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Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

O ra, direis ouvir estrelas : 1

historiografia e história do teatro brasileiro

T ania Brandão

“Toda história é arqueológica por natureza e mum dos homens, sem brilho e glamour. Quer
não por escolha: explicar e explicitar a histó- dizer, a história estelar aparece mesmo quando
ria consiste, primeiramente, em vê-la em seu o historiador se propõe a escrever não a história
conjunto, em correlacionar os pretensos ob- dos astros de primeira grandeza, sejam eles ato-
jetos naturais às práticas datadas e raras que res, autores ou encenadores, mas a história dos
os objetivizam, e em explicar essas práticas coadjuvantes, dos técnicos ou de qualquer um
não a partir de uma causa única, mas a partir dos múltiplos saberes e fazeres menores, a um só
de todas as práticas vizinhas nas quais se an- tempo auxiliares e essenciais para a construção
coram” (Veyne, 1982, p. 181). da cena, toda a constelação de referências que

E
orbitam em um determinado momento, tecen-
screver história do teatro é, em mais de um do a vida do teatro de uma época, contribuin-
sentido, produzir poeira de estrelas, escre- do para que ele aconteça.
ver a história das estrelas. Quer dizer, é, ao Pois ainda estes anônimos são anônimos
mesmo tempo, institucionalizar o efêmero diferentes dos mortais comuns. São fatos ou exis-
e é também reduzir o impacto sensacional tências de alguma forma tocados pelo fulgor das
das musas de uma época, as estrelas da cena, estrelas com quem convivem e a cujo brilho ser-
monstros sagrados capazes de magnetizar os vem, foram contaminados. Há um sentido trans-
contemporâneos, tristemente reduzidos a reles cendental mesmo nestes seres e fazeres que po-
condição histórica graças à ação das lentes do deriam ser tidos como acessórios, banais, orbitais:
pesquisador. Tal se dá ainda quando a história o fato de agirem em função da arte, ainda que
do teatro pretende ser história de anônimos ou suas pessoas ou suas práticas não sejam consi-
de rotinas e trivialidades associáveis à vida co- deradas como exemplares manifestações da arte

Tania Brandão é professora e pesquisadora de História do Teatro Brasileiro (Escola de Teatro–


UNIRIO), Doutora em História Social, Diretora da Escola de Teatro da UNIRIO.
1 Olavo Bilac (1865-1918), Poesias. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1978.
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, / Que para ouvi-las,
muita vez desperto / E abro as janelas, pálido de espanto... / E conversamos toda a noite, enquanto / A
via-láctea, como um pálio aberto, / Cintila. E ao vir do sol, saudoso e em pranto, / Inda as procuro
pelo céu deserto. / Direis agora: ‘Tresloucado amigo! / Que conversas com elas? Que sentido / Tem o
que dizem, quando estão contigo?’ / E eu vos direi: ‘Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode
ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas’.”

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propriamente dita, mas meros complementos. Haveria, portanto, no gesto do historia-


Até mesmo se o assunto for a política das ver- dor, uma operação paradoxal: uma aclamação,
bas oficiais destinadas ao teatro ou a formação no sentido de transpor um fato da sensibilidade
da sociedade de mútuo auxílio dos dramatur- corrente para a imortalidade, e um rebaixamen-
gos, o historiador não poderá deixar de enfren- to, no sentido de olhar o gênio de uma época
tar o tema da dinâmica das estrelas. não mais com embevecimento, mas sim com as
Na realidade, não existe, a rigor, em nosso lentes do juízo crítico. A observação tem um al-
mundo ocidental, a hipótese de um teatro e de cance contundente: parece urgente hoje atuar
uma história do teatro que não sejam a história em história do teatro com atenção para a defi-
de personalidades ímpares, seres incomuns, ce- nição do gesto do historiador da especialidade.
lebridades, mesmo quando a atenção do estu- Em tais condições, é justo afirmar que o ato de
dioso volta-se para momentos mais recuados no optar por escrever história do teatro brasileiro
tempo, em que as próprias estrelas – atores, au- impõe um outro ato, o de reconhecer práticas
tores, criadores em geral – se esfumaram e fica- instauradas em determinado território, perce-
ram para a posteridade como identidades impre- bendo-se a extensão da realidade histórica des-
cisas. Um desafio a priori para o historiador é, tas práticas, mais exatamente a sua situação no
portanto, o de se movimentar diante destes seres teatro ocidental.
incomuns e dos fatos que os cercam sem sucum- Teatro ocidental: o teatro brasileiro não
bir a uma ideologia simplista da genialidade. possui densidade diferenciada o bastante frente
Esta situação, na verdade, não é só uma ao palco europeu. Se a colonização portuguesa
resultante da condição da arte em nossa socie-
fez com que a cena nacional persistisse portu-
dade. Além da obra proposta ser proposta como
guesa até boa parte do século XX, o século XX
obra de arte, extração que atribui um estatuto
europeu, em particular francês, constitui refe-
especial àquele que a produz ou se associa em
rência obrigatória para a compreensão da arte e
algum grau à sua produção, a condição de pre-
da cultura da mesma centúria no Brasil, em par-
sença inerente ao teatro torna-o também pro-
ticular para a compreensão da cena e para a re-
fundamente autoral, no sentido de identifica-
flexão sobre a sua historiografia.
ção social de quem faz teatro e no sentido de
Faz-se necessário um certo desvio – é pre-
obtenção de um séquito de leitores – no caso,
espectadores. Isto se dá mesmo quando o lugar ciso delimitar o lugar de que se fala, é preciso
de apresentação é a praça pública mais modes- indicar, ainda que resumidamente, o que seria
ta: a celebração coletiva promovida pelo teatro o “século XX teatral”. Um conceito poderia ser
não é a festa2. Assim, mesmo aqueles nomes do eleito como eixo fundamental para a reflexão, o
teatro cuja identidade ficou encerrada no tem- conceito de teatro moderno. Para sintetizá-lo em
po em que viveram e que, portanto, não nos foi poucas palavras, a partir das análises propostas
dada a conhecer claramente, passaram à histó- por Roubine (1980) a propósito da história do
ria do teatro como artistas, quer dizer, estrelas advento do palco moderno na França, poder-
de sua época. Os exemplos poderiam levar à se-ia afirmar que o teatro moderno foi, tal como
apresentação de um panteão tão díspar que es- o movimento moderno na arte em geral
tariam lado a lado Téspis, o Padre Ventura, a (Bradbury-McFarlane, 1989, p. 37-8), uma re-
Maria Joaquina ou Marucas e até mesmo o tal volução histórica sem precedentes, posto que
do Manoel Luiz. instaurou em cena um fazer artístico que se pre-

2 A festa seria o lugar do anonimato por excelência – parece lícito recorrer à afirmação de Duvignaud
(1971, p. 33): “le contraire du théâtre, ce n’est pas l’anti-théâtre ou le théâtre révolutionnaire, c’est la fête”.

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tendia inaugural, articulado a partir da prática lho, é bom que se afirme, ainda que não seja
da encenação3. possível abordar aqui com mais vagar este pro-
Quer dizer, o moderno no palco seria a cesso. É preciso, antes, retornar à análise do
instauração da era do diretor (encenador), res- moderno.
ponsável por uma intervenção artística sobretu- O tema importa em múltiplos sentidos:
do cênica, pela sugestão de uma poética da cena cumpre indagar a respeito da natureza e do sig-
capaz de suprimir a dinâmica anterior do tea- nificado da reflexão intelectual efetuada a pro-
tro, das divas, hierarquias, convenções e utili- pósito deste teatro para que se disponham de
dades. Vale frisar – a transformação viu nascer o ferramentas adequadas à análise do teatro atual
teatro moderno – encenação, poética de um dire- produzido no país. Trata-se sem dúvida de bus-
tor em uma determinada relação com um texto car a lição da História, isto é, situar um proces-
(ou pretexto) em que os atores deixaram de ser so e as narrativas construídas a respeito deste
monstros sagrados ou princípios dominantes e processo, para lançar uma nova luz sobre o que
determinantes da estrutura poética. Este concei- se faz hoje. Mas a tarefa é vária, extensa, com-
to de moderno, no teatro, reconheceria a crise porta alguns desafios, em particular aquele de
da arte, a dinâmica contemporânea definidora uma pergunta que é simples apenas em sua apa-
da arte – a crise da representação e da mímesis – rência – como se escreve a história do teatro
processo que marcou o aparecimento da arte hoje?
moderna. Tal significaria, em seu alcance mais A empresa necessita ser ela própria históri-
radical, o reconhecimento da perda de um sen- ca. Ou seja, não se pode perder de vista a defini-
tido imediato, de uma comunicabilidade mecâ- ção de História com que se pretende trabalhar.
nica e positiva, por parte da arte, para com a A História não pode pretender ser operação in-
sociedade. A transformação determinou o que gênua, não pode ignorar os grandes dilemas e
se costuma denominar autonomia das linguagens as grandes definições que a envolveram em nos-
artísticas, ou sua autoconsciência, já que os so século. Mais, até: a necessidade urgente é o
pressupostos da arte deixaram de ser universais, reconhecimento de que escrever História do
metafísicos, como se dava na tradição ocidental Teatro é operar em um campo novo de estudos
anterior. e de que este campo está longe da placidez inte-
De acordo com esta abordagem, seria lí- lectual. Ao contrário, ele está incomodamente
cito afirmar que o palco brasileiro persistiu du- situado no centro dos debates e indagações atu-
rante boa parte do século XX sintonizado com ais a respeito da possibilidade mesma da escrita
o teatro do século XIX – e este seria o alcance da História e como tal necessita ser tratado. O
da influência lusitana – e que a “revolução fran- ponto de vista deste texto é uma adesão às teses
cesa” cênica teria começado a se tornar moeda de Hobsbawn (1991) em sua crítica a Lawrence
corrente no mercado apenas no final dos anos Stone (1991) – escrever História seria uma em-
quarenta. Este caráter reflexo da atualização ar- presa narrativa sim4.
tística deu-se em condições peculiares, induzin- Tal empresa estaria voltada não à constru-
do a determinadas vertentes estéticas de traba- ção de uma modalidade de relato idêntico, em

