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2º edição — 2º reimpressão
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época a meditarem sobre sua própria arte, sobre suas Pindaro e Anacreonte -, e trágicos — Esquilo, Sófocles e
próprias técnicas. E, conseqlientemente, não mais podia Eurípedes. Se Hugo afirma que “os tempos modernos são
o teatro continuar a ser o que era, inclusive para os dramáticos”, não há quem deixe de protestar. E o mesmo
adeptos do classicismo. Os princípios de mistura dos acontece quando trata do grotesco como “novo tipo” no
gêneros, de rejeição das regras, de recusa da imitação dominio da arte, uma vez que já está presente na Ilíada
dos modelos, de liberdade na arte, estimularam e esti- e Odisséia, além de nos dramas satíricos. (É bem verdade
mulariam, no futuro, a imaginação de dramaturgos, que Hugo reconhece “o grotesco antigo”, mas este — diz
abrindo novos caminhos aos jovens talentos. ele — é “tímido e procura esconder-se”.) Sua longa análise
“Considerações gerais sobre a arte.” E assim que do grotesco, considerado sob seus vários aspectos e em
Hugo apresenta seu Prefácio, que é também, no seu es- seu papel estético, foi, no entanto, admirada por muitos.
pírito, um verdadeiro manifesto: seu e do romantismo. Mas, bastante vulnerável é toda a parte histórica do
Começa por uma análise da evolução da literatura em Prefácio, bem como suas apreciações críticas que dizem
relação com a da história, para chegar a uma análise da respeito a Corneille e Racine. O que lhe interessa, porém,
sensibilidade moderna. Da mesma forma que o gênero é esmagar a estética clássica, o que aliás confessa, quando
humano conhece três idades sucessivas: a infância, a diz que teve, “de início, antes a intenção de desfazer do
idade adulta e a velhice, a sociedade passou, diz ele, por que de fazer poéticas”.
três grandes fases que viram o desabrochar da poesia, Hugo luta por uma poesia nova, opondo-se ao que
sob suas três formas essenciais: considera como forma esclerosada do passado: o classi-
— os tempos primitivos, com o lirismo, mo e suas velhas formas teatrais. Sua crítica atinge a
— ostempos antigos, com a epopéia, iragédia, e, mais especialmente, “a regra das duas unida-
— os tempos modernos, com o drama. des” (não três), apoiada em aparéncia “na verossimi-
“Assim (...) a poesia tem três idades, das quais cada ‘hanga, quando é o real que a mata”. Contrário a todo
uma corresponde a uma época da sociedade: a ode, a formalismo literário, insurge-se contra a regra da separa-
epopéia, o drama.” o de gêneros, pois “a arbitrária distinção dos gêneros
De caráter arbitrário, indiscutivelmnte, foi esta divi- depressa se desmorona diante da razão e do gosto” e
são da história da humanidade muitas vezes criticada e ga uma poética da totalidade. Ao gênio cabe a tarefa
atacada. Antes de Hugo, Chateaubriand, em Gênio do Ze criar uma obra total, sem excluir qualquer que seja o
Cristianismo (1802), notava que os primeiros livros da zlemento do real; representar o homem na sua total
Biblia se prendem 2 epopéia (II, V: A Bíblia e Homero). semplexidade, iluminando-lhe “ao mesmo tempo, o in-
Se Hugo afirma que “os tempos antigos são épicos”, não zrior e o exterior”; representar a natureza, pois “tudo o
há quem não lhe aponte os clássicos gregos, líricos — Zue está na natureza está na arte”, sem no entanto pro-
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e
ceder à mera e simples reprodução do real, visto que “o Zo que deve ser a poesi 'A poesia verdadeira, a poesia
domínio da arte e o da natureza são perfeitamente dife- completa está na harmonia dos contrários”
rentes”. E, condenando “o comum”, este grande inimigo Dissemos, de início, que os princípios hugoanos es-
da arte, é Hugo o apologista do verso. Sua posição em nularam então e estimulariam dramaturgos, abrindo-
face do emprego do verso, numa época em que, sob a ‘hes novos caminhos. E parece-nos oportuno transcrever
influência de Mme. de Staél e de Stendhal (que nisto 2s versos de Vacquerie, um simpatizante de Hugo, que
seguiam a tendência do século XVIID, predominava o im se pronunciou em Meus primeiros anos de Paris:
gosto da prosa, sua posição é das mais originais. Ainda "Nós nos famos pelo espago, fiéis / E livres, compreen-
que condene o alexandrino clássico, que muitas vezes o Zendo desde nosso primeiro passo / Que só se imitava
embaraçou, advoga o emprego de um novo metro, mais Hugo em não o imitando”. Com efeito, o Prefdcio de
variado e flexível, apto a “tudo admitir” e a “tudo trans- Cromavell, pregando a liberdade da criação artistica, esta-
mitir”, podendo assim “percorrer toda a gama poética, ir va proibindo a imita¢io de Hugo e, não o imitando os
de alto a baixo, das idéias mais elevadas às mais vulga- amaturgos, mesmo assim seguiam os seus passos. Inte-
res, das mais cômicas às mais graves, das exteriores às sante parodoxo!
