Você está na página 1de 10

Hipólito

FAZ mais de um ano que nos conhecemos, mas ainda não


esgotamos nosso mútu0 fascini0, extinto e
do, como Fenix sempre renova-
ressurgir das proprias cinzas. Ontem
a
mesmo eu lhe dizia que ele
parece um entomologista a con-
templar, incansável, a sua borboleta favorita eu. Só que
-

ele. acrescentei um tanto


da redoma. Ao que me
maldosamente, é quem está dentro
respondeu, com seu jeito sério
tranqüilo, entre duas garfadas de peixe, num dos restauran-e
tes que costumamos
frequentar, em
trabalho e antes de nos recolhermosCopacabana,
à saída do
aos nossos
pequenos
apartamentos solitários, nas prOximidades: "Cada qual den-
tro de sua redoma."
Mas, embora o elo que nos une esta emoção secreta?
um estranha
identificação?- nao se rompesse, meu pre
sente com ele é todo
feito, eu sei, de
andando continuamente ao lado do passado.
Como alguém
cadáver de um grande
amor. Que se movimenta e
fala, apesar de morto. E minha
necessidade de escrever sobre
ele, agora, é como a de al-
guem que se dispusesse, enfim, a elaborar o epitáfio para a
tumba de um ente muito
Meu relato
querido,
poderia intitular-se: *0 homem, esse desco-
nhecido." Ou: *0 pôquer do amor.'" Ou, ainda: **Másca-
ras. E nao
começaria precisamente no dia do meu primeiro
encontro com ele, mas
algumas semanas antes, talvez,
quando um amigo me perguntou: **O que você faz com tanta
liberdade, Madalena?' E eu respondi: Você deveria
*"

guntar o que faço com tanta solidão." per


(Quem sou eu, afinal, Dr. Klaus?- tenho
interrogaao
meu psicanalista. Sim, quem sou eu, para além dos simples
dados contidos na
carteira de identidade: um nome, um on-l

20
dereço, uma profissão. Pois não parece estar realmente na
pele desta mulher madura e ainda bela que observo ao espe
Iho com estranheza. Separada de um marido, viúva de ou
tro, alguns casos notórios já encerrados; sem filhos, paren-
tes mortos, ganhando o próprio sustento. Serei eu, Dr
E
Klaus' não tendo ninguém realmente íntimo nesta cidade
de oito milhões de habitantes, o Rio de Janeiro.
Passaria, em seguida, a falar das primeiras vezes em
que ele conversou comigo, em nosso local de trabalho, onde
eu era então uma recém-chegada. Sim, porque trabalhamos
juntos. Quem sabe num conservatório, onde ambos ensina-
mos musica piano, talvez. Ou num atelië de artes plásti
c a s -ele pintor, eu escultora?- que usamos em comum
com outros artistas. Ou, ainda, num curioso laboratório de
alquimistas no qual os dois, por diferentes métodos, procu-
ramos, ahn, a pedra filosofal
Mas me decido pela máscara de músicos- sim, ele é
um Jovem Pianista. E se aproximou de mim, como pareciam
pensar os demais colegas de conservatório, com um desem
baraço surpreendente para um rapaz (tudo levava a crer) ex-
tremamente tímido, introvertido - e solitário. Para que, por
outro lado (imaginei, a fim de me justificar, pois a idéia me
ocorreu logo de saída) não deixaria de oferecer um encanto
algo picante a ligação com uma mulher mais velha, de Pas-
sado Algo Tempestuoso, como eu.
Portanto, no salao do conservatório, conversamoos
como se nos conhecêssemos desde sempre -sobre música,
nossas viagens, a vida. E minha primeira visita ao aparta-
mentinho dele aconteceu com toda naturalidade: de repente,
ali estava eu no meio dos discos espalhados, a radiola, o
sofá (apenas um estrado com almofadas estampadas), o pia-
no, gravuras pelas paredes. Tudo muito limpo, com uma mi-
núscula cozinha em que ele se meteu, pouco depois, para
preparar um macarrão.
Findo o jantar, depois de alguns uísques e um Cointrea
meu desejo por ele devia estar à flor da pele, bem visível o
que o levou a falar, com sua voz cheia de polidez: "Me sinto
meio paralisado, quem sabe por causa do excesso de res-
peito que você me inspira." Sai do apartamento, dirigi para

