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DESENVOLVEDOR

R i c a r d o S o a r e s - C o m u n i d a d e Va m p i r e ( V 5 )

ESCRITORES

Jay R. Obertus - Manual de Poesias Anarquistas


Heidi Kundera - Barqueiros do Caos
Luiz Eduardo “Duds” Vilar - Consegui, mas a que custo?
Tatiana Versieux - Brincando com fogo
Yuri Ramos Braga Ferreira - Bem-vindo à Família

A RT E C A P A
Lobo Loss - linktr.ee/loboloss

DIAGRAMAÇÃO

Ro “ Tico” Amadeu - Segredos de Narrador

World of Darkness, Vampire: The Masquerade, Vampire: The Dark Ages, Victorian Age: Vampire, Werewolf: The

Apocalypse, Werewolf: The Wild West, Mage: The Ascension, Mage: The Sorcerers Crusade, Wraith: The Oblivion, Wraith:

The Great War, Changeling: The Dreaming, Hunter: The Reckoning, Demon: The Fallen, Mummy: The Resurrection,

Orpheus, Exalted, Chronicles of Darkness, Vampire:The Requiem, Werewolf: The Forsaken, Mage: The Awakening,
Changeling: The Lost, Hunter: The Vigil, Geist: The Sin Eaters, Demon: The Descent, Mummy: The Curse, Beast:

The Primordial, Promethean: The Created, Storyteller System™, Storytelling System™, and Storytellers Vault™

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Salve Cainitas!

Primeiramente, exaltaremos os fãs brasileiros de Vampiro: A Máscara, todos aqueles que mantiveram
acesa a chama da paixão pelo World of Darkness nos últimos 30 anos. Convictos e incuráveis fanáticos
por suas histórias e elementos.
Nessas noites infinitas, na escuridão e em cada passo no Mundo das Trevas, nos identificamos com
Clãs, Tribos, Tradições, personagens e conceitos. Nos apegamos em cenas que parecem estar presentes
no âmago do nosso ser, na nossa ilimitada imaginação.
Enredos que nos inspiram, nos fazem sentir o amargo e viciante horror pessoal, levados ao Mundo
das Trevas, imergimos nessa dualidade de sentimentos.
“A Besta que sou para em Besta não me transformar.”
Com a chegada da quinta edição de Vampiro: A Máscara, os fãs viram renascer um jogo moderno
e estilizado, agradando a grande maioria dos jogadores e motivando talentos por todo o mundo. E em
meio a um momento difícil em nossa sociedade, apaixonados por V5, encontraram um espaço seguro e
acolhedor, especificamente no Facebook, o grupo: Vampire (V5).
Como eu sempre digo, comunidade saudável é uma comunidade unida, quando pessoas estão bem
intencionadas e têm o respeito como prioridade em suas relações, provendo momentos únicos em
espaços virtuais.
Amizades que se formaram em torno da boa administração do estimado administrador e moderador
do grupo Vampire (V5), Rooney Souza, que com sua integridade e atitude Brujah idealista, organizou
o Concurso Literário, um dos mais admiráveis projetos de comunidades que eu já tive a honra de
acompanhar.
Vinte e dois candidatos ofereceram um pouco de arte a todos nós. Dedicaram seus tempos e esforços
para nos agraciar com um dos tons das matizes de cinza, que pode ser o Mundo das Trevas dentro de
cada um. Todos os candidatos devem ser cumprimentados, afinal, foram experiências brilhantemente
compartilhadas conosco. E apreciadas na comunidade em geral.
Neste livro, serão apresentados os cinco contos vencedores. Trazendo emoção, horror pessoal e nuances
que só os apaixonados e fiéis fãs da quinta edição de Vampiro: A Máscara, são capazes de descrever. Nos
concedendo tamanha alegria em ler suas criações, e muito orgulho para nossa comunidade no Brasil.
Parabéns aos vencedores:
● Jay R. Obertus ● Heidi Kundera ● Luiz Eduardo Vilar
● Tatiana Versieux ● Yuri Ramos Braga Ferreira
Esse momento é de vocês, vamos dividir para sempre a lembrança deste concurso, no qual vocês
tiveram o merecido destaque. E que suas histórias nos inspirem através do tempo.
Com carinho e pitadas de loucura, Alessa Malkavian.
“O Mal é um ponto de vista.”
Entrevista com o Vampiro - Anne Rice
6 CONTOS V5
O Abraço

Q uando o azul não era azul


E a tristeza preenchia,
Encontrei-me em teu abraço
E assim me tornei Brujah.
O teu legado imponente,
Essa existência é uma guerra
E passei a dividir tua rebeldia. permanente.
Disse-me que é um clã de guerreiros,
Por tua pele de cetim delirava Bebi teu sangue novamente.
Você mordia e em êxtase eu entrava. De suas crias fui o único, o primeiro
Do teu sangue eu bebia Eu sentia fome, tu me alimentava,
Eram loucos aqueles dias. Quanto mais e mais eu bebia
Nada, nada eu entendia. Mais e mais eu a amava!
Eu só queria mais de você
Não me importava nada,
Nem ser apenas bijuteria.

Naquela noite realizou meu sonho


Ao seu mundo eu me entregava.
Na verdade não tive escolha
Tua presença me cegava.
Teus olhos fitei em meu último suspiro,
Foi doce ver minha vida indo
E você me acordar como um vampiro!

MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 7


A Rebelde Vá em busca da Algaravia,
Acalentar todo o vazio
E enfrente os predadores
Eu quero a morte do Principe
Que capturam os teus sonhos
Sou uma Brujah da anarquia,
De matar quem nos traiu.
Não tenho compaixão
Para ele desejo a morte em agonia.
Um, dois e três o Dj é carniçal.
A revolução é meu nome,
Mulheres homens e mendigos
O ódio sobrenome,
Estou com uma fome colossal.
O dia que te encontrar
Hoje é Algaravia disse o barão,
Saciará minha fome!
Sai por aí e procurei.
Eu quero sangue! Que tesão!
A sociedade é fascista e insolente
Nessa agradável noite, me saciei!
Transforma um garoto bonzinho
Numa besta inteligente.
Nunca nade em um aquário
A Camarilla é corrupta
Pois os peixes são mesquinhos.
E nos deixou com feridas abertas.
Queira o mundo e o mar
A cura perdeu o significado
E beber Ventrue de Canudinho!
Não estamos perdidos
Nem com sonhos quebrados.
Entre irmãos e o gado me deleitei,
As algaravias são memoráveis
Ou lutamos ou morremos,
Daquela noite guardei fotos
Nossa luta nunca terá fim.
Somos guerreiros e filósofos
Nunca desistiremos
Por que nos chamam de ralé
De tombar a torre de marfim!
A Camarilla e seus chimpanzés?

Lá estava você linda e radiante,


Algaravia Quando a vejo, Senhora, quase sinto
O meu peito palpitante.
Corre, corre vontade de lutar, Bebo teu sangue, como de costume,
Agora não tem mais solidão Vejo-te com outros na Algaravia
Que te impediam de alcançar Vou embora com raiva, ódio e ciúmes.
O que tanto ansiava,
Soltar o grito de revolução!
8 CONTOS V5
Perdendo Irmãos
Não é de agora me falaram. A Camarilla apodrece,
Os mortais começaram a matar irmãos Prepotência é sua gangrena
Dizem que compilaram conhecimento
E organizados em Segunda Inquisição! Mas também tivemos perdas.
Dizem, não temos organização.
Deles temos que nos esconder, O que diria Salvador Garcia,
Na anarquia manter a máscara Prudência, companheirismo e prevenção
Disse minha amada senhora . Para a Anarquia ele disse no manifesto,
São tempos como outrora, Para destruir a camarilla como protesto!
O caçador virou a caça
A cautela a nova lei, Em tudo isso minha senhora,
Ou em cada noite uma desgraça Comprei armas e desenvolvi a rapidez.
Quero lutar por ti e salva=la do perigo
Pegaram Mithras, o Ventrue.
Nem que seja minha última estupidez!
E os Tremere em Viena.

MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 9


Em tempos de paz ou guerra Tic Tac, Tic Tac
Apenas busco sua proteção.
Você me abraçou para isso, As horas que passavam
Para proteger sem nenhuma exceção. Não olhavam os ponteiros,
O nervosismo que chegava
Novamente bebi seu sangue, Enchiam-se os cinzeiros.
O laço forte que temos é visceral
Penso em ti em todo momento,
Tic-tac, tic-tac
Nosso amor unilateral.
Obcecado em você não senti nada,
Curve-se senhora besta
Quando trouxeram a terrível notícia
São dias de monotonia,
Mataram o irmão Brujah,
Olhar para os lados não adianta
Invadiram seu refúgio, era a polícia!
Morreremos de agonia.

A Segunda Inquisição nos assusta


O que me resta é cumprir o meu papel, Tic-tac, tic-tac
Na Anarquia sou protetor do teu cartel.
Por ti vou ao encontro feliz da morte Durante o dia nem dormi
injusta! Me enraivecia a insônia,
Lutando entremeio as cobertas
Por uma vida não errônea.

Tic Tac Tic-tac, tic-tac

O ócio carcomiam os dias


Uma unha ruída para todos os ruídos,
Em uma ocasião meu amor viajou
Apego das memórias
Tarde da noite me senti sozinho.
o martírio de sofridos.
Foi terrível tua ausência,
Foram pouco dias, sem caminho.

Tic-tac, tic-tac Tic Tac

10 CONTOS V5
O Barão

Minha senhora decidiu


Vamos lutar em outra guerra.
Mudamos de cidade e domínio
Estão para conquistar a nossa terra.

A Camarilla nos cercou,


mataram nosso líder.
Vamos nos fortalecer,
Voltar mais fortes e vencer.

“Falsidade, cinismo e ironia,


Qualidades de um mundo esnobe.
Bondade, fé, solidariedade,
Defeitos do povo burro e pobre.”

Essas eram as palavras do Barão,


Mas não eram as mesmas que falavam
Para os Brujah na Camarilla
Antes que desertássemos em revolução?

Eu passei a ponderar, mas não contei.


Não queria irrita-la, não sou harpia,
Qual a diferença entre nós e eles
Se a hipocrisia chegou a Anarquia?

Nem olhava o Barão, era poderoso.


Matava qualquer um com uma mão.
O que ele tinha, me perguntava,
Depois eu soube, era outro Ancião.

MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 11


Embora isso, foi proveitoso,
Aprendi segredos formei uma gangue.
Reforçamo-nos pra vingança
Como é a história de nosso sangue!

Ouvi sobre Cartago como um conto


Troile, Tyler e outros idealistas.
Absorvi tudo sem contrapontos,
Não seria louco entre sandinistas.
Mas uma narrativa foi como mel,
Hardestadt sendo morto por Theo Bell!

Assim nos preparamos minha Senhora,


Compreendia o mundo nessa hora.
Preparamos a cruzada após três anos
Arrancaríamos de nossa cidade os
tiranos!

Pedra de Toque

Nesse tempo em viajem


Por objetivo importante,
Para aprender o legado
Em pensamentos constantes.
Eu estava nervoso,
Voltei pra casa relutante.