mais abstratas”, e não se erigindo, portanto, em entrave A liberdade pregada por Hugo, em relacio a regras e
à livre expressão do drama. Posição discutível, sem dú- modelos preestabelecidos, justificou e justificaria todas
vida, mas para a qual ele chama em apoio o princípio da inovagdes — e não entramos aqui no mérito de tais
“liberdade da arte”, pois “não há senão um peso que vagdes —, que têm invadido e invadirão a arte cénica.
pode fazer inclinar a balança da arte: é o gênio”. Se os dramaturgos das vanguardas introduzem suas
É necessário ainda salientar a posição de Hugo diante “usadas inovacdes, procedem a revoluciondrias modifi-
da critica. Após haver focalizado seu drama — Cromuwell ~, ões, poderiamos dizer que o fazem, mesmo sem o
e perguntado a si mesmo sobre a possível acolhida da saber, muitas vezes, sob a tutela de Victor Hugo. (E este
parte dos críticos, manifesta-se Hugo a favor de uma nova vez ignorasse que, com seu Prefácio, repetia a atitude
crítica, “forte, franca, culta”, que, segundo a expressão de Ze um seu colega, dois séculos antes: Frangois Ogier, no
Chateaubriand, por ele citada, abandonará “a crítica mes- Prefácio de uma peça de 1628, embora com resultados
quinha dos defeitos pela grande e fecunda crítica das Ziferentes.)
belezas”. Mas perguntamos: Qual seria sua reação se, ressusci-
Chateaubriand, Mme. de Staél e, por esta via, Bo- :ando em pleno século XX, visse as profundas transfor-
nals, Herder, entre outros; são as possíveis fontes em ções que se processaram na arte teatral? Espirito
que se inspirou. Fontes várias e heteróclitas. Conserva- tusiasta, ardente, dotado de excepcional riqueza de
doras e liberais, como que se aplicando o seu conceito =xpressio e incontroldvel espontaneidade, talvez se lan-
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çasse em ataques contra os novos, com igual vigor quan-
do contra os velhos de seu tempo. Ou talvez a eles se
juntasse, desbravando a arte teatral, abrindo-lhes insus-
peitáveis caminhos...
Para a presente tradução foram utilizados, entre ou-
tros, os textos publicados por Garnier-Flamarion:
CROMWELL
Cromuwell, 1968, (das páginas 61 a 109) e por Larousse:
Préface de Cromuwell, 1972. A fim de evitar a sobrecarga
de notas, limitamo-nos a fornecer os esclarecimentos
mais imprescindiveis, o que explica, por exemplo, PREFACIO
auséncia de notas em relação a Aristételes e a outros
autores por demais conhecidos.
