqui abrasado estou! Com estes purificado
Assa-me Lourenço assado! como ouro refinado,
De soberano que sou padeceu tão crua morte
vejo que Deus me marcou por Jesus, seu doce amado.
por ver seu santo vingado! Estes vos manda o Senhor
AIMBIRÊ a ganhar vossa frieza,
Com efeito para que vossa alma acesa
quiseste abrasar a jeito de seu fogo gastador,
o virtuosos São Lourenço. fique cheio de pureza.
Hoje te castigo e venço Deixai-vos deles queimar
e sobre as brasas te deito como o mártir São Lourenço,
para morrer, segundo penso. e sereis um vivo incenso
(Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins, e cada dois que sempre haveis de cheirar
levam o seu.) na corte de Deus imenso.
Vinde aqui TEMOR DE DEUS
e aos malditos conduzi (Dá seu recado.)
para em bom queimarem, Pecador,
seus corpos sujos tostarem, sorves com grande sabor
na festa em que os seduzi o pecado,
para cozidos bailarem e não ficas afogado
(Ficam ambos os demônios no terreiros com as coroas dos com teus males!
imperadores na cabeça.) E tuas chagas mortais
SARAVAIA não sentes, desventurado!
Sou o grande vencedor, O inferno
o que as más cabeças quebra, como seu fogo sempiterno,
sou um chefe de valor Já te espera,
e hoje me decido por se não segues a bandeira
11
da cruz, dentre os fogos infernais
sobre a qual morreu Jesus teus deleites sensuais.
para que tua morte morra. Teus tormentos dobrarão,
Deus te envia esta mensagem e tuas chagas mortais .
com amor, Que mortais são tuas feridas
a mim que sou seu Temor pecador. Porque não choras?
me convém Não vês que nestas demoras,
declarar o que contém estão todas corrompidas,
para que temas ao Senhor. a cada dia pioras?
(Glosa e declaração do recado.) Pioras e te confinas,
Espantado estou de ver, mas teu perigoso estado,
pecador, teu vão sossego. na pressa e grande cuidado
Com tais males a fazer, com que ao fogo te destinas,
como vives sem temer, não sentes, desventurado?
aquele espantoso fogo? Oh, descuido intolerável
Fogo que nunca descansa, de tua vida!
mas sempre provoca a dor, Tua alma está confundida
e com seu bravo furor no lodo,
dissipa toda a esperança e tu vais rindo de tudo,
ao maldito pecador. não sentes tua caída!
Pecador, como te entregas Oh, traidor!
tão sem freio ao vício extremo? Que negas teu Criador,
Dos vícios de que estás cheios Deus eterno,
engolindo tão às cegas que se fez menino terno
a culpa, com seu veneno. por salvar-te.
Veneno de maldição E tu queres condenar-te
tragas sem nenhum temor, e não temes ao inferno!
e sem sentir sua dor, Ah, insensível!
deleites da carnação Não calculas o terrível
sorves com grande sabor. espanto, que causará
Será o sabor do pecado o juiz, quando virá
muito mais doce que o mel, com carranca muito horrível,
mas o inferno cruel e à morte te entregará.
depois te dará um bocado E tua alma será
bem mais amargo que o fel sepultada em pleno inferno,
Fel beberás sem medida, onde morte não terá
pecador desatinado, mas viva se queimará
tua alma em chamas ardida. com seu fogo sempiterno!
Esta será a saída Oh, perdido!
do deleite do pecado. Ali serás consumido
Do pecado que tu amas sem nunca te consumir.
Lourenço tanto escapou Terás vida sem viver,
que mil penas suportou, com choro e grande gemido,
e queimado pelas chamas, terás morte sem morrer.
por não pecar, expirou. Pranto será teu sorrir,
Ele a morte não temeu. sede sem fim te abeberra,
Tu não temes o pecado fome que em comer se gera,
no qual et tem enforcado teu sono, nunca dormir,
Lucifer, que te afogou, tudo isto já te espera.
e não ficas afogado. Oh, morfio!
Afogado pela mão Pois tu veras de continuo
do Diabo pereceu ao horrendo Lucifer,
Décio com Valeriano, sem nunca chegar a ver
infiel, cruel tirano, aquele molde divino
no fogo que mereceu. de quem tiras todo o ser.
Tua fé merece a vida, Acaba já de temer
mas com pecados mortais a Deus, que sempre te espera,
quase a tiveste perdida, correndo por sua esteira,
e teu Deus, bem sem medida, pois não lhes vai pertencer
ofendeste, com teus males. se não lhe segues a bandeira.
Com teus males e pecados, Homem louco!
tua alma de Deus alheia, Se teu coração já toco,
da danação na cadeia mudar-se-ão alegrias
há de pagar com os danados em tristezas e agonias.
a culpa que a incendeia. Olha que te falta pouco
Pena sem fim te darão para fenecer teus dias.
12
Não peques mais contra Aquele todo, sumo e único bem.
que te ganhou vida e luz Este abismo de fartura,
com seu martírio cruel que nunca será esgotado;
bebendo vinagre e fel esta fonte viva e pura,
no extremo lenho a cruz. este rio de doçura,
Oh, malvado! ama com todo cuidado.
Ele foi crucificado, Antes que criasse nada
sendo Deus, por te salvar. já a alma majestade
Pois, que podes esperar, te havia a vida gerado.
se foste tu o culpado e tua alma, abrasada
e não cessas de pecar? com eterna caridade.