21
casa, abri a porta, acendi a luz do abajur. Foi quando o tele
fone tocou. "Madalena", diSse ele, do outro lado do fia
eu vou para ai agora."
Deixei a porta entreaberta, para que nao se perdesse na
escuridão do corredor. Mas, logo naquela primeira noite.
quando me deu um prazer requintado, como talvez eu nunca
tivesse experimentado antes, verifique: ""Você é enigmáti
co." Ele sorriu, nu, a meu lado. Tinha um corpo musculoso
e frágil, ao mesmo tempo, como um atleta adolescente. Ob
servando seu rosto moreno, voltei a comentar: "Sempre me
disseram que sou enigmática. Mas enigmático é você."
Havia naquelas feições - os olhos escuros, o cabelo li-
geiramente crespo, a barba negra alguma coisa do fatal
encanto das esfinges. "Decifra-me ou te devoro."" Já me
chamaram de príncipe abissinio, de mouroe cigano", disse
ele, com alguma petuläncia. Mas não consegui imaginar mu-|
Iher alguma falando essas coisas.
Vejo você", eu disse, "é numa cabana de lenhador,
bem no meio da densa floresta fria. Vestindo um casaco de
amurça torrado com pele de carneiro, usando boné de pele.
Só você e um grande cachorro peludo. Não aparece jamais
ninguém, além de dois amigos com rostos estranhos. E uma
mulher, muito raramente, de quatro em quatro meses, tal-
vez. Você- voce...
gaguejei, percebendo nele, de re
pente, alguma coisa dura, quase cruel -você tem o seu
lado negro, não é?" (Que crime o meu/o seu passado esconde-
ria?)
Era como se ele tivesse semprealguma coisa guardada,
algo penos0, que no quisesse ou não pudesse revelar. E o
estorço para proteger o seu segredo lhe dava um ar contido,
como o de alguém sempre prestes a dar um pulo para trás
ele nao se entregava nunca.
Naquele
início de nosso relacio
namento, um dia me advertiu: Eu vou magoar vocé."
Durante meses inteiros, para
surpreendê-lo desarmado,
eu o observei dormindo. Mas, quando acordava, ele partla
correndo, desejoso de deixar para trás os pântanos noturnos
onde poderia
perder-se. À tarde, no horário de trabalho do
conservatório, éramos polidos e impessoais; um gosto pea

22
dissimulação, que nele adivinhei antigo, começou a se de-
senvolver em mim
Só muito tempo depois comecei a pensar que, embora
seu desempenh0 na cama fosse perfeito, tinha um brilho
frio, com um balé bem ensaiado. Tenho de reconhecer, no
entanto, que guardo entre minhas recordações mais lisonjei-
ras as palavras de amor que ele me ofereceu então. ""E tão
macia. Parece de veludo. Essa florzinha aqui." Olhei para
seu pe e era um pé de menino. As unhas, suas pequenas
unhas.
Comecei a usar roupas mais coloridas, me maquilava
muito cheia de uma vitalidade nova. Cheirando o travesseiro
sobre o qual ele repousara a cabeça, mordendo o seu pesco
ço. De repente jovem, estimulada, a vida brotando por todos
os poros, como um alegre suor. Certa noite, tomada por um
súbito pressentimento, perguntei a ele: "0 que vou ter de
pagar, pelo prazer que estou recebendo agora?"

Quando me fez sofrer, eu o chamei de Hipólito -- pois


Hipólito era frio, enquanto Fedra, a besta apaixonada, se
consumia em seu ardor. *"Eu te amo", declarei certa noite.
Estou apaixonada por você."" Cheio de medo, ele bradou:
**Vamos ser amigos. Eu te ofereço a minha amizade frater-

na. Oesforço que fiz para entender Hipólito e náo ser des-
melhor
truida por sua rejeição me fez procurar compreender
a análise com o Dr.
a mim mesma. Foi quando comecei
Klaus, considerando que havia alguma coisa bizarra em mi
nha propria solidão.
Assim morando sozinha neste pequeno apartamento,
restaurantes
quase ninguém. E almoçando por ai em
sem ver
com a eventual curiosi-
desacompanhada, sem me importar
sob o telheiro de ne-
dade dos garçons. Como há dois dias,
gras traves do Dinamarquës,
quando comecei, mais uma
de ternura, a relembrar Hipóli-
vez, com repentinas lágrimas
fenda envidraçada da parede
to. Um raio de sol se coou pela
e na
incidiu precisamente cerejarosa-choque do meu martini
dourado e translúcido que ilumi-
doce. Observando o brilho
uma palavra agridoce.
nava a taça, me veio à mente

