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Lua

-Quando irá escrever um livro igual a Faca?


- Certamente nunca.

Escolhia as músicas do filme Lua Cambará, quando achei


as gravaçóes dos benditos para encomendar os mortos.
Dez fitas cassete arquivadas num isopor. No nordeste
do Brasil ainda se entoam cantos cheios de religiosidade
durante as cerimônias fúnebres. As vozes das mulheres
pareciam brotar do cháo, belas e estranhas. Mais do que
nostálgicas, transmitiam um profundo sofrimento.
Náo conseguia esquecer a história da menina dos
cabelos de ouro, enterrada viva pela madrasta, por con-
ta de uns figos que ela deixara os
passarinhos picarem.
Na versão magra e rural da minha avó, o trigo
europeu,
que se assemelhava aos cabelos da menina, era transfor-
mado em capim, crescido em torno da cova. O jardinei-
ro, ao tentar arrancá-lo com a enxada, escuta uma voz,

implorando:
jardineiro do meu pai,
não me corte os meus cabelos,
minha máe me
penteava,
minha madrasta me enterrou,
pelos figos da figueira,
que o passarinho picou.
Por conta dessa lembrança infantil me arrepio ou-
Vindo as mulheres carpideiras encomendarem as almas
que deixam o nosso mundo. Elas não possuem nada de
ubstancial para comer em casa, apenas farinha de man-
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dioca e mangas verdes. Mesmo assim cantam e até ar-
remedam passos de dança, na sala de chão batido. Uma
mulher grávida sofre de anemia e mal consegue cantar,
por causa do cansaço e da fome. Antes de concluir a pes-
quisa, soube que havia morrido. Seu corpo foi velado num
caixão de tábuas e pano rústico, ao lado do bebê natimor-
to. As companheiras entoaram excelências durante toda
a noite, só parando de madrugada, quando a claridade
dissipa as trevas e o medo.
Minhas gravações tinham o único objetivo de re-
gistrar os velórios em desaparecimento, por isso eu não
me
preocupava com a qualidade sonora do que era grava-
do. Quando precisei usar os benditos na trilha do filme,
Sonoplasta me pediu novo material.
-

Retornar ao Ceará? Ficou maluco? As mulheres já


morreram todas.

Provavelmente, sim. Vivendo na miséria, passando fome


e morando em casas de taipa,
náo duravam muito. Be-
souros se escondiam nas trestas dos
telhados, entre as
varas trançadas e o barro do
reboco. Eram conhecidos
barbeiros, porque preferiam a face de suas vítimas.
como
Deixavam os esconderijos à noite,
elas adoeciam quase sempre do
picavam as pessoasse
coração. Inchavam os
pés e os rostos, cansavam
morriam cedo. Talvez por
e
isso
gritos
os e as
perguntas do canto fúnebre: Aqui che-
gou uma donzela, Deus do Céu mandou
chorava e dizia: ô meu Deus,
chamar, ela
por que será? Morriam
sem ouvir a a
resposta pergunta: por que será? A dúvida
reverberava na fita cassete, causando
mulheres estranhamento. As
carpideiras se
queixavam dos sofrimentos da
morta:
uma excelência da Virgem da
ai que dor, minha mãe,
Conceição,
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ai que dor no coração,

ai que dor, minha máe!


Diante dessas evidências, achando que náo encon-

traria uma única de minhas cantadeiras viva, decidi náo


ao sertão. Um amigo sugeriu o coro de carmeli-
retornar
tas descalças.
- E ainda existe essa ordem?
Existia um mosteiro em (Camaragibe, próximo ao

Recife, com irmás enclausuradas praticando a liturgia e

os votos antigos. Cantavam parecido com as romeiras,


garantiuo informante.
Fui visitá-las na companhia do sonoplasta. Umaa
das irmáás tornara-se conhecida pela voz. Conversamos
através de uma porta com treliças, deixamos um grava-
dor de boa qualidade e uma cópia da fita original. Indi-
quei três benditos no cassete, selecionados para o filme,
e sugeri que procurassem alcançar a mesma intensidade
dramática. Voltei após quinze dias, recebi o gravador de
volta, as fitas e um pedido de desculpas.