A besta que veio com a maldição


Ela grita dentro de mim
Quer corromper meu coração.
Mantenho fortes convicções
O meu amor paternal.
12 CONTOS V5
Essa é minha guia moral
Os laços ainda são fortes

Hoje sei eu sou um monstro


Mas um dia tive filhos,
As vezes mando dinheiro
Pra que sigam outros trilhos.

Parece intimo a ligação,


Eles fortalecem o meu ser.
Impedem que a besta beba
Minha sanidade por lazer.

Fiquei longe alguns anos


E por dentro sofri,
Agoniantes os dias
Novamente aqui.

Vocês meus filhos estranham


A palidez do meu rosto,
Manchas de sangue na roupa,
Eu só trouxe desgosto.

Sou egoísta admito,


Olha todo o risco que passam
Pela vida que levo.
Mas se estou vivo até agora
E porque em meu coração os carrego.

Depois do reencontro enfim


Decidi observa-los de longe,
O melhor é o distanciamento,
Ama-los em meu peito
Vocês em risco é tormento.
MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 13
Fome Fome
Parte I Parte II

Sangue, sangue, Nesse momento


Eu quero sangue. Eu percebo
O que passa em mim O corpo sem vida

Eu não entendo, Em meu colo


A besta que fez isso
Fome, sangue.
Digo pra mim mesmo
Meus dentes rangem.
Enquanto largo
A besta grita:
Alguém ao solo.
“Fome, Fome
Quero alguém agora
Tento justificar
Não quero um nome!”
Mas a verdade
É que a besta
Fome, Fome e sangue. Sou eu ao matar.
A qualquer custo Dominado pela culpa,
Eu quero sangue! Sigo minha existência,
Tentando ter domínio
Mate alguém agora Para caçar com prudência.
Dê-me sangue.
A besta é forte
Não controlo nada
Eu quero sangue!

Vou para rua


Não importa nada,
Matei alguém,
Como é bom
O seu sangue.
14 CONTOS V5
Voltando para casa

Nossa cidade não era a mesma, Para onde foram os Anciões,


As noites eram mais escuras. Era uma incógnita pertinente.
Perdidos em nossa casa, Não importava quem fosse,
Houve outras rupturas.
O príncipe, um outro oponente.

Muitos que conhecíamos se foram,


Naquele momento percebemos
Outros estavam eu seu lugar.
Que o caos seria um aliado,
Buscamos em todos os lados,
A verdade de contra quem lutar. Nossa vingança deixaria
Um Ventrue diferente chocado.
Para conquistar o nosso
Baronato de volta, Foram meses planejando
Fomos buscar informações Acostumar-nos com o ambiente,
E acalmamos por hora a revolta. Conquistamos as influencias
Fomos até o Anarquista vizinho,
De vampiros agora ausentes.
Era um Gangrel renomado.
Descobrimos que os Anciões
Soubemos de suas crias,
Foram lutar no oriente!
Ele atendeu a um Chamado.
MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 15
Novos aliados
Éramos muitos os que queriam Uma Coterie misteriosa,
O fim do governo elitista. Contou o ocorreu com sua família.
Caçadas de sangue para todos nós, Incrédulos ficamos,
Sangue Fracos, Caitiffs e separatistas. A pirâmide Tremere ruía.
Eles se denominavam Ipsissimus,
O Xerife era um cão daquele Príncipe Bom saber que a torre queimava e ardia.
Uma torre podre de marfim. Muitos segredos de seu Clã
Caçava os neófitos por sangue, Eles ensinaram a Anarquia,
Era sua natureza Banu Haqin. Minha Senhora os aceitou,
Ela pratica com eles Taumaturgia!
Conseguimos apoio de quem queria
Ser o Barão da Zona Norte. Eu os vi juntos muitas noites
Prometeu com sangue e sua palavra E fui atacado por ciúmes,
Ajudar na conquista até a morte. Bebi do pulso e seu corpo
Não parou até aí seu comprometimento Acalmei como de costume.
Jurou a nós todo o suporte.
Que para destruir quem estava no trono
O faria por esporte.

Os Anarquistas acreditavam no sonho


De liberdade entre Vampiros.
Até mesmo o Ministério Setita
Costurou acordos em papiros.
Mas nada foi tão surpreendente
Um novo aliado que até hoje eu admiro.
Não vamos nos enganar

16 CONTOS V5
Discurso de uma
Rebelde

Irmãos e Irmãs,

Todos os que foram injustiçados.

Vitimas sem nem saber porquê,

Que viram seus lares destroçados.

Os que ganharam alvos em suas costas,

E por algozes e Xerifes Caçados.


Chegou o dia do levante,

Mataremos porcos abastados.

Ergueremos a bandeira de Garcia,

Fazer queimar o Principado!

Não seremos mais fantoches na Jyhad

A Camarilla nunca foi a solução.


De pé quem foi escravo do sistema

E não aceita essa servidão.

Venham comigo para a luta

Buscar vingança e destruição,

Daqueles que nos manipulam

E dos jovens querem adulação.

Essa noite haverá a Revolta

Contra os que buscam nossa execução.

Levantem as mãos aqueles que querem

Soltar o grito de revolução!

MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 17


Orgulho de uma criança Não sei mais o que estou sentindo.
Não sei mais o que estou pensando.
Apenas tenho a certeza que te amo.
Nessa fase conturbada
As cores de seu discurso urgia.
Fitava você naquele instante,
Cruzada
Que lampejo de magia!
Correndo noite adentro,
Meu sentimento por ti, exaltação. Cada Coterie fazendo sua parte.
Tua pele perolada, perfeição. Revolução, sentença e justiça.
A inteligência que admiro, imensidão. Honrar o manifesto e seu Estandarte!
Os lábios suculentos, emoção.
As curvas que seduzem, que tesão. Alguns irmãos foram à Capela,
Tua voz que estonteia, dominação. Outros matar primogênitos por diversão
O seu coração que abraseia, rendição. Muitos cometeram Diablerie,
Sem se preocupar com a danação!
Na minha Senhora tudo é lindo
Tudo vale a pena, tudo é saboroso Nessa noite não havia lei,
As maçãs do rosto eu degusto Os novos se erguendo em rebelião.
real, irreal, me sinto esplendoroso Faça o que tu queres,
Em sua presença me sinto bem Pois não haverá nenhuma punição!
Com teu sangue em mim sou poderoso.
Organizados fomos destruir o Príncipe,
Oh, Minha Senhora Brujah. O Elísio era sua morada.
Oh, vida minha. Fomos para matar ou morrer,
Oh, minha Rebelde. Encontramos o Xerife na entrada!
Oh, dona do meu ser e existência.
Como eu amo o meu amor. Cercamos o lugar, nosso plano infalível
Como mia meu amor. Era, disciplinas, fogo e explosão!
Amor mia de amor meu. Não havia como escapar,
Amor meu mia amado. A Rebelde se proclamava o Barão!
Meu amor mia amor.
Meu amor, amado mia. Com minhas mãos matei
Amado amor, mia. Muitos guardas e a Harpia,
18 CONTOS V5
Ela implorava misericórdia Percebo que em todos estes anos,
Fogo no seu corpo que ardia! Não havia amor, teu escravo eu era.
Me prendia por um laço, vagabunda,
O Xerife tentou escapar Hipocrisia que impera!
Não tinha onde se esconder,
A Rebelde arrancou sua cabeça Dediquei o meu amor,
Em seu rosto vi prazer! Não valeu a pena,
O arrependimento em meu coração
Procuramos o bastardo Ventrue Que se apodrece em gangrena.
Era Príncipe por herança ,
Sua casa estava em chamas Numa relação assim,
Vencemos o medo por vingança! Um aproveita a servidão,
O outro, o sofrido
Minha Senhora e eu o encontramos É um prisioneiro da ilusão.
O combate em meio ao fogo foi mortal,
Vi a Rebelde sendo destruída, Teus erros me machucam,
Matei o Príncipe em meio ao Caos! Lembranças arrasadas.
Tristeza de alma, tempo perdido
Noite que sofri, procurando tu em mim As promessas não realizadas.
Com tua falta pensei no suicídio,
Tive escolha, na beira do precipício. O que diz o Manifesto Anarquista,
Seus ideais faço valer.
Não permitirei nenhum outro sangue
Laços Quebrados Em minhas veias correr.

Faz um ano e a cidade é Anarquista, Ensinou liberdade e igualdade,


Agora sou dono de um Baronato. Salvador Garcia em sua expressão.
Era para ser minha Senhora, Não permitirei em meu domínio,
Mas eu cometi o principal assassinato. Um Vampiro escravizando outro irmão.

A vi virando cinzas, seu corpo sendo


destruído, adiante ali carbonizando,
Nosso laço de sangue acabava
E meu amor deteriorando.
MANUAL DE POESIAS ANARQUISTAS 19
B a rquei ros do
Caos
Eu nem vi de onde saiu o primeiro alvoroçar”.
tiro, mas o segundo veio à queima roupa. Dentro do veículo, o paramédico não
O cano do fuzil tão perto que eu podia precisou me examinar nem por cinco
sentir o cheiro de suor que emanava segundos:
daquela farda. E a última coisa que vi
antes do barulho ensurdecedor foi o – Já era. Não tem chance dele sobreviver.
ódio brilhando nos olhos do policial que – Vamos levar pros Barqueiros, então.
mirava em mim. – Tá maluco, cara? Já é a segunda vez
“Então é isso. ” – Pensei – “Entrei pra só nesse mês. Vão começar a desconfiar da
estatística. Preto, favelado, dezessete anos. gente.
Na certa vão dizer que confundiram a – Desconfiar é o caralho! Os caras pagam
garrafa de Coca-cola que eu tava levando bem. E o que não falta é corpo de indigente
pra casa com uma arma, ou alguma outra pra substituir esse aqui.
desculpa esfarrapada. ”
– Tô precisando da grana também. Bora
Mas, como nem pra morrer rápido lá entregar ele então.
pobre tem sorte nessa cidade, o tiroteio
E finalmente eu fiquei inconsciente.
continuou sem mim. Meu executor foi
caçar mais sangue pra saciar a sede do Acordei não sei quanto tempo depois,
seu fuzil e me esqueceram ali, na calçada, me sentindo tão surpreso quanto confuso.
agonizando, sentindo frio em pleno A dor e o medo estavam de volta, mas
fevereiro do Rio de Janeiro, enquanto o agora tinha uma sensação muito, muito
sangue abandonava meu corpo. pior! Uma sensação que eu nunca havia
experimentado antes e que me fazia
Alguém mandou chamar “O rabecão,
querer gritar de desespero, angústia e
ou a ambulância. Que se foda! O que
ódio. Uma sensação da mais pura...
chegar primeiro! ”
Chegou uma ambulância. Longos
quarenta e cinco minutos depois. Me Fome.
tiraram às pressas da via pública, porque
os moradores já estavam “começando a se

BARQUEIROS DO CAOS 21
– Boa noite, Minha Criança. – Eu... o que? Quem é você? O que que eu
Seja bem-vindo. Não se preocupe. tô fazendo aqui? Onde é que eu tô???

Tudo ficará bem agora. – Sim, com certeza! Exatamente. – Ela


responde, parecendo um pouco entediada.
Os Barqueiros já cuidaram de você.
– Mas tá ótimo! É isso mesmo! Agora você
tem que se concentrar na parte importante.

