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Teatro do Povo

Aos meus amigos do Teatro do Estudante

Não posso dizer propriamente que hoje se abre o pano para a

apresentação do Teatro do Estudante, pois vamos representar sem

cenários, sem palco mesmo. Mas, de qualquer maneira, esse teatro


que se destina ao povo começa o seu caminho aqui, na Faculdade de

Direito, dando-nos com isto a idéia de que a cultura está diretamen-


te ligada às legítimas aspirações do povo, sempre esquecido em
movimentos dessa ordem, ausente da beleza, ausente da poesia. O
que o Teatro do Estudante pretende realizar é a redemocratização
da arte cênica brasileira, partindo do princípio de que, sendo o tea-
tro uma arte do povo, deve aproxinmar-se mais dos habitantes, dos
subúrbios, da população que não pode pagar uma entrada cara nas
casas de espetáculos e que é apática por natureza, de onde se deduz

que os proveitos em benefício da arte dramática serão maiores le-


vando-se o teatro ao povo em vez de trazer o povo ao teatro.

Na conferência que pronunciei no Gabinete Português de Lei-


tura, em setembro do ano passado, a convite da comissão que
incentiva a Campanha dos Ginásios Populares, tive oportunida-
de de externar pontos de vista sobre teatro como arte do povo,
partindo daí o convite dos estudantes para que eu orientasse o
seu teatro quanto à melhor maneira de realizá-lo. De nada valem
OS decretos governamentais de amparo ao teatro brasileiro, quan-
do o mal é mais profundo, quando vem de uma arte dramática
que não reflete o pensamento do povo, que continua negando os
Hermilo Borba Filho0

resOIVer seus problemas, apDresa..


sem procurar
do
deseios povo,
casos
sentimentais burgueses, ifestações anti-
manifestacäd

tando pequenos
as aspiraçdes
do povo.
não representam
sociais que
m a i s o teatro
c o m o deneca o fazia, cho
encara
Ninguém hoje ha mais funesto para o s ons h
atirmar: " N a d a
gando ao ponto de Os seculos passaram
teatrais .

as representaçoes
costumes que dilatou para novos horizo
a cultura se
as idades se sucederam,
como a r t e e literatura, está mais
teatro cresceu,
se impos
tes e o
ouso dizer ate que se nao atingiu ainda o

vivo do que nunca,


teve na Grécia
com Esquilo e Sofocles na intensidade
apogeu que variedade de
dramatica, em assunto
poética, ganhou. em força com a originali-
nao se preocupavam
mesmo porque os gregos
muitas vezes com pequenas
dade das suas tragédias, repetidas
o que Ihes interessa-
variantes, inovando apenas. os detalhes, pois
va era um grau maior de perfeição.
Não posso deixar de citar as palavras pronunciadas pelo grande
García Lorca, barbaramente as-
poeta e dramaturgo Federico
sassinado pelo fascismo, em contraposição às palavras de Sene-
ca, a que me referi acima: "O teatro é um dos mais expressivos e
úteis instrumentos para editicação de um país e o barômetro quue
marca a sua grandeza ou o seu declínio. O teatro é a escola de
pranto e de riso e uma tribuna livre onde os homens podem de-
nunciar morais velhas e enganadoras e explicar com exemplos
VIVOs normas eternas do coração e do sentimento do homem. Um
povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não esta mor-
to, está moribundo". Toda a razão com García Lorca, porque 0
teatro é, acima de tudo,
uma arte essencialmente
popular no se
tido mais elástico da palavra. Claro que não me refiro a uma arte
popular como a cerâmica, por exemplo, feita pelo povo, elabora-
da
por mãos incultas, independente do movimento intelectual.
teatro e arte
popular por seu nascimento pois teve a sua orl -

nas festas
pags dedicadas a Dionísio e pela sua finalidade. -

loda a arte
"representativa" não pode prescindir do povo,
vendo ate uma frase
"Não se pode
muito comum em crítica dramática, queu diz:
considerar bom teatro a peça
para ser que nao e co
representada". O
funçao do povo, é uma arte teatro feito para o povo,
é em
as
popular, a mais democrática de das