-E impossível a uma irm reclusacantar dessa maneira.


Deixamos de sentir essas emoçóes.
Eu também perdi coisas pelo caminho. Nao consigo es
crever como há quarenta anos. Nunca mais escreverei um
livro de contos igual a Faca.
Mesmo percorrendo a estrada que me leva à casa
onde se escondeu Domísio Justino, a quem acrescentei
um
prenome João, para tornar mais próximo e familiar
0assassino que me persegue desde a infância. Durante
minha vida história do tio infeliz, contei-a sem-
repeti a
pre igual, até o cansaço. Não me venha citar o rio de
ieráclito, diferente a cada travessia. Náo mudemos os
detalhes dos acontecimentos.
Nenhuma mudança é im-
portante em si mesma, ela é sintoma ou
consequëncia de
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uma carência ou imperteição. Soa paradoxal, mas as coj


sas mudam porque através do movimento elas buscam o
repouso, um acordo de contrários. Meu movimento é a
busca de um remédio que anule a obsessão. Repito essa
história desejando reconciliar-me com os tantasmas que
me apavoram. Luto e me reconcilio, luto novamente e
desse modo progrido.
Lua Cambará é uma lenda sertaneja. Mestiça de
escrava negra com um coronel dono de terras, Lua rejei-
ta o lado negro da máe, perseguindo seu povo sem com-
paixão. Recebe do pai branco um chicote e a herança
de poder, depois que ele morre. Cobiçada
pelo Capataz,
ela se apaixona por seu
vaqueiro João, que a rejeita. Joáo
rejeita a patroa e ama a esposa, Irene. Lua decide matá-la
e se
apropriar do seu marido, da mesma maneira que se
apodera das terras. O Capataz apunhala lrene e, numa
luta com João, os dois morrem.
Enquanto agoniza, Irene
amaldiçoa Lua: ela terá uma vida de horrores
e, após
sua morte, nem o
céu, nem a terra, nem o inferno rece-
beráo seu corpo. Vagará
pelo mundo como alma pena-
da, assombrando as pessoas, sem
jamais conhecer um
repouso.

-O que fazemos?

Pedi que
recuperassem as titas antigas. As vozes artavam,
como se todas as mulheres sofressem falta de
ar. O jogo
de seduzir a morte tira o
fôlego. Sabendo que também
iriam morrer, elas cantavam
aos berros,
ganhavam um minuto a mais deporém
assim náo mesmo
carmelitas existência. AS
das vidas a
negociavam diretamente
com Deus, aboliam
paixão,
de taipa, nem
nada de manga com
farinha em casa
danças em terreiro de chão batido.
-

Náo podemos cantar igual. Não


sas mulheres sentimos o que es
sentem. São dores
irreconhecíveis. Dores
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um
de desamparo. Elas cantam para
de parto, de fome,
n u n c a escuta.
Deus que

Deus contra todos.


Cada um por si e

mortas.
-
Usem a gravaçáo das carpideiras

um longa-metragem
Pareciam dizer: é um filme rústico,
essas
condenado a desaparecer c o m o
em bitola super-8,

mulheres primitivas.

retornado ao território da infância.


Para filmar, eu havia
o imaginário do que
é
Precisava de sol, vegetação seca,
seu leito nas terras
do
sertão. C rio Jaguaribe ampliava
rasas mal co-
Monte do Carmo, se alargava. As águas
índios jucás e
briam meus pés. Os antigos moradores,
charcos for-
inhamuns, chamavam as pequenas lagoas -
enchentes do rio- de
mados em lugares baixos devido às
Poeira é terra reduzida ao pó mais fino,
o vento
ipueiras. Poeira
e enche os olhos das crianças e as casas.
carrega
secas. Rebanhos de gado pastavam
d'água em planuras
colonizado-
no planalto fértil, enriqueciam os primeiros
res. Eles construíam casas imitando palacetes da Europa,
o fausto de uns poucos abrasonados,
senhores de bichos
e pessoas. Náo mergulho no rio porque ele no chega à
metade de minhas pernas, mas preciso enfiar-me de ca-

história. O que resta desse tempo? Nada. Até os


beça na

senhores anelados se foram.