E u me levanto num sobressalto e Presta atenção!


percebo que tem alguém do meu Embasbacado, eu simplesmente me
lado. Na verdade, começo a perceber que calo e “presto atenção”. Será que ela
eu “existo” para além do desconforto entendeu minhas perguntas? Será que ela
do meu corpo: Estou numa espécie de simplesmente as ignorou? Ou será que a
quarto hospitalar, pouco iluminado gente teve uma longa discussão entre as
e sem nenhum outro móvel além da minhas perguntas e essa resposta dela, e
minha maca. Ao meu lado, uma mulher eu simplesmente não me lembro?
desconhecida. É tudo tão confuso! E eu estou com
Ela veste um jaleco azul escuro, que tanta fome! Mas vamos lá! Foco!
parece “bom demais pra esse lugar”. Seus – Daqui a uns dois minutos vai entrar
olhos me examinam de cima abaixo, com um cara aqui. Ele é o pior enfermeiro
uma intimidade desconcertante. Eu tento desse lugar de merda, mas vai fazer você
reencontrar minhas palavras, em meio ao se sentir bem melhor. Não se preocupe.
completo caos sensorial:

22 CONTOS V5
Ele é um babaca completo! Eu vou distrair mais duvidoso ainda.
ele, você morde, e para de morder quando Eu não sei o que fazer! A mulher
eu fizer esse sinal aqui ó (ela faz um sinal misteriosa quer que eu morda esse cara,
de “ok” com a mão). Depois disso, nossa o que é uma ideia totalmente doida! Mas
conversa vai ser bem mais produtiva. deixar ele espetar essa agulha nojenta em
Eu fico alguns segundos calado. Dessa mim é igualmente impensável!
vez eu tenho certeza de que ouvi tudo que Em meu estado de pânico, eu nem
ela disse. Mas não faz nenhum sentido! percebi que Ela já tinha fechado a porta
Ela está sugerindo que eu... por dentro e agora se aproximava do
– O que? Morder? Do que você tá falando? enfermeiro. Ela fica de frente pra ele, e
Eu não vou... simplesmente diz:
–Calado! – Pode ficar paradinho
Eu quero continuar meu argumento, agora.
eu até tento, mas de alguma forma eu O cara congela. Tipo estátua mesmo.
simplesmente me vejo sem palavras. Ela olha pra mim, impaciente. Ela quer
– Não dá tempo de discutir sobre isso que eu morda esse cara mesmo? Eu sinalizo
agora. Ele está chegando. Deita de novo. com a cabeça “De jeito nenhum!” Então
ela revira os olhos e abre um sorriso:
Eu deito novamente na maca, me
sentindo um daqueles bonecos de – Sabe... esse babaca aqui é movido
marionete daqueles vídeos malfeitos, que pela preguiça. Ele chama a preguiça dele
o titeriteiro nem se dá ao trabalho de de “esperteza”, mas a gente sabe que se
esconder as mãos. ele fosse esperto mesmo ele não tava
trabalhando nessa lata de lixo aqui, por
Ela se esconde atrás da maca. Um um salário ridículo, mantendo os pacientes
enfermeiro se aproxima da porta. Talvez desacordados com droga falsificada. Ele é
eu esteja um pouco sugestionado pelas preguiçoso, e foi por isso que eu sugeri que
últimas palavras da minha visitante ele ficasse aqui, paradinho. Estou apenas
misteriosa, mas esse cara tem jeito de ajudando ele a alcançar seu objetivo, que é
babaca mesmo! A forma de andar, o chute fazer o mínimo possível. Já eu e você (ela
que ele dá na minha porta (ao invés de se aproxima de mim e sussurra no meu
abrir com a mão) o desdém que ele me ouvido): nosso pecado capital é a gula. E
olha (oops! Acabo de perceber que estou qual melhor objetivo pra um guloso do que
com os olhos abertos!). uma...
–Ahhh, não! De jeito nenhum! Meu
plantão tá cheio hoje e você não vai
acordar agora não! – Ele diz, bastante
contrariado em me ver “acordado”. Boa Mordida?
E já tira do jaleco uma seringa de
aparência duvidosa, contendo um líquido

BARQUEIROS DO CAOS 23
­ s palavras “boa mordida” se enterram
A
imediatamente no meu cérebro, como se
elas fossem a única coisa importante em
todo o universo. Eu tenho fome, e por mais
que eu não queira admitir, o cheiro desse
enfermeiro é irresistível: eu tenho fome do
sangue dele.
A fome, o medo, o cheiro, o pescoço, e
as palavras: “boa mordida”. Isso é mais do
que minha vontade consegue suportar,
e, quando me dou conta, já estou com os
dentes cravados no pescoço do enfermeiro.
Ela continua de frente pra mim, me
encarando, inabalável, até que de repente faz
o “sinal” e eu, obedientemente, interrompo
minha... “alimentação”?
– Muito bom! Quase pronto! Mas antes,
você precisa fechar essa ferida. É só passar
a sua língua por cima desses buraquinhos.
Ah, bem melhor agora. Vem vamos embora
daqui.
Ela me guia pelos corredores. Eu não
reconheço esse hospital. Mas também...
acho que minha memória sobre hospitais se
resume a visitas ao pediatra num postinho
do bairro quando eu era criança e depois de
adulto uma ida à UPA, onde esperei 4 horas
na fila pro atendente me dizer que eu tava
com virose e me mandar pra casa com uma
injeção de Benzetacil na bunda.
Ninguém interrompe nossa saída.
Eu apenas acompanho em silencio.
Não sou um cara burro e as coisas estão
começando a fazer um pouco de sentido
demais na minha cabeça:
1 — Eu com certeza deveria estar morto
(mas, querido, quem disse que você não
está? – de quem é essa voz?).

24 CONTOS V5
2 — Vamos fingir que essa mulher me
“obrigou” a morder aquele cara. Beleza.
Mas eu não posso fingir que beber o sangue
dele não foi a melhor sensação que eu já
experimentei em toda minha vida. Nem
que meus dentes crescem “naturalmente”
na hora de uma “boa mordida”.
Quando percebo, já estamos dentro do
carro dela, saindo do estacionamento.
– Agora que você já se alimentou e está em
condições de assimilar informações, eu posso
responder suas perguntas. Quais eram mesmo?
O que? Quando? Onde? Por que?
– Esquece! Acho que nenhuma daquelas
perguntas faz sentido agora.
Ela me lança um olhar e um sorriso
satisfeitos, ignorando o fato de estar ao
volante, olhando pro carona. Eu penso em
pedir pra ela prestar atenção no trânsito,
mas de alguma forma isso não parece tão
importante.
– Você tem perguntas mais importantes pra
fazer, então?
– Acho que não tenho muitas perguntas.
Tenho algumas hipóteses. Mas eu realmente
me sentiria menos idiota se você simplesmente
me confirmasse elas sem eu ter que perguntar.
Porque até as palavras que rodeiam essas
hipóteses parecem ridículas demais pra serem
proferidas.
– “Palavras ridículas”... que fofinho!
Finalmente ganhei um sisudo! Sem
julgamentos! Eu sabia que ia gostar de você!
– Sisudo? Que palavra é essa?
– Aff! Crianças... Não se preocupe. Você
vai ter tempo de sobra pra procurar essa
palavra no dicionário. O que o importa é que
minhas pesquisas sobre narcisismo pós vida

BARQUEIROS DO CAOS 25
finalmente vão deslanchar agora que eu – Ok. Acho que você vai vingar.
tenho você. Aperta o cinto, que lá vem história!
– Você... me tem? Apesar de me mandar apertar o cinto,
– Achei que tínhamos passado da fase ela na verdade diminui a velocidade.
de perguntas idiotas. Olha, temos cinco Percebo que ela quer mais tempo para,
minutos pra chegar, então capricha, porque finalmente, me dizer alguma coisa.
quando eu estacionar esse carro, a gente – Você já deduziu a questão de ser
inaugura uma espécie de “aprendizagem por vampiro, então, blá blá blá... beber sangue,
observação”, só que num universo onde os fugir do sol, etc. Relaxa, que nessa parte
indivíduos preferem que você observe do eu vou te ajudar pelos próximos vááários
que aprenda. tempos. Agora vamos as partes realmente
– Huh... – penso em contar pra ela que importantes.: Vamos falar sobre quem
isso não é nenhuma novidade na minha você é. Ou melhor: primeiro, a quem você
vida, vindo da onde eu venho. Mas tenho pertence. Em primeiro lugar, a mim, claro.
5 minutos, então vamos fazer valer! – Em segundo, aos Barqueiros.
Beleza, se você vai me fazer dizer, eu digo: – Ahnn... ok? E por que isso é mais
Aparentemente virei um vampiro, certo? importante do que “blá blá blá... beber
Mas pra onde você está me levando e o que sangue, e fugir do sol”?
você quer comigo? – Essa era a única pergunta que eu
Ela faz uma expressão cômica de surpresa e queria que você fizesse! Minha Criança, nós
medo enquanto vira o volante abruptamente somos imortais, mas, na maioria das vezes
(de verdade, no meio da Av. Brasil) perecemos mais cedo do que se tivéssemos
– Um vampiro? Socorro! Polícia! Caça vivido vidas normais (não seu caso, claro,
Fantasmas! Alguém me ajude! porque você já tava quase... uhh...) bem,
não importa! Enfim, mas é exatamente isso!
– Ela tá debochando de mim. – Uma
voz volta a sussurrar no meu ouvido. – – “Isso” significando que o fato de eu
Vamos terminar de virar esse volante de ser imortal não significa que eu não possa
vez! Transformar esse carro numa gloriosa perecer?
homenagem ao “Mad Max Fury Road” – Exatamente! Mas por “perecer” eu
versão Avenida Brasil! realmente quero dizer que o mais provável
A “voz” está irritada, mas eu resolvo é que você seja destruído. Mas é por isso que
botar uma “poker face” e fingir que não estamos aqui e temos uns aos outros.
me abalei nem achei nenhuma graça. Na – Uns sendo nós e os outros sendo... os
verdade, finjo que absolutamente nada Barqueiros?
aconteceu. –Exato! Só que não, porque agora
Ela me olha (pela primeira vez como uns é só você. Ao te abraçar eu me tornei
se estivesse olhando pra alguém, não pra oficialmente uma
alguma coisa): Barqueira. Mas você é minha Criança,

26 CONTOS V5
–Exato! Só que não, porque agora uns é só – Peraí, quarto e último lugar? Não
você. Ao te abraçar eu me tornei oficialmente sobrou nem uma vaguinha nessa ordem de
uma Barqueira. Mas você é minha Criança, prioridades aí pra eu ser “simplesmente eu”?
então acho que dá no mesmo. – Hahahaha! Você é hilário!
Eu percebo que ela está cada vez mais “Simplesmente eu”. Ha! Impagável!
relaxada com essa conversa (e talvez acelerando – Ela realmente gargalhou com a minha
um pouco mais, de novo), mas eu ainda preciso pergunta. – Enfim, voltando aos Barqueiros:
de repostas antes de chegarmos à terra da Nós somos uma espécie de organização
“observação silenciosa” ... vampírica secreta, espalhada por todas
as capitais e pelas principais cidades do
– Ótimo! Então, já que eu sou “praticamente
Brasil, com a missão principal de salvar
um Barqueiro”, que tal você me dizer vítimas da violência policial, assim como
o que significa ser “Barqueiro”? você.
– Calma. Presta atenção, porque isso é Diferente da maioria dos vampiros,
muito importante. Eu vou te dizer agora, que escolhem à dedo o humano que
em ordem de prioridades, quem você é: pretendem abraçar, nós só temos um
Em primeiro lugar, claro, você agora é um critério: abraçamos inocentes, vítimas da
vampiro. Em segundo, você é um Malkaviano brutalidade policial. Pode ser literalmente
(relaxa que vamos ter muito tempo pra eu te qualquer um, tipo você! Por isso o nome
explicar essa parte). Em terceiro lugar, você “Barqueiros”, entendeu? Somos aqueles que
é um agregado dos Barqueiros. Em quarto e te dão carona na passagem entre a vida e a
último lugar, você é um anarquista. não-vida.

