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II
Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
Comentários: o horrendo fantasma (Anhangá) indaga ao pajé como ele podia estar dormindo se a
natureza já havia tentado avisá-lo dos eventos sombrios que estavam por vir através de seus
símbolos: o negrume dos céus a ofuscar o sol, a coruja a piar de dia, a copa das árvores
vergarem-se a gemer mesmo sem vento e a lua de fogo nascer vermelha. O espectro pede ao
piaga que preste atenção aos “sons do fiel Maracá”, instrumento de rituais indígenas, o que
sugere o início da sombria guerra entre ameríndios e homens brancos, ficando implícito que o
pajé deveria incitar os tupis contra os europeus, ainda que isso resultasse na “desgraça” e na
“ruína” dos indígenas.
III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.
Comentários: esta terceira parte descreve os malefícios para a cultura indígena oriundos da
presença do homem branco na América. Tudo teria início com a chegada dos inimigos, em
profusão, pelas ondas do mar; eles viriam montados em naus feitas de madeiras (“Hartos
troncos, robustos, gigantes”) e cheias de correames (embira e cipó “dos cimos pendente”). Veja
que o fantasma tenta traduzir por meio de uma imagem conhecida do pajé (uma frondosa árvore
cheia de cipós e com garças pousadas em seus galhos) o que eram os navios europeus, com seu
casco (“Negro monstro os sustenta por baixo”), as cordas a sustentarem enormes mastros e velas
(“Brancas asas abrindo ao tufão,/ Como um bando de cândidas garças,/ Que nos ares pairando –
lá vão.”). Resta a pergunta estupefata: “Esse monstro... – o que vem cá buscar?” Eis a triste
resposta cujo fim é alertar o piaga e seu povo: “Vem matar vossos bravos guerreiros,/ Vem roubar-
vos a filha, a mulher!// Vem trazer-vos crueza, impiedade –/ Dons cruéis do cruel Anhangá;/ Vem
quebrar-vos a maça valente,/ Profanar Manitôs, Maracás. [trazer derrotas aos indígenas na
guerra]”.
O monstro (europeu) vem escravizar velhos e até mesmo o próprio pajé (“Vem trazer-vos
algemas pesadas,/ Com que a tribo Tupi vai gemer;/ Hão de os velhos servirem de escravos,/
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!”). Talvez que a salvação única, mas desonrosa porque
covarde, seria uma fuga ao sertão (“Fugireis procurando um asilo,/ Triste asilo por ínvio sertão.”),
ainda que poucos se salvariam de fato e que a covardia e a destruição dos tupis fosse fazer rir o
demônio Anhangá (“Anhangá de prazer há de rir-se,/ Vendo os vossos quão poucos serão.”). O
pedido final do espectro é que o piaga reúna a força de seus deuses contra os brancos (“Vossos
Deuses, ó Piaga, conjura”), de modo a suspender “as iras do fero Anhangá”, mas acaba
sugerindo que sequer assim os ameríndios escaparão (“Manitôs já fugiram da Taba”) da
“desgraça” e da “ruína” futuras.
Comentários: 1ª estrofe: de acordo com o cânone romântico, o poema relaciona o par AMOR e
MORTE, sendo tal sentimento a hipotética causa da morte iminente. Assim, o turbilhão da festa
(“sarau”) é só a ínfima parte da confusão interior e do turbilhão de sensações por que passa o eu
poético ao se ver apaixonado, o que potencializa a beleza e a plenitude da experiência. Em
outras palavras, o exterior ganha outra vida e graça quando nos flagramos amando.
2ª estrofe: as formas belíssimas a própria graça que emana o ser amado “podem, num
engano d’amor arrebentar-nos” (o coração) e nos matar metaforicamente, diz o eu-lírico. Note,
todavia, que “isso amor não é”, e sim o “delírio”, o “devaneio” e a “ilusão”, enfim, a loucura de
sentimentos somados que nos toma quando amamos.
3ª estrofe: se o amor legítimo sugere nos matar, isso não acontece de fato, pois que o “amor
é vida”, é ter a “alma”, os “sentidos” e o “coração” abertos à grandiosidade, à beleza, a extremos
(“crimes”); o amor permite-nos compreender o “infinito”, a “natureza” e até “Deus”, além de buscar
a “tristeza” e a solidão dos campos. O amor gera festa e riso em nossa alma e coração. O amor
nos leva a emoções exageradas (hipérbole: “fontes de pranto”) e incoerentes (“Conhecer o prazer
e a desventura/ No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto/ O ditoso, o misérrimo dos entes”). O
amor é isso, “desse amor se morre”, sem se efetivamente morrer.
4ª estrofe: amar é não saber e não querer confessar que amamos, é temer que alguém nos
veja o coração, onde, avaros, protegemos o melhor de nós: justamente o amor, que nos leva a tal
harmonia com o ser adorado que o entendemos mesmo sem o ouvir, seguimo-lo sem poder olhar
seus olhos. Amar nos leva a não ousar a confissão de nosso sentimento e a temer até o roçar o
vestido da mulher amada, nos faz querer afogá-la em mil abraços (hipérbole). Isso tudo é o amor,
um sentimento que nos mata para nos fazer nascer outros, novos e revigorados.
5ª estrofe: entretanto, se a nossa paixão encontra reciprocidade, junto e fundido ao ser
amado encontramos o “puro céu de êxtases puros”. Apesar disso, o sujeito lírico cogita a
fatalidade da vida (“fado”) e possível uma separação, metaforizada em um raio que divide um
monte (“píncaro”), no mar que pode correr entre nós e o ser amado, em um tronco rachado pelo
mesmo raio... Tudo isso, porém, não alcança separar “dois corações [...] que juntos batem”, sendo
que, caso os separasse, acabaria por matá-los.
6ª e 7ª estrofes: talvez que, separados, passem a vegetar, monstrando estarem vivos
apenas na aparência e experimentando aflições (“ânsias cruas”) semelhantes às de um exilado
(“proscrito”). Cada qual então dos amantes, tal qual um degredado “em larga insônia” e “em leito
solitário,/ entre as sombras da noite”, “sobrevive à própria ruína” ao viver de ilusões e a devanear
sonhando futuras felicidades (“venturas”), que, contudo, não passam de invejar quem encontra na
morte o fim de seus males (“quem na sepultura encontra/ Dos males seus o desejado termo!”).
Finalmente, em relação à forma, “Se se morre de amor!” é moldado em versos decassílabos
(clássicos), o que é uma exceção na obra de Gonçalves Dias, que evitava tal métrica.