novo, desde que o Evangelho lhe havia mostrado a alma curiosidade. Estas grandes catástrofes eram também
através dos sentidos, a eternidade empós da vida? grandes espetáculos, surpreendentes peripécias. Era o
Aliás, neste preciso momento, passava o mundo por Norte precipitando-se sobre o Sul, o universo romano
assaz profunda revolução, que era impossível não ope- mudando de forma, as últimas convulsões de todo um
rar-se também outra nos espíritos. Até então as catástro- mundo em agonia. Desde que este mundo morreu, eis
fes dos impérios tinham raramente chegado até o que multidões de retores, de gramáticos, de sofistas,
coração das populações; eram reis que cafam, majesta- vêm abater-se, como mosquitos, sobre seu imenso cadá-
des que desapareciam, nada mais. O raio rebentava so- ver. Vemo-los pulular, ouvimo-los zumbir neste foco de
mente nas altas regiões, e, como já o indicamos, os putrefação. Apressam-se a examinar, comentar, discutir,
acontecimentos pareciam desenrolar-se com toda a sole- Cada membro, cada músculo, cada fibra do grande cor-
nidade da epopéia. Na sociedade antiga, o indivíduo era po jacente é revirado em todos os sentidos. Certamente,
colocado tão baixo, que, para que fosse atingido, cum- deve ter sido uma alegria, para estes anatomistas do
pria que a adversidade descesse até a sua família. Por- pensamento, poderem, desde sua primeira tentativa, fa-
tanto não conhecia quase o infortúnio, fora das dores zer experiências em grandes dimensões; terem, para dis-
domésticas. Era quase inaudito que as infelicidades ge- secar, como primeiro paciente, uma sociedade morta.
rais do Estado lhe perturbassem a vida. Mas, no instante Assim, vemos ao mesmo tempo despontarem, e
em que veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo como que de mãos dadas, o gênio da melancolia e da
continente estava agitado. Tudo estava abalado até a meditação, o demônio da análise e da controvérsia. Lon-
raiz. Os acontecimentos, encarregados de arruinar a an- gino está numa das extremidades desta era de transição;
tiga Europa e de reconstruir uma nova, se chocavam, se Santo Agostinho na outra. É preciso abstermo-nos de
precipitavam sem trégua, e impeliam desordenadamente lançar um olhar desdenhoso a esta época em que estava
as nações, estas para o dia, aquelas para a noite. Fazia-se em germe tudo o que depois frutificou, a este tempo
tanto ruído na terra, que era impossível que alguma coi- cujos menores escritores, se nos permitem uma expres-
sa deste tumulto não chegasse até o coração dos povos. são trivial, mas franca, serviram de esterco para a ceifa
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que devia seguir-se. A Idade Média está enxertada no grande passo, um passo decisivo, um passo que, seme-
única face, repelindo sem piedade da arte quase tudo o um novo tipo introduzido na poesia. E, como uma con-
que, no mundo submetido à sua imitação, não se referia a dição a mais no ser modifica todo o ser, eis uma nova
um certo tipo de belo. Tipo de início magnífico, mas, forma que se desenvolve na arte. Este tipo, € o grotesco.
como sempre acontece com o que é sistemático, se tor- Esta forma, é a comédia.
nou nos últimos tempos falso, mesquinho e convencio- E aqui, permitam-nos insistir, pois acabamos de in-
nal. O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, dicar o trago caracteristico, a diferenca fundamental que
2 musa moderna verá as coisas com um olhar mais eleva- separa, em nossa opinido, a arte moderna da arte antiga,
e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é a forma atual da forma extinta, ou, para nos servirmos
do
que o feio existe ao lado do belo, o de palavras mais vagas, porém, mais acreditadas, a lite-
humanamente belo,
disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do ratura romdntica da literatura cldssica.