lam caindo: à esquerda e à direita iam caindo;


Alexandre e Francisco, meus bisavós tombaram, o
primeiro com sua farda de gala, seus botões de
ouro e sua patente de coronel e o outro com sua
barba nunca mais alisada e sua bengala de castão
de ouro."
210

acha de citarmos esses versos de Gerardo MMello


O que
Mouráo?
-Discordo. O roteiro vai fiIcar mais confuso
ainda. E Gerardo não tem nada a ver com o sertão dos

Inhamuns.
Ninguém vai saber disso.
- Mas eu sei.

Nem a lembrança desses nomes sobrevive, apagada pelo


chiado das televisões. Mesmo assim eu procuro. Nunca
tenho certeza se o sertão que carrego comigo me reco-
nhece. Sinto ardência no peito, a inquietação do retor-
no. Contemplo o Jaguaribe. Vou e volto de um lado para
outro e ele me parece estranho. Um rio de memória, de
ouvir falar. Lembra o rio? Qual? Aquele, o único. Ah,
antigo! Atravesso cem vezes os filetes d'água, querendo
provar-me que ele é sempre o mesmo. Onde estão os reba-
nhos, os vaqueiros, as mulheres caminhando sonâmbulas
dentro dos quartos? Já não mora mais ninguém na casa,
todos se foram. A sala, o dormitório, o pátio jazem des
povoados. Não resta ninguém, todos partiram. E eu te
digo: quando alguém vai-se embora, alguém permanece.
O lugar por onde um homem passou nunca mais será
ermo. Somente está solitário, de solidão
humana, o lugar
por onde nenhum homem passou. Recito obsessivamente
o poema de Cesar Vallejo. Todos de fato deixaram a casa,
mas na verdade todos continuam dentro dela. E mentira.
Preciso de gente para a figuração no filme e não encon-
tro ninguém. Do palacete do Visconde restam apenas os
alicerces. Ando por cima de pedras e tijolos, avaliando a
construçáo. Ao lado dos velhos alicerces, teimando de pe,
a casa da filha do
homem poderoso exibe restos de pintu-
ra nas paredes, cal mesclada com claras de ovos para dar
liga e brilho.
211

Passe a mão, sinta a superticieea textura. Era bem efi-


ente a técnica de misturar a cal, o pigmento e as claras

de ovos.

Qualquer galão de PVA alcança o mesmo eteito.


- Duvido. Faz tempo que a casa foi pintada, du-
Tentos anos, talvez. A tinta pVa teria largado das paredes.
Quantos ovos gastaram?

Rio e penso em galpées de granjas, luzes acesas, galinhas


confinadas comendo purina e pondo ovos diae noite,
funcionários colhendo os ovos, partindo as cascas, sele-
cionando apenas as claras.

O que faziam das gemas?


- Sei lá! Comiam. Já experimentou gemada? E
bom. Você poe a gema num copo, açúcar, canela em pó,
e bate com uma colher, até adquirir consistência cremosa.
Se quiser, põe leite quente e bebe.
Eo colesterol?
Nesse tempo ninguém dosava colesterol, nem
triglicerídeos. Comiam o que havia pra comer. Nas estia-
gens passavam fome e se retiravam da terra.
Pule essa página, li Rachel de Queiroz e Graci-
liano Ramos, também nasci aqui.
Então náo pergunte besteira.

