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POEMAS COMENTADOS

Período: ROMANTISMO 1 – 1ª GERAÇÃO


GONÇALVES DIAS

Poema 17: “O CANTO DO PIAGA”


I
Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite – era a lua já morta –


Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,


Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,


Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,


Todo inteiro – ossos, carnes – tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,


Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

Comentários: publicado em Primeiros cantos (1846), “O canto do piaga” é texto indianista de


notáveis nacionalismo e idealização do indígena brasileiro, além de intensa sonoridade dos
versos eneassílabos, que se opõem à métrica clássica (decassílabos e alexandrinos). O poema se
divide em três partes com um total de vinte quartetos. De antemão o pajé (piaga) dos tupis
chama seus guerreiros para transmitir-lhes uma mensagem dos “Deuses” advinda de um funesto
sonho premonitório que ele tivera na noite anterior, quando “era a lua já morta” e ouvira uma
“rouca voz”. Ao abrir os olhos, “inquieto” e “medroso”, viu “prodígios”: surgiu a seus pés um
fantasma imenso (o demônio Anhangá) com um crânio caído a seu lado (possível metáfora das
futuras mortes dos indígenas decorrentes da colonização branca na América) e uma feia cobra se
enroscar no chão. O sangue do piaga gelou, ele todo tremeu, pois o espectro “era feio, medonho,
tremendo”.

II
Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma


Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!


E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,


Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

Comentários: o horrendo fantasma (Anhangá) indaga ao pajé como ele podia estar dormindo se a
natureza já havia tentado avisá-lo dos eventos sombrios que estavam por vir através de seus
símbolos: o negrume dos céus a ofuscar o sol, a coruja a piar de dia, a copa das árvores
vergarem-se a gemer mesmo sem vento e a lua de fogo nascer vermelha. O espectro pede ao
piaga que preste atenção aos “sons do fiel Maracá”, instrumento de rituais indígenas, o que
sugere o início da sombria guerra entre ameríndios e homens brancos, ficando implícito que o
pajé deveria incitar os tupis contra os europeus, ainda que isso resultasse na “desgraça” e na
“ruína” dos indígenas.

III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente


– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!

Negro monstro os sustenta por baixo,


Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,


O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?


Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,


Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,


Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,


Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama, Os timbiras e


Outros poemas. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 105.

Comentários: esta terceira parte descreve os malefícios para a cultura indígena oriundos da
presença do homem branco na América. Tudo teria início com a chegada dos inimigos, em
profusão, pelas ondas do mar; eles viriam montados em naus feitas de madeiras (“Hartos
troncos, robustos, gigantes”) e cheias de correames (embira e cipó “dos cimos pendente”). Veja
que o fantasma tenta traduzir por meio de uma imagem conhecida do pajé (uma frondosa árvore
cheia de cipós e com garças pousadas em seus galhos) o que eram os navios europeus, com seu
casco (“Negro monstro os sustenta por baixo”), as cordas a sustentarem enormes mastros e velas
(“Brancas asas abrindo ao tufão,/ Como um bando de cândidas garças,/ Que nos ares pairando –
lá vão.”). Resta a pergunta estupefata: “Esse monstro... – o que vem cá buscar?” Eis a triste
resposta cujo fim é alertar o piaga e seu povo: “Vem matar vossos bravos guerreiros,/ Vem roubar-
vos a filha, a mulher!// Vem trazer-vos crueza, impiedade –/ Dons cruéis do cruel Anhangá;/ Vem
quebrar-vos a maça valente,/ Profanar Manitôs, Maracás. [trazer derrotas aos indígenas na
guerra]”.
O monstro (europeu) vem escravizar velhos e até mesmo o próprio pajé (“Vem trazer-vos
algemas pesadas,/ Com que a tribo Tupi vai gemer;/ Hão de os velhos servirem de escravos,/
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!”). Talvez que a salvação única, mas desonrosa porque
covarde, seria uma fuga ao sertão (“Fugireis procurando um asilo,/ Triste asilo por ínvio sertão.”),
ainda que poucos se salvariam de fato e que a covardia e a destruição dos tupis fosse fazer rir o
demônio Anhangá (“Anhangá de prazer há de rir-se,/ Vendo os vossos quão poucos serão.”). O
pedido final do espectro é que o piaga reúna a força de seus deuses contra os brancos (“Vossos
Deuses, ó Piaga, conjura”), de modo a suspender “as iras do fero Anhangá”, mas acaba
sugerindo que sequer assim os ameríndios escaparão (“Manitôs já fugiram da Taba”) da
“desgraça” e da “ruína” futuras.

Poema 18: “CANÇÃO DO EXÍLIO”


Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem que inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama, Os timbiras e
Outros poemas. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 99.

Comentários: um clássico da poesia nacionalista de Gonçalves Dias, “Canção do exílio” trata-se