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Pergun- — Enfim, vão aqui dizer as pessoas que, desde al-
tar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter gum tempo, vêem nossa vida, nés os pegamos! Ei-los pre-
ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do cria- sos em flagrante! Então, fazem do feio um tipo de
imitagdo, do grotesco um elemento da artel? Mas, as
dor; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza
gragas... mas, o bom gosto... Não sabem que a arte deve
mutilada será mais bela; se a arte possui-o direito de
desdobrar, por assim dizer, o homem, a vida, a criação; se
cada coisa andará melhor, quando lhe for tirado o múscu-
lo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser 24. Hugo vai expor sua Teoria sobre o grotesco.
incompleto. É então que, com o olhar fixo nos aconteci- 25. Hugo se explica numa nota: “A divisao do belo e do feio na
mentos a0 mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a arte ndo cstá em simetria com a da natureza. Nada é belo ou
influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica feio nas artes sendo pela execucio”. Nota transcrita por
Michel Cambien, op. cit. p. 42
filosófica que notávamos há pouco, a poesia dará um
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dia, um aos homens, o outro aos deuses. Há na tragédia
enobrecê-la? que é pre-
retificar a natureza? que é preciso grega naturalidade demais e originalidade demais para
am algu ma vez o feio e
ciso escolher?Os Antigos empregar que não haja algumas vezes a comédia. Assim, para não
vez a comédia e a tragé-
o grotesco? Misturaram alguma citarmos sempre senão o que nossa memória nos lem-
Aliás, Aristóteles...
dia? O exemplo dos Antigos, senhores! bra, a cena de Menelau® com a porteira do palácio
” — Certamente!
Aliás, Boileau...* Aliás, La Harpe... (Helena, ato 1)*; a cena do Frígio (Orestes, ato IV)*. Os
dúvida, e sobre-
Esses argumentos são sólidos, sem tritões”, os sátiros*, os ciclopes®, são grotescos; as se-
nosso papel não con-
tudo de uma rara novidade. Mas reias*, as fúrias””, as parcas®, as harpias”, são grotescas;
icamos aqui sistema,
siste em responder-lhes. Não edif Polifemo é um grotesco terrivel®; Sileno é um grotescc;
mas. Verificamos um
porque Deus nos livre dos siste bufo”
críticos. Que este fato
fato. Somos historiadores e não
existe. — Voltemos
agrade ou não, pouco importa! Ele
da fecunda união do
pois, e tentemos fazer ver que é 30. Menclau, rei grego, marido de Helena, cujo rapto teria sido a
que nasce o gênio
tipo grotesco com o tipo sublime origem da Guerra de Tróia
ado nas suas formas, 31. Tragédia de Eurípedes (v. 443-482)
moderno, tão complexo, tão vari
e nisto bem oposto à 32. Tragédia de Eurípedes (v. 1506-1527).
tão inesgotável nas suas criações, 33. Os tritões são divindades marinhas filhas de Poscidão e de
antigo; mostremos que
uniforme simplicidade do gênio Anfitrite.
estabelecer a radical e
é daí que é preciso partir para . Os sátiros são deuses rústicos que têm rabo, cornos e pernas
s
s. de bode
real diferença entre as duas literatura
Não que fosse verdade dizer que a comédia e o gro- . Os cíclopes são gigantes que têm um único olho no meio da
o&
cidos entre os An- testa
tesco eram absolutamente desconhe 36. As sereias, filhas de Melpomene que atrafam com seus cantos
. Nada vem sem raiz;
tigos. À coisa aliás seria impossível os navegantes para os escolhidos, simbolizam os perigos do
germe na primeira.
a segunda época estd sempre em mar. Aparecem na Odisséia (XII, v. 39-46; v. 182-200).
fazejas” (cumenides), por antífrase ¢ para conjur ar a má sorte. 47. Scaramuccia (o ator napolitano Tiberio Fiorilli), Crispim ¢ Ar-
43. Midas, rei frígio (717676 a. C). Conta a lenda que Apolo, lequim foram muito aplaudidos em Paris do século XVII.
enciumado por ter o rei prefer ido o talent o musica l de outro 48. Sganarclio é o criado de D. Juan, na peça D. Juan de Moliêre.