23
A noite, longas insônias, eu meditava interminavel.
em
mente sobre cada palavra pronunciada por Hipólito e os
seus silêncios, tomada por uma
perigosa vertigem de deci-
fração. Ah, ele não era, em absoluto, como eu pensava de
inicio, um rapaz simples, que se pudesse consumir de um
sorvo e depois se descartar dele.
Caminhando pelo meu
apartamento, madrugada adentro, eu repassava as várias fa-
cetas de sua personalidade, que não
pareciam formar um
conjunto coerente.
Não poderia ser a mesma pessoa o viajante que percor-
rera, como mochileiro, diversas partes do mundo; o
múltiplo
leitor; homem preso há alguns anos como
o
amante, pouco tempo atras, de uma mulher rica subversivo;o
da, que. mantinha um salon de músicos e artistas; osofistica-
e
jogador
apaixonado de pöquer, que se encantava com as infinitas
possibilidades do blefe; o aficionado de boxe, fa de Cassius
Clay
Uma noite, voltarmos juntos do conservatório
ao
pois continuávamos a cumprir, agora a frio, os mesmos ri-
tuais (e minha companhia, desde
quando de paramos nos
amar, parecia he dar
mais prazer do que
nunca) eu o
chamei de Jack. *"E como se eu fosse casada
-

com Jack o Es-


tripador'", eu disse. *"Sabendo que tem a
tante de sair para estripar compulsão cons-
alguém. E eu aceitando isso."
Estou muito feliz'", respondeu
Deve ser porque está junto de ele, com inocência.
mim",
mente. Tem razão, é táao bom quando a repliquei, ironica-
ele declarou. Mais tarde, em seu gente está amigo",
apartamento, me pediu
para ficar sentada diante da porta da
quanto ele, mais uma vez, esquentava pequena
O jantar:
cozinha en-
aí eu
que ficar olhando
quero Vai, senta
para tua
carinha.'"
Jack, dúvida, precisava de muita amizade.
sem
um monstrinho de história em quadrinhos
de Walt
Você é
eu disse, em tom de quem consola. Disney'",
metia realmente medo, COmo Se me Mas,
às vezes,
ele mne
envolvesse numa rede
de perigosa ternura, na qual
navla um ele não
apenas insinuado: afinal, pensei um dia, toque
de maldade
dade
deixar de odiar as mulheres. e

24
Antes de sair de seu apartamento, aquela noite, eu Ihe
declarei: **Vocé é o conde Drácula."" Fechando a porta,
oferereci a minha carótida: "Pode chupar quanto sangue
quiser."
Dois dias depois, quando apareci de surpresa, pela ma-
nha, em seu apartamento, para convidá-lo a ir à praia comi-

go, ele nao me deixou entrar: *"Volte um pouco mais tarde,


está tudo muito desarrumado"", disse, atrás da fresta da por
ta. A noite, ao chegarmos juntos do conservatório, havia
aquele rapaz à espera, na porta do prédio. Tenho certeza, no
entanto, de que Hipólito sofre quando brigamos e fica feliz
por estarmos juntos.
Tomada por uma definitiva sensatez, eu lhe disse, no
dia seguinte: "Vou ter de sublimar de alguma maneira esta
coisa que arde em mim por vocë. Acho que posso sentir
uma amizade sincera. E o fato de termos ido para a cama,
um dia, será como se tivéssemos cortado nossos dedos e
juntado o sangue. Nós somos irmãos, Hipólito.

De tão selvagem, enfim prevaleci racional. Mas foi por


ter descoberto que a chave mágica para preservar nosso re
lacionamento é ele não me tocar jamais, nunca mais. Se o
fizer despertará outra vez em nós a fúria assassina, os dois
nos defrontando (somos gladiadores, não, querido?) para
criar o monstro bifronte, o terrível monstro de prazer/dor,
homem e mulher trepando, a guerra cruenta.
Senta, fica um pouco mais e toma outro cálice de
Cointreau, ele diz, quando me preparo para ir embora, de-
pois de outra longa noite de conversa a sos, em seu aparta-
mento. E, lá do fundo do meu antigo ódio ao macho, uma
raiva de fêmea caçada e comida há milènios, ah, eu compre-
endo Hipólito e o seu susto, a dura obrigação de ser homem,
que ele recusa.
Esquivo leopardo negro, animal selvagem, eu Ihe es-
tendo inutilmente a mão cheia de alimento. Ele se aproxima,
parece mansinho, mas a qualquer momento poderá daro
pulo para trás. Ou, quem sabe, afinal 0 misericordioso salto
para a frente, garras em riste na minha garganta. Não corra,