24 DIALOGO DO
ENCENADOR, TEATRO DO POvo,
MISE-EN-SCÉNE E A DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

as artes. A dramaturgia moderna se assenta sobre Shakespeare e

Shakespeare foi um homem do povo. O teatro latino tem o seu


maior representante em Molière que também foi um homem do
povo. E o maior dos dramaturgos modernos Eugene O'Neill -
-

antes de ser escritor teatral foi vagabundo de estrada, marinhei-


ro, taifeiro e é um homem do povo.
Se estudarmos a história da arte de representar vamos veri-
ficar que foi durante a Renascença que ela se
eclipsou. Parece
um paradoxo que assim seja, que o teatro se tenha ofuscado
justamente nesse período. Mas o fenômeno é perfeitamente ex-
plicável: a Renascença caracterizou-se, principalmente, por ser
movimento de artes individuais, ao passo que teatro e uma
arte coletiva.
O verso, prosa, a pintura, a música e a escultura
a o
são
resultado do sentir de um homem e são possíveis sem o auxílio
de outros homens. O teatro é arte de um homem para a massa,
que não havia alcançado os benefícios do Renascimento, pois
às pequenas transformaçoes adquiridas no terreno puramente
social da diferença de classe, se substituíram outras tão funda-
mentais e tão importantes como: os cultos e os incultos, os en-
tendidos e os leigOs.
O teatro deve ser dirigido ao povo, deve existir em função do
povo, que tem o instinto do espetáculo muito desenvolvido. E co-
mum vermos na rua a aglomeração que se taz em volta de um
camelo. Não é somente para comprar as suas drogas que a mul-
tidão o cerca - porque quase sempre nada compra mas para
ver a encenação do homenzinho. Foi compreendendo o enorme
valor da arte dramática que a Rússia, por exemplo, desenvolveu
o teatro de uma maneira assombrosa, a ponto de elevar extraor-
dinariamente o número das casas de espetáculos para adultos e
para crianças, além da criação das 95.600 escolas dramáticas
disseminadas por todo o território, organizando verdadeiros exér-
citos que percorrem todo o país, promovendo Olimpíadas Tea-
trais, realizando os espetáculos monstros, empreendimento tão
grande que mais facilmente será sentido do que compreendido,
assim olhado à distancia. Imaginem-se 100.000 pessoas em uma
enorme praça, representando uma cena histórica. Pense-se no tra-

DIÁLOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVO, MISE-EN-SCÈNE E A DONZELA JOANA 25


Hermilo Borba Filho

seu movimen.
massa, n o ento,
dessa grande
coordenação o que represent
balho de finalmente, para nta
Atente-se,
atitudes. ao povo em um esne
nas suas
iniciativa: a fusao compieta E integraca
essa magnífica nome de teatral. a
ção
dar o
hesito em
táculo ao qual anseios espontaneos
desse povo. RBelo
os
da arte com
absoluta monstros.
devem ser OS espetáculos
harmonia
exemplo de torre-de-marfim, na qual pre-
estamos na epOca da
Jánão mais não pode ficar
arte. O artista
da arte pela
valecia a concepção sofrimento
da
às
humanidade, lutas,
ao
indiferente às aspirações burilando palavras e
fechado em sua arte,
Não pode ficar apático, A função do
sem finalidade.
coisas apenas eruditas,
publicando nacionalidades, lutar pelos
passa, é despertar
artista, na hora que sem subterfúgios para
expondo-o
oprimidos, amenizar o sofrimento,
os remédios.
que mais tacilmente sejam encontrados
dó nazitascismo, a passoS de gigan-
Marchamos, com a derrota
no hesita mais entre a
te, para um mundo melhor. A nossa época
u m a peça como
arte de um Cocteau que lança togos de artitício em
um Ibsen que produ-
Les Chevaliers de la Table Ronde e a arte de
fraude e a mistiti-
ziu Um Inimigo do Povo, protestando contra a
cação: "Mas claro. Tudo me apareceu entao
acabei por ver
nitidamente. E tão fácil de expor. Eis o motivo pelo qual estou hoje
diante dos senhores. Sim, tenho revelações a fazer-lhes. Tenho de
revelar-lhes uma descoberta de muito mais alcance do que o enve
nenamento dos nossos encanamentos de água e do que o estado

pestilencial da localização dos nossos banhos sanitários". "Rep1to,


tenho de falar-lhes da grande descoberta que fiz nestes últimos dias.
O que descobri é que todas as fontes morais de nossa existencla
estão envenenadas, que toda a nossa sociedade burguesa repousa
no
solo pestilencial da mentira". Estas são as palavras do doutor
Stockmann, palavras que podiam ser minhas, que podem ser
povo, porque são palavras verdadeiras, de revolta, quando
cionários querem fechar-nos
os rea
No Brasil
os
olhos.
-

se bem que näo


o teatro haja ainda encontra
seu verdadeiro caminho undo
a olhos VIstos, Cs
-

uma modificaçãoprocesSa se está


intelectuais, que sempre olharam o teatro c COmO

um filho
natural (quando na verdade ele é, em literatura, tao im
portante quanto a
poesia, o ensaio, o romance), já estao S
u