%
e não o seu, vingou-se, dotando-o de orelha o asno. s de 49. Hugo diz numa nota: “Este grande drama do homem que se
44, Tespis é o pai da tragédia grega (VI a. C.). ambul Saind do recinto dana domina todas as imaginacdes da Idade Média. Polichi-
sacro, com sua carroça , pratic ou o teatro antc. nelo, [...] não é senão uma forma trivial ¢ popular [...] D. Juan,
Os pigme us são andes mitol ógico s que ataca ram Hércules ¢ é o corpo; Fausto, é o espirito. Estes dois se completam”.
foram por cle esmagados sob sua pele de leão. Nota transcrita por Michel Cambien, op. cit. p. 46.
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E como é livre e franco no seu andar! como faz parece que a Antigliidade às vezes recuou. Certamente,
ousadamente jorrar todas estas formas bizarras que a ida- as euménides gregas são bem menos horriveis, e, como
de precedente tinha tão timidamente envolvido em cuei- consequiéncia, bem menos verdadeiras que as feiticeiras
ros! A poesia antiga, obrigada a dar companheiros ao de Macbeth®™. Plutão não é o diabo™.
manco Vulcano”, tinha feito esforços para disfarçar sua Deveria ser feito, em nossa opinido, um livro bem
deformidade, estendendo-o de alguma forma sobre pro- novo sobre o emprego do grotesco nas artes. Poder-se-ia
porções colossais. O gênio moderno conserva este mito mostrar que poderosos efeitos os Modernos tiraram des-
dos ferreiros sobrenaturais, mas bruscamente lhe impri- te tipo fecundo contra o qual uma critica estreita se en-
me um caráter bem oposto e que o torna bem mais sur- carniga ainda em nossos dias. Ja seremos talvez levados
preendente; transforma os gigantes em anões; dos por nosso assunto a assinalar de passagem alguns tragos
cíclopes faz os gnomos™. E com a mesma originalidade deste vasto quadro. Somente diremos aqui que, como
que 2 hidra, um pouco vulgar de Lerna”, ele substitui objetivo junto do sublime, como meio de contraste, o
todos estes dragões locais de nossas lendas: a gargouille grotesco €, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que
de Rouen®, a Gra-ouillide Metz, a chairsallée de Troyes, a natureza pode abrir à arte. Rubens assim o compreen-
a dréede Montlhéry, a tarasca de Tarascon®, monstros de dia sem dúvida, quando se comprazia em misturar com
formas tão variadas e cujos nomes barrocos são um cará- o desenrolar de pompas reais, com coroagdes, com bri-
ter a mais. Todas estas criações vão buscar na sua própria lhantes ceriménias, alguma hedionda figura de anão da
natureza este tom enérgico e profundo diante do qual corte. Esta beleza universal que a Antigiiidade derrama-
va solenemente sobre tudo não deixava de ser monóto-
na; a mesma impressio, sempre repetida, pode fatigar
50. Vulcano é o deus do fogo e do trabalho dos metais; é o homó- com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente
logo romano de Hefestos, produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar
51. Os gnomos são espíritos da terra ¢ das montanhas, guardando de tudo, até do belo. Parece, a0 contrario, que o grotes-
tesouros subterrâneos. São pequenos ¢ de aspecto disforme
co é um tempo de parada, um termo de comparagio,
52. A hidra de Lerna é uma serpente monstruosa que vivia no
pantanal de Lerna (Argólida), tendo sido morta por Héracles. um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo
53. A gargouílle é uma serpente horrenda que arrasava a região com uma percepção mais fresca e mais excitada. A sala-
de Rouen, tendo sido morta por um santo bispo. É o símbolo
do cristianismo vencendo o paganismo.
54. À gra-ouilli, a chairsallée, a drée, a tarasca são cquivalentes 55. Alusão às três feiticeiras que aparecem na peça de Shakes-
mais ou menos diferencadas da gargouille. Cada cidade me- peare.
dieval conscrvava entre suas tradições a memoéria de um 56. Plutão é o deus subterraneo que reina sobre os mortos. Presi-
monstro lendirio, honrando o her6i que o havia vencido. de também a riqueza da agricultura.
