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P aulo Merisio
A
cionar a bibliografia que procura compre- lançar uma luz viva sobre a história do tem-
ender o percurso do melodrama é, sem- po em que elas atravessaram (van Bellen,
pre, um exercício de atenção aos olhares 1927, p. 2; grifos meus).
que em diferentes momentos tendem a
cair na armadilha de perceber a experiên- O autor detecta nos críticos duas visões
cia de tal gênero analisando-a segundo os pa- sobre uma possível gênese do melodrama: uma
drões literários. dominante, que o vê como ponto terminal de
Em obra que busca investigar-lhe as ori- um percurso; outra, que o caracteriza numa vi-
gens, van Bellen deixa escapar com freqüência são “evolutiva” como ponto de partida. A pri-
certa condescendência com o melodrama, jus- meira sugere que o melodrama seja uma versão
tificando as limitações qualitativas do gênero decadente de experiências que o influenciaram:
em sua perspectiva popular: obras literárias “medíocres”, produzidas e ocu-
pando o espaço dos grandes clássicos. A outra
Graças aos homens de ciência, o melodrama leitura é a de que o melodrama, seguindo per-
pôde encontrar nos últimos tempos o meio curso das manifestações artísticas populares, se-
pacífico e tranqüilo que permite destacar sua ria um modelo mais bem acabado da pantomi-
importância e medir sua influência. Sem dú- ma e, nesse caso, em movimento evolutivo.
vida, aqueles que, ao escrever a história da Os dois pontos de vista, no entanto, con-
literatura, se deixam guiar somente pelas obras vergem para a idéia dominante de que se trata
primas, tiveram grande razão em ignorar as de um gênero popular. O rótulo “popular”, no
produções de Pixerécourt, Caigniez, Victor entanto, impingiu durante muito tempo ao gê-
Ducange e de tantos outros. Mas se, ao se- nero um valor negativo. Grande parte de seus
guir um outro método, que visa sobretudo à autores é ainda desconhecida e muito pouco es-
reconstrução do passado, deve-se cuidar para tudada. Jean-Marie Thomasseau afirma que, em
não se perder de vista um conjunto de obras, 1974, época da elaboração de sua tese, seu
medíocres é verdade, mas que não deixam de orientador receava a má aceitação de seu traba-
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1 Segundo Pavis, o boulevard era, no século XIX, o famoso boulevard do crime (destruído em 1862), os
boulevards Saint-Martin e du Temple, onde os palcos da Gaité (Alegria), do Ambigú (Ambíguo) e dos
Funambules (Funâmbulos) eram o teatro de inúmeros delitos e aventuras sentimentais: aí se represen-
tavam melodramas, pantomimas, espetáculos de féerie e de acrobacia, comédias burguesas (Scribe) já
criticadas por artistas e intelectuais da época. O boulevard conheceu, antes da Segunda Guerra Mundi-
al, seu período mais faustoso, com uma vertente cômica vaudevillesca e uma vertente séria e psicológi-
ca (Berstein). Depois de 1930, o boulevard passa a ter qualidade: Guitry, Bourdet, Bataille, mais tarde
Anouilh, Aymé, Achard, Marceau são escritores talentosos (cf. Pavis, 1999, p. 380).
2 “É um povo já livre de sua timidez, animado por novos desejos e mesmo por exigências claras que
constituem o principal elemento da multidão, entre o pórtico Saint-Martin e a extremidade do
Boulevard du Temple, particularmente no trecho onde esta última se alarga, provocando como uma
represa no escoamento da multidão, que não avança quase nada além do outro lado da Rua Charlot, da
entrada do restaurante Le Cadran Bleu e do Café Turc, com seu jardim e seu quiosque com música,
que marcam os limites do espaço reservado à festa de feira permanente. Esta seção do Boulevard
reagrupa, seguidamente sob novos nomes, todos os espetáculos que migram das grandes feiras
parisienses, a palavra espetáculo devendo ser aqui compreendida em sua acepção mais larga, pois neste
legado estão incluídos, ao mesmo tempo que os verdadeiros espetáculos teatrais, os tablados dos ilusio-
nistas, as tendas dos acrobatas e o demonstradores de fenômenos, assim como os tabuleiros de peque-
nos comerciantes” (Gascar, 1980, p. 13).