26 DIALOGO DO
FNCENADOR, TEATRO DO POVO, MISE
EN-SCÈNE E A
DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

mãos de
ele andava bem anemico nas
sados em fortalecê-lo, pois Sen-
de segunda categoria.
protissionáis inescrupulosos e atores se
um e n o r m e
interesse e que
teatro está despertando
te-se que o
falar de cabeça
continuar, brevemente poderemos
este interesse
tínhamos produzido de literatura teatral pouco
erguida. O que
valia: u m a s peçazinhas
bem pensadas, outras ape-
Qu quase nada
nos desse mesmo a sensaçao
nas bem escritas, mas nenhuma que
Os Comediantes, no Sul,
e o
da "eternidade do teatro". Surgiram
Os profissionais bem intenciona-
Teatro de Amadores, no Norte.
vontade de emendar a mão,
lançaram-
dos, que sempre tiveram as boas
aventura e veriticaram que
se no que pensavam ser uma
um saldo a fa-
dinheiro quanto as ruins, com
peças davam tanto
vor o engrandecimento da arte.
arte e
O que se quando o teatro como
podia desejar agora,
descober-
representado para o grosso
do público e aceito, seria a
isto é, de assuntos exclusi-
ta do teatro genuinamente brasileiro,
tornar-se-iam universais.
vamente nacionais que, bem tratados,
é arte essencial-
O campo é vasto e inexplorado. O teatro uma

ser construido em
termos de acei-
mente popular e como tal deve
tirados daquilo que o
tação popular. Os seus temas devem ser
entende perfeita-
compreende e é capaz de discutir. A elite
povo
mente.o pensamento de um Strindberg, de um Pirandello, de um

Lenormand. Mas o povo em geral -


alma e sangue de uma nação
falta
-

a quem a arte deve especiálmente dirigida, talvez por


ser

de preparação ainda fique indiferente diante de obras profunda-


mente artísticas como A de Pedro o afortunado, O ho-
viagem
dei. O brasileiro deve
teatro
mem e seus fantasSmas, A vida que te

atuar sobre o público com a exaltação do carnaval e do futebol.


E preciso lutarmos para que o teatro se torne também profunda-
buscar os temas nos assuntos
mente popular. E para isto é preciso
do povo.
García Lorca escreveu Bodas de Sangue, poema dramático
E a linha dramá-
especificamente espanhol e fez a obra universal.
história de
tica de Bodas de Sangue n o tem a potencialidade da
dando a
Maria Bonita, degolada às margens do São Francisco,
sua vida pelo amor de uma das figuras mais
curiosas do Nordes-
seu drama-
te. Os Antônios Conselheiros até hoje esperam pelo

DIÁLOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVo, MISE-EN-SCENE E A DONZELA JOANA 27


Hermilo Borba Filho

alcance,
nao somente art
de grande
turgo, que
faria obra
Nordeste e um drama de Drins.
também. Todo o
social escravidão do açúcar e o
escravidá
mas
das secas, a
como a tragédia explorado
grandeza,
sotrendo, c o povo sendo éo
cangaceirismo. E o povo
a ele interessam,
dramas do povo, que
qe
ele
São
povo
lutando.
viva, é poesia explodindo pela boca d
compreende. E poesia heróoicas do sertão, das figurac
das figuras
cantadores de ABC
de Zumbi dos Palmares, de Iam.
lendárias de Manuel Izidoro,
no interior, nos acostumamos a ver
nascemos
pião. Nós, os que
cantando Os teitos lendários.
nas feiras dos domingos, os cegos