BARQUEIROS DO CAOS 27
– Então vocês são uma espécie de...
organização... humanitária? Salvando a vida
de inocentes?
– De jeito nenhum. Em primeiro lugar,
sua vida já acabou. Você está morto,
chuchu. Em segundo... bem... Nós temos
nossos próprios objetivos e engrossar nossos
números é uma parte essencial desses planos.
Mas você é um novato, então nossos “planos
maiores” ainda não são da sua conta. Se
você provar seu valor entre nós, talvez você
venha a conhecer melhor nossa missão. Mas
já aviso que a concorrência é grande. Entre
nós, temos membros de praticamente todos
os clãs e filiações. Vampiros independentes,
Anarquistas e até mesmo alguns da
Camarilla. Nossa força está no fato de que
as capitais brasileiras são um completo
caos, especialmente o Rio de Janeiro, então
nós simplesmente existimos bem debaixo
do nariz de qualquer “autoridade”: desde
governos mortais até... bem... nossos pseudo-
governantes.
Ela estaciona o carro em frente à um
casarão semiabandonado no Catumbi.
– Chegamos. Hora do gato comer sua
língua. Guarde suas perguntas, comentários
e dúvidas pra depois. Concentre-se apenas
em parecer útil e não me envergonhar.
Eu a sigo em silêncio e a primeira coisa
que me chama atenção quando entramos
no salão mal iluminado é a quantidade
de crianças. Depois, me surpreendo
reconhecendo alguns rostos. Foram casos
que ficaram famosos na mídia. Entre eles
estão:
28 CONTOS V5
Cláudia Silva (que foi arrastada
por uma viatura),
Evaldo dos Santos Rosa (cujo carro
levou cento e onze tiros) e
Maria Eduarda Alves da Conceição
(a menina de doze anos que morreu
dentro da escola, em Acari).

E é só então que cai a minha ficha: eu


também sou um vampiro. Ou melhor, um
“ va m p i ro -m a l k av ia no -ba rq u e i ro -
anarquista”. O que quer que essas palavras
signifiquem. Talvez minha morte tenha se
tornado um caso famoso, ou talvez minha
mãe tenha chorado sozinha em cima do
meu caixão (que na verdade tinha algum
indigente dentro).
Mas nada disso importa mais. Estou
do outro lado vida. Atravessei o rio com
os Barqueiros. É hora de tentar uma sorte
melhor na margem de cá!

A
“Não vamos dar mole dessa vez” – Diz
a voz que está se tornando cada vez mais
familiar dentro da minha cabeça.

BARQUEIROS DO CAOS 29
cons eg u i
c
mas a que

us to?

Luiz Eduardo Vilar


Com o peso do
mu ndo...
Com o peso do mundo escorrendo Enquanto o noticiário retrata a
violência no país, tenho a sensação que
pelo rosto em uma linha rubra,
sairá sangue do aparelho. Um segundo de
marcando descontroladamente e distração e a voz em forma de trovoada
sem ser impedida, a expressão de chega a meus ouvidos como um soco:
“Sandro eu já falei, mais de um milhão de
desespero. vezes, não meche na minha cozinha! Além de
Solitário. inútil, agora você está tentando nos matar?”
As palavras dela vem acompanhada
Encolhido no de risadas das crianças que assim que me
canto do velho galpão, tendo veem agem como se eu não estivesse ali e
como a única segurança partem em direção a porta.

meus braços agora enrolados “Boa dia crianças, eu fiz o café.” Eles
continuam, abrem a porta, mas antes de
fortemente em minhas pernas. sair gritam pra sua mãe. “Diz pra esse aí
As lágrimas caem como um que já passou o tempo dele ser um bom pai
e que já deve estar na hora dele sair pra
meteoro de encontro ao chão, sem
conseguir a comida dessa casa. Não foi essa
testemunhas. a resposta dele no meu aniversário?” Ecoou
em minha cabeça, e doeu, doeu muito.
As gotas de chuva na janela funcionam “Amanda, podemos tomar café juntos
como um despertador. Levanto da cama hoje?” Digo pra ela tentando sorrir.
evitando movimentos bruscos, pois não “Sandro eu não quero olhar na sua
quero acordá-la. Na cozinha preparo uma cara depois desta bagunça que você
surpresa. Não é do meu costume cozinhar, fez aqui. Vou no mercado comprar
mas peguei uma receita fácil, omeletes. alguma coisa pra tirar essas manchas de
Os despertadores tocam e o barulho me fumaça da minha... MINHA cozinha.”
alerta que tenho que agilizar as coisas, as E sai batendo a porta com força. Tomo
crianças já estão se arrumando. Amanda meu café sozinho sentado à mesa da
grita com elas para se apressarem. cozinha.sentado à mesa da cozinha.
CONSEGUI, MAS A QUE CUSTO? 31
A chuva se intensifica e deixa o para por um instante, anunciando que são
trânsito da cidade um caos. nove e trinta da manhã. Logo, chegamos
ao vigésimo quinto andar. Eu já devia
estar na minha sala a uma hora atrás.

B uzinas e gritos acaloram os ânimos. O


engarrafamento deixa tudo parado.
Parece que uma das vias foi alagada.
“Onde você estava? Está atrasado de novo!
E não me venha com desculpinha de chuva,
pois se tivesse virado a noite aqui, você saberia
Dentro do carro, a voz de Amanda é o quanto o dia de hoje é importante.” Meu
minha única companhia. Chego correndo chefe grita, ecoando pelo salão. Todos os
ao grande prédio do centro, entro no olhares estão em mim. Risos contidos,
elevador me esgueirando entre as pessoas outros com feições preocupadas. Mas
que aos poucos vão esvaziando ele sobe. todos sabem que não devem irritar o
No décimo quarto andar estou somente diretor Marcos.
eu e Victor, meu antigo estagiário, que
“Me desculpe o atraso Marcos. O trânsito
há duas semanas recebeu uma promoção
estava horrível e fiquei agarrado em um
apresentando o MEU trabalho. Alí, não há
engarrafamento na avenida...” Antes que
conversas ou comprimentos. Nem mesmo
eu possa reagir, a resposta chega como um
troca de olhares. Não tenho ressentimento,
feixe de luz “Cala a sua boca seu inútil!
pois foi uma boa oportunidade para ele
Eu não sei porque ainda te mantenho
que viu uma pequena falha no projeto
nessa empresa. Você acertou uma vez, mas
e corrigiu a tempo, mas assumindo o
lembre-se, hoje é seu último dia se você não
projeto como dele. A música no elevador

32 CONTOS V5
agradar os investidores.” gritos constrangedores que não pararam
Abaixo minha cabeça afastando de nem mesmo quando os clientes já haviam
mim os meus olhos julgadores ao meu aprovado o projeto do Victor. Nem
redor. Entro calado na minha sala, pego quando eu já havia assinado a papelada
meus documentos e com a mesma postura de demissão, que me parece, já estava
saio para a sala de reuniões a tempo de ver pronta antes que eu entrasse na sala. Um
Marcos conversando com Victor na porta constrangimento gigante. Todos a minha
à frente. volta me olhavam e demonstravam que
tudo que estou sofrendo não é nada mais
“Bom garoto! Então trouxe um plano “B” do que merecido.
ou melhor um projeto de verdade? Você sabe
que só dei essa chance para o Sandro porque *****
você me pediu. Por mim ele já estava na
rua.” Diz Marcos com um sorriso estranho
no rosto. N a volta pra casa, minha cabeça
estava enlouquecendo. A dor e
a tristeza me tomam. Dentro do carro,
“Ele é um bom homem, merece uma
chance, ou ele brilha ou vai acabar saindo relembro as palavras da a Amanda e do
daqui humilhado.” Victor responde com o Marcos. Será que eu realmente sou só um
mesmo sorriso. inútil? Paro o caro em um canto e choro
por alguns minutos. Minha cabeça doí,
Havia algo de estranho nos olhos deles meus braços doem, sinto meu coração
como se já soubessem o que estava por acelerar e eu sei que ao chegar em casa e
acontecer. Um desastre! Esta é a única contar tudo isso para Amanda vai fazê-la
palavra que tenho pra descrever o que repetir mais uma vez que sou um inútil.
aconteceu na reunião. Tudo deu errado. Os
valores dos orçamentos não batiam com os Antes do almoço o trânsito flui, mas
valores propostos, a arte ficou diferente do dirijo devagar de qualquer forma. Não
briefing e a cereja do bolo foi eu usar cores estou com pressa de enfrentar minha
muito parecidas com a do concorrente. esposa e suas provocações. Chego e subo
Marcos tratou minha apresentação como as escadas do prédio de cabeça baixa e
uma piada de mal gosto. Gritou para todo pensando em como falar com ela. Será
o prédio ouvir, que eu era um sabotador que devo ligar para o Yuri? Perguntar
que estava trabalhando em conjunto com como devo falar? Ele sempre me ajudou.
os sanguessugas da Vermilium. Que eu Bem... melhor não.
queria destruir a empresa que o pai dele Abro a porta sem fazer alarde. Sei que
deu a vida para construir e que nunca ela vai se assustar com barulho fora do
mais eu iria trabalhar com Marketing horário. Amanda é muito metódica e não
nesta cidade. Que o melhor a fazer era gosta de nada fora de seu cronograma. Na
rasgar meu diploma e ir trabalhar como sala a televisão ligada. Um filme passando,
um faxineiro já que parecia mais com um romance ao que me parece. O som alto
um desses que com um profissional de da televisão consumia o ambiente, mas
verdade. Juntei minhas coisas ao som dos ninguém ali. Sobre a mesa de centro, uma
CONSEGUI, MAS A QUE CUSTO? 33
garrafa de vinho aberta pela metade e duas
taças. Amanda não é de receber visitas,
não tem amigas na cidade. E nas últimas
semanas, faz questão de me lembrar que
cuidar da casa e das crianças afastou todas
as pessoas que ela conhecia e a tornou uma
refém. Uma refém, dona de casa e mãe. Deixo
minhas coisas no sofá e antes que possa
chamar por seu nome, escuto um barulho
vindo do nosso quarto. Me aproximo
andando pelo corredor, com medo do que
pode ser. O som fica mais intenso, como se
algo estivesse sendo jogado contra a parede
com força. De frente para a porta fechada,
posso ouvir a respiração forte e os gritos
dela. Minha esposa, suplicando por mais
prazer, implorando pela habilidade daquele
que compartilha coma ela MINHA cama
Eu antes, estava com tanto medo de
descobrir o motivo do barulho que só notei
as roupas jogadas ao chão do corredor
agora. Uma camisa jogada com um crachá
saindo do bolso... não quero descobrir quem
é. Mesmo assim me abaixo e pego. Yuri.
Meu melhor amigo. Aquele me encorajou a
chamar Amanda para sair. Que me ensinou
como devia falar e agir com ela. O mesmo
homem que foi meu padrinho de casamento
e padrinho dos meus filhos. Me sento no
corredor ao lado das roupas e choro mais
uma vez. Choro baixinho, externando
a tristeza da minha descoberta. Não os
interrompo e me levando devagar. Antes
que eu saia, escuto Yuri gritar: “Tem alguém
ai?” E em seguida a resposta ofegante de
Amanda “Para de gracinha! Você disse que
hoje ía aguentar direto sem pausa. Então
para de inventar desculpa e me fode!” Com
esta despedida, saio do meu apartamento
em silêncio, praguejando mentalmente a
minha falta de coragem. Eu não passo de
um covarde!
34 CONTOS V5
Quatro e trinta da tarde e estou aqui, muito babaca se falasse que ele mereceu? E
sentado em um bar com os aqui Yuri, ele descobriu sobre o Júnior?”
olhos vermelhos de tanto chorar. Instintivamente arremesso o celular
contra a parede sem me preocupar de ir
Na mesa, uma garrafa de cerveja cheia e buscar depois. Fico alí sentado, calado
quente. Achei que iria me confortar, mas de cabeça baixa e olhando para o copo
é impossível. Já estou aqui a mais tempo de cerveja quente remoendo meus
do que imaginava. Olhando as nossas sentimentos. Não sei quanto tempo mais
fotos no celular. Ainda tenho uma do passou, mas quando sinto o choro voltar,
nosso primeiro encontro. Passo o dedo de me levanto e pago a conta do bar. Já é
um lado pro outro, vendo as lembranças noite e não vou pra casa, não quero chorar
da nossa família e toda vez que vejo Yure, na frente das crianças.
me revolto.
Não consigo parar de chorar. Eu confiava *****