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A primeira experiência de uma Fraternal Sempre nas peças tinha o cínico, que se cha-
Companhia de que se tem registro data de ma hoje vilão. Na linguagem teatral era a clas-
1545, em Pádua. O contrato evidencia, além da sificação dos elementos do elenco: o galã – o
expectativa de retorno financeiro, uma série de mocinho; a moça que trabalhava, a mocinha,
direitos e deveres destinados a seus membros. chamava-se ingênua. O pessoal do teatro hoje
A função (o papel) de cada componente é de- não conhece. Ingênua. Nessa peça tinha o pai
signada no próprio contrato – os atores são ali da moça, que era o centro dramático. O centro
registrados conjuntamente por seus nomes ci- dramático era aquele, o chorão, o sofredor;
vis e pelos nomes dos personagens –, associan- era o centro dramático. O intermediário a isso,
do-se o ator ao tipo que irá representar. Eis aqui o centro nobre. Então as mulheres eram: a in-
uma intrínseca relação entre produção e modo gênua, a caricata, a dama central; isso é o nome
de interpretar, na medida em que os atores eram como se dava (...) O primeiro cômico, o se-
contratados para desempenhar funções especí- gundo cômico. E justamente os principais: o
ficas. A especialização em papéis obriga que seus galã, centro dramático, cínico e cômico. Agora,
atores tenham razoável domínio da língua ita- entre esses tem a dama central, tem o centro
liana, uma vez que cada tipo possui uma lin- nobre, essas coisas. E tem ainda o artista, o
guagem variante associada a suas características caricato, o genérico, que faz todos, se adapta a
e um dialeto associado à sua máscara. qualquer papel, tudo isso. Era a designação
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do elenco. E, então, quando saíamos na rua, gens cômicos, os niais, na estrutura dramática
o povo passava assim: “Olha lá, aquele, aque- do melodrama é indício de provável influência
le, aquele é o...” Chamava pelo nome da peça, que tal gênero carrega da experiência da comme-
sabe, o povo [risos]. “Olha lá, ali vai... Aque- dia dell’arte.
le é o barão. Aquele é o Servieris; olha lá, é Se, por um lado, essa especialização em
o... aquele homem ruim” [risos], isso e aqui- tipos pode ser mais flexível nos circos-teatros,
lo, “aquele é o Álvaro”, chamava pelo nome espaço em que o ator pode navegar entre os
do galã. “Aquele é o Álvaro, olha lá, aquele gêneros cômico e melodramático, por outro, o
disse assim, isso e aquilo. Aquele é o Tomé, o repertório de quadros cômicos dos palhaços – e
isso e aquilo”, o nome do cômico. Chama- que é, em geral, apresentado na primeira parte
vam assim com aquela admiração (Entrevista do espetáculo, reservada às variedades – é fre-
com Zurca Sbano. São Paulo, 1998).3 qüentemente acionado no momento da repre-
sentação melodramática. E esta é uma carac-
Pode-se perceber na fala de Sbano que, terística do circo-teatro que é um dos eixos
além da instauração de um código – que era definidores da experiência da commedia dell’
absorvido pelo público – de divisão das compa- arte: um modo peculiar de lidar com a estrutu-
nhias de circo-teatro por papéis, há também ra dramatúrgica.
uma prática de associação dos atores a seus per- A partir de determinados roteiros, tais
sonagens. Guardadas as devidas proporções, na companhias exercitam-se na conjugação de
commedia dell’arte, sabe-se, o exercício intenso unidades que se estabelecem baseadas nas rela-
de predominância de atuação em determinado ções entre os diversos tipos. A idéia de improvi-
papel faz com que muitos atores sejam identifi- sação, comumente associada à commedia dell’
cados por seu nome de arte. arte, se ameniza, na medida em que os atores
Outro ponto relevante que se pode dis- improvisam sobre uma rede de composições
tinguir nos contratos de constituição das com- formada pela combinação de diversas partes. Os
panhias de commedia dell’arte é um equilíbrio conflitos entre os personagens (tanto sérios
entre dois pólos antagônicos, pois parte dos per- quanto cômicos) sustentam o surgimento de
sonagens pertence à linhagem séria (que aos uma dramaturgia que se dá por meio da articu-
poucos vai inspirar o surgimento do melodra- lação de uma série de elementos que compõem
ma) e parte está relacionada aos artistas cômi- a cena: o esboço de uma narrativa,4 papéis com
cos populares. funções nítidas na história, potencialidade téc-
Aqui também há elementos caracteriza- nica corporal (incluído aí um expressivo domí-
dores dos atores da commedia dell’arte que po- nio do trabalho vocal); em suma, elementos que
dem ser identificados nos artistas de circo-tea- articulam uma dramaturgia peculiar configu-
tro. Principalmente no que se refere à atuação rada em sua totalidade somente no momento
nos melodramas. A permanência dos persona- da cena.5
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6 Segundo Patrice Pavis: “O melodrama (literalmente e segundo a etimologia grega: drama cantado) é
um gênero que surge no século XVIII, aquele de uma peça – espécie de opereta popular – na qual a
música intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem silencio-
sa” (Pavis, 1999, p. 238).
7 Note-se que Thomasseau caracteriza o período do melodrama clássico entre 1800 e 1823, ainda sob os
ventos da Revolução Francesa, que tem seu apogeu em 1789: “A lenta metamorfose que afeta os gêne-
ros artísticos tradicionais, e em particular o teatro, ao longo do século XVIII, aliada ao surgimento de
um publico – no período da Revolução – que incorpora as classes populares e sensíveis ao extremo por
anos de peripécias movimentadas e sangrentas, conduz à eclosão do que se pode chamar de estética
melodramática” (Thomasseau, 1984, p. 5).