desses homens que lutam, que amam, que sofrem, que morrem

constroem poemas com o sangue e com a vida


tragicamente, que
e vemos como o povo rodeia esses cegoS-cantadores, vemos o

interesse despertado por esses feitos, vemos como o auditório


chora, vibra e decora os versos ricos de humanidade, para repeti-
los aos filhos que ainda vão nascer, às mulheres que ficaram em
casa. Eram homem como eles os que viviam dentro desses versos,
as aspirações e os problemas eram os mesmos, a luta era a mes-
ma. Que se faça teatro com esse material e a multidão sairá das
teiras para as casas de espetáculos daí
e partirá a compreensão
para as obras de elite. Que se acostume primeiro o povo com os
dramas que vivem dentro do seu
sangue.
João Martins de Ataíde o maior poeta
popular do Bras1l,
-

segundo Mário de Andrade - é cantado em todo o Norte, as suas


histórias são conhecidas
recitadas por toda essa massa
e
ra
que povoa o Brasil dos sertões sotredo
da Bahia às matas do Amazo-
nas. Qual é o
homem do povo que
retirante e da não sabe de cor os versos de O

História do valente
brasileiro precisa ter o seu sertanejo Zé Garcia? O teatro
Eu disse outro João Martins de Ataíde.
dia a um desses
rIga cheia
que estava escrevendo reacionáriós que vivem de Dr
uma Trilogia do
homenzinho arregalou os Nordeste.
Com o olhos e
estranhou
fenómeno do que me preocup 1SSe
lembrando das cangaceirismo em função da arte. me

"Os cangacero såo palavras do grande cantador AlexandreFiquet :


da banda gente cuma nóis, são Zabe
roba,
podre. Fu seio
que eles pinta
cristão tamben
arvoroça 0
sertão
o
bode, estola, nia
todo c'as suas
baruiada, esses
esseStespaia

DIALOGODO NCFNADOR,
TEATR0 DO POV0,
MISE-EN-SCENE EA DONZELA
JOANA
Hermilo Borba Filho

tamém eles tem o seu lado bom e a gente


brasa do capeta. Mais vive e o
eles tem suas rezão. Percisam
pensando mió vai vë que
e". E explicando:
meio de vida deles já se sabe cuma

"Mais isso dos cangacero


E coisa bem naturá;
E a força sertaneja
Sem sabë se aproveita.
E O valo de nossa raça
Que nåo se pode contë,
Pinçando para se coisa,
Loitando pra aparece".

heróis do povo, são figu-


Os cangaceiros, muitas vezes, são os
ras do povo e têm destinos trágicos.
O romance brasileiro já se

preocupou com esses assuntos: José Lins do Rego, Jorge Amado,


manteve afastado. O teatro
José Américo. O teatro sempre se
precisa conquistar a alma do povo.
com O Imperador Jones,
O Teatro do Negro, no Rio, estreou continuar o seu cami-
de O'Neill. O Teatro do Negro pode e deve
os nossos grandes temas ne-
nho com as peças que aproveitem
gros. Zumbi dos Palmares
fundou uma república, lutou pela
jogou-se de uma montanha abaixo, preterindo
a mor
liberdade e

à escravidão. A sua voz voz do povo Vive pedindo
-
-
anos
te
o seu poeta, o seu romancista, o seu dramaturgo. O dramaturgo,
sobretudo. Zumbi dos Palmares é uma figura tão grande quanto
Otelo. Espera o seu realizador.
A alma mística dos negros se extravasa nos candomblés, nas

macumbas, nos xangôs. O som dos atabaques desce da cidade


santa da Bahia, passa pelas lagoas de Maceió e perde-se nos
dá mundo de
mangues do Recife. O misticismo da raça negra
um

Sugestoes para a criação de peças. Os nossos teatrólogos tëm


buscado os seus temas nas fontes as mais diversas, nunca no meio

do povo. Os medíocres escrevem coisas ligeiras ainda acostuma-


dos aos vaudevilles. Os mais emproados escrevem sobre proble-
mas complicados que procuram solucionar. A clase mais
remediada vai ao teatro, gosta ou não gosta. O povo continua

9
DIALOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVvo, MISE-EN-SCÈNE E A DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

conseguiu
sacudi-lo a: da
nao
ainda
dramática
alheio. A arte
historias heroicas, passionais, liric líricas,
interessá-lo. E as
apresentá-laas
e
não pôde o poeta va desperta-las