3 Para a definição de encenação, ver Copeau, 1974; Corvin, 1991; Pavis, 1996.
4 A narrativa, afirma Hobsbawn, seguindo o texto de Stone, que buscou situar o seu ressurgimento nos
anos 1950-1970, seria “um ordenamento cronológico do material em ‘uma única história coerente,
embora possuindo sub-tramas’ e uma concentração ‘sobre o homem, e não as circunstâncias’”
(Hobsbawn, 1991, p. 40-1), em que não haveria uma preocupação com o esclarecimento de uma ques-
tão mais abrangente que iria além da estória particular e seus personagens.

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sua forma, aos relatos ficcionais, dos quais se segundo, complementar, a reflexão a respeito de
distinguiria apenas por seus conteúdos, como suas fontes, tanto no que concerne ao próprio
desejaria Hayden White (1991, p. 49), mas an- conceito de fonte, quanto às usadas pelas ver-
tes viabilizaria construir generalizações acerca da tentes tradicionais desta mesma historiografia.
aventura do teatro, em sintonia – ainda que re- No primeiro caso, a ação se faz ditada pe-
mota – com o jogo social contemporâneo, in- las coordenadas de nosso tempo. Como já se
teressadas, estas generalizações, nas grandes per- observou acima, não há como entender o tea-
guntas sobre os porquês, para tentar criar uma tro brasileiro nesta altura do século XX sem re-
explicação coerente da transformação no passa- correr às considerações a respeito do teatro mo-
do. Não é pouco o que se propõe: a história é derno. Assim, é preciso nuançar o conceito de
um dos falsos objetos naturais, é o que se faz História do Teatro adequado para dar conta do
dela, escreveu um dia Paul Veyne (1982, p. 181) estudo da História do Espetáculo em nossa épo-
ao analisar a obra de Foucault. ca, viabilizando a análise das múltiplas formas
A proposta de Paul Veyne tem o mérito de intervenção artística que o termo teatro per-
de viabilizar a formulação de um método, a atu- mite, hoje, abranger. História do Espetáculo, dis-
alização do método pictórico atribuído por ele a semos: em larga medida o teatro de nosso tem-
Foucault. Seria a explicação do objeto pela reali- po, posto que moderno, é espetáculo e não dra-
dade do fazer em cada momento da história, maturgia, condição que não desautoriza os estu-
mas considerando-se a explicação das práticas a dos dramatúrgicos, mas que exige apenas que o
partir de todas as práticas vizinhas, relacionadas estudo do teatro não se reduza a esta abordagem.
(Veyne, 1982, p. 181). Pouco importa, ao fi- Em tais condições, a História do Teatro
nal, se o produto desta operação é uma repre- necessita surgir como exegese de projetos poéti-
sentação narrativa da realidade – ela não seria cos e de poéticas, fazeres que dialogam entre si
simplesmente constituída de um passado repre- e que se inscrevem no tempo, mas consideran-
sentado apenas de modo imaginário (White, do precisamente que a ordem da arte deixou de
1981, p. 89), mas revelaria um modo de repre- ser a ordem dos universais concretos, da funda-
sentação, uma possibilidade da História de nos- mentação metafísica e teleológica, para ser so-
so tempo, um exercício de leitura crítica das bretudo a investigação a respeito de seus modos
fontes, dos vestígios deste passado. de operação e de inserção social. A história ne-
No caso da História do Teatro, parece ur- cessitaria romper, em sua forma de escrita, com
gente enveredar por um caminho tributário des- a narrativa ingênua de justificação (inclusive no
ta reflexão, para analisar os procedimentos da sentido teológico da palavra) da dinâmica estelar.
história que está aí, à disposição daqueles que Trata-se de uma História que precisa ser
gostam de pensar o teatro, e tentar oferecer no- também História do Tempo Presente: ela deve
vas opções para o amante da história da cena. abandonar qualquer veleidade a respeito de um
Assim seria possível buscar respostas para outra interdito acerca do objeto próximo, tal como
pergunta – como escrever a História do Teatro formulado pelos historiadores antigos, que pro-
Brasileiro hoje? Se uma tarefa tão ambiciosa testavam em defesa de uma pretensa isenção do
com certeza escapa aos limites deste artigo, ao historiador, possível no seu entender apenas
menos algumas indicações produtivas, ainda quando havia uma distância temporal em rela-
que provisórias, podem ser esboçadas. ção ao campo de estudos. É preciso desfazer a
De saída, dois grandes objetivos precisam ser mitologia do olhar isento e indicar o sentido e
atendidos, considerados fundamentais. O pri- a intenção do olhar do estudioso. Configuram-
meiro seria a revisão analítica da historiografia se aí, portanto, duas intervenções que dialogam
da História do Teatro Brasileiro, formulada a entre si – uma que busca identificar a arquite-
partir da ótica da história do teatro moderno. O tura do teatro de nosso tempo e outra que se

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formula deliberadamente como produção inte- no caso do teatro brasileiro, é a possibilidade de


lectual de nossa época. convivência em um mesmo tempo de formula-
É preciso reconhecer, assim, uma decor- ções bastante diferençadas – do realismo-natu-
rência automática destas considerações: a defi- ralismo à dissolução de todos os ismos, à perfor-
nição de História adequada ao trabalho em His- mance e à instalação.
tória do Teatro só pode ser aquela proposta em Outra reflexão importante é a hipótese de
sintonia com o conceito de moderno, condição estruturação do mercado de arte, para configu-
que privilegia o reconhecimento da encenação rar até que ponto existe um mercado teatral na-
como dinâmica poética fundante do fato tea- cional, capaz de viabilizar, indiretamente, a vi-
tral. Automaticamente a opção invalida a possi- gência de um mercado de arte teatral, que estaria,
bilidade de uma História cujo centro de gravi- por sua vez, em atrito com a produção mediana
dade seja a análise da dramaturgia, como já se corrente, aproximada com a comunicação de
observou acima. E tal se dá na medida em que a massa, e de certa forma viabilizando ousadias
encenação é o ponto axial do teatro do século maiores de linguagem – o território da vanguar-
XX até mesmo para o debate acerca de suas pe- da e da inovação. Tudo indica que é convenien-
ças. Mesmo quando o pesquisador se defronta te buscar o recurso a uma definição de um “sis-
com propostas que pretendem ser textocêntricas tema teatral brasileiro”, por mais que este sistema
no sentido proposto por Copeau e Silvio possa parecer fraturado com relação à etimolo-
D’Amico, aliás uma referência de absoluta im- gia do termo ou a uma definição mais rígida da
portância para o caso brasileiro, em que vicejou palavra. A história deste sistema, grosso modo,
uma estética moderna de raiz hegeliana e remontaria ao século XIX, ao menos em parte;
croceana, o valor que está em jogo é ainda a en- seria preciso estabelecer as nuanças de sua dinâ-
cenação, vale destacar. mica no século XX. O tema merece um estudo
Tais definições, contudo, estão longe de específico: o seu tratamento é objeto de um ou-
figurar sem problemas. O teatro é uma arte da tro artigo, a ser publicado (Brandão, n.p.).
presença; esta condição exige que a cena man- Em uma primeira abordagem, o que se
tenha um diálogo efetivo com o senso comum pode afirmar é que o sistema teatral brasileiro te-
contemporâneo para que se complete a cadeia ria se estruturado a partir de 1813 – isto é, a
de comunicação essencial para o palco. Portan- partir da vinda da família real portuguesa para
to, em grande parte o teatro é tributário da sen- a colônia, com a inauguração do Real Teatro de
sibilidade coletiva de seu tempo. Vale dizer – o S. João que, se não era oficial nem se tornou
teatro é o território possível para intervenções claramente uma espécie de teatro estável, logo
radicais até certo ponto; na realidade, a sua ma- surgiu como centro da vida da corte por ser o
terialidade é muito mais a das radicalidades po- teatro, então, uma das poucas diversões coleti-
éticas relativas, posto que elas necessitam ser vas adequadas a uma convivência cortesã. Nes-
compartilhadas para existir. Assim, se nas artes tes termos, este sistema teatral brasileiro foi, du-
plásticas e na literatura o tema do moderno im- rante boa parte do século XIX e quase durante
plica em rupturas consideráveis com formas cor- toda a primeira metade do século XX, portanto
rentes ou cristalizadas de percepção, no teatro o ao longo do Império, da Primeira República e
moderno não significou sempre e necessariamen- da Era Vargas, ele foi, é importante frisar, uma
te o rompimento decidido e absoluto com uma hegemonia teatral carioca. O Rio de Janeiro
estética do sentido. Em tais condições, reconhecer constituiu-se como corte e como tal arrebatou
o moderno na cena significa situar a existência a atenção do país, instaurando uma modalida-
de obras de arte de caráter metafísico tradicio- de de poder cultural que persiste até hoje, ain-
nal, uma mímesis sem qualquer tensionamento. da que, no final dos anos quarenta, a cidade de
A dificuldade para o pesquisador, notadamente São Paulo tenha se tornado o centro de produ-