A
nele como meu melhor amigo. Da nossa passos lentos, caminho pelas ruas
turma foi quem sempre esteve do meu escuras da cidade. Novamente,
lado. Vejo a foto de todos nós reunidos tendo de companhia apenas o silêncio
no primeiro período de marketing e e minhas lembranças. Andei sem saber
jornalismo da Federal. Éramos jovens, mal meu destino e agora não sei ao certo
tínhamos vinte anos. Dia a dia fomos nos onde estou. Na verdade nem me importo
aproximando e sempre contando uns com em saber. A dor dentro do meu peito é
outros. Alguns ficaram, outros saíram gigante. Me sinto muito sozinho, triste
e sumiram da turma, mas nós cinco e abandonado. De repente, alguém se
estávamos sempre juntos. É isso! Ainda aproxima rapidamente atrás de mim.
tenho a Jane, o Silva e o Bartô. Tento ligar Levanto os braços e digo:
pra eles, mas ninguém atende. Estou a
“Não tenho nada pra vocês levarem,
tanto tempo sentado nessa cadeira, que
escolheram o cara errado.”
já esqueci que eles ainda devem estar
no trabalho. Envio uma mensagem pelo A resposta é a última coisa que me
grupo do whats e logo todos visualizam, lembro:
mas ninguém responde. Coloco o celular
sobre a mesa e limpo as lágrimas dos “Errado!
olhos mais uma vez. Escuto a notificação Você é exatamente
e vejo uma resposta a tempo de ler antes o que nós procuramos”
da mensagem de Jane ser deletada:
“Gente é sério? Ninguém vai responder
o Sandro no outro grupo? O cara pode
ser chato, até as vezes insuportável, mas
descobrir que o Yuri tá comendo a mulher
dele a alguns anos é meio foda... Eu seria

CONSEGUI, MAS A QUE CUSTO? 35


A bro os olhos com meus ouvidos
tomados por um zumbido agudo e
uma dor de cabeça forte. Recupero minha
mulher diz.
“Onde está ele?” diz um terceiro ao
visão aos poucos, tudo escuro. Pareço longe.
estar em um cômodo pequeno, sentado e “Onde está o pagamento?” a voz feminina
amarrado a uma cadeira. Conforme vou
retomando a consciência, vou lembrando novamente.
do meu dia... café da manhã rejeitado “Pega dentro do carro, e pode ficar com
pelos meus filhos, demitido e humilhado, ele também. O documento do veículo está
traído e rejeitado. É, afinal, aqui é onde
mereço estar. no porta luvas.”

Escuto vozes vindo de outro lugar, “O seu presente está lá trás. Só pegar.”
talvez se eu conseguir me concentrar “... Ele estão falando de mim? Espera
mas cara a gente precisava ter feito isso ai, como assim? Porque alguém iria me
tudo mesmo?” uma voz feminina, doce e querer como presente e como assim eu fui
suave. preparado? Droga! fui sequestrado por
“Tinha que estar perfeito, o pagamento é algum sádico maluco! Apesar do medo
alto” responde uma voz rude e rouca. que toma meu peito em forma de uma
forte dor, tudo é suprimido pela tristeza
“Meses preparando esse cara. Nossa! Não que carrego. Penso em gritar e tentar me
queria está na pele dele de forma alguma” soltar, mas não tenho forças. Posso acabar
“Relaxa! O cliente vai adorar, está sendo morto e quem sabe não passa de
excelente. Exatamente como ele precisava” um engano, não é?
“ O cliente chegou, se comporte”, a A porta se abre, mas tudo continua

36 CONTOS V5
escuro. Não consigo ver o rosto de quem de quando essa foto foi tirada. Aniversário
entra, apenas escuto seus passos. Tento de dez anos da Vanessa. DROGA! Os
falar, mas minha voz não sai. Sinto algo pensamentos do Sandro se misturaram
rompendo minha pele, perfurando meu com os meus, assim como suas memórias.
pescoço, espero a dor mas não é isso que Ele realmente amava sua família e fazia
sinto. Meu corpo fica leve e aos poucos tudo por eles. Continuo revirando a
nada mais importa. Acabou. carteira procurando entender quem era
Dentro da minha mente, uma disputa: este homem que agora ecoa em mim por
“Controle-se, somente o necessário. Ele não consequência de minha maldição.
tem culpa de você ser um monstro”. Encontro um cartão de acesso ao
“Do que você está falando, nós somos estacionamento. É do Marcos, perdi o
monstros! Somos um só e devemos agir como meu na semana passada. Para muitos
um. Temos fome então nos alimente. Se ele é o dono da empresa, para mim ele é
alimente por completo! Sacie nossa fome!” como um pai, me acolheu e me empregou
em um momento difícil onde estava
O sangue quente dele desse por desempregado e com um filho recém-
minha garganta trazendo todos os seus nascido. Ele sempre foi paciente e me
sentimentos. Me arrepio de prazer. Sinto ensinou tudo que era necessário saber no
sua vida passando para a minha. Tanto mundo hostil da publicidade. Foi por isso
sofrimento. Mas só um sentimento me que colocou o Victor comigo. O último
importa. A tristeza que está dentro dia foi horrível. Minha mente está em
do coração dele, alimentará minhas guerra. Mas ao menos a Besta se calou.
habilidades.
Empurro o corpo para longe de mim,
“Isso! Delicie-se... aproveite... beba, você quero me afastar dele. Saio daquele lugar
quer mais, eu sei! Você quer tudo” com vontade de me encolher em um
“Eu quero tudo!” canto e chorar. O que eles fizeram com o
Tento me controlar, mas em vão. pobre Sandro?

“Eu quero tudo e terei tudo!” Achei mesmo que os dois seriam
eficientes só não imaginei o quanto.
A vida dele escorre para dentro do
Ambos me encaram enquanto retiro
meu corpo, não tento mais retomar o
do bolso a chave de meu carro, como
controle. É tarde demais. O homem está
prometido.
pálido, morto.
“Pronto, já recebeu sua encomenda e
Pego sua carteira e vejo sua habilitação.
pela sua cara já utilizou. Agora passa pra
Seu nome é Sandro Hanns Pereira, trinta
cá nosso pagamento”. Apesar da voz suave
e quatro anos. Uma fotografia amassada
de Marina, ela sabe ser intimidadora com
cai de dentro. Ele, Amanda e meus filhos
o rosto em meio as sombra.
Junior e Vanessa...
“O que vocês Fizeram com ele?” Digo
NÃO! Não são meus filhos. Mas
tentando manter a postura.
éramos uma família feliz, eu me lembro
CONSEGUI, MAS A QUE CUSTO? 37
“Somente o que você pediu. Temperamos
ele deixando-o intensamente fleumático”.
“Ele amava sua família. Eles eram tudo
pra ele, me diga como puderam fazer isso?”
“Fácil, um chamado do chefe para
um cliente importante, uma ameaça de
desemprego e pronto já estava esquecendo
as datas importantes em família. Para o
tal diretor foi um e-mail fake informando
a possível mudança de empresa do
Sandro.” Ela ri alto “Nosso Jeca é bom com
computadores. E o carinha lá, amigo dele,
Yuri acho. Descobriu que seu amigo traia a
esposa Amanda com garotos de programa.
Era o que ele precisava para viver o amor
que sempre suprimiu. Com ela, a solidão fez
o restante do trabalho.”
“Como assim, eles estavam juntos a anos!
Eu vi na mensagem da amiga dele, Jane.”
“Isso aí realmente deu trabalho. Roubar
o celular da moça, mandar a mensagem a
tempo dele ler e apagar na sequência. E ainda
hackear o celular do Sandro para evitar
dos amigos contatá-los foi complicado pra
caralho! Mas valeu a pena não? Você teve
seu prêmio. Do jeitinho que nos pediu. Eu
sei que ouvir as explicações pode acalmar as
vozes, mas é melhor nos pagar logo e acelerar
para seu destino, se não quer desperdiçar
todo nosso trabalho”
Jogo a chave do carro pra ela, espero
ela sair do galpão e me entrego a todos
aqueles sentimentos, caminho até um
canto do galpão em meio as sombras
como meu mentor me ensinou.
Me encolho quieto, imperceptível e
abraço minhas pernas com o peso do

38 CONTOS V5
mundo escorrendo pelo rosto em uma linha
rubra, marcando descontroladamente
esem ser impedida, a expressão de
desespero. Solitário. Encolhido no canto
do velho galpão, tendo como a única
segurança meus braços agora enrolados
fortemente em minhas pernas.

As lágrimas caem
como um meteoro
de encontro ao chão,
sem testemunhas.