dormem esperando que espetaculos ao ar livre


teatros ou em
dentro dos do Nordesto
ao público, pelas caatingas
c o r r e m em
disparada
Os cavalos cruZ na estrada, os canga
iluminam uma
cheia
as noites de lua a terra e devora
bandidos, a seca queima
são
ceiros são heróis
e
e são explorados
descem a z o n a do açúcar
para
tudo, os homens rouba u m a moça, morre
mata um rIcaço,
Um caboclo se levanta, de feira os cegos
os cantadores
improvisam cantigas,
lutando, com a alma nos olhos e no
contam as histórias, o povoouve tudo
Nordeste isto pode acontecer a qual-
coração. Eo seu drama. No
aconteceu, que pode
quer O povo vibra, sente a tragedia que
um.
de Sebastião
a de José seu irmão,
a
ser a de Manuel seu primo,
sabe a razão
seu filho. O povo sabe que é sua própria tragédia,
a
se interessa pelo
daquilo tudo, compreende o que vê e o que ouve,
assunto porque é a sua própria história.
O teatro brasileiro fecha
os olhos a isso tudo, repudiando os problemas do povo.
temos dentro de casa os
Anda-se à procura de argumentos e
chel-
maiores grandes histórias, os dramas enormes,
assuntos, as
os de vida, de intensidade, de potência. O nosso dever é despertar
o povo, fazê-lo sentir que é a origem e que é o fim, que a art
dramática brasileira encontra nele o seu filão criador e que pode
mos dar ao nosso teatro um caminho real, um caminho largo,
universalizando esses motivos. E preciso que se teatralizem as

histórias heróicas dos ABC dos cegos de feira, o drama do amor


sangrento de Lampião com Maria Bonita, o sacrifício de Zumbi
dos Palmares e, assim, far-se-á arte teatral
para o povo. E preci
fazer teatro infantil com as lendas maravilhosas da caipora,
lobisomem, do saci-pererê, de lemanjá, fazer um teatro te-
caraeseu
risticamente brasileiro, dando-lhe o seu caráter popular,
verdadeiro caráter.
Os meios teatrais na
Inglaterra, na Rússia, nos Estados
dos, preocupam-se em
oferecer ao povo ea-

tro, na certeza de
em geral meino
que Ihe estão oferecendo sua àrte
sua arte
adequada. Organizam espetáculos nas
a
plot
no
campo, a porta das igrejas. Fazem praças públicas
pal
excursões, improvisa

S0 DIALOGO DO
ENCENADOR, TEATRO DO POVO,
MISE-EN-SCÈNE E A DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

na c a r r o c e r i a de
mais à mão: em uma estr1baria,
COs nos lugares
muitas vezes sem cenariOS pro-
um caminhão, em qualquer parte,
sentado na grama, nas calça-
prios. Epovo ouve atento, em pé,
o
amadores e pelos
das. Todo esse movimento é impulsionado pelos
a certeza
estudantes, que tudo dão, recebendo como pagamento
de que estão trabalhandopela educação artística da massa, sen-
do notáveis na América do Norte os " teatros de verão, que saem
honesto e convincente.
das cidades apresentando um repertório
brasileiro vivido fechado nas casas de espetácu-
Oteatro tem

los, caro, inacessível ao bolso da maioria. O nosso teatro preCisa


de umas térias no campo, pátio das fábricas, no pátio das fei-
no

respirar a plenos pulmões. Pois bem,


com-
ras,precisa tomar ar,
resolvi
preendendo que o povo é a parte integrante do teatro,
nova
lançar com os estudantes uma nova forma de representaçao,
de palco a ser montado
para o.nosso país, é claro. O projeto um

possivelmente no Parque 13 de Maio já se acha em estudos. Nele


daremos espetáculos gratuitos para o povo, com as grandes pe
bases de um
ças do repertório universal, enquanto lançaremos as

concurso para obras dramáticas, com obrigatoriedade de assun-


tos nacionais. O nosso trabalho ainda tem um fim: provar que
esse público tão caluniado por certos empresários inescrupulosos
que lhe subestimam a compreensão é capaz de amar as obras de
arte. Mas não é somente este nosso programa. Vamos ressuscitar
a barraca" de García Lorca. Levaremos a barraca para os su-
búrbios com o repertório de peças em um ato e na carroceria de
m caminhão.
O Teatro do Estudante terá uma função revolucionária, lutan-
do contra a mercantilização e o aburguesamento da arte, fazendo
com que o povo assista às representações sem a impressão de que
está diante de uma cópia ou de uma caricatura da vida, procura-
rá abolir, sempre que for possível, os cenários pintados com as
mesmas cores já usadas milhares de vezes, já gastas, que dão às
montagens esse caráter convencional de coisa morta. Uma das
coisas mais importantes do espetáculo é a economia da
atenção
do espectador, que deve estar toda voltada
para a interpretação.
O efeito desejado tem se ser obtido
pelos meios simples e o cená-
rio não deve ser um quadro
detalhado, porque
as
perspectivas

DIALOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVO, MISE-EN-SCENE E A DONZELA JOANA 31


Hermilo Borba Filhoo

devendo a linha e a c o r ser a preocunaca


sãoenganadoras, de sugestão, ari
do
um toque
decorador, que dará ás paisagens
o seu poder de imag1nação. f a
obrigan-
do o auditório a desenvolver ais
ou menos isto o que Lula
Cardoso Ayres-esse pintor pernamh.
cano está fazendo com os cenarios do Teatro do Estnda
dante,
cenários quase sintéticos e que, infelizmente, não podem ser
exi
bidos neste espetáculo inaugural por causa das dificuldades t6
nicas. Estas palavras são de George Fuchs, inovador da cena
moderna: "O teatro foi, em todos os tempos, uma pomposa dis-
tração ou uma imitação da vida. Tudo nos leva a crer que o tea-
tro dos nossos dias quebrará a barbaria do convencionalismo. 0
drama deve destacar-se como a estátua do bloco de mármore"
Erler, por sua vez, concorda com Fuchs na idéia de que a cena há
de sobreviver pelos seus elementos mais puros e não pela imita-
ção da natureza. E absurdo que em cima de tábuas se façam cor
rer rios e crescer árvores, quando poderiam estas mentiras ser
substituídas por indicações que excitassem a imaginação do pú-
blico, ajudadas pela luz e pela pintura. O ator é que é, sem dúvi-
da, o tator essencial de uma representação, pois se o que desejamos
é uma ação dramática, a mise-en-scène deve basear-se em sua
presença no palco, aproveitando o seu corpo para a verdade ar-
tística. As concepções dramáticas, por conseguinte, deve-
novas
rão ser
procuradas levando-se em conta o caráter primordial do
ator, tudo o mais girando em sua volta, pois ele é a tigura que se
projeta sobre o público como se fosse a sombra do autor.
Os circos de cavalinhos
representam as
peças mais incriveis, SE
orientação artística, dentro de um
picadeiro, e pela sugestão da
Vra e da ação, criam pala
o ambiente. Com muito maior razão
tes de Pernambuco
os
estudai
podem, auxiliados pela cultura, pelo
pela experiència, dar
espetáculos ao ar livre,
conhecimen
tro, arrancando-o da talsa redemocratizando o
situaço em que está aristocratiza do -

para colocá-lo em seu justo


A lugar: no meio do povo.
Incompreensão respeito do teatro como arte dá
a
que certos empresários bradem marc
o aos
quatro ventos que dão ao povo
teatro que ele pa na
deseja, isto é, peças
verdade o
povo sabe apreciar as obras de
pornográticas, qua t
ser

ingenuos a
ponto de pensar que arte. Nao
van 1am
os gregos de séculos atras

32 DIALOGO DO
ENCENADOR, TEATRO Do POVO,
MISE-EN-SCÈNE E A DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

abar-
de hoje. Entretanto,
os brasileiros
mais compreensão do que
ver as tragédias
de Esquilo, de Sófocles,
r o t a v a m os teatros para
para
Keller quando apresenta sugestões
de Eurípides. Tem razão não saibam
"Não é verdade que eles
do teatro do povo:
-

criação incurável mau gosto. O que


é
obras de arte e tenham um
apreciar as c O i s a s
uma. outra maneira de entrentar
verdade é que eles têm
existências já foram realiza-
da vida, diferente das pessoas cujas
não gostam de ver os seus prÙ-
das. E é também verdade que eles
dos satisteitós.
prios problemas através dos óculos isolada,
uma co1sa
A arte, em sua maior expressão, não é
alcançará e
deseja realmente
mas' pública. Aquilo que povo o
serv1-la.
artistas aparecem para
quando ele deseja arte, grandes devemos aplicá-lo
E se aplicamos este preceito à arte em geral,
todas artes, o teatro,
força à mais democrática de
as
com maior
do povo".
sentido especial e imediato, uma função
que é em um estudantes que
um apelo aos
Na conterência a que já aludi, fiz
continuassem lutando pelo
alevanta-
la se encontravam, para que
mento da cena brasileira, arejando-a,
purificando-a, redemocrati-
o povo do Brasil nunca
zando o teatro, levando-o ao povo, porque
teve tanta necessidade de ser orientado como nos dias que passam.