Mesmo sendo a locação perfeita, o cenário natural onde


parte da história acontecera de verdade, náo era possível
rodar o filme nos Inhamuns. Faltava energia elérrica,o
acesso de carro revelou-se dificil, não havia intraestrutura
inima e nós precisávamos fazer grandes deslocamentos
Odos os dias, pois não tínhamos como alojar as equipes.
Atores e técnicos trabalhavam na zona de sacritício, sem
4nnar nada, a não ser a experiência de filmar numa bitola
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No monte do Carmo.
amadora e poder conhecer a região.
uma cena diurna, um velho a r
no máximo rodaríamos
ruínas de uma casa e de um curral de
ranchado entre as

câmera abria em panorämicas, mostrava pla-


pedras. A se

rio correndo, matas e vastidQes. Num recanto da


nuras, o
u m ator representava um velho enlouquecido, falava
casa,
sobre a ruminação da memória.

- Meu nome está escondido nessas paredes salgadas


do escravo sem nome, nesses torroes
amargos,
pelo suor
mim. tempo me
duros, que o vento amontoou sobre
ensinou a ruminar. Eu rumino o bredo dos séculos que
comi. Rumino como os velhos teiticeiros a memória
das
eras antigas. Minha memória é feitiço que dobrao tempo,
do sol, que deixa a lua reinar no
que marca o ponteiro
sangue moreno da terra.

O poema de Assis Lima retorçava as imagens, tornava

mais eloquente o abandono.

A chuva ameaçou o filme. Era mês de dezembro e como


as poucas famílias que ainda moram no campo espera-
vam, começou a chover. O inverno. Na busca de nova lo-

cação, descobrimos Alverne. No meio de


a casa no monte

paredes teimando em ficar de pé, havia quatro pedestais


de mármore para esculturas de mulheres representando
as estações. Apenas uma sobrevivera, danificada. Alguém
procurou descobrir no coração da estátua, no seu lugar
mais secreto, ouro guardado. Torturada por maos fortes
e uma marreta, a mulher de vestido longo, primaveril,
nada confessou sobre tesouros. O mármore só escondia
mármore e por isso foi desprezado. No matagal atrás da
casa, entre lajedos e espinhos, com o rosto exposto ao SO
forte e à chuva, deixaram que a mulher dormisse, mutila
da e esquecida.
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Ninguém se lembra de coisa alguma, todos perderam
a memória. Vivemos numa sociedade desgarrada do seu
nassado mítico. Não ria. Essa região conheceu uma tra-
dicão épica, poucas comunidades tiveram uma saga pa
recida. O que houve, por que esqueceram a história? Não
sei responder. Não resta um vínculo, um pé lá atrás no
passado.E também não se enxerga um futuro à frente.
Por um acaso eu sei a crônica dessas esculturas. Foram
transportadas no porão de um navio, no século x1x, de
Carrara para o Recite. Do porto do Recife, vieram em
carros puxados a boi até esse mundo perdido. Durante
meses, as rodas de madeira e ferro dos carros rangeram
pelos caminhos, nas picadas abertas a foice. Ainda não
existiam estradas. Primavera, Verão, Outono e Inverno,
as quatro representantes das estações na Europa, chega-
ram ao destino sem um arranho. Que alegria elas pro
porcionavam aos seus donos? A ostentação e o poder? O
que sentiam os homens belicosos acostumados a matar e
a mandar matar, quando olhavam as graciosas figuras?
Eas mulheres patroas, igualmente cruéis, sentiam inveja
de náo serem tão belas? Eram matriarcas de chicote na
máo, com sangue indíigena correndo nas veias. Faltavam
mulheres brancas portuguesas e a lgreja aconselhava o ca-
samento dos machos brancos com as fêmeas índias.
Que discurso saudosista! Está fora do script.
Comece novamente e não perca o ritmo. Ritmo!

Certamente nunca.

Kepito a frase do começo, ela é o mote necessário à nar-


ativa, o verso que os violeiros jogam uns para os outros,
oDrigando o cantador à mesma cadência e engenho. A
descoberta no monte Alverne deixou a equipe abismada.
Nosso roteiro não detinha apenas
se no
imaginário.
214

Certamente nunca.

Outra vez o repente.