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ção teatral do país. Apesar da capital cultural do mismo radical, que a História do Teatro Brasi-
país continuar sendo ainda hoje o Rio de Janei- leiro ainda não foi nem será escrita tão cedo:
ro, o teatro moderno brasileiro é, em sua densi- seria uma impossibilidade.
dade maior, paulista. O resto do país, mesmo Afastada a adesão ao diagnóstico mais ne-
que conte com alguns centros dinâmicos dedi- gativo, é necessário que se estabeleça o alcance
cados ao teatro, ainda se mantém sob um ritmo dos textos existentes à disposição do amante de
amador, comandado pelo eixo Rio-São Paulo, a teatro. Eles passam ao largo do debate contem-
Meca procurada por todos os que anseiam ob- porâneo a respeito da tessitura da História: ela
ter projeção nacional. Nenhum outro ponto do surge no conjunto dos textos como se fosse um
território consegue, até o momento, falar de te- objeto natural, como se fosse ferramenta hábil
atro para o país. para a construção de um duplo cristalino do
Estas coordenadas mínimas parecem im- passado, como se não fosse escolha, eleição, jul-
prescindíveis para que se possa pensar a possibi- gamento. Considerando-os em geral, é justo
lidade da escritura da História do Teatro Brasi- afirmar a existência de alguns mecanismos ope-
leiro. Mais ainda – é necessário também ratórios básicos empregados pelos autores; eles
historiar a História do Teatro Brasileiro, pensar
fazem com que tais textos em sua maioria pos-
as obras disponíveis existentes na estante de te-
sam ser enquadrados nas categorias de relato e
atro que se propuseram a oferecer uma visão de
enumeração cronológica, inventário dramatúr-
conjunto, temporal, estrutural, da cena brasilei-
gico, vivência pessoal, crônica impressionista ou
ra – quer dizer, obras que se pretenderam histó-
crônica episódica, com freqüência misturando
ricas em sua formulação.
procedimentos de cada uma5. São formas de
Na verdade, a História do Teatro Brasi-
leiro é uma especialização recente, se é que é narrativas simples, ingênuas, em que o motor
possível considerar que ela realmente existe en- dos textos é uma compreensão da História não
quanto tal. Para um autor significativo como problematizada. Em especial nos textos mais
Sábato Magaldi (1962, p. 271), no início dos recentes e que tratam mais especificamente do
anos sessenta era cristalina uma dura consta- teatro moderno, não há uma ruptura com um
tação: “ainda está por escrever-se uma História enfoque aristotélico-cartesiano ou hegeliano,
do Teatro Brasileiro”. O autor prosseguia obser- embora tais enfoques possam ser inconscientes,
vando que só quando fosse feito um levanta- nem o reconhecimento do tema da crise da arte
mento completo de textos poder-se-ia realizar como fundante para a reflexão sobre as obras
um estudo satisfatório dos diversos aspectos da artísticas em nosso século. Portanto, não aflorou
vida cênica e que esta não seria tarefa para um ainda na historiografia o debate acerca da crise
único pesquisador. Destaque-se que este levan- da historicidade da arte – há uma elipse da per-
tamento não foi realizado até o momento, o que gunta a respeito da possibilidade de se escrever
bem poderia nos levar a constatar, com pessi- a história da arte (Argan, p. 1988, 79-89)6.

5 A lista dos autores comentados e que formam o corpus da História do Teatro Brasileiro a que o texto se
refere é: Paixão (s.d.); Silva (1938); Sousa (1960); Magaldi (1962); Dória (1975); Prado (1988). Deste
autor, também foram considerados os volumes: Peças, pessoas, personagens (1993) e a obra referente às
críticas – Apresentação do teatro brasileiro moderno (1955); Teatro em progresso (1964) e Exercício findo (1987).
6 Segundo o autor, “a questão da historicidade dá lugar a três hipóteses: 1) a arte desenvolve-se segundo
uma história própria, a história da arte, relativamente à qual só é possível avaliar os factos e a sua
sucessão; 2) a arte desenvolve-se segundo a história da sociedade, de que constitui um aspecto ou ape-
nas um reflexo; 3) a arte como puro acto criativo não é redutível à história”.

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Em seu conjunto, estes textos não fogem Varnhagen, Vieira Fazenda, Mello Morais e
ao que se poderia designar padrão tradicional Moreira de Azevedo, para indicar alguns nomes
ou conservador, na medida em que apresentam, de maior projeção, fizeram referências ao teatro
subjacente às idéias expostas, um conceito de em suas obras quase sempre com um cálculo de
teatro bastante aproximativo do paradigma do ilustração, complemento ornamental do fluxo
século XIX. Recorrendo-se às linhas gerais de da dinâmica histórica propriamente dita, esta
um estudo feito por Francisco José Calazans sim importante, seguindo nestes apêndices uma
Falcon (1996) a respeito da identidade dos his- concepção da cena tributária dos estudos literá-
toriadores brasileiros, seria necessário situá-los rios ou formulada conforme uma abordagem
com maior conforto junto à vertente da tradi- cara à história heróica, de enumeração de perso-
ção; ao mesmo tempo ter-se-ia que reconhecer nalidades e feitos.
a ausência quase absoluta da inovação na dinâ- Se o historiador Max Fleiuss assinou um
mica de nossos estudos de história do teatro. Na artigo devotado ao palco nacional por volta de
verdade, a identidade do nosso historiador do 1922, a única contribuição decisiva que pode
teatro ainda está à sombra da velha história ser extraída de sua obra, de dimensões singelas,
factual ou “acontecimental”, herdeira da vetus- é o esforço permanente do autor para sintoni-
ta história política devotada à listagem de feitos zar o teatro com o processo histórico mais am-
nobres e solenes em um encadeamento crono- plo, visto, aliás, como a crônica da sucessão de
lógico progressivo e cumulativo. Empirismo e fatos políticos, coloridos aqui e ali por tons pito-
positivismo não são referências distantes, bem rescos da vida cotidiana contemporânea7. Seria
como o classicismo de extração francesa, incli- preciso estabelecer, contudo, a relação entre este
nado a considerar o texto como a forma teatral texto e o livro de Múcio da Paixão que, pron-
por excelência que importa considerar. Ne- to desde 1917, circulava sem comover algum
nhum dos autores analisados rompe com esta possível editor. De toda forma, não há notícia a
visão mais conservadora do teatro. respeito de outra contribuição relevante de his-
Há que fazer, todavia, certas distinções. toriadores para a redação da História do Teatro
Ao longo do século XIX existiu no Brasil um Brasileiro – é curioso que Sérgio Buarque de
entendimento da História do Teatro como um Holanda, situado por Falcon como um dos ar-
capítulo da História da Literatura; esta foi a tífices do movimento de renovação da História
matriz intelectual original que gerou os nossos a partir dos anos trinta, tenha constituído, nes-
estudos históricos de teatro, matriz que logo se ta década, a Comissão de Teatro Nacional que
desdobraria, curiosamente, na prática do jorna- deu origem, em 1937, ao Serviço Nacional de
lismo. Enquanto o teatro atraía a atenção dos Teatro, sem no entanto revelar, enquanto his-
professores e especialistas em literatura, enfoque toriador, interesse mais decidido pela arte8.
que migrou para os jornais, cabe destacar que o Um outro texto ainda necessita ser consi-
campo de estudos nunca mobilizou de maneira derado por traduzir um momento eloqüente da
expressiva os historiadores propriamente ditos. História do Teatro Brasileiro – trata-se do arti-

7 Max Fleiuss (1868-1943) publicou o artigo em 1922, no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico
do Brasil; em 1955, o texto foi republicado na revista Dionysos, n.º 5 (Rio de Janeiro: Serviço Nacional
de Teatro, 1955).
8 Uma portaria de 14 de setembro de 1936 do Ministro Gustavo Capanema instituiu a Comissão de
Teatro Nacional, integrada por Múcio Leão, Oduvaldo Viana, Francisco Mignone, Sérgio Buarque de
Holanda, Olavo de Barros, Benjamin Lima e Celso Kelly.