só terá a sua verdadeira significação no dia em que


Mas o teatro
entraves: a mercantilização e
desaparecerem os seus doS maiores
o aburguesamento da arte. Os responsáveis diretos pelo primeiro
são certos profissionais sem cultura, sem leitura ao
desses entraves

menos, que quatro ventos: *Damos ao povo o teatro


gritam aos

acabarmos com essas mentiras. Se-


que ele deseja". Já é tempo de
ria mais honesto que esses empresários declarasem que dão ao

povo o podem dar, movidos por interesses tinanceiros.


teatro que
Se eles se compenetrassem de sua verdadeira missão, se deixassem
de considerar o teatro como uma simples profissãoe compreendes-
sem que são, em realidade, artistas com uma finalidade a cumprir,
entao as peças que representam teatr seriam levadas à cena e o
povo orientado no sentido da arte. Há um desvirtuamento bem
singular no que se convencionou chamar "profissão teatral". Não
nego ao profissional o direito de ganhar dinheiro com a sua especi
alidade, mas fazer do teatro um ganha-pão exclusivanmente, emn
detrimento do lado artístico, é que não está direito. O povo paga

DIALOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVO, MISE-EN-SCÉNE E A DONZELA JOANA.


Hermilo Borba Filho

a propria subsiste
montagem e para
custear as despesas da
para se Ine de, em troca,
uma peca de
do ator, mas não é justo.que
cia e preCiso, antes d
Deve-se partir do principio de que
mau teatro.
provocar um melhor pedido
valorizar uma mercadoria para
tudo, teatro um negocio, segundo
uma arte e o
E lógico que o drama é de queo
mas esta expresso,
uma definição de Clayton Hamilton,
não autoriza os profissiomais mal intenciona-
teatro é um negócio,
"mercadoria". Que diríamOs de um professor
dos a falsificarem a

alunos, por exemplo, a importância do Con-


que não ensinasse
aos

de Westfalia, sob a alegação de que os alunos nada enten-


gresso
deriam? Eu chamaria esse professor de desonesto porque fugiu à
sua missão que é ensinar. Os atores e diretores do palco são res-
ponsáveis perante o povo pelo repertório que lhe oferecem. Esque-
cem-se que estão lidando com as coisas de arte para olhar o lucro
imediato e, assim, é mais fácil - pela falta de cultura - e mais bara-
to sob o ponto de vista das despesas - montar a incrível Pensão
de dona Estela do que um Estranho Interlúdio. Não sou intransi-
gente ao ponto de dizer que o teatro ligeiro deve desaparecer. Ao
contrário, ele deve existir, como existe a música de danças. O que
não concebo, porém, é que se coloque
teatro em primeiro pla- esse
no, sob a alegação de que o povo não entende as obras de arte. E
preciso que o povo deixe de ser injuriado. E os meios estão nas
mãos dos estudantes de
Pernambuco, capazes de uma grande cam
panha em favor do teatro brasileiro.
O outro entrave, integrado na própria técnica teatral, é a con-
'

cepção burguesa da mise-en-scène


dos atores,
e a
mecanização do movimento
que dá como resultado um certo
o

convence. No sentido
artificialismo que na0
revolucionário de uma nova
russos se
avantajaram. interpretaçao, 0
A montagem das peças é muito pessoal, des
truindo de uma vez
os ambientes burgueses e
tamos habituados a ver. Criaram o aristocráticos quC
cenarios pintados com o costrutivismo que substitulu
teraçoes e o espetáculo tomou
construtivismo o próprio texto sofreu a
nova forma artística. O
se
deseja é a quebra do objetivo qu
res artificiais. mise-en-scène
Os russos, afinal burguesa, a quebra dos vaalo-
de contas,
porque teatro é arte e como podem estar coOm a iaazao,
tal deve Criar os
sãoe não todas as vezes imitar seus meios de
expie
ou
reproduzir a e vida, o que
a