A descoberta da casa do monte Alverne serviu
apenas para nos deixar deprimidos e confusos. Choveu
e o sertão transformou-se. Ficou verde, exuberante, uma
terra prometida. Atravessamos o rio Jaguaribe de volta.
Não queríamos falsificar o imaginário que o Romance de
30, os filmes de cangaço e os delírios de Glauber Rocha
tinham exportado para o Brasil e o restante do mundo.
Sertão de verdade precisava ser árido, cinza, marrom,
imagem em preto e branco de miséria e revolta. Nosso
filme falava de almas assombradas. Os castigos vinham
do céu, a justiça de Deus, que também havia sido expulso
daquele território. Cada um por si e Deus contra todos.
Repetia o título original de um filme de Herzog, enquan-
to lá fora a chuva ia chovendo, a goteira pingando e o
sertão adquirindo vida, cores bem diversas das sombras
do nosso roteiro.

E se improvisarmos um novo filme? Por que não con


tar a história da longa travessia do sertão com as estátuas?
Herzog já fez isso em Fitzcarraldo.
Mas ele se aventurou pela Floresta Amazônica.

Com um navio, um gramofone e os discos do tenor ita-


liano Caruso. Bem mais complicado do que percorrer lé
guas de terra firme num carro de bois, levando apenas
quatro estátuas. Fitzcarraldo tinha delírios de grandeza,
realizou a empreitada maluca e terminou sozinho, su-
bindo e descendo o rio Amazonas no seu barco, ao som
de Caruso. Qual era o delírio dos sertanejos, mandando
buscar estátuas na Itália? Ambição de grandeza? Só temos
duas estações no ano: a das chuvas, que chamam errado
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de inverno; e os dias de sol, nosso eterno verão. Mesmo
assim, no carregamento também vieram a primavera e
o outono. As quatro mulheres de mármore olhavam do
monte Alverne as sesmarias de terra fértil, cheias de gado
pastando, e sentiam saudade da Itália.
O pasto se acabou, as águas diminuíram, os bois
e as vacas morreram, os vaqueiros perderam o trabalho,
oS aboiadores deixaram de cantar para os rebanhos, os
mascates sírios e libaneses não tinham mais a quem ven-
der suas quinquilharias. Os coronéis já não brigavam
pela posse da terra intértil, asveados e as ca-
onças, os

mortas a tiro, centenas de milhares de


ças maiores foranm
aves e pequenas tiveram o mesmo fim. Os ricos
grandes
empobrecidos migraram, osimpérios sertanejos se desti-
zeram, as casas ruíram.
Primeiro migraram os soldados

da borracha, em busca de tesouros na longinqua Amazô-


nia. Os agricultores e pecuaristas largaram as esposas e
os filhose saíram atrás de emprego nas cidades grandes,
acidentados na constru-
foram edificar Brasília e morrer
mandaram buscar as ta-
ção civil. Os maridos ausentes
bairros mais
milias para viver na periferia das cidades, em

miseráveis e violentos do que o sertáo abandonado por

causa da fome. O rádio, a televisão e a internet ocuparam


ficaram. Os costumes
tempo e a vida dos poucos que
memória se perdeu, a
tornaram-se estranhos, a
antigos Restaram fantas-
epica sertanejavirou folheto de cordel.
mas, mortos assombrando os vivos.

não acreditam em
Assombrando a quem, se as pessoas

almas penadas?
acredito e me assombro.
- A mim, que ainda
filme para você mesmo.
Aí você decidiu fazer um
cria pensando nele.)
-Um artista
-Tanto esforço, o sacrifício de tanta gente para

O seu prazer.
216

-Caramba, é complicado. Náo se trata de alie-


sociedade que per-
nação social. Meu filme mostra uma
deu a memória e os vínculos com o paSsado mitico, in-
náo tem futuro. Qual
gressou na pós-modernidade,
mas

é o futuro dessa gente de Saboeiro?