CONSEGUI, MAS A QUE CUSTO? 39


B rincando

Fogo”
com

TATIANA VERSIEUX
40 CONTOS V5
ou

O dia em que
eu me tornei um
Blogueirinho
Boa noite, senhores! perfis artificiais, apinhados de pessoas,
Vocês sabem que existem... só um até oferecem um palco, e podem fazer
minuto, já estão todos aqui? parecer que você tem alguma relevância,
mas não criam engajamento na sua marca
Bom, não importa. O assunto é ou no que você está querendo promover.
importante demais para esperar pelos Você literalmente compra dez, vinte,
retardatários. Como eu ia dizendo, vocês cinquenta mil seguidores que não têm
sabem que existem pessoas, e até mesmo absolutamente interesse algum no seu
empresas, que vivem de criar perfis produto. De qualquer forma isso existe e,
em redes sociais, conseguir seguidores principalmente, vende.
e depois vender esses perfis para
Esse mundo digital é interessante, eu
influenciadores ou marcas que desejam sempre gostei de ficar por dentro das
se promover ou promover seus produtos? novidades, desde o surgimento da primeira
Parece uma ótima ideia, certo? lâmpada elétrica. Ela literalmente me deu
Não, isso não é um esquema de pirâmide! uma luz.
Nem marketing multinível! Inferno! Eu sei que você também gosta. Dá pra
É, é... Eu sei, eu ia chegar nisso, me deixa parar de questionar o que eu gosto, por
terminar... favor? Eu gosto porque eu gosto, não estou
tentando te copiar!
Em uma primeira olhada, um
pouco descuidada, parece de fato uma Sabem, eu pensei sobre isso e descobri
excelente idéia. Você nunca teve uma que isso nos abre uma oportunidade.
presença digital e, de repente, você
tem milhares de seguidores. Existe,
porém, um pequeno problema. Esses Prestem Atenção
V ocês sabem bem como é, os velhotes
vivem (vivem... hahaha) bom, eles
“não-vivem” (melhor ainda! Hahahaha).
de autoridade, eles nos mandam tomar
cuidado com isso e com aquilo, mandam
e desmandam, proíbem e impõem,
Eles “não-vivem” com o papo de que a dizem que nós podemos ser rastreados,
gente tem que tomar cuidado com as descobertos, encontrados e... destruídos
tecnologias, que elas são perigosas e bla- pelas mariposas.
bla-bla-bla... (é, é isso que eu escuto quando Mas será possível que você não entenda
vocês começam a falar demais também). uma metáfora? As mariposas de uniformes,
Mas isso é puro medo da modernidade. as formiguinhas obedientes, as abelhas sem
As máquinas não temem suas centenas ferrão, isso menos, aqueles humanos que
de anos e seus dentes afiados, e é por acham que podem nos destruir.
isso que os velhotes não gostam delas.
No final das contas, elas não mordem... Entendam, os velhotes pararam
(quem morde somos nós, lembram? Dentes no tempo. Acusados de todo tipo de
afiados). horror no passado, seres sobrenaturais,
poderosos, centenários, tremem de medo
Tá bom, se você também não gosta, você perante um celular que, literalmente,
também é um velhote, e pode ficar de fora cabe no meu bolso. E nós deveríamos ser
da reunião... tchau! os predadores...
Continuando, me perdoem pela Eu já disse, somos nós que mordemos!!!
interrupção, nem todos são bons ouvintes
por aqui. Voltando aos velhotes. Cheios Bem, só os trouxas, independente da

42 CONTOS V5
idade, caem perante eles. Mas eu não. incentivar minha pequena, mais nova e não
Eles jogam um jogo interessante, esses menos brilhante iniciativa.
humaninhos, de esconde-esconde, e eu só Então, quem é a favor do plano?
brinco com eles. Eu gosto de fazer novos
amigos, principalmente quando esses Como assim, que plano? Bando de idiotas!
amigos nos fazem... pequenos favores. Vocês vão entender enquanto eu o coloco em
execução.
Perigoso? Hum... Talvez... mas qual a
graça de brincar com fogo se você não puder Primeiro, umas fotos bem tiradas,
se queimar? De andar na corda bamba se cheias de dentes e sangue e dentes e sangue
você não puder cair, hein?Não me digam e dentes e... bem, vocês entenderam a
que vocês estão amarelando! idéia... um beco escuro, um corpo caído,
que depois vai contar uma história,
Voltando aos perfis apinhados de alguns pequenos vídeos. Uma quebra da
pessoas nada ávidas a consumir seu máscara aqui, uma vítima com sangue
conteúdo. Eles são caros, claro, mas escorrendo de dois lindos furinhos muito
dinheiro não é problema quando você tem bem colocados na jugular ali... claro, pode
várias mentes brilhantes trabalhando pra parecer só baboseira dessa gente metida a
você (ou seria em você? Com você? Enfim...). trevosa (Emo? Gótico? Já se deram tantos
Navegando pela imensidão da internet nomes que eu desisti de acompanhar!), mas
(ah, por favor, é só uma palavra, não as nossas mosquinhas preferidas sabem
precisa guinchar feito um camundongo) muito bem o que estão procurando. Elas
me deparei com essa idéia e adivinhem: estão atentas, com seus olhos, compostos
tenho uma belezinha dessas agora, com por quatro mil facetas, bem abertos! E,
trinta mil pessoas perfeitamente aptas a principalmente, elas sabem o...
ver tudo o que eu quiser mostrar!
Ah, cala a boca, você estragou meu
Não, eu não vou virar musa fitness ou “grand finale!”. Mais uma e eu excluo você
mostrar meus “dotes”, e nem adianta insistir! também da reunião.
E não, eu não quero engajamento... Eu sempre soube que aqueles anos me
pelo menos não do tipo que as pessoas alimentando naquele estúdio B de cinema
normalmente querem. Eu não quero teriam sua utilidade... Eu quase tenho água
vender um produto. Eu quero “viralizar”, na boca só de olhar... Material produzido
quero meus cinco minutos de fama, meu (muito bem produzido, por sinal, com uma
“conteúdo” viajando na velocidade da luz aparência intencional de amadorismo),
pela rede mundial e um alvo muito - bem só falta encontrar nosso réu... temos que
- colocado, bem - na minha - cabeça... Ou escolher com cuidado, ter certeza de que
na localização do meu GPS... ele merece a punição. Eu sou a acusação,
Ah, vocês não têm senso de humor? Achei a defesa, o júri e o juiz (outros tantos anos
que um celular com uma foto da minha cabeça me alimentando nos corredores do sistema
colada na frente iria deixar vocês rindo por de justiça). Claro, eu nunca condenaria
horas... e principalmente, convencidos a alguém que não merece, eu sou justo,

BRINCANDO COM FOGO 43


afinal de contas.
É, eu também acho. Você tirou a sugestão
da ponta da minha língua. Ele é um excelente
candidato.
Na verdade, eu devo confessar. Eu fiz isso
tudo pensando nele. Vindo de outra cidade e
aceito pra viver por aqui sabe-se lá por qual
motivo, aparentemente inofensivo, justo,
correto, se alimenta de forma discreta e diz
admirar nosso príncipe, sempre disposto
a ajudar (ou bajular?). Eu certamente não
posso confiar naquele Tremere (eu também
não acho que seja esse o clã dele), mas o que
denunciou pra valer foi a atitude dele na
semana passada. Pelo visto não fui só eu que
percebi então, a cara que ele fez quando o
Príncipe entrou no Elísio. Aquele sorriso
debochado, aquela cara de sonso. Outros
poderiam acreditar que é admiração pelo
nosso soberano. Eu não. Eu vi, eu ouvi, eu
SEI! Aquele...

Já chega! Você está


fora!

Certo, onde eu estava mesmo? Ah, o


sorriso. Aquele é o sorriso da traição! Ele
está tramando contra o Príncipe, eu tenho
certeza. Ele está do lado da corja revoltada,
aquele bando de “bad boys” frustrados e
cachorrinhos sem dono (e com pulgas, sim,
e com pulgas).
Agora, ele não é muito esperto, não é
mesmo? Não se esforçou nem um pouco pra
esconder seu abrigo...
Nem o sorrisinho cínico no Elísio, eu sei.

44 CONTOS V5
F oi fácil achar... pelo menos pra mim.As
pessoas tendem a esquecer que eu estou
sempre por aí, e eu acabo encontrando
segredos que elas não gostariam de expor...
principalmente quando estão planejando
um golpe! Ele certamente deveria ter sido
mais cuidadoso.
Olhem esse lugar, parece até bem
camuflado. Uma fachada digna até, um
comércio de bairro que funciona o dia
todo, um subterrâneo bem disfarçado, com
entrada e saída independentes. Talvez um
tolo deixasse de notar... acho que vou dar
uma olhada mais de perto.
Hora do julgamento! Todos em suas
posições? As acusações: veio pra cá e foi
aceito por motivos escusos. Certamente
passou por cima de alguém pra isso. Sorriso
cínico para o Príncipe, aliado dos rebeldes,
mentiu sobre o clã que pertence, tentou
derrubar o príncipe. Eu já mencionei o
sorriso dele? Ah, aquele sorriso realmente
me irritou. São todas acusações muito
graves. Eu preciso pensar, claro, não quero
cometer uma injustiça.
Ops, que distração a minha! Cliquei em
postar... dezessete vezes consecutivas!
Todas aquelas fotos e vídeos
comprometedores circulando pela internet,
que tragédia! Oh, não, o que poderia ser
pior? Deixei cair, conectado à internet, com
localização ativada e bateria reserva pra
durar dias! Isso sim é um problema.
Quieto, você sabe que não dá pra alcançar!
Ssshhhh! Não, eu não serei capaz de recuperar.
Só nos resta sair daqui e torcer pra ninguém
perceber esse pequeno deslize... e pras trinta
mil pessoas não verem! Seria uma calamidade,
não é mesmo?

BRINCANDO COM FOGO 45


Algumas noites aserfio!entediante
Sabem como é, a eternidade pode
às vezes... não pra mim...
depois...a! Descobertos? É claro que não fomos
descobertos! Shhhh. Aqui não é lugar pra
O Elísio está mais movimentado que o discutir esse assunto. Se alguém mais souber
normal essa noite. O que poderia ser? que eu andei brincando com as mosquinhas
(de novo) nós todos seremos destruídos. Sim,
Não, não estrague a surpresa! Sem mesmo vocês, ou vocês já esqueceram que
spoiller! foram meus cúmplices?
Ah, a doce sinfonia do caos. As Claro, senhores, alguns detalhes que
Harpias coletando e espalhando a notícia, eu me esqueci de mencionar: eu já brinco
a Primigênie sendo convocada, o Xerife com meus amiguinhos novos há algum
chegando, bufando de ódio, com raiva no tempo...
olhar (e com orelhinhas de rato na cabeça,
eu devia ter apostado, eu sabia que seriam Eu posso, eu sou discreto. Vocês falam
orelhinhas de rato), e, por fim, o Príncipe pelos cotovelos, sem se preocupar se alguém
sendo chamado às pressas. está ouvindo.