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go Teatro, de Leo Kirschenbaum, escrito em contemporâneos de ter provocado a decadência


meados dos anos quarenta. De saída o autor do teatro nacional. Esta bandeira foi sem dúvi-
qualifica a história de nosso teatro como uma da incorporada pelos jovens modernos, situação
espécie de ausência, observando que o drama que fez com que preservassem uma visão do pal-
brasileiro, como forma de literatura, ainda está co como missão civilizatória típica do século
por ser estudado e que os vários volumes já pu- XIX: era preciso não só derrubar o que existia
blicados com o objetivo de apresentar um his- em cena, os antigos, mas enobrecê-la intelectu-
tórico do teatro brasileiro não passam de “com- almente, gesto que faria com que o teatro se li-
pilações de fatos dispersos, miscelâneas de bertasse de uma espécie de solidão cultural. Tra-
títulos e de autores, listas de atores e compa- ta-se de tema extenso e para avaliá-lo melhor
nhias” (Kirschenbaum, 1998, p. 1259). A refe- bastaria levantar, por exemplo, a trajetória da
rência direta é aos textos de Múcio da Paixão e análise crítica da obra de Artur Azevedo nos tex-
Lafayette Silva, em que não se encontra “nem tos de Décio de Almeida Prado, que apresen-
uma apreciação concatenada dos méritos e de- tou variações notáveis ao longo da carreira do
feitos de cada obra, nem uma exposição inteli- crítico paulista.
gente dos processos evolutivos, movimentos ou Em tais condições, não é de se espantar
tendências” (id., ibid.). que, na lista de historiadores do teatro acima
Destaque-se que a sua ótica é a de defesa considerada, sobressaia uma particularidade de-
do drama enquanto base para o ofício do histo- cisiva: todos exceto um são homens de teatro.
riador. Além da crítica cerrada que faz a todos Tanto Múcio da Paixão (1870-1926), como
os textos disponíveis voltados para o assunto, Lafayette Silva (1878-1939), Gustavo Dória
um outro fato relevante indicado pelo autor era (1910-1979), Décio de Almeida Prado (1917-
a ocorrência, em seu tempo, de um verdadeiro 2000) e Sábato Magaldi (1927-) são homens de
combate entre os profissionais da velha guarda teatro, na medida em que no mínimo atuaram
e os amadores e jovens, sobretudo o grupo Os na imprensa enquanto críticos. Apenas Galante
Comediantes, que a seu ver estavam propondo de Sousa (1913-1986) foi pura e simplesmente
um “novo teatro” e que eram bastante atacados um intelectual, dedicado em particular ao estu-
pelos conservadores, inclusive através da revista do da literatura brasileira.
da SBAT, situação que o levou a elogiar o Mi- Portanto, se no texto singelo de Max Fleiuss
nistério da Educação, por apoiar os novos, e a uma certa distância do palco pode ser percebi-
sublinhar a necessidade de que se favorecesse da, uma espécie de olhar exterior que sacrifica
uma nova dinâmica de trabalho teatral, para “er- algo da identidade do objeto de estudo, nestes
guer o nível artístico do palco nacional” (id., outros autores a questão não é absolutamente
ibid., p. 1265). desta ordem. Ao contrário – em diferentes mo-
Há, portanto, uma compreensão do tea- mentos os textos foram tecidos como vivência
tro brasileiro como manifestação artística pou- pessoal, devido ao engajamento direto dos auto-
co nobre, um tanto desqualificada, destituída de res em episódios teatrais específicos de seu tem-
dignidade intelectual; esta abordagem despon- po; a tônica é a proximidade, algum gênero de
tou no final do século XIX, mais ou menos ao cumplicidade ou adesismo. Eles estão falando
mesmo tempo em que triunfava o teatro ligei- de realidades vividas e segundo pontos de vista
ro, em especial as revistas, e conheceu diferentes bastante particulares. O fato, aliado em alguns
formulações nas letras de autores diversos, como casos a uma densa formação intelectual, viabi-
José de Alencar, Machado de Assis, Quintino liza o aparecimento de autoridades no assunto e
Bocaiúva. O seu peso foi de tal ordem que mo- de versões hegemônicas do processo histórico,
tivou mesmo o conhecido movimento de pres- sem que se fale também na apresentação de um
são contra Artur Azevedo, acusado por alguns modelo de ação para o historiador.

206
Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

A situação é importante: se a princípio sódio cronológico da história; a expressão teatro


estas histórias poderiam ser separadas em dois moderno não é sequer definida, em qualquer
grupos distintos, compostos por uma história sentido. O teatro moderno surge antes muito
tradicional (Paixão, Silva) e uma história inova- mais como uma supressão, uma negação esque-
dora, ligada esta a um processo ou a um desejo mática de algo anterior mais ou menos nebu-
de renovação (Dória, Sousa, Magaldi, Prado), loso, do que uma afirmação teórica precisa ou
logo é necessário reconhecer que elas apresen- como uma intervenção teatral esteticamente
tam incômodos pontos de aproximação, redu- caracterizada.
tores do alcance do projeto de mudança, posto É importante frisar que os volumes consi-
que algumas das práticas tradicionais mais dis- derados, apesar de certas aproximações e diálo-
cutíveis não são ultrapassadas. E o primeiro gos, apresentam densidades diferenciadas; lidam
ponto a observar é decisivo: em que pese a im- em geral com abordagens únicas, por vezes irre-
portância, a seriedade de propósitos e a densi- dutíveis, da História do Teatro. Todos, no en-
dade que possam apresentar, os textos não se tanto, tendem a valorizar mais a emergência de
preocupam em delinear o quadro conceitual em personalidades, em lugar da consideração de pro-
que se movimentam, nem desenvolvem uma jetos, seguindo um modelo a um só tempo tri-
reflexão alentada a respeito de seus procedimen- butário da História da Literatura e do registro
tos metodológicos e técnicos, operações estas jornalístico, posto em prática a partir do final
quando muito descartadas nas rápidas palavras do século XIX, como já se observou. A ausência
habituais de apresentação das obras, nos prefá- do historiador fez com que o território da His-
cios ou posfácios. O teatro é tratado como se tória do Teatro se constituísse como proximida-
fosse um objeto natural e espontâneo, que pres- de frente à área de estudos literários e ao jornalis-
cinde de maiores reflexões, condição que tam- mo; a migração do crítico para a função de his-
bém define a atitude do historiador. A estrutura toriador deu-se com naturalidade – dos autores
básica dos textos é a do relato e da enumeração citados, todos exceto Galante de Sousa atuaram
cronológica, mesmo quando obedece a um rit- como críticos antes de se tornarem historiadores.
mo um tanto confuso, como o de Lafayette Silva. Para tornar mais nítida esta abordagem,
A conseqüência natural é a ausência de vale ir um tanto mais adiante na reflexão a res-
uma definição de História, um pouco como se peito do tratamento que estes textos dispensam
existisse um campo de estudos consolidado ou à definição de teatro moderno. O primeiro caso
como se houvesse uma clareza cristalina a res- a considerar, o livro de Galante de Sousa, é o
peito do que História do Teatro venha a ser. Ela mais antigo (1960) e o mais geral dentre os con-
surge, então, com uma aura ingênua de inven- siderados que tratam da História do Teatro Bra-
tário de estrelas, genialidades. Há uma naturali- sileiro abrangendo o tema em pauta. O autor
zação do procedimento intelectual – uma ati- revela, no entanto, que manipula o conceito
tude problemática no caso dos autores asso- mais multifacetado da operação histórica espe-
ciados à aventura moderna, uma vez que insinua cífica. Muito embora sejam consideráveis as res-
a sua autopercepção como continuidade em re- trições que lhe possam ser feitas, é o único que
lação aos autores anteriores. Outro tema curio- aborda, se bem que separadamente, as diferen-
so, além da não definição da História e da in- tes instâncias envolvidas no fato teatral, revelan-
consciência em relação à realidade do teatro en- do o palco como resultado de um fazer que é
quanto arte, é o tratamento dispensado pelos multiplicidade de intervenções. Esta condição
autores mais recentes àquele que seria o seu ter- parece ter surgido a partir de uma leitura bem
ritório de ação por excelência, o teatro moderno. sistematizada dos textos de Múcio da Paixão e
Em geral, eles recorrem ao procedimento Lafayette Silva, obras que oferecem ao leitor,
empírico de situar o teatro moderno como epi- segundo uma estrutura bastante caótica, uma