Por que não generaliza a pergunta: qualo futu-
ro de qualquer pessoa hoje? Assim, ninguém vai chamá-lo
de regionalista.
Vá se danar, Assis Lima. Assumo meu regiona-
lismo. Queria que eu fosse universalista?
-Calma!
Posso citar? Perdemos nossas reterèncias no
passado e por isso vivemos o fim do futuro. Prefiro escre-
ver sobre mortos, que continuam nos assombrando.
Juan Rulfo já fez isso em Pedro Páramo.

A chuva não deixava filmar. Precisávamos descobrir novas


locações ea equipe saiu à procura. Alojado num sobrado
velho, sem paciência para ler ou conversar, eu era a
pró
pria alma penada. De noite, não conseguia dormir. Os
telefones não funcionavam e as
mensagens vinham atra-
vés dos programas de
repentistas, nas rádios locais. Desde
que a
região fora
habitada, há três séculos, os cantadores
se tornaram um meio
de comunicação entre as
Nada diferente da Grécia pessoas.
Os violeiros
Antiga e da Europa Medieval.
perambulavam pelas fazendas, cantando no-
tícias em versos.
Homens e mulheres ouviam as
toadas na
esperança de que algum dos recados fosse
Podia ser de um irmão, reconhecível.
que partira há muitos anos, de
um
amigo, de um tio ou
compadre. Quando cantava os
improvisos na viola, o bardo ouvia o choro de
mensagem fora reconhecida.
Acalmado o pranto, o des-
alguém. A
tinatário desejava saber
vivia, envelhecera, ficarapormenores do remetente. Como
rico? Fazia
tempo, o nao poeta
217

feiçóes nem o jeito de quem havia pago a


lembrava as
carta sonora. A memória guardara apenas a mensagem,

transformada em poema, entoada de casa em casa, na

algum dia chegasse ao ouvinte certo.


esperança de que
Felizmente inventaram o rádio e as mensagens podiam
ser transmitidas no mesmo dia.
Certa madrugada acordei com buzinas de carro.
fosse minha equipe trazendo novidades
Imaginei que
dormia e sem
sobre a nova locação. Pulei da rede onde
acordar direito corri para a porta. Estava hospedado
num

primeiro andar. A escada não possuía grades


em torn0,

fosso rolei pelos degraus de al-


eu caí numa espécie de e

venaria. Machuquei-me sério, mas os fantasmas zelavam

e amortizaram a queda. Lá embaixo, sem con-


por mim
no dia
seguir me levantar, chorei meu desespero. Apenas
Devíamos partir. O
seguinte chegou notícia pelo rádio.
Pernambuco. Filmaríamos em três
paradeiro era Exu, em
fazendas diferentes, no raio de poucos quilômetros. Lá, a
chuva ainda não havia chegado.

Enquanto a equipe se deslocava para o novo endereço,


cismei de visitar o lugar mais assombrado de minha in-
fancia, a Casa Grande do Umbuzeiro, habitação tipica-
mente portuguesa, construída no final do século xVIII
por um tio no sétimo grau. O padre vaqueiro vivia com
uma índia da região, teve doze herdeiros com ela, uma
tribo semelhante à dos filhos de Jacó. Quando Domísio
Justino assassinou a esposa Donana, alegando que a mu-
Iher o traía, fugiu e escondeu-se na casa do irmão padre.
Domísio viajava ao Recife, transportando fardos de carne
do Ceará. Numa dessas viagens se apaixonou por uma
Jovem, prometendo casamento. Não revelou seu estado
CIVil e procurou meios de livrar-se da esposa, a máe de
seus nove filhos. De volta aos Inhamuns, vinha triste,
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com saudade nos olhos, nem queria saber de Donana.
Ela chupava a safra de umbu da fazenda. O fruto azedo
era sua vingança pelo abandono, o riacho correndo atrás
da casa, o único deleite. Tomava banho nua, os cabelos
longos boiando na correnteza. Só nessas horas conseguia

esquecer o desprezo do marido.