O que será que aconteceu? Deve ser algo Onde eu estava? Ah, sim, as mosquinhas.
realmente sério pra toda essa comoção. Elas são divertidas. E fofas! Elas se acham
Apesar de que, as coisas por aqui sempre tão importantes que se dão até nomes!
são assim, qualquer novidade gera um Dessa vez estão se chamando de “Segunda
enorme alvoroço e vira assunto por noites Inquisição”. É engraçado ver um bando de

46 CONTOS V5
humanos achando que pode acabar com
a nossa espécie, mas sim, eu admito que
sem os devidos cuidados até mesmo eu
poderia me colocar em problemas com
eles.
Um passinho de cada vez, “living on the
edge”, lembrando que passinhos justiceiros
valem por três!
Até onde eu sei, eles sabem que eu
existo, bem, não “eu” exatamente, mas
eles sabem que existe um dos nossos
brincando com alguns deles. Mas no fim,
nós dois conseguimos o que queremos...
eu tenho minha execução, eles têm mais
um chupa-sangue destruído pra se gabar,
colocar em seus importantes relatórios e
justificar seus pagamentos.
Mas, como era de se esperar, existe
ainda outro detalhe. Nós não deveríamos
nos envolver com eles. Eu falei que os
velhotes têm medo, não foi? Mas além
de medo, eles têm... poder... e sabem qual
poder? Olha que coincidência! O poder
de condenar à destruição qualquer um
dos nossos que brincar com tecnologia,
sabem, internet, celular, redes sociais...
Nós? Nunca! Esses bichinhos terríveis, as
máquinas... ouvi dizer que elas mordem!
Ah, a reunião dos velhotes acabou.
Sabem, o único deles que vale alguma
coisa é o Príncipe. O maior velhote de
todos! O que será que eles discutiram? O
que será que decidiram? Ah, contem logo,
eu estou morrendo de curiosidade!
Meu coração morto quase bate
de emoção quando minha atenção
é chamada, independente da minha
vontade, e eu sou gentilmente forçado a
olhar para o nosso soberano. Nessas horas

BRINCANDO COM FOGO 47


eu entendo porque chamam esse poder
de Majestade. Se eu ainda respirasse eu
certamente iria suspirar em admiração.
A voz grave e séria do Príncipe é a
única coisa que se ouve no Elísio. É quase
como se todos estivessem prendendo a
respiração (Prendendo a respiração! Essa
foi ótima! Shhh, não me façam rir agora!).
Como é? Eu mal posso acreditar nos
meus ouvidos! Mais um dos nossos foi pego
pela Segunda Inquisição? Que tragédia!
Ouvi dizer que ele era tão cauteloso!
Será mesmo possível? Até onde eu sei,
ele se gabava de ter um abrigo tão discreto!
Explodiu durante o dia? Disseram que
foi vazamento de gás? Que absurdo, eles
nem disfarçam mais... o que será de nós,
senhor Príncipe?
Bom, suponho que não haja nada que
eu possa fazer além de oferecer minha
total cooperação ao Xerife pra solucionar
esse mistério, de como ele foi descoberto.
Todos por aqui sabem que eu sou muito
bom em ver e ouvir coisas.
Não, eu não estou falando de vocês!
É claro, nós devemos agir como uma
unidade, respeitando todas as orientações
dos anciãos! Quando uma tragédia
dessas acontece, devemos redobrar as
precauções. A Segunda Inquisição estará
bem mais ativa na cidade nas próximas
noites.
O Xerife disse que existe uma
desconfiança. Parece que o membro
em questão, o que foi destruído pela
“explosão de gás”, poderia ter um celular.
Alguns carniçais relataram alguns
vídeos e fotos duvidosos circulando em
um tal de “Instragam”. Noites depois,
48 CONTOS V5
um lugar explode. Em teoria, foi isso que
levou aqueles insetos malditos ao valoroso
membro de nossa sociedade. Tão dedicado,
tão promissor. Talvez ele não tenha sido
capaz de abandonar os velhos hábitos
da vida humana, afinal, ou tenha criado
inimigos, talvez... Será que alguém tentou
incriminar nosso companheiro?
Hum, vejo aqui mais uma oportunidade...
eu estava pensando, sabe aquele Gangrel?
É, aquele mesmo que deu uma punição
descabida quando a cria dele entrou em
frenesi. Pobre criança da noite... Tenho
quase certeza que ele tem envolvimento
com os humanos...
Ainda bem que eu nem chego perto dessas
tecnologias...

Pai Malkav,
me livre de ser
destruído assim,
por meros humanos...

BRINCANDO COM FOGO 49


BEM-VINDO

À Fa m í l i a

Yuri Ramos
Bem -v i ndo à
F a m í l i a
Eu senti falta desses jantares em de Precursores do Ódio, mas isso era
família. Isso era o que Francesco pensava claramente uma história para assustar
enquanto se dirigia à mansão. Havia cerca os Neófitos. Seja como for esses tais
de um ano desde que ele havia visto seus Precursores nunca atacariam os domínios
familiares, ele sentia falta especialmente da Família aqui na Itália, especialmente
do patriarca: seu Tio Santino, mas é claro tão perto da cidade considerada a Capital
que ele não o chamava assim em público. de seu Clã: Veneza.
Don Giovanni, era como os Caporegime Mesmo que esses bichos-papões não
o chamavam, e Francesco que era um pudessem entrar nos antros dos Giovanni,
mero tenente da Família Roselini, via alguma coisa não cheirava bem nesse
seu tio com grande admiração e medo. convite. Como de costume, foi enviado
A relação dos dois poderia ser resumida ao jovem Roselini um envelope selado,
como realmente de tio e sobrinho, e o conteúdo deste continha uma breve
as últimas palavras de Don Giovanni carta agradecendo Francesco por seus
ficaram a espreita em seu subconsciente serviços e dando as boas vindas de volta
nesse último ano: para a Família. Anexado a carta havia
um convite. O procedimento era muito
Se esconda! comum, mas duas coisas chamavam a
E não apareça até que atenção, a primeira era que a carta estava
assinada, não por Don Santino Giovanni,
seja chamado aqui de novo!
mas sim por sua cria: Enzo Giovanni. A
Eles estão vindo. segunda coisa é que o selo da carta não
era o clássico “G” usado para identificar
“Eles”. A palavra era repetida por o clã, ao invés disso, um símbolo com
Francesco todo amanhecer antes de três faces estava em seu lugar. Contudo
dormir. Quem seriam esses a quem o endereço da mansão de Don Santino
seu tio se referia. É claro que ele já ainda era marcado como o ponto de
ouvira as lendas. Vultos mascarados encontro, e seria impossível alguém de
que atacavam a Família Pisanob no fora da Família saber que aquela era a
México, os mais velhos os chamavam base do Clã.

BEM-VINDO À FAMÍLIA 51
A mansão ficava nos arredores de
Suburra, perto de Roma. A cidade
mais religiosa da Itália não estava mais
garagem, e também um vasto jardim com
labirinto e piscina. O neófito aproximou
seu Chevy Impala 1967 do portão de
receptiva à criaturas como Francesco ferro fundido, ele podia observar dezenas
e sua família, especialmente desde que de outros carros, tão antigos e caros
alguns Mortais se tornaram cientes de quanto o dele, e isso de fato o deixou bem
que viviam lado a lado com Vampiros. mais relaxado, como se estivesse no lugar
Francesco nunca viu isso como algo correto. Ao chegar a entrada um homem,
negativo, como uma criança da noite ele possivelmente um carniçal, se aproximou
vivia tranquilamente com seus parentes de sua janela.
ainda vivos. “Boa noite, senhor. O senhor tem
Ele avistou seu destino ao longe. A casa convite?” - O homem perguntou com
antiga de mais de 400 metros quadrados uma voz quase mecânica, como se tivesse
de área, estava na Família há gerações. feito a mesma pergunta para todos que
Todos os Membros que moravam em passaram por ali ao longo do dia. Na mente
Roma ou nos arredores sabiam que aquele de Francesco, provavelmente era o que
era o Quartel General do Clã Giovanni havia acontecido. O jovem simplesmente
nesta região da Itália. Chegando mais tirou o convite que estava anexado em seu
perto podia notar o quão imponente o envelope e o entregou ao segurança.
edifício realmente era. A mansão possuía “Senhor... Roselini. Ah sim, seu nome
três andares, além do subterrâneo e definitivamente está na lista. Por favor

52 CONTOS V5
entre e aproveite a festa.” - O homem era um prazer que ele havia deixado para
puxou uma alavanca e o portão se abriu trás.
com um barulho mecânico antigo, o “Deseja um vinho, senhor?” - Um garçom
metal rangendo em uma melodia pouco perguntou ao Neófito, o tirando do transe.
convidativa. O homem carregava várias taças de vinho
“Muito obrigado, senhor.” - Francesco tinto, e branco. Ele não era o único, vários
afirmou enquanto o homem estendia sua outros também circulavam pela mesa, e
mão para dentro do terreno, pedindo pelas outras mesas menores que também
para que entrasse o mais rápido possível. estavam presentes em diferentes locais da
Ele moveu seu automóvel até o local casa.
onde os carros estavam estacionados. “Sim er... eu quero aquele da... Safra
Ao desligar o motor e sair do carro ele Especial.” Francesco respondeu, esperando
observou enquanto pequenas crianças que sua mensagem fosse captada. O
com vestidos infantis, daqueles que garçom, ainda com seu olhar sério, fez um
você só veria em um filme do Coppola, gesto positivo com a cabeça e acenou para
estavam brincando no jardim. Próximo outro que estava perto da porta da cozinha.
delas tinham jovens adolescentes, que Este carregava uma bandeja, porém essa só
provavelmente eram parentes, estavam se possuía vinhos tintos. Não demorou muito
beijando como se fosse algo normal, e era para que o Roselini sentisse o cheiro doce
normal, pelo menos para os membros de do Vitae que as taças continham. Ele se
sua Família, todos casavam entre si para aproximou do segundo garçom pegando
manter a pureza do sangue. uma das taças e agradecendo.
Ele passou pelo grande portal no jardim Ao ingerir o líquido, ele pode sentir o
que levava à entrada, como de costume prazer de tomar sangue ainda quente, e
em festas, a grande porta dupla estava não só isso, a ressonância Sanguine estava
aberta. Dois seguranças, um de cada lado levemente presente nas notas do sabor.
da porta, deram um aceno positivo de Era como degustar um bom vinho e ao
cabeça para Francesco, como se dizendo mesmo tempo comer um aperitivo muito
“boa noite” mas sem palavras. bem preparado. Francesco sabia por
Ao adentrar a mansão ele podia ver experiência que não deveria perguntar
que estava muito bem iluminada, e com de onde veio o sangue. Enquanto ele se
muitos convidados. Uma grande mesa de deliciava em seu orgasmo alimentício, um
jantar era compartilhada por pelo menos outro homem de cabelos loiros e roupas
27 pessoas. A mesa estava enfeitada com elegantes, claramente membro da família
pratos elegantes como Espaguete ao Molho mortal e bêbado, se aproximou do garçon
Branco, Lasanha Bolonhesa e Porcos com também com um gesto para pegar uma
maçã na boca. As pessoas na mesa eram das taças.
todas mortais, comiam com extrema “Mil perdões senhor. Este vinho é para
vontade e prazer. Francesco olhou para a convidados especiais.” - disse o garçom ao
cena com um pouco de tristeza, afinal isto homem, claramente incomodado com a
BEM-VINDO À FAMÍLIA 53
com a situação.
“Mas o que é isso?” - disse o homem vestido
em um terno fino. - “Você sabe com quem
você tá falando? Meu nome é Leon Dunsirn!
É minha família que assina o cheque pra essa
palhaçada toda aqui acontecer, e eu quero mais
vinho seu...” - antes que ele pudesse terminar,
uma mão grande se encontrava repousada
em seu ombro. Atrás dele estava uma figura
conhecida por Francesco. Um italiano de quase
dois metros de altura e porte físico digno de
um boxeador, este era Carlo Puttanesca, seu
primo. “Acho que você já bebeu demais meu
amigo.” - Disse Carlo com um tom calmo
mas bem agressivo. O homem chamado
Leon estremeceu, sentindo o peso da mão
daquele brutamontes.
Todos que não estivessem distraídos com
a comida podiam ver que a mão de Carlo o
pressionava igual uma prensa hidráulica.
“Sim... sim; acho que vou me deitar.” -
Disse Leon, sua voz fina igual a de um
garoto na puberdade. Apesar de muito
bêbado, ele apresentava um equilíbrio
anormal. Talvez o medo o tivesse deixado
sóbrio instantâneamente.
“Muito bom, pode ficar com um dos quartos
de hóspedes, agora some da minha frente antes
que eu arranque seus dentes.” - Disse Carlo,
ainda com seu tom de voz calmo. Jogando o
homem contra um dos sofás da casa.
Ele direcionou seu olhar para Francesco
que já devolvia sua taça para o garçom.
Francesco olhou enquanto Carlo esboçar
um olhar diabólico. “Ah não” ele pensou
enquanto seu primo se movia em sua direção
com os braços abertos o envolvendo em um
abraço de urso.
“Francesco!” - Carlo disse enquanto