207
sala preta

avalanche de informações das diferentes dinâ- tradicionais, e o maior aproveitamento do pal-


micas envolvidas no fazer teatral. A esta condi- co e adjacências. Com ‘Os Comediantes’ ficou
ção somou-se uma extensa pesquisa. Assim, demonstrada a importância do ‘diretor’ e os ce-
Sousa apresenta dados tanto da literatura dra- nários passaram a ser um convite à imaginação
mática (ocasião em que com freqüência segue e à fantasia do espectador” (id., ibid).
comentários de outros autores, em especial os Assim, não há nem uma palavra sequer
de Décio de Almeida Prado, por não se sentir de definição de moderno, mesmo nas três pági-
seguro enquanto analista da literatura dramáti- nas seguintes, sobre Modernas Correntes da Dra-
ca), quanto das peculiaridades da cena e das maturgia Brasileira. O termo pode ser inferido
condições sociais da categoria artística, das for- indiretamente a partir do texto. Além disso, o
mas de montagem, dinâmicas sociais e de po- autor chegou a cometer pelo menos uma consi-
der importantes para o teatro. “Teatro” é aí, por- derável injustiça ao comentar a situação dos ato-
tanto, um jogo de forças que ultrapassa o res após a revolução cênica que propôs. Ele afir-
problema dramatúrgico, muito embora sob tra- mou que, paralelamente ao movimento reno-
tamento muito discutível, posto que ainda vador, “sem aderir propriamente, mas também
norteado pelo drama e por demais empírico e sem hostilizar, continuam figuras da geração
compartimentado. anterior gozando o favor do público, como Jai-
O autor refuta, por exemplo, a possibili- me Costa, Alda Garrido, Eva Todor, Rodolfo
dade de trabalho com a História do Tempo Pre- Maier, Procópio Ferreira” (id., ibid., p. 247).
sente – “de 1920 para cá, torna-se mais difícil a Pode ser que eles gozassem ainda o favor do pú-
análise histórica e a crítica dos fatos, porque sua blico – resta saber qual o perfil deste público –
proximidade ao presente nos impede a visão mas não se pode sustentar que não havia hosti-
panorâmica, necessária ao exame imparcial”. Ele lidade entre as duas gerações, ao menos até a
encadeia “duas palavras” sobre o movimento época em que a obra estava sendo escrita.
modernista de 1922 – comenta, sem maiores Juízo assemelhado pode ser feito em rela-
análises, a falta de “repercussão apreciável e ime- ção ao texto de Sábato Magaldi. Em princípio,
diata” do Modernismo em nosso teatro. O tom é importante considerar que o ponto de vista
é mais de enumeração, a pretensão é simples- deste outro autor em relação à História do Teatro
mente a de registrar o fato, seguindo-se a lista- é bem diferente: o seu interesse predominante é
gem de uns tantos episódios (Sousa, 1960, p. sempre a dramaturgia, mais do que qualquer
243-7). outra cogitação, o que é de saída uma aborda-
O grupo Os Comediantes destacar-se-ia gem discutível para que se tratem as condições
no conjunto, a seu ver, porque figuraria como do moderno, posto que, como já se buscou esta-
marco decisivo de transformação: “A verdade é belecer acima, a pedra de toque do teatro mo-
que a nova orientação só se concretiza com ‘Os derno seria precisamente a encenação. Ainda
Comediantes’, em 1938” (sic) (id., ibid., p. aqui o limite do enfoque transparece claro no
246). O alfabeto da cena teria sido mudado, tratamento que o autor dispensa ao grupo Os
pois o conjunto, preocupado com a renovação Comediantes, em especial no juízo a propósito
da cena nacional, deu a conhecer as “marcações” da política de repertório da equipe9. Destaque-
ousadas, “em completa desobediência às regras se que na versão deste autor o papel revolucio-

9 “Reunindo amadores, lançaram-se Os Comediantes à tarefa de reforma a estética do espetáculo. Não se


observou uma diretriz em seu repertório, nem coerência nos propósitos artísticos. Um lema apenas
pode ser distinguido na sucessão algo caótica de montagens, em meio a crises financeiras, fases de alento
e de desânimo: todas as peças devem ser transformadas em grande espetáculo” (Magaldi, 1963, p. 193).

208
Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

nário atribuído à equipe não é tão avassalador. ma brasileiro”, já que se tratava de um instável
Apesar de reconhecer que o caso era o de um grupo diletante, amador, e os intérpretes princi-
instável grupo amador, dotado de uma política pais da cena ao redor, que deveriam ser modifica-
de repertório e de um programa de ação um dos e perder o poder, eram os monstros sagrados da
tanto oscilantes, Magaldi afirma o aparecimen- época. Crítico, escrevemos – a qualificação é im-
to do teatro moderno como uma decorrência portante para localizar a obra de Magaldi; foi
da atuação do grupo. Mas o autor ainda não es- nesta condição que ele acompanhou, de 1950 a
tabelece com convicção a data de 1943, da 1988, muito da história do teatro brasileiro
montagem de Vestido de noiva, de Nelson Ro- moderno, integrando, como militante de pro-
drigues, como marco para o início do teatro jeção, o que se poderia com justiça qualificar
moderno. A eleição deste ano como divisor de como primeira geração moderna da crítica.
águas do teatro brasileiro dar-se-ia apenas mais O autor a considerar a seguir, Gustavo
de uma década depois. Dória, apesar de usar o adjetivo moderno para
Neste texto, de 1962, Sábato Magaldi titular o seu volume, limita-se a usar o termo
afirma que a “maioria da crítica e os intelectuais no sentido etimológico corrente, sem tentar es-
concordam em datar do aparecimento do gru- tabelecer uma definição precisa do moderno em
po Os Comediantes, no Rio de Janeiro, o iní- teatro em qualquer momento. Usa, no entanto,
cio do bom teatro contemporâneo no Brasil” (Ma- como critério indireto de qualificação deste te-
galdi, 1963, p. 193) E acrescenta: “ainda hoje atro, afinal mais atual do que moderno, “a valori-
discute-se a primazia de datas e outros animado- zação do espetáculo”; este seria o signo diferencial
res reivindicam para si o título de responsáveis frente ao que se fazia, o teatro profissional ante-
pela renovação do nosso palco” (id., ibid.; grifo rior. A estrutura do volume, perceptível na dis-
nosso). Mesmo assim o seu parecer é cristalino: tribuição das matérias no sumário, procura re-
“Está fora de dúvida: pelo alcance, pela reper- conhecer uma importância para o espetáculo –
cussão, pela continuidade e pela influência no na Advertência, o autor assegura que pretendeu
meio Os Comediantes fazem jus a esse privilé- apenas fazer a “crônica de um período de cerca
gio histórico” (id., ibid.). O mesmo texto ob- de quarenta anos durante os quais o teatro bra-
serva adiante: “Foi seu precursor imediato, na sileiro modificou-se radicalmente, passando de
tentativa de disciplinar a montagem, o Teatro um estágio primitivo ou mesmo ingênuo (...) para
do Estudante do Brasil, fundado por Paschoal um outro mais de acordo com os existentes nas
Carlos Magno em 1938” (id., ibid.). diversas capitais do mundo” (Dória, 1975, p. 1).
A principal modificação associável ao tra- Os grifos são propositais.
balho do grupo teria sido, ainda seguindo o ra- Em tais condições, considerou que “a ma-
ciocínio do autor, a transferência para o ence- téria ficaria melhor distribuída em três etapas: a
nador do papel de vedeta, modificando-se por valorização do espetáculo, a fixação do autor
este meio o panorama brasileiro, já que, no mer- brasileiro e os novos rumos tomados pelo nosso
cado, no meio profissional, quem assegurava o teatro hoje” (id., ibid., p. 1-2), na realidade um
êxito da representação junto ao público era o capítulo denominado “Primado do diretor”.
intérprete principal; o texto e todo o resto eram Curiosamente, nem o autor analisa o que seria
irrelevantes. Buscava-se acertar o passo com o afinal a valorização do espetáculo, nem ele rela-
que se praticava na Europa e tal só fora possível ciona esta valorização com o novo poder do di-
graças à presença de Ziembinski, trânsfuga da retor, poder, aliás, que ele afinal lamenta, por
guerra, que assumira a função de diretor, é a buscar tornar o teatro muito intelectual, a seu
conclusão do texto. Vale sublinhar que em ne- ver, desatento ao apelo do público, que ainda
nhum lugar de seu livro o crítico explicita como não compreenderia verdadeiramente a missão
teria ocorrido a aludida mudança do “panora- do teatro como diversão.

