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implorando:
jardineiro do meu pai,
não me corte os meus cabelos,
minha máe me
penteava,
minha madrasta me enterrou,
pelos figos da figueira,
que o passarinho picou.
Por conta dessa lembrança infantil me arrepio ou-
Vindo as mulheres carpideiras encomendarem as almas
que deixam o nosso mundo. Elas não possuem nada de
ubstancial para comer em casa, apenas farinha de man-
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dioca e mangas verdes. Mesmo assim cantam e até ar-
remedam passos de dança, na sala de chão batido. Uma
mulher grávida sofre de anemia e mal consegue cantar,
por causa do cansaço e da fome. Antes de concluir a pes-
quisa, soube que havia morrido. Seu corpo foi velado num
caixão de tábuas e pano rústico, ao lado do bebê natimor-
to. As companheiras entoaram excelências durante toda
a noite, só parando de madrugada, quando a claridade
dissipa as trevas e o medo.
Minhas gravações tinham o único objetivo de re-
gistrar os velórios em desaparecimento, por isso eu não
me
preocupava com a qualidade sonora do que era grava-
do. Quando precisei usar os benditos na trilha do filme,
Sonoplasta me pediu novo material.
-
-O que fazemos?
Pedi que
recuperassem as titas antigas. As vozes artavam,
como se todas as mulheres sofressem falta de
ar. O jogo
de seduzir a morte tira o
fôlego. Sabendo que também
iriam morrer, elas cantavam
aos berros,
ganhavam um minuto a mais deporém
assim náo mesmo
carmelitas existência. AS
das vidas a
negociavam diretamente
com Deus, aboliam
paixão,
de taipa, nem
nada de manga com
farinha em casa
danças em terreiro de chão batido.
-
mortas.
-
Usem a gravaçáo das carpideiras
um longa-metragem
Pareciam dizer: é um filme rústico,
essas
condenado a desaparecer c o m o
em bitola super-8,
mulheres primitivas.
Inhamuns.
Ninguém vai saber disso.
- Mas eu sei.
de ovos.
Certamente nunca.
Certamente nunca.
não acreditam em
Assombrando a quem, se as pessoas
almas penadas?
acredito e me assombro.
- A mim, que ainda
filme para você mesmo.
Aí você decidiu fazer um
cria pensando nele.)
-Um artista
-Tanto esforço, o sacrifício de tanta gente para
O seu prazer.
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Vai entrar?
Pergunta o motorista.
Não.
Capa
Raul Loureiro
Imagem de capa
Wayne Miller/ Magnum Photos/ Latinstock
Revisão
Eduardo Rosal
Rita Godoy
Ana Grillo
B877a
Brito, Ronaldo Correia de
O amor das sombras / Ronaldo Correia de
Brito.
1. ed. Rio-
2015
Todos os direitos desta
EDITORA OBJETIVA LTDA.edição reservados à
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Velho, 103
222.41-090- Rio de
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