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cer-lhe a dosagem adequada – enquanto de- Essa atenção aos desejos do público con-
senvolve histórias no palco (Huppes, 2000, sumidor espelha o movimento empreendido
p. 12). pelos produtores do melodrama no sentido de
satisfazer seu público, com a intenção de garan-
Cabe aqui abrir um breve parêntese e citar tir o retorno do investimento. Estabelecendo
depoimento que comprova a suposição de que novo paralelo com a experiência do Boulevard
alguns elementos característicos do melodrama du Crime, pode-se tomar como exemplo o ár-
– além da óbvia utilização do próprio gênero duo trabalho que era reservado ao dia após a es-
em seu repertório – influenciam a própria es- tréia: “o autor e o diretor ajustavam a peça em
trutura espetacular dos circos-teatros no Brasil: função dos assobios, das pateadas, dos gritos,
dos risos, das lágrimas do público e, principal-
Pesquisador – E, como é que você faz com as mente, das críticas que saíam na imprensa”
piadas, com essas coisas? Você tudo improvi- (Przybos, 1987, p. 29).
sa na hora? Você vê?... Há também, tanto no melodrama fran-
Filho – Às vezes improviso... cês quanto no circo-teatro no Brasil, certa sen-
Maria – Mas já sabe, né? sibilidade para com o ambiente da época, que
Filho – Tem as que já é de praxe, né? Mas, se traduz na capacidade de incorporar novida-
conforme o negócio da platéia reagir, então, des. Huppes reitera o fato de que o gosto popu-
a gente improvisa na hora? Você vê? lar pelo melodrama está também associado a
Pesquisador – Depende da reação do pú- essa capacidade de “absorver modificações
blico... sugeridas pelo contexto histórico-social”: à me-
Filho – Reação do público. dida que o século XIX avança, personagens feu-
Pesquisador – Se eles gostam ou não, daí você dais, por exemplo, vão sendo substituídos por
(...)? senhores burgueses, e os próprios cenários rús-
Filho – É, ele tem que ter malícia – se eles ticos passam a assumir tintas urbanas (cf. Hup-
gostam de piada forte ou pesada. pes, 2000, p. 23).
Pesquisador – E, isso como é que você No discurso de seus realizadores eviden-
percebe? cia-se a intenção de satisfazer a platéia. Essa in-
Filho – Primeiramente piadinha leve – vamo tenção reflete-se na própria estrutura das peças.
ver... Os personagens atuam em dois nítidos segmen-
Mário – Na estréia isso. tos: o dos bons e o dos maus. O eixo do enredo
Filho – É na estréia, logo de cara. Tem que melodramático é o conflito gerado por essas
estudar a platéia. O duro do palhaço é isso aí duas bandas, em que o vilão interfere em deter-
– estudar a platéia na estréia, logo de cara. minada ordem, e cabe ao herói restaurá-la. No
Mário – Vê o que eles querem. embate entre a virtude e o vício, a ação é valori-
Filho – Piadinha leve – ninguém gostou; zada, e as histórias são repletas de truques, tais
manda uma pesada – gostaram. Então, que- como peripécias e reconhecimentos que garan-
rem pesada. Então,... Aí, muda o programa, tem o constante envolvimento dos espectadores.
é o tal do improviso. Aí, muda o programa Outro elemento a ser relevado como re-
todo de novo – que é o palhaço e o cron (sic). curso melodramático é a complexidade dos ce-
Os dois trabalham juntos... Não gostaram da nários, compostos por diversas ambientações. A
leve, vamo partir p’rá pesada. Mas, já tá as ação passa a rivalizar com a palavra. No gosto
duas... né? Na cabeça do (...). melodramático pelas situações, pode-se eviden-
(Entrevista com a família Beneli. Circo-Tea- ciar o lugar privilegiado que as múltiplas revira-
tro American. Ferlauto, 1976, p. 45). voltas ocupam no enredo, ou seja, propõe-se um
exercício de exploração extremada das ações,
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criando-se diversos e complexos efeitos. Torna- estabelece com seu público fiel. Qualquer abor-
se necessário desenvolver-se uma gama de recur- dagem do melodrama demanda que se ressalte
sos que possibilite a realização desses efeitos o fato de que uma de suas grandes contribui-
apoteóticos, o que reforça a aspecto visual co- ções foi a busca por privilegiar a cena. No siste-
mumente associado ao melodrama. ma de signos complexos que compõem a estru-
Como conclusão vale retomar, com base tura teatral, o melodrama evidencia a leitura de
nas aproximações estabelecidas, a questão que que a representação serve para configurar um
abriu este artigo, reforçando que tais recursos sistema significante autônomo cujo conjunto de
evidenciam o fato de que o texto melodramáti- signos textuais constitui apenas uma parte da
co deve ser compreendido como um dos ele- totalidade (Ubersfeld, 1998, p. 27).
mentos que compõem essa forma teatral, cujo É, portanto, como já se destacou, litera-
objetivo primeiro é o impacto da relação que tura destinada à cena.
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