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mandra” faz sobressair a ondina”; o gnomo embeleza o a fluidez didfana de nossos ondinos e de nossas silfides?
silfo”. Não é porque a imaginagio moderna sabe fazer rondar
E seria também exato dizermos que o contato do horrendamente nos nossos cemitérios os vampiros, os
disforme deu ao sublime moderno alguma coisa de mais ogres, os aulnes, os psylles, os goules, os brucolaques,
puro, de maior, de mais sublime enfim que o belo anti- aspioles%, que ela pode dar às suas fadas forma incorpé-
go; e deve ser isso. Quando a arte é consequente com rea, e esta pureza de esséncia das quais se aproximam
ela mesma, leva de maneira bem mais segura cada coisa 130 pouco as ninfas pagis? A Vénus antiga € bela, admi-
para seu fim. Se o Elísio homérico está muito longe des- ravel, sem divida; mas quem verteu sobre as figuras de
te encanto etéreo, desta angélica suavidade do paraíso Jean Goujon® esta elegancia esbelta, estranha, aérea?
de Milton é que sob o éden há um inferno muito mais quem lhes deu este cardter desconhecido de vida e de
horrível que o Tártaro pagio®. Crê-se que Francesca da grandiosidade, se não a vizinhanca das esculturas rudes
Rimini e Beatriz seriam tão arrebatadoras num poeta que e poderosas da Idade Média?
não nos encerrasse na torre da Fome e não nos forçasse Se, no meio destas exposicdes necessirias, e que
a partilhar a repelente refeição de Ugolino®? Dante não poderiam ser muito mais aprofundadas, o fio de nossas
teria tanta graça, se não tivesse tanta força. As náiades idéfas não se rompeu no espirito do leitor, este com-
carnudas®, os robustos tritões, os zéfiros® libertinos têm preendeu, sem divida, com que poder o grotesco, este
germe da comédia, recolhido pela musa moderna, teve
de crescer e ampliar-se desde que foi transportado para
57. As salamandras são espíritos do fogo que vivem no centro da um terreno mais propicio que o paganismo e a epopéia.
terra, segundo os feiticeiros.
Com efeito, na poesia nova, enquanto o sublime repre-
58. A ondina é o espírito das águas, segundo as crenças populares
escandinavas e germénica, sentard a alma tal qual ela &, purificada pela moral crista
59. O silfo é o ser intermediário entre o duende e a fada, segundo ele representard o papel da besta humana. O primeiro
as lendas célticas c germânicas. tipo, livre de toda mescla impura, terá como apandgio
60. Elísio é, nos infernos pagãos, a morada das almas virtuosas, todos os encantos, todas as gracas, todas as belezas; é
enquanto o Tártaro o é das almas dos maus.
Francesca da preciso que possa criar um dia Julieta, Desdémona, Ofé-
61. São personagens da Divina Comédia de Dante.
Rimini, casada com o disforme Lanciotto, expia cternamente
o amor que sentiu por Paolo. Beatriz, a amada do escritor,
depois de morta, vela por ele. O tirano Ugolino Della Gherar- 64. Aulnes, psylles, goules, brucolagues, aspioles sio produtos das
desca, encerrado na torre da Fome em Pisa, descjara alimen- superstições populares. Charles Nodicr, em Smarra, descreve
tar-se com a carne de seus próprios filhos. algumas destas horrendas figuras.
62. As náiades são divindades gregas das fontes e dos rios. 65. Goujon, escultor e arquitcto francés (1510-1569), é o autor de
63. Os zéfiros são os deuses que personificam os ventos do oeste. algumas partes do Louvre.
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...