209
sala preta

Observe-se que Gustavo Dória foi crítico freqüência no simples terreno da enumeração e
teatral e um dos integrantes históricos do gru- do relato preocupados com os textos das peças.
po Os Comediantes. Portanto, as suas observa- Em uma consideração de ordem geral, poder-
ções, no volume que foi o primeiro a surgir ver- se-ia afirmar que o texto articula-se como crô-
sando sobre o moderno teatro brasileiro, devem nica intelectual das personalidades de maior
ser olhadas sob uma ótica especial: existe aí a destaque do teatro brasileiro, de 1930 a 1980;
busca nítida da construção de uma versão a res- trata-se portanto de um inventário das estrelas
peito do moderno, olhar de uma geração ou de do período.
um integrante desta geração. Não há má-fé ou A chave de leitura está contida na apre-
desonestidade, é importante destacar, mas ape- sentação do texto, que o autor expõe no prefá-
nas envolvimento intenso, vivência direta dos cio. Ele observa que a origem do livro foi um
fatos estudados. ensaio de natureza histórica precisa, publicado
Um outro autor de significação bastante com o título Teatro: 1930 – 1980, na História
especial deve ser considerado. Neste caso, vária Geral da Civilização Brasileira. A menção dos
é a obra e diversa a sua natureza – trata-se do acréscimos feitos posteriormente serve de veícu-
crítico, ensaísta e professor Décio de Almeida lo para que o crítico defina a estrutura concei-
Prado, por sinal também participante direto do tual básica de seu texto: “Os acréscimos agora
movimento de renovação do teatro brasileiro, feitos referem-se, quase todos, à literatura dra-
quer como líder do movimento amador, dire- mática, chamada comumente de drama em in-
tor em São Paulo do Grupo Universitário de glês, em oposição a theatre, que seria a parte re-
Teatro (GUT), quer como crítico e professor. lativa ao espetáculo”. Portanto, o seu “intuito
Parece fora de dúvida a atuação de Prado ao lon- principal foi o de estudar o ‘drama’, quer dizer,
go do processo histórico do teatro moderno en- os autores, mas sem nunca perder de vista o ‘te-
quanto formulador de uma matriz estético- atro’, pano de fundo sem o qual as próprias pe-
conceitual que norteou em grau razoável o ças não adquirem o necessário relevo” (Prado,
sentido do palco brasileiro, ponto a que retor- 1988, p. 9).
naremos adiante; relevante contribuição para Para o ensaísta, o motivo que o levou a
este debate tem sido prestada pelos estudos de escrever é claro: deixar por escrito um testemu-
Iná Camargo Costa10. nho dos fatos que acompanhou, de longe ou de
Em seu texto mais próximo do objeto ora perto. Ainda no prefácio, o trecho final subli-
em exame, O teatro brasileiro moderno, o mo- nha a ausência, qualificada como dolorosa, de
derno do título é qualificação que não se expli- cenógrafos e críticos, duas categorias deixadas
cita enquanto conceito. Em nenhum momento de lado e que, para serem incluídas, exigiriam
o autor se propõe a tarefa de sua definição. Mas uma mudança considerável do plano inicial –
a análise exposta não é uma construção simples “elaborado em torno de autores, com referênci-
ou ingênua; não pode ser enquadrada como as ocasionais a atores e encenadores, dos quais
simples relato factual vivenciado afetivamente, os cenógrafos (e figurinistas: outra ausência) são
tal como ocorre no texto de Dória, nem se pren- tributários” (id., ibid., p. 11). E conclui a res-
de tão exclusivamente à evolução da dramatur- salva com uma conclusão bastante interessante:
gia, como em Magaldi, apesar de manter-se com “Contento-me, pois, em lembrar alguns nomes

10 Em particular Sinta o drama (Petrópolis: Vozes, 1998). A obra tem provocado razoável polêmica, pois
suas tintas são fortes e um tanto pesadas para a avaliação do tema da história do teatro épico no Brasil,
valendo algumas acusações de sectarismo contra a autora.

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Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

ligados à minha geração, aquela que fez a passa- Em outros livros de Décio de Almeida
gem, naquele momento tão problemático, do Prado, mais engajados posto que reuniões de
velho para o novo teatro”. críticas, é possível perceber a construção histó-
Toda a arquitetura deste texto de Prado rica do conceito de moderno inserida no interi-
supõe a valorização da encenação e do diretor or de um embate objetivo. Não há, portanto,
como o critério de formulação do moderno, mas uma operação intelectual pura, reflexiva. O crí-
com as abordagens muito centradas na drama- tico, com uma formação requintada e uma de-
turgia. Do velho para o novo teatro, o foco não dicação exemplar ao teatro, tornou-se o crítico
se altera – a reflexão sobre as peças transparece de teatro mais influente de São Paulo, uma
como fio condutor da obra. Todas as análises “eminência parda positiva”, influenciando mui-
expostas giram ao redor deste eixo. Revelam, to, decididamente, a orientação e os rumos do
outrossim, o conceito de moderno dominante teatro moderno12. A situação é bem evidente nas
em sua geração, aquele de inspiração texto- apresentações dos três volumes de críticas pu-
cêntrica e de valoração extrema da dramaturgi- blicados pelo autor em diferentes momentos de
a, tributário a um só tempo dos teatros italiano sua carreira e da história do teatro brasileiro; um
e francês 11. É possível situar no volume um trabalho por realizar será o de cotejar o cálculo
movimento peculiar, em que o autor considera conceitual que estrutura estes textos, entre eles
o moderno, vivido e formulado por sua própria e em relação aos demais historiadores da gera-
geração, como experiência fundante e suprema, ção, dada a importância do autor. Vale destacar,
ápice do processo histórico do teatro brasileiro contudo, o reconhecimento explícito pelo au-
no século. Sob este aspecto, é interessante cha- tor da proposição de Copeau – nomeadamente
mar a atenção para uma situação peculiar do o seu conceito de encenação – como o norte
texto. Na sua primeira parte, quando o autor que guiou a sua visão do teatro.
focaliza a morte do velho teatro, ele cita uma Finalmente, em um volume que possui
declaração exemplar de Procópio Ferreira, de natureza totalmente diferente dos citados até
1948, em que o ator consagrado declarava que esta altura, posto que é uma coletânea recente
o teatro estava à morte e não teria mais do que de escritos, variados em seus formatos, datas e
quinze anos de vida. Ao final do livro, situando ambições, Décio de Almeida Prado aborda, no
a atualidade e os impasses que a seu ver a carac- primeiro deles, justamente o tema que nos in-
terizam, o autor lança uma pergunta que reme- teressa – O teatro e o modernismo (Prado, 1993).
te às dúvidas de Procópio Ferreira: “Renascerá Infelizmente o crítico não realiza neste texto
o teatro sob formas ainda inimagináveis, como uma operação intelectual muito diferente das
tantas vezes sucedeu, ou morrerá, havendo cum- que já foram expostas. Em lugar de definições
prido honrosamente o seu destino histórico?” ou conceitos a propósito do teatro moderno, ele
(id., ibid., p. 140). envereda mais uma vez por um estudo de caso e

11 Um outro documento útil para o exercício da reflexão a respeito dos limites (dramatúrgicos) do mo-
derno proposto, o qual acabou tendo bastante poder para questionar todos os que tentavam “desafiá-
lo”, é o volume Temas da história do teatro, de Sábato Magaldi (Porto Alegre, Curso de Arte Dramática/
Faculdade de Filosofia/UFRGS, 1963). São ao todo 15 temas, na realidade artigos originalmente pu-
blicados no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, e apenas um não é de dramaturgia, versando
commedia dell’arte.
12 Ver a propósito Faria et. al., Décio de Almeida Prado um homem de teatro (1997).