tanto de um lamento pelo afastamento da pátria amada (Brasil), quanto da exaltação da natureza
brasílica. Note que isso dialoga com o propósito ideologicamente engajado da 1ª geração de
nossa poesia romântica no sentido de criar uma identidade nacional grandiosa para a nação
recém-independente da metrópole (Portugal).
1ª estrofe: a quadra de versos heptassílabos louva as palmeiras e o sabiá (aliás, grafado
com maiúscula alegórica) a ponto de elevá-los a símbolos da beleza paradisíaca de nossa
natureza. Segue-se a comparação do esmaecido cenário natural do exílio (“aqui”: supostamente,
Portugal, pois o poeta aponta que o poema foi escrito em Coimbra em 1841), cujas aves não
cantam de forma tão melódica e apaixonante quanto as de seu solo natal (“lá”, o Brasil, por
óbvio).
2ª estrofe: aumenta a idealização da natureza de “lá” (Brasil) ao apontar outros elementos
que lhe tornam superiores ao “cá” (Portugal): céu mais estrelado, várzeas mais floridas, bosques
com maior diversidade vegetal e animal, além de um cotidiano com mais “amores” (paixões).
Cite-se o fato de tais versos terem incorporado-se ao imaginário cultural brasileiro, muito em
função de eles terem sido citados intertextualmente no próprio “Hino Nacional do Brasil”
(“Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, no teu seio, mais amores”).
3ª e 4ª estrofes: seguindo a regra romântica, vemos que mesmo em sua amada pátria o
sujeito lírico não raro seria tomado por um profundo tédio existencial (“cismar”), o que lhe geraria
mais prazer estando junto à natureza idílica. Mais um vez há a comparação entre o “cá” e o “lá”,
com notória vantagem para o “lá” e seus “primores”.
5ª estrofe: na última sextilha, o eu-lírico faz um comovente pedido a Deus para que não
lhe puna a ponto de deixá-lo morrer em solo estrangeiro, mas que lhe dê a dádiva de ao menos
uma vez mais desfrutar as belezas de sua terra natal e de rever “as palmeiras,/ Onde canta o
Sabiá.” Aponte-se ainda dois outros aspectos do poema: a perfeita junção de sua essência
emotiva com a linguagem simples e fluente selecionada por Gonçalves Dias, bem como que a
“Canção do exílio” teve inúmeras versões e paródias, entre as quais as de Casimiro de Abreu,
Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Cacaso,
José Paulo Paes.

Poema 19: “SE SE MORRE DE AMOR!”


Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,


Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebentar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
De amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente


Alma, sentidos, coração – abertos,
Ao grande, ao belo, é ser capaz de extremos,
De altas virtudes, té capaz de crimes!
Compreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
De aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, é não saber, não ter coragem


Pra dizer que o amor que em nós sentimos;
Temer que olhos profanos nos devassem
O templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, de lusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão porém enfim transborda,


Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas – em puro céu de êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,

Que juntos vivem, – se os separam, morrem;


Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,


Ao seu viver do coração, – às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama, Os timbiras e
Outros poemas. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 133.

Comentários: 1ª estrofe: de acordo com o cânone romântico, o poema relaciona o par AMOR e
MORTE, sendo tal sentimento a hipotética causa da morte iminente. Assim, o turbilhão da festa
(“sarau”) é só a ínfima parte da confusão interior e do turbilhão de sensações por que passa o eu
poético ao se ver apaixonado, o que potencializa a beleza e a plenitude da experiência. Em
outras palavras, o exterior ganha outra vida e graça quando nos flagramos amando.
2ª estrofe: as formas belíssimas a própria graça que emana o ser amado “podem, num
engano d’amor arrebentar-nos” (o coração) e nos matar metaforicamente, diz o eu-lírico. Note,
todavia, que “isso amor não é”, e sim o “delírio”, o “devaneio” e a “ilusão”, enfim, a loucura de
sentimentos somados que nos toma quando amamos.
3ª estrofe: se o amor legítimo sugere nos matar, isso não acontece de fato, pois que o “amor
é vida”, é ter a “alma”, os “sentidos” e o “coração” abertos à grandiosidade, à beleza, a extremos
(“crimes”); o amor permite-nos compreender o “infinito”, a “natureza” e até “Deus”, além de buscar
a “tristeza” e a solidão dos campos. O amor gera festa e riso em nossa alma e coração. O amor
nos leva a emoções exageradas (hipérbole: “fontes de pranto”) e incoerentes (“Conhecer o prazer
e a desventura/ No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto/ O ditoso, o misérrimo dos entes”). O
amor é isso, “desse amor se morre”, sem se efetivamente morrer.
4ª estrofe: amar é não saber e não querer confessar que amamos, é temer que alguém nos
veja o coração, onde, avaros, protegemos o melhor de nós: justamente o amor, que nos leva a tal
harmonia com o ser adorado que o entendemos mesmo sem o ouvir, seguimo-lo sem poder olhar
seus olhos. Amar nos leva a não ousar a confissão de nosso sentimento e a temer até o roçar o
vestido da mulher amada, nos faz querer afogá-la em mil abraços (hipérbole). Isso tudo é o amor,
um sentimento que nos mata para nos fazer nascer outros, novos e revigorados.
5ª estrofe: entretanto, se a nossa paixão encontra reciprocidade, junto e fundido ao ser
amado encontramos o “puro céu de êxtases puros”. Apesar disso, o sujeito lírico cogita a
fatalidade da vida (“fado”) e possível uma separação, metaforizada em um raio que divide um
monte (“píncaro”), no mar que pode correr entre nós e o ser amado, em um tronco rachado pelo
mesmo raio... Tudo isso, porém, não alcança separar “dois corações [...] que juntos batem”, sendo
que, caso os separasse, acabaria por matá-los.
6ª e 7ª estrofes: talvez que, separados, passem a vegetar, monstrando estarem vivos
apenas na aparência e experimentando aflições (“ânsias cruas”) semelhantes às de um exilado
(“proscrito”). Cada qual então dos amantes, tal qual um degredado “em larga insônia” e “em leito
solitário,/ entre as sombras da noite”, “sobrevive à própria ruína” ao viver de ilusões e a devanear
sonhando futuras felicidades (“venturas”), que, contudo, não passam de invejar quem encontra na
morte o fim de seus males (“quem na sepultura encontra/ Dos males seus o desejado termo!”).
Finalmente, em relação à forma, “Se se morre de amor!” é moldado em versos decassílabos
(clássicos), o que é uma exceção na obra de Gonçalves Dias, que evitava tal métrica.

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