lia®. O segundo tomará todos os ridiculos, todas as latina queestd morrendo, colora Pérsio®, Petrdnio®, Ju-
enfermidades, todas as feitras. Nesta partilha da huma- venal”, e aí deixa O Asno de Ouro de Apuleio”. Dai,
nidade e da criação, é a ele que caberio as paixdes, os espalha-se na imaginacio dos novos povos que refazem
vicios, os crimes; é ele que serd luxurioso, rastejante, a Europa. Aparece abundantemente nos contistas,
nos
guloso, avaro, pérfido, enredador, hipéerita; é ele que cronistas, nos romancistas. Vemo-lo estender-se
do sul
serd alternadamente Iago, Tartufo, Basilio; Polénio, Har- 20 setentrizo. Diverte-se nos sonhos das nações
tudes-
pagão, Bartolo; Falstaff, Scapino, Figaro”. O belo tem €as, € 20 mesmo tempo vivifica com seu
alento estes
somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar admirdveis romanceros espanhéis™, verdadeira
lliada
humanamente, não é senão a forma considerada na sua da Cavalaria. E ele, por exemplo, que, no Roman
ce da
mais simples relagio, na sua mais absoluta simetria, na Rosa, assim pinta uma ceriménia augusta, a
eleicio de
sua mais intima harmonia com nossa organizacio. Por- um rej:
tanto, oferece-nos sempre um conjunto completo, mas
restrito como nós. O que chamamos o feio, ao contririo, Un grande vilain lors ils élurent,
€ um pormenor de um grande conjunto que nos esca- Le plus ossu quentreux ils eurent™
pa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda
a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, Imprime sobretudo seu carater a esta maravi
lhosa
aspectos novos, mas incompletos. arquitetura que, na Idade Média, ocupa o lugar
de todas
Seguir o advento e a marcha do grotesco na era as artes. Prende seu estigma na fachada das
catedrais,
moderna é um estudo curioso. É de início uma invasão, emoldura seus infernos e seus purgatérios sob
a ogiva
uma irrupção, um transbordamento; é uma torrente que
rompeu seu dique. Atravessa, ao nascer, a literatura
8. Pérsio, pocta latino (34-62), ¢ o autor de sdtiras de grande
clevagio moral
9. Petrônio, autor latino do primeiro século depois de Cristo, é
66. Heroínas de Shakespeare, nas peças Romeu e Julieta, Otelo e mais conhecido por seu Satiricon
Hamlet, respectivamente, % Juvenal, pocta ¢ moralista latino (60-140), ¢ o autor das Sátiras.
67. lago, Polonius, ¢ Falstaff são personagens de Shakespeare, nas 1. Apuleio, escritor latino (125-180), é o autor de O Asno de Ouro
peças Otelo, Hamlet c As Alegres Comadres de Windsor, res- 2- O romancero ¢ uma coletanea de “romances”, compos
pectivamente. Tartufo, Harpagão e Scapino são personagens ições po-
Cticas, populares, de temas variados. Os “romances historicos”,
de Moliêre, em Tartufo, O Avarento e As Artimanhas de Sca- traduzidos, haviam sido publicados por Abel Hugo, em 1823,
Dino, respectivamente. Basílio, Bartolo ¢ Fígaro são persona- "3 Hugo aliera um pouco o texto do Romance da Rosa, escreve
gens de Beaumarchais, em O Barbeiro de Sevilha ¢ O do, “O mais feio então eles elegeram/O mais ossudo que n-
Casamento de Figaro. entre cles tiveram”.
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dos portais, fá-los flamejar nos vitrais, desenrola seus sté na igreja. Vemo-lo ordenar, em cada parte da catolici-
monstros, seus cães de fila, seus demônios ao redor dos Zade, algumas destas cerimdnias singulares, destas estra-
capitéis, ao longo dos frisos, nas bordas dos telhados. ~has procissdes em que a religido anda acompanhada de
Estende-se sob inúmeras formas na fachada de madeira odas as supersti¢des, o sublime rodeado de todos os
das casas, na fachada de pedra dos castelos, na fachada grotescos. Para pinta-lo com um trago, tal €, nesta aurora
de mármore dos palácios. Das artes, passa para 0s cos- das letras, sua veia, seu vigor, sua seiva de criação, que
tumes; e enquanto faz com que o povo aplauda os gra- cle projeta com o primeiro golpe, no limiar da poesia
ciosos da comédia™ dá aos reis os bobos da corte. Mais moderna, trés Homeros cdmicos: Ariosto, na Itilia; Cer-
tarde, no século da etiqueta, nos mostrará Scarron” a vantes, na Espanha; Rabelais, na França”.