34 DIÁLOGO DO
ENCENADOR, TEATRO DO POvO,
MISE-EN SCÈNE E A DONZELA JOANA
Hermilo Borba Filho

caricatura. O espectador deve assistir a uma representação teatral


crente de que está diante de uma manitestação artistica e não como
se fosse a continuação da vida. Aí está outra iniciativa que caberá
ao Teatro do Estudante: quebrar estabelecidos por uma
os padrões
rotina que mecaniza o espetaculo em vez de torná-lo uma coisa viva,

palpitante. O deve transbordar no sentido vital do conceito


teatro
popular,o popular deve surgir como conseqüência do meio e conver-
ter-se em instrumento poético. Vejam, por exemplo, Lope de Vega
em luta com a concepção aristotélica das três unidades: de ação, de
chegou a citá-las
lugar e de tempo. Lope de Vega compreendeu-as e
em A arte de fazer comédias, mas resolveu quebrar essa rigidez e
com o
orientar a sua obra em uma nova direção, porque n o podia,
seugênio e à sua compreensão da liberdade do teatro como arte

popular, restringir-se à concepção das academias que são, toram e

hão de ser constituídas por velhos espíritos retardatários que conser-

vam o amor aos clássicos, esquecendo a inquietação da forma, fe-


chados em suas torres de marfim. As nóvas formas estão sempre
cheias de vida, de sangue, de humanidade e o sangue que corre nas
veias das novas tormas alimentará o povo, " tonte de toda a inspira-

ção, segredo de toda a único elemento verdadeiramente


poesia, o

Cósmico que marca o rumo das civilizações humanas".


O Teatro do Estudante começa hoje a lutar por todos esses
principios e, de pedir ao público que desculpe as falhas
em vez
naturais de uma estréia, diz ao público que, em seu próprio bene-
ficio, não deixe de aplaudir se gostar, mas que tem o direito de
vaiar o que não for do seu agrado. Nós exigimos os aplausos,
mas concedemos também o direito da vaia.
O repertório do Teatro do Estudante, cumpre acrescentar, será
impregnado do bom sentido revolucionário, não havendo nele lu-
gar para o comediante do mundo burgues, do burguês que, por sua
vez, também é um comediante, porque o que o povo deseja é o
tragediante, que mesmo quando ri é com a risada sarcástica dos
que se vem diante da tragédia como homens e não como fantoches.
O Teatro do Estudante prosseguirá o seu objetivo contra a des
crença e o pessimismo, mesmo lutando com a incompreensäo e o
indiferentismo, não procurando subtertúgios e querendo atacar o
problema do teatro na altura dos peitos, deixando as pernas para

DIALOGO DO ENCENADOR, TEATRO DO POVo, MISE-EN-SCENE E A DONZELA JOANA 35


Hermilo Borba Filho

n a r e n t e de tudo estáa
enxergar quue
tem olhos para compreenda, sen-
que não em
melhor o
os
que
precisando de arte, de gente e com honestidada
embustes
povo sem
sinceridade,
e com
demagogia martime que nao o engane com os
S
torre de
não seja
de gente que artistica burguesa.
concepção
truques já gastos da em u m ato
-

O segredo
de estréia -duas peças
Aíestão as peças
o fascismo; e
O rso, de Tchekoy,
contra
de Ramón Sender, um grito nao podemos
usamos cenarios, quase
de amor. Não
uma comédia
mas como acreditamos no
falar em palco, tudo aqui é improvisado,
está ele. Atrás
elemento da arte dramática, ai
principal
ator como
mas ajudamo
dos atores estão os outros que no representam
-

os

mudando os pertences de cena, correndo de


Teatro do Estudante,
um lado para o outro, fazendo
mil coisas, trabalhando conosco. To-
no meio do
dos estamos certos da grandeza de noSsa tareta: plantar
povo a semente do bom teatro.
No esperamos recompensas, mas
sabemos que o nosso trabalho não será perdido, porque somos os

sapadores dè um grande movimento artístico que, fatalmente, virá,


em tavor daqueles que precisam conhecer as coisas belas da vida.
E agora que já cheguei ao fim desta arenga, posso dizer como
mestre de cerimönia dos circos de cavalinhos: *Música, maestro,
vai começar o espetáculo, vai começar!".

Conferência lida na
do Estudante
de
Faculdade de Direito do
Pernambuco. Recife, em 13 de abril de 1946, Teatro
na estreld u

36 DIÁLOGO DO
ENCENADOR, TEATRO NO N u o
Dados Institucionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Filhó, Hermilo Borba.
Diálogo do encenador, Teatro do Povo, Mis-en-
scéne e A donzela Joana l Hermilo Borba Filho. - Recife:

Fundaj. Ed. Massangana/Edições Bagaço, 2005.


304 p.

ISBN: 85-7409-436-8

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