Tu o ofendes, ele te ama. Por fazer-te todo seu
Cegou-se por dar-te a luz. com amor te cativou
Tu és mau, pisas a cruz e, pois que tudo te deu,
sobre a qual morreu Jesus. dá tu todo o maior que é teu
Homem cego, a quem primeiro te amou.
porque não começas logo E deu-te alma imortal
a chorar por teu pecado? e digna de um Deus imenso,
E tomar por advogado para que fosses suspenso
a Lourenço que, no fogo, nele, esse bem eternal,
por Jesus morreu queimado? que é sem fim e sem começo.
Teme a Deus, juiz tremendo, Depois, que em morte caíste
que em má hora te socorra, com vida te levantou.
em Jesus tão só vivendo, Porque sair não conseguiste
pois deu sua vida morrendo da culpa em que te fundiste,
para que tua morte morra. seu próprio filho entregou.
AMOR DE DEUS Entregou-o por escravo,
(Dá seu recado) deixou que fosse vendido,
Ama a Deus, que te criou, para que tu, redimido
homem, de Deus muito amado! do poder do leão bravo
Ama com todo cuidado, fosses sempre agradecido.
a quem primeiro te amou. Para que não morras, morre
Seu próprio Filho entregou com amor bem singular.
à morte, por te salvar. Pois, quanto deves amar
Que mais te podia dar, a Deus que entregar-se quer
se tudo o que tem te dou? à morte, por te salvar.
Por mandado do Senhor, O Filho, que o Padre deu,
te disse o que tens ouvido. a seu Pai te dá por pai,
Abre todo teu sentido, e sua graça te infundiu,
porque eu, que sou seu Amor, e quando na cruz morreu,
seja em ti bem imprimido deu-te por mãe sua Mãe.
(Glosa e declaração do recado) Deu-te fé com esperança,
Todas as coisas criadas e a si mesmo por manjar,
conhecem seu Criador. para em si te transformar
Todas lhe guardam amor, pela bem aventurança.
pois nele são conservadas, Que mais te podia dar?
cada qual em seu vigor. Em paga de tudo isto,
Pois com tanta perfeição oh, ditoso pecador,
sua ciência te formou pede apenas teu amor.
homem capaz de razão, Despreza pois todo o resto
de todo o teu coração por ganhar a tal Senhor.
ama a Deus, que te criou! Dá tua vida pelos bens
Se amas a criatura que Sua morte te ganhou.
por se parecer formosa, És seu, nada tens de teu,
ama a visão graciosa Dá-lhe tudo quanto tens,
desta mesma formosura pois tudo o que tem te deu!
por sobre todas as coisas. DESPEDIDA
Dessa divina lindeza Levantai os olhos ao céu, meus irmãos.
deves ser enamorado. Vereis a Lourenço reinando com Deus,
Seja tua alma presa por vós implorando junto ao rei dos céus,
daquela suma beleza que louvais seu nome aqui neste chão!
homem, de Deus muito amado! Daqui por diante tende grande zelo,
Aborrece todo o mal, que Deus seja sempre temido e amado,
com despeito e com desdém, e, mártir tão santo, de todos honrado.
E pois, que é racional, Terei seus favores e doce desvelo.
abraça a Deus imortal, Pois que celebrai com tal devoção
13
seu claro martírio, tomai meu conselho: Suas almas estão doentes
sua vida e virtudes tende por espelho, deste mal que abominaste,
chamando-o sempre com grande afeição. Vem curá-los novamente!
Tereis, por seus rogos, o santo perdão, 7º) Fiel a Nosso Senhor
e sobre o inimigo perfeita vitória. a morte tu suportaste.
E depois da morte vós vereis na glória Que a força disto nos baste
a cara divina, com clara visão. para suportar a dor
(LAUS DEO) pelo mesmo Deus que amaste.
8º) Pelo terrível que és,
QUINTO ATO Já que os demônios te temem,
Dança de doze meninos, que se fez na procissão de São nas ocas onde se escondem
Lourenço. vem calcá-los sob os pés,
1º) Aqui estamos jubilosos pra que as almas não nos queimem.
tua festa celebrando. 9º) Hereges que este indefeso
Por teus rogos desejando corpo no teu assaram,
Deus nos faça venturosos e a carne toda queimaram
nosso coração guardando. em grelhas de ferro aceso.
2º) Nós confiamos em ti Choremos, do alto desejo
Lourenço santificado, de Deus Padre contemplar.
que nos guardes preservados Venha Ele neste ensejo
dos inimigos aqui nossas almas inflamar.
Dos vícios já desligados 10º) Os teus verdugos extremos
nos pajés não crendo mais, treme, algozes de Deus.
em suas danças rituais, Vem, leva-nos como teus,
nem seus mágicos cuidados. que ao teu lado ficaremos
3º) Como tu, que a confiança assustando estes ateus.
em Deus tão bem resguardaste, 11º) Estes que te deram morte
que o dom de Jesus nos baste, ardem no fogo infernal.
pai da suprema esperança. Tu, na glória celestial
4º) Pleno do divino amor gozarás, divina sorte.
foi teu coração outrora. E contigo aprenderemos
Zela pois por nós agora! a amar a Deus no mais fundo
Amemos nosso Criador, do nosso ser, e no mundo
pai nosso de cada hora! longa vida gozaremos.
5º) Obedeceste ao Senhor, 12º) Em tuas mãos depositamos
cumprindo sua palavra. nosso destino também.
Vem que nossa alma escrava Em teu amor confiamos
de teu amor, neste dia e uns aos outros nos amamos
te imita em sabedoria. para todo o sempre. Amém.
6º) Milagroso, tu curaste
teus filhos tão santamente. CAI O PANO

14

Você também pode gostar