211
sala preta

agora, por sinal, aborda um tema peculiar – a (id., ibid., p. 25). O uso do grifo é importante.
ausência do teatro na Semana de Arte Moder- O autor raciocina como se a análise da história
na de 1922 – tema recorrente sempre que está cultural pudesse ser efetivamente questão de
em pauta o problema do moderno no teatro previsão e supõe até mesmo que o crítico anteri-
nacional. or fosse manter intacto, com o passar do tem-
De certa forma, a propalada ausência é po, o esquema conceitual que forjara e, além do
contestada; o exercício da crítica sob ideário mais, fosse enveredar pelo raciocínio proposto
moderno nos anos vinte por Antônio de Alcân- por Décio de Almeida Prado tantos anos depois.
tara Machado – afinal um crítico sem objeto, A seu ver, o “tranco” de integração ao uni-
posto que circundado por objetos rejeitados in versal fora realizado pelos Comediantes, pelo
totum – seria o indicador da presença do palco Teatro Brasileiro de Comédia, pela importação
no movimento. Quer dizer: ainda que a Sema- de diretores estrangeiros que difundiram “fór-
na de Arte Moderna não tenha sido contem- mulas” modernas – realismo, simbolismo, ex-
plada com um único espetáculo teatral, razão pressionismo, teatro épico. A outra etapa, o
pela qual os estudiosos sempre afirmaram a au- “tranco” da integração ao próprio país, coubera
sência do teatro na Semana, Prado considera basicamente ao Teatro de Arena – o qual, “bus-
que Alcântara Machado, um escritor profunda- cando um estilo de representação, uma lingua-
mente ligado ao movimento, ao exercer a fun- gem de palco especificamente nossa, acabou por
ção de crítico de teatro em São Paulo, de 1926 encontrar a velha comicidade farsesca preconi-
até a sua morte em 1935, teria sido a presença zada por Antônio de Alcântara Machado” (id.,
do teatro no movimento moderno. Note-se ibid., p. 25).
bem: presença como crítico, fora da cena. No O resultado teria sido bastante positivo:
entanto, o crítico era um crítico do vazio – “a “O riso popular, subindo do circo e da revista,
sua atitude não é a de um observador imparci- foi a chave para uma interpretação genuinamente
al, objetivo, mas a de um criador que, não en- brasileira de textos brasileiros, servindo ainda,
contrando no palco lugar para as suas concep- de passagem, para a reavaliação de clássicos
ções dramatúrgicas, tenta redefinir o teatro, franceses e espanhóis” (id., ibid.). O grifo é para
condenando em sua totalidade o presente em destacar uma avaliação que precisa ser discuti-
nome de um futuro que se pretende instaurar” da, que situa o moderno enquanto tempo-
(id., ibid., p. 17). A observação é polêmica; mas ralidade inequívoca. O que é importante ressal-
não interessa abordá-la e sim considerar aonde tar é este conceito indiretamente construído, a
ela permite ao ensaísta chegar. um só tempo confuso e híbrido, em que o mo-
Prado observa, segundo um enfoque por derno, em lugar de representar a dissolução do
demais discutível, que, a seu ver, o que Alcântara sujeito, a multiplicidade, deve ser unidade sen-
Machado propôs como vertente de moderniza- timental e temporal – já que a noção de nacio-
ção – a defesa da necessidade de dois trancos, nalidade é apenas identidade e uma noção histó-
um de integração ao universal e outro ao nacio- rica. Em conseqüência, este moderno deve ser
nal – teria sido exatamente o caminho que o naturalmente uno enquanto estilo, redução – o
teatro brasileiro moderno percorrera ao longo critério do genuinamente brasileiro precisou ser,
de sua própria geração. Assim, ao fazer um ba- ao menos no caso do Arena, realista e até natu-
lanço do teatro brasileiro 37 anos após a morte ralista. Um outro problema é a existência de
de Antônio de Alcântara Machado, o crítico uma avaliação positiva, produtiva, do processo
surpreendia-se “com a lucidez com que ele pre- histórico, como se dos dois trancos tivesse sur-
viu a nossa evolução dramática, a ponto de qua- gido o moderno.
se poder servir de guia para uma revisão da his- É preciso ir mais adiante. A reflexão mais
tória do teatro brasileiro nos últimos decênios” acurada sobre o conceito de História pertinente

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Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

para o estudo do teatro hoje está impregnada pouca monta: acarreta como exigência primei-
pelo reconhecimento da problematização da arte ra o estabelecimento do próprio conceito de
no século XX, observamos acima, o que signifi- fonte. Ou melhor – trata-se antes de problema-
ca situar a obra de arte moderna como multi- tizar o conceito, pois a tradição historiográfica
plicidade. Esta condição não é um simples exer- contém em si uma prática historicamente insti-
cício de definição – ela acarreta também uma tuída, ainda que não explicitada ou debatida. O
análise metodológica essencial, pois tanto a de- problema é que esta prática surgiu e foi veicula-
finição do que é teatro, como a eleição das obras da como naturalidade13.
representativas, como as formas de tratamento Para que se fale em História do Espetácu-
destes objetos, deverão estar em discussão. lo e para que esta história incorpore as condi-
Considerando-se esta formulação da ções essenciais do teatro no século XX, é preci-
questão, para que fossem situados quanto à His- so fixar alguns pressupostos metodológicos
toriografia os autores mencionados, a decorrên- básicos. Em primeiro lugar, não está mais em
cia natural seria a sua divisão em dois grupos pauta a mera análise dos textos das peças ou de
distintos, tradição e nova tradição, na medida em outras materialidades nobres e incontestes que
que estes últimos não rompem absolutamente possam permanecer ao lado e adiante da cena,
com alguns procedimentos tradicionais decisi- mas, antes, é preciso estabelecer os vestígios que
vos e não promovem cortes conceituais essen- desvelem o fato teatral e fixar uma tipologia das
ciais. O fato do próprio conceito de História fontes para o estudo do teatro, abrangendo,
não ser discutido faz com que não haja uma além dos impressos e manuscritos diretamente
abordagem crítica qualquer da História do Tea- ligados à dinâmica da montagem, os jornais, as
tro enquanto História de Estrelas. Mais, até – a fontes orais e os documentos orais, as imagens,
operação do historiador não é vista como a ela- as fotos, os vídeos, os filmes e documentos ico-
boração de constructos, leituras possíveis e pas- nográficos diversos. São todas fontes primárias,
síveis de discussão. O tema não precisa ser visto ainda que umas mantenham uma relação mais
apenas como um fato da teoria; há um contor- direta e próxima com o fato estudado, surjam
no metodológico grave a considerar. Os autores como registros mais imediatos do que outras,
estudados, a não ser quando tratam da dra- cuja razão de ser é exatamente uma certa dis-
maturgia e de fontes secundárias, em geral não tância em relação ao objeto, que poderiam, en-
explicitam plenamente as fontes consultadas, tão, ser qualificadas como fontes primárias de
salvo raras exceções. Quando, em particular nos segundo grau.
casos de Sousa, Prado e Magaldi, as fontes que Assim, para a determinação de uma tipo-
estão seguindo ou analisando são indicadas, eles logia das fontes para o trabalho em História do
nunca expõem os seus critérios de eleição e os Teatro, em particular para o teatro brasileiro,
métodos de abordagem destes materiais. A seria interessante estabelecer as fontes primárias
discussão metodológica, essencial, tem estado de primeiro grau. Elas englobariam o texto (e
distante da escritura da História do Teatro de preferência – apesar de raros documentos
Brasileiro. deste tipo serem preservados e franqueados aos
No entanto, parece fora de dúvida que é historiadores no Brasil – o texto poderia ser o
preciso discutir a metodologia adequada ao texto da montagem), os cadernos de ensaio e
campo de estudos; esta necessidade não é de de montagem ou esboços, croquis, esquemas,

13 “A história, desde a origem, é essencialmente crítica das fontes, e quase sempre as fontes a que o his-
toriador tem acesso são já o produto de uma voluntária ou inconsciente seleção” (Argan, 1988, p. 22).

213
sala preta

maquetes e plantas (todos estes assinados por podem ser críticas ou reportagens, além das
diretores, atores, cenógrafos, técnicos), as fotos matérias pagas – quer dizer, ou traduzem uma
e registros iconográficos do processo de ensaio reflexão autoral, assinada, sobre a obra, como é
e de apresentação. As fontes primárias de segun- o caso das críticas, ou registram informações
do grau estariam um tanto mais distanciadas do noticiosas, em geral laudatórias, sobre o traba-
processo da cena – fosse por sua exterioridade lho, condição genérica que se pode atribuir às
mesma em relação à dinâmica da montagem, reportagens. No caso das críticas, é interessante
caso dos trabalhos dos jornalistas e críticos, re- localizar os autores dos textos, saber de sua for-
latos e textos de fãs ou de espectadores, comen- mação e ideário, estudo em parte realizado para
tários de contemporâneos ou documentos ofi- alguns casos no século XX (Da Rin, p. 1994, 38).
ciais, fosse por sua exterioridade calculada. Há uma atitude crítica essencial a ser ado-
Neste segundo caso, estariam os textos tada pelo historiador, portanto. Ele precisa se
elaborados pela própria equipe artística para di- despir de qualquer fetichismo diante do texto de
fundir o seu trabalho segundo determinada ori- jornal, reconhecer sua materialidade fugaz e par-
entação, como os programas, cartazes, filipetas, cial, sua vulnerabilidade, latentes em seu modo
releases, enfim, todos os textos em que o objetivo de fazer. Estas circunstâncias transformam os
não é mais atuar em um processo de montagem/ textos da imprensa em objetos paradoxais, pois
criação, mas antes divulgá-lo com uma imagem tanto aparecem como seguidores da norma ab-
específica. A própria reflexão sobre a tipologia soluta de veiculação da informação, o que seria
das fontes parece constituir um trabalho de ga- a condição fundamental de sua existência, como
binete bastante produtivo. O seu objetivo prin- operam com um elevado índice de erros de in-
cipal é viabilizar a percepção das camadas de formação, falha constitutiva decorrente de seu
sentido que a obra teatral referida por elas pode modo de produção.
conter, de sua concepção até a sua difusão. Assim, o método histórico deve ser usa-
Com relação aos textos dos jornais – tan- do com rigor durante a pesquisa: o recurso à
tas vezes desqualificados por pesquisadores por prova e à contra-prova são instrumentos efici-
sua condição de escrita apressada – o historia- entes para dissolver quaisquer dúvidas geradas
dor do teatro necessita superar todo e qualquer pelo formato jornalístico. Ele permite refutar
juízo de valor eventual, seja positivo, seja nega- abordagens que tendem a menosprezar o signi-
tivo. Com freqüência as fontes jornalísticas sur- ficado do jornal enquanto suporte de informa-
gem como o principal ou até o único registro ções para a escritura da História do Teatro. Na
disponível para o estudo do teatro brasileiro, verdade, quando há rigor metodológico, a situa-
nos séculos XIX e XX. A discussão a respeito da ção do “crítico” e do “jornal/comunicação de mas-
tipologia envolve então algum exercício de aná- sa” são referências estratégicas para o historiador,
lise crítica documental; é preciso fixar parâme- pois fornecem elementos preciosos para a aná-
tros para o trabalho com textos de jornais. O lise da cena teatral14.
primeiro procedimento importante está relacio- Um outro desafio é o trabalho com de-
nado à natureza dos textos jornalísticos, que poimentos, a História Oral. Além da metodo-