25
Hipólito, tive vontade de gritar. Mas ele já se distanciava da
fera dessemelhante, a fëmea em mim. Eu era apenas uma
mulher, Hipólito não podia me amar. (Perdoa, amor, a mi-
nha crueldade final, eu não pude deixar de escrever sobre
voce.)
Já me ocorreu, também, que Hipólito é um tigre dle
Bengala, enquanto eu sou uma sereia. Nós nos olhamos
cheios de pânico e amor, sabendo que cada carícia dele pode
me reduzir a frangalhos. E eu me estorço inutilmente para
abrir minhas pernas inexistentes, a fim de enlaçá-lo.
Ou, ainda: eu me esfrego no focinho do tigre, acaricio o
tigre, que tudo faz para continuar muito doce, amaciando os
próprios movimentos e recolhendo as unhas afiadas.
Hipólito estava inocente: pobrezinho, ele era invencí-
vel. De tanta piedade, pensei em adotar para sempre o car-
rasco, como quem recolhe um gato doente. Com uma pena
igual à que podemos sentir pelos loucos perigosos e pelos
assassinos sem perdão, quando revelam as frágeis crianças
que sao.

Mas comecei tentando contar uma história e me perdi.


Não era a de Fedra e Hipólito? Fedra estava enamorada e
louca de desejo, mas Hipólito preferia seus companheiros
masculinos, os jogos, o esporte. Boxe ou corrida de biga,
que importa. Faltou Teseu e procuro ainda (apesar de todas
as juras de amizade)) aceitar a imperdoável sobrevivência de
Hipólito.
Fique tranqüilo, meu bem, eu não vou te ferir, tive von-
tade de dizer, quando jáera tarde demais, quando ele- ou
teria sido eu? - já partira. *Adeus, Hipólito", eu disse.
Vocè gosta de despedidas, mas nâo estou indo embora",
ele contrapôs. "Voc vai para a Sibéria, Hipólito", afirmei,
com um suspiro. (Uma simples palavra o definiria, eu que
nunca consegui empregá-la. Mesmo sabendo que ele, prova-
velmente, sentiria alivio se eu, afinal, a pronunciasse.)
Observando Hipólito, aprendi ainda sobre a dor silen-
ciosae resignada, sobre a dignidade das tristezas sem reme-
dio. E, com a passagem do tempo, começo a antecipar o dia

26
em que ter dormido com ele será apenas uma lembrança re-
mota. como uma história inverossimil que alguém me tivesse
contado. Se me interrogarem, direi a verdade
negando
redondamente, que alguma coisa tenha existido, além da
amizade, entre nós. Por enquanto ainda cedo, embora cada
vez mais raramente, à tentação do amor e do ódio. E, de
novo tentando decifrar, lembro frases suas: *As vezes,
tambem e bom ser possuído." Ou: "Náo fumo, prefiro os
grandes VICIOs.
Mas ja sei que temo, acima de tudo, desvendar afinal o
seu segredo. Compreendo que é preferivel o seu/o meu si
lencio e desisto de minha obstinada investigação de detetive.
Prevejo. afinal, que acabarei fechando o livro tão ansiosa
mente procurado sem chegar a ler o nome do assassino,
nele contido. ("*Eu me recuso a distinguir, Dr. Klaus*" -eu
disse ainda ontem-*"essa linha tênue que separa lucidez e
loucura. realidade e fantasia.'")
Sorrio, portanto, para Hipólito, enquanto voltamos ou
tra vez juntos do trabalho. Pois faz mais de um ano que nos
conhecemos e ainda nã0 esgotamos nosso mútuo fascini0.
extinto e sempre renovado, como Fènix a ressurgir das pró-
prias cinzas. E imagino a história que ainda vou escrever,
um dia, sobre nós dois, e poderá intitular-se: *Máscaras.
Seremos a Bianca e Mick Jagger dos bons tempos, quem sa-
be, no próximo espetáculo.
Sonia Coutinho, 1985

Reservam-se os
direitos desta edição à
LIVRARIA JOSE OLYMPIO EDITORA S. .

Rua Marques de Olinda, 12


Rio de Janeiro, RJ República Federativa do Brasil
-

Printed in Brazil | Impresso no Brasil

ISBN 85-03-00055-5

Capa
RICARDO LEITE

Diagramação
ANTONIO0 HERRANZ

Revisão tipográfica
HENRIQUE T'aRNAPOLSKY

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Coutinho, Sonia.
C871u O útimo verão de Copacabana / Sonia
1985. Cout inho. -

Rio de Janeiro : José Olympio,

Inclui bibliografia e dados biográficos da autora.


1. Contos brasileiros. I. Títulos.

85-0875
CDD-B 869.3

Você também pode gostar