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Ao Sanctissimo Sacramento Estando para Comungar Soneto

Tremendo chego, meu Deus, Carregado de mim ando no mundo,


Ante vossa divindade, E o grande peso embarga-me as passadas,
que a fé é muito animosa, Que como ando por vias desusadas,
mas a culpa mui cobarde. Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
À vossa mesa divina
como poderei chegar-me, O remédio será seguir o imundo
se é triaga da virtude, Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
e veneno da maldade? Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Como comerei de um pão, Do que anda só o engenho mais profundo.
que me dais, porque me salve?
um pão, que a todos dá vida, Não é fácil viver entre os insanos,
e a mim temo, que me mate. Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Como não hei de ter medo Se o atalho não soube dos seus danos.
de um pão, que é tão formidável
vendo, que estais todo em tudo, O prudente varão há de ser mudo,
e estais todo em qualquer parte? Que é melhor neste mundo o mar de enganos
Quanto a que o sangue vos beba, Ser louco cos demais, que ser sisudo.
isso não, e perdoai-me:
como quem tanto vos ama,
há de beber-vos o sangue?
Beber o sangue do amigo
é sinal de inimizade;
pois como quereis, que o beba,
para confirmarmos pazes?
Senhor, eu não vos entendo; Soneto
vossos preceitos são graves,
vossos juízos são fundos, Como exalas, Penhasco, o licor puro,
vossa idéia inescrutável. Lacrimante a floresta lisonjeando,
Eu confuso neste caso Se choras por ser duro, isso é ser brando,
entre tais perplexidades Se choras por ser brando, isso é ser duro.
de salvar-me, ou de perder-me,
só sei, que importa salvar-me. Eu, que o rigor lisonjear procuro,
Oh se me déreis tal graça, No mal me rio, dura penha, amando;
que tenho culpas a mares, Tu, penha, sentimentos ostentando,
me virá salvar na tábua Que enterneces a selva, te asseguro.
de auxílios tão eficazes!
É pois já à mesa cheguei, Se a desmentir objetos me desvio,
onde é força alimentar-me Prantos, que o peito banham, corroboro
deste manjar, de que os Anjos De teu brotado humor, regato frio.
fazem seus próprios manjares:
Os Anjos, meu Deus, vos louvem, Chora festivo já, ó cristal sonoro,
que os vossos arcanos sabem, Que quanto choras, se converte em rio,
e os Santos todos da glória, E quanto eu rio, se converte em choro.
que, o que vos devem, vos paguem.
Louve-vos minha rudeza,
por mais que sois inefável,
porque se os brutos vos louvam,
será a rudeza bastante.
Todos os brutos vos louvam, Gregório de Matos
troncos, penhas, montes, vales,
e pois vos louva o sensível,
louve-vos o vegetável.
Se quero levantar-me, as costas vergam;
Lira I as forças dos meus membros já se gastam;
vou a dar pela casa uns curtos passos,
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, pesam-me os pés e arrastam.
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’ expressões grosseiro, Se algum dia me vires desta sorte,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado. vê que assim me não pôs a mão dos anos:
Tenho próprio casal, e nele assisto; os trabalhos, Marília, os sentimentos
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; fazem os mesmos danos.
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto. Mal te vir, me dará em poucos dias
Graças, Marília bela, a minha mocidade o doce gosto;
Graças à minha Estrela! verás brunir-se a pele, o corpo encher-se,
voltar a cor ao rosto.
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado: No calmoso Verão as plantas secam;
Os pastores, que habitam este monte, na Primavera, que aos mortais encanta,
Com tal destreza toco a sanfoninha, apenas cai do Céu o fresco orvalho,
Que inveja até me tem o próprio Alceste: verdeja logo a planta.
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha, A doença deforma a quem padece;
Graças, Marília bela, mas logo que a doença faz seu termo,
Graças à minha Estrela! torna, Marília, a ser quem era d'antes
o definhado enfermo.
Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Lira XIX
Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora. Nesta triste masmorra,
É bom, minha Marília, é bom ser dono de um semivivo corpo sepultura,
De um rebanho, que cubra monte, e prado; inda, Marília, adoro
Porém, gentil Pastora, o teu agrado a tua formosura.
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono. Amor na minha idéia te retrata;
Graças, Marília bela, busca, extremoso, que eu assim resista
Graças à minha Estrela! à dor imensa, que me cerca e mata.

Os teus olhos espalham luz divina, Quando em meu mal pondero,


A quem a luz do Sol em vão se atreve: então mais vivamente te diviso:
Papoula, ou rosa delicada, e fina, vejo o teu rosto e escuto
Te cobre as faces, que são cor de neve. a tua voz e riso.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro; Movo ligeiro para o vulto os passos;
Teu lindo corpo bálsamos vapora. eu beijo a tíbia luz em vez de face,
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, e aperto sobre o peito em vão os braços.
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela, Conheço a ilusão minha;
Graças à minha Estrela! a violência da mágoa não suporto;
foge-me a vista e caio,
não sei se vivo ou morto.
Lira IV Enternece-se Amor de estrago tanto;
reclina-me no peito, e com mão terna
Já, já me vai, Marília, branquejando me limpa os olhos do salgado pranto.
loiro cabelo, que circula a testa;
este mesmo, que alveja, vai caindo,
e pouco já me resta.
Tomás Antônio Gonzaga
As faces vão perdendo as vivas cores,
e vão-se sobre os ossos enrugando,
vai fugindo a viveza dos meus olhos;
tudo se vai mudando.

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