14 Para Villegas, o problema das fontes é de vital importância na história do teatro: “La historia del teatro
como teatro implica considerar tanto los textos dramáticos como la representácion de los mismos. Com respecto
al pasado, uno de los problemas más difíciles de resolver es la reconstrucción de la contextualización de la
representación” (Villegas, 1995, p. 19). Ainda assim, ele não consegue, no artigo, tratar com uma ótica
interessante o material dos jornais, sem dúvida por não empreender uma contextualização das fontes
escolhidas.

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Ora, direi ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro

logia específica, já bastante consolidada junto existência e estas versões são veiculadas nas en-
aos historiadores em geral (Alberti, 1990; Fer- trevistas às revistas e jornais e também nos de-
reira, 1994; Amado e Ferreira, 1996), devem ser poimentos aos historiadores. Assim, boa parte
levadas em conta algumas reflexões próprias do do que o documento oral permite evidenciar é
campo de estudos. Para a História do Teatro, a história e o contorno desta imagem social. A
tanto o recurso às fontes orais (documentos pro- natureza do documento oral produzido – entre-
duzidos pelo historiador com o objetivo de ana- vista, um documento mais pontual, ou depoi-
lisar em princípio a fala, o falar, o ato puro da mento, um documento de maior extensão – irá
oralidade), como o recurso aos documentos orais fazer com que esta imagem social surja com maior
(documento em que se busca o registro de uma ou menor transparência; cabe ao historiador ela-
versão dos fatos), distinção estabelecida por borar perguntas norteadas por esta preocupação.
Voldman (1994, p. 17), parecem adequados, Outras reflexões de importância devem
muito embora os últimos sejam os mais difun- ainda ser feitas, a propósito do recurso à ico-
didos. À diferença dos primeiros, eles são usa- nografia como fonte para a História do Teatro.
dos sempre como equivalentes ou complemen- Este ponto faz surgir de forma mais aguda o
tares às fontes escritas, mas ainda assim apre- tema da própria definição da disciplina. Existi-
sentam algumas peculiaridades. ria uma história monumental e uma história do-
Ao contrário do que acontece em geral cumental no campo das artes, a primeira con-
com os indivíduos em sociedade (Velho, 1984, tando com a contemplação direta das obras de
p. 123), cuja memória oscila em função do pro- arte, o objeto de seus estudos, a segunda con-
jeto de vida, sempre atualizado cotidianamente tando apenas com vestígios da obra focalizada,
nas sociedades modernas, os artistas de teatro – condição específica da História do Teatro (Bal-
as estrelas – costumam ter uma imagem social me, p. 1997, 192). A situação traduz um im-
que recobre sua identidade corrente. Esta ima- passe decisivo, que deve ser tratado pelo histo-
gem social é a um só tempo um projeto artístico riador: a tentação, a ameaça ou a ilusão de que
e um cálculo de mercado – portanto dotada de poderia elaborar uma restauração ou uma exu-
um baixo teor de oscilação ao longo da carreira mação da obra original, condição que pode tra-
do artista. Com freqüência o pesquisador irá en- ir a ingenuidade do estudioso, pois em verdade
contrar a mesma história de vida narrada por um o que é preciso é a consciência do olhar que
ator ao longo de décadas, ao mesmo tempo em perscruta a obra e não a crença de que ela possa
que verá o quanto esta versão pode ser frontalmen- ou deva ser recomposta. Afinal, o que está em
te questionada a partir de outros documentos. foco é a tentativa de promover uma forma de
Em tais condições, é fundamental obser- historiar peculiar.
var que a História Oral não se faz, com artistas Considerando esta condição, parece ade-
de nosso tempo, como se faz com homens co- quado seguir a classificação da documentação
muns: os artistas possuem uma fala para a fama, iconográfica sugerida por Balme a partir de Mo-
uma construção de versões glamourizadas dos linari. Segundo o texto citado, tendo em vista a
fatos que é preciso situar. A história de vida é, documentação iconográfica relevante para a
então, formulada como anseio de reconheci- História do Teatro, deveriam ser reconhecidos
mento, pretende ser uma história para a poste- três níveis epistemológicos de classificação –
ridade, em sintonia sempre com uma versão de documentos diretos, indiretos e aqueles que re-
mercado, construída para a mídia. Vida de ar- presentariam um conceito ideal do teatro. No
tista, a história de vida se transmuda de certa for- primeiro caso, estariam os documentos em que
ma em versão de vida. Os artistas de teatro, em se poderia “traçar uma relação direta e imediata
geral hábeis senhores das palavras, são exímios com um acontecimento teatral específico” (p.
produtores de versões de vida ao longo de sua 192); tais seriam as fotos de cena ou de fatos da

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sala preta

vida teatral, por exemplo, em que o estudo da guidas. Tal não significa uma história de bio-
imagem levaria à constatação de sua forma de grafias, mas, antes, a elaboração de um quadro
produção, que poderiam, por sua vez, ser divi- de referência básico para o estudo de cada mon-
didas em duas categorias básicas, a pose e o ins- tagem em que este artista (ou conjunto de ar-
tantâneo. No segundo caso, dos documentos tistas) esteve envolvido, viabilizando uma his-
indiretos, estariam os documentos em que se tória do teatro eminentemente analítica e crítica
poderia ver alguma referência ao teatro da épo- em que se poderá localizar tanto a ação das in-
ca, ainda que o objeto retratado não fosse o tea- dividualidades decisivas quanto a poética da
tro; seriam documentos em que o teatro pode- cena, do espetáculo.
ria ser lido na vida de seu tempo. No último O resultado será uma história de nosso
caso estariam contemplados os documentos que próprio tempo, com certeza: se nenhuma outra
indicariam a existência de uma idéia de teatro, época histórica conviveu de forma tão intensa
ainda que não se possa usá-los como indícios com a hipótese de ruptura com o anonimato
materiais diretos do teatro contemporâneo. por tantas pessoas, quer dizer, se em nenhum
Surge, finalmente, a questão: o que fazer outro momento da história os seres humanos
com estes rastros de estrelas, recolhidos pelo his- puderam conviver com tantas e tão variadas es-
toriador a partir de diferentes modalidades de trelas como em nossa sociedade, cabe a nós o
fontes? Para que o historiador não retorne à desafio de escrever esta história. As estrelas sem-
pena dos pesquisadores do passado, escrevendo pre existiram, é fato. Para o ponto de vista de-
meras enumerações, crônicas ou inventários, pa- fendido neste texto, elas são inerentes ao teatro
rece justo propor que ele estabeleça a identidade e à história do teatro. Mas agora estamos diante
conceitual do artista estudado. Tratar-se-ia, mais de uma era das estrelas; mais do que nunca o
precisamente, da indicação de sua trajetória en- historiador deve buscar ir além do poeta, deve
quanto projeto estético e programa artístico, revelar o equilíbrio do seu senso ao saber não só
considerando-se as referências essenciais de sua ouvir e entender estrelas, mas sobretudo desve-
formação, as peculiaridades do diálogo artístico lar o sentido de seu encanto através do amor à
de seu tempo e as dinâmicas de atualização se- crítica.

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