54 CONTOS V5
colocava o Roselini no chão e começava a
lhe dar tapas gentis no rosto, seguidos por
uma apertada em suas bochechas. É, esse
era Carlo, um paquiderme por fora, mas um
crianção por dentro. De todos os membros
da sua família que compartilham a maldição
do Vampirismo, Francesco pensava que
Carlo era, sem dúvida, o mais humano.
“Ei primo! Quanto tempo. Já faz um
ano eu acho.” - Disse Francesco ainda se
recuperando do choque de ser esmagado
pelo Puttanesca. - “A festa está sendo boa pelo
que eu posso ver.”
“Ah meu bambino, os figurões se recusaram
a nos receber. Disseram que só quando todos
estivéssemos aqui que poderíamos subir. Nem
sinal do Don, nem da cria dele. Falando nisso,
o que você acha do Enzo?” - Perguntou Carlo.
“Nunca fomos muito próximos, mas ele é
um homem de respeito, quando chegar a hora
ele será um bom Don. Mas todo esse misterio
dos Anziani está me deixando preocupado,
eu me lembro de uma época onde os Nonos
eram mais diretos conosco.” - Respondeu
o Roselini, seus olhos se focando na bela
mulher de vestido preto e cabelos castanhos
que se aproximava deles.
Francesco a conhecia bem. Aneta Miliner
era uma das Vampiras mais perigosas que
o Clã já produziu. Sua família, os Miliner,
eram Giovanni dos Estados Unidos, eles são
conhecidos pela sua falta de paciência e por
serem os cobradores de impostos do Clã,
utilizando as três moedas mais preciosas que
os Membros trocam entre si: Favores, Sangue
e Almas. Mas Aneta não era tão versada nas
artes de Necromância como Francesco e seu
ramo da família eram, pelo contrário, ela
era o tipo de pessoa que você manda quando
precisa quebrar as rótulas dos joelhos de
BEM-VINDO À FAMÍLIA 55
alguém. Os mais novos chamavam ela de “Isso é estranho, não é?” - A moça
“Fria e Calculista”, aparentemente isso exclamou - “Esse número fica aparecendo, e
tem a ver com um programa novo que as eu tenho um mau pressentimento sobre isso.
crianças veêm hoje em dia. Por via das dúvidas, vocês estão armados?”
“Primos... Boa noite.” - A senhorita Francesco bateu levemente em seu
Miliner falou enquanto extendia a blazer indicando que tinha uma pistola
mão para Francesco. O Roselini beijou ali, obviamente silenciada, enquanto
gentilmente a mão de sua prima, era Carlo pôs a mão em seu bolso puxando
melhor não furar a etiqueta com essa aí. um soco inglês. A Miliner acenou positivo
Depois disso ela fez o mesmo com Carlo com a cabeça e começou a se dirigir às
que repetiu o processo. “Muito bom, escadas subindo para o segundo andar. Lá
estamos os três aqui. eles se depararam com uma grande porta
Acho que já podemos subir” - Continuou dupla de madeira escura. A porta estava
Aneta. ornamentada com o antigo símbolo
do Clã, da sua época de mercadores de
“Somos três?” Francesco disse, se Veneza. Miliner foi até a porta, mas
lembrando que o número estava Francesco sempre querendo ser cavalheiro
aparecendo muito em sua Não-vida esta abriu a porta para sua prima. É claro que
noite. Primeiro no convite, e agora. Fora o Roselini não era um tolo e isto não era
isso, várias coisas possuiam múltiplos de um mero gesto de cavalheirismo, se havia
três como a quantidade de meses que alguém perigoso ali era a própria Aneta e
ninguém se via e o número de pessoas na todos estavam cientes disso. A moça sorriu
mesa, vinte e sete exatamente.
56 CONTOS V5
para o primo, enquanto este se viravapara socou a parte de trás de seu braço, bem
Carlo e piscava um de seus olhos, ao abrir em seu cotovelo. Todos puderam ouvir o
a porta. barulho horrível de um crack enquanto
“PUTA QUE O PARIU!” - Senhorita observavam o braço de seu primo dobrar
Miliner gritou ao entrar na sala de reuniões para o lado contrário. Aneta entrou em
sem dar nenhum tempo para os outros dois Frenesi e pulou em cima da mulher,
reagirem, e foi aí que eles viram. Na cadeira como uma leoa caçando um antilope.
do Don estava sentado Enzo, praticamente Infelizmente para a Miliner, essa coisa não
sem entender nada do que se passava com os era um antilope, assim que ela pulou, sua
convidados, mas seus olhos estavam fixados presa a prendeu em um estrangulamento e
atrás dele, onde uma figura vestida em um quebrou seu pescoço, é claro que para uma
sobretudo e com uma máscara de caveira vampira isso não significava muita coisa,
parecia pairar. apenas alguns minutos e a utilização de
vitae, e seu pescoço estaria novo em folha.
“PRECURSOR DO ÓDIO! DERRUBEM A única coisa que passava pela cabeça de
ELE!” - O Puttanesca gritou à seus primos, Francesco era “Morte Final”. O que quer
empunhando seu soco inglês e disparando que essa vampira fosse, subjulgou dois dos
para dentro da sala. Havia muitas coisas mais fortes de sua família em um instante,
que não podiam compreender dessa cena, enquanto ele desesperadamente tentava
a principal delas era como diabos um atirar nela, demorou três segundos
Precursor havia passado pelas defesas da para que ele notasse que a arma estava
mansão. Mas não tinham tempo para descarregada.
pensar nisso, a criatura de máscara com
certeza estava ali para destruir Enzo. “CHEGA!” - A voz de Enzo Giovanni
Assim que Carlo correu para salvar o ecoou no recinto. - “Lorde Baskerville,
Giovanni em perigo, como se manifestada faça sua irmã parar!” - Ele se referia ao
do próprio ar, uma mulher apareceu na Precursor do Ódio, ele não estava em
frente dos três. Ela possuía feições como perigo de ser destruído, ele e a criatura
de uma espanhola. Nenhum dos primos estavam... trabalhando juntos? Pelo menos
tinha conhecimento de quem era essa foi o que o Roselini pensou. O Precursor
figura, pior do que isso, ela surgiu na olhou para ele e depois para a mulher que
frente deles como em um piscar de olhos. estava com seu joelho em cima da garganta
“Celeridade” pensou Francesco, sua pistola de Aneta. Francesco percebeu que seus
em sua mão preparando para disparar na olhos eram iguais aos de uma serpente.
mulher. Ele disparou cinco vezes em um “Rosa... é o suficiente.” - O Precursor
curto espaço de tempo, a mulher não falou pela primeira vez, sua voz mais
desviou, ela simplesmente deixou as balas parecida como a de uma aparição do
a atingirem, elas caíram no chão como se que de a de um vampiro. A mulher,
fossem feijões jogados contra uma pessoa. aparentemente chamada Rosa, levantou
O primeiro a chegar em distância corpo seu peso do pescoço de Aneta. Ela retornou
a corpo foi Carlo. A mulher misteriosa para o lado do homem da máscara e Enzo.
BEM-VINDO À FAMÍLIA 57
“Considerem-se com sorte.” - Enzo disse
ajeitando seu terno - “São poucos os que
enfrentam uma Lamia e ficam não-vivos
para contar a história.” - Os outros dois
primos estavam começando a se regenerar
no chão ainda, mas já era possível ouvir seus
ossos voltando para o devido lugar.
“Enzo... o que está acontecendo? Qual o
significado disso tudo? E onde está seu Senhor,
Don Santino?” - As perguntas de Francesco
eram muitas e ele gostaria algumas respostas.
Pelo menos a resposta do por quê aqueles
dois vampiros estavam ali.
“Por favor, cumprimentem Lorde Baskerville
e Rosalía, meus tios. Quanto a meu Senhor,
receio que infelizmente ele tenha falecido.” -
Disse Enzo em um tom melancólico. - “E
antes que você sequer possa sugerir, não, não
fui eu quem o matou. Uma nova era se inicia
para o Clã da Morte, não mais lutaremos
sozinhos contra a Camarilla, o Movimento
e os Mortais. Nós nos tornamos aquilo que
sempre fomos.

Vida,
morte
e renascimento.

Nós somos Hecata,


as três faces da morte.”

58 CONTOS V5
Três faces da morte? Hecata? Tios? As
respostas pareciam só trazer mais perguntas
ao jovem Roselini. Utilizando toda sua
força de vontade Francesco perguntou -
“O Clã Giovanni não existe mais?”
Enzo sorriu com a inocência do rapaz -
“Claro que os Giovanni ainda existem, primo.
Nós somos parte dos Hecata, e eles estão
incondicionalmente ligados a nós, afinal de
contas nós somos uma das 3 faces. E agora eu
quero fazer uma oferta a vocês três. Vocês ainda
podem ser parte dessa família, há lugar para
todos aqueles que descendem de Augustus, ou
vocês podem dar oi ao meu senhor.”
Francesco ouviu as palavras de seu
primo mais velho. Eles podiam não gostar
dessesPrecursores ou Lamiae andando por
aí como se fossem da Família, eles podiam
ter rancor pela morte de Santino, mas Enzo
ainda era um Giovanni, assim como todos
eles, não importando o quão diluído fosse o
sangue. O Roselini se aproximou da cadeira
onde Enzo estava sentado, se ajoelhando e
gentilmente puxando sua mão direita para
seus lábios enquanto sussurrava:

“Don Giovanni.”

BEM-VINDO À FAMÍLIA 59

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