Já fazia um ano de sua última partida e, no retorno,
mais magro e mais infeliz, o viajante no olhou a esposa.
Máe de Misericórdia, gemeu Donana, piedo-
-

sa, ajoelhada aos pés do oratório, onde destiava a única


culpa: existir.
Numa tarde em que se banhava sozinha, resguar-
dada pela sombra de dois ingazeiros, Domísio agarrou-a
pelos cabelos e enfiou um punhal em suas costas.
Donana gritou, o corpo lavado em sangue, tingin-
do o riacho, depois o rio e por último o oceano.
"A vós bradamos, gemendo e chorando nesse
vale de lágrimas', nas últimas forças ela tentava escapar
ao marido.
Os degredados filhos de Eva alcançaram a máe
quando ela caiu morta, as máos cheias de umbus.
Os dois irmãos vieram em socorro, mas já nao
havia o que pudessem fazer. Arrancaram a faca, com o
sangue ainda quente na lâmina, e foram à casa do padre,
atrás do criminoso. Sabiam que ele havia se escondido
ali. Num quarto escuro, no centro da
construção labirin-
tica, Domísio tremia. Não tivera tempo sequer de lavar
as mãos e trocar de roupa. Os irmáos de Donana falaram
ao
padre que mandasse Domísio Justino sair no terreiro.
Um deles apeara-se do cavalo e
segurava a faca com dis
plicência. Num impulso, a filha mais velha da morta, que
Viera socorrer o
pai, correu sobre o tio, arrancou a arma
de sua mão e arremessou-a para
viram
longe. Alguns juram qu
a ave
prateada reluzindo voando cega, outros eS
e
cutaram apenas o som do metal se chocando contra as
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pedras. Certo mesmo é que a faca nunca foi encontrada.
O padre inmplorou aos dois vingadores que não executas
sem o irmão dentro de sua casa. Respeitassem as leis ser-
tanejas, que garantem salvaguarda aos hóspedes. Os dois
homens choravam e tremianm. Dizem que sentiam ódio.
A verdade é que eles se foram e de Domísio Justino nunca
mais se teve notícia.
Visto pela última vez numa manhá nublada, o
corpo branco, do tempo que ficou sem tomar sol. Mor-
to, certamente. Ou esquecido como o punhal lançado no
terreiro.

O mundo é um cercado com muitas portas. Contemplo


a casa de longe, um pé descansando numa trave da por-
teira. Parece táo serena, vista agora em meio à reserva de
mata. Nem parece o cenário de tanto sofrimento. Penso
no infeliz Domísio Justino fechado no quarto escuro, sem
distinguir as noites dos dias. Quanto tempo viveu? Foi
emboscado e morto pelos irmãos de Donana? Faço a per-
gunta desde que aprendi a falar. E a faca, onde se perdeu?
Corro os olhos pelo terreiro e estremeço à possibilidade de
avistá-la. Um homem alheio aos acontecimentos trágicos
do passado cuida de animais. Qualo futuro desse mundo
sem história? Não sei de nada. Uma cerca de arame farpa-
do e a porteira me separam dele, interditam meu acesso.
Um muro. Basta que eu empurre a porteira e avance.

Vai entrar?

Pergunta o motorista.

Não.

espondoe prosseguimos a viagem em silêncio.


Ronaldo Correia de Brito

O amor das sombras


ALFAGUARA

2015 by Ronaldo Correia de Brito

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da


de 1990, queentrou em vigor no Brasil em
Lingua Portuguesa
2009.

Capa
Raul Loureiro

Imagem de capa
Wayne Miller/ Magnum Photos/ Latinstock

Revisão
Eduardo Rosal
Rita Godoy
Ana Grillo

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

B877a
Brito, Ronaldo Correia de
O amor das sombras / Ronaldo Correia de
Brito.
1. ed. Rio-

de Janeiro: Objetiva, 2015.


22Ip.
ISBN 978-85-7962-415-5
1.
Ficção brasileira. I. Título.
I5-22963 CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3

2015
Todos os direitos desta
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Janeiro-RJ
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