beira mesmo do leito de Luis XIV. Até tal momento, é ele Seria superabundante fazermos sobressair ainda mais
que orna o brasão, e que desenha no escudo dos cava- esta influéncia do grotesco na terceira civilização. Tudo
leiros estes simbdlicos hieréglifos do feudalismo. Dos demonstra, na época dita romantica, sua alianca intima e
costumes, penetra nas leis; mil costumes bizarros teste- criadora com o belo. Até as mais ingénuas lendas popu-
munham sua passagem nas instituicdes da Idade Média. lares explicam, algumas vezes, com um admiravel instin-
Da mesma forma que tinha feito saltar na sua carroca to, este mistério da arte moderna. A Antigúidade não teria
Téspis borrado de lia, danga com a basoche™, sobre esta feito A Bela e a Fera™.
famosa mesa de marmore que servia ao mesmo tempo de É verdade dizer que, na época em que acabamos de
palco para as farsas populares e para os banquetes reais. deter-nos, a predominancia do grotesco sobre o sublime,
Enfim, admitido nas artes, nos costumes, nas leis, entra nas letras, está vivamente marcada. Mas é uma febre de
reação, um ardor de novidade que passa; é uma primeira
vaga que se retira pouco a pouco. O tipo do belo retoma-
74. Os graciosos sio criados cômicos que aparccem nas peças do rá logo seu papel e seu direito, que não é de excluir o
Séeulo de Ouro espanhol, desde Lope de Vega. Além do cle- outro principio, mas de prevalecer sobre ele. Já é tempo
mento comico, servem para contrastar com heróis e heroinas, de que o grotesco se contente com ter um canto do
estabelecendo-se o duplo plano: idealista e pritico, entusias- quadro nos afrescos reais de Murillo, nas paginas sagra-
ta e burlesco, que é caracteristico não apenas da época, mas
de toda a literatura espanhola.
75. Scarron, o introdutor do burlesco na Franga (1610-1660), era
disforme. 7. Hugo explica numa nota: “Esta surpreendente expressio, Ho-
76. A basoche é a corporagao do pessoal do judicidrio que rece- mero cômico, ¢ de Ch. Nodier, que a criou para Rabelais, ¢
beu importantes privilégios de Felipe o Belo, em 1032. Por que nos perdoard de tê-la estendido a Cervantes e a Ariosto”
ocasião das suas festas tradicionais, realizava representações Nota transerita por Michel Cambicn, op. cit,, p. 52.
que eram muito aplaudidas 78. Conto da escritora Leprince de Beaumont.
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das de Veronese; com estar nos dois admiráveis fuízos marcam a transição dos poetas liricos aos poetas épicos,
Finais dos quais as artes se orgulharão, nesta cena de como os romancistas dos poetas épicos aos poetas dra-
arrebatamento e de horror com a qual Michelangelo en- maticos. Os historiadores nascem com a segunda época;
riquecerá o Vaticano, nestas assustadoras quedas de ho- Os cronistas e os criticos com a terceira. As personagens
mens que Rubens precipitará ao longo das abóbadas da da ode são colossos: Adao, Caim, Noé; os da epopéia são
catedral de Antuérpia. Chegou o momento em que o gigantes: Aquiles, Atreu, Orestes®; os do drama são ho-
equilíbrio entre os dois princípios vai estabelecer-se. Um mens: Hamlet, Macbeth, Otelo. A ode vive do ideal, a
homem, um poeta-rei, poeta soverano, como Dante o diz epopéia do grandioso, o drama do real. Enfim, esta tripla
de Homero™, vai tudo fixar. Os dois gênios rivais unem poesia provém de trés grandes fontes: a Biblia, Homero,
sua dupla chama, e desta chama brota Shakespeare®. Shakespeare.
Eis-nos chegando 2 sumidade poética dos tempos Tais são pois, e nisto nos limitamos a levantar um
modernos. Shakespeare, € o drama; ¢ o drama, que funde resultado, as diversas fisionomias do pensamento nas di-
sob um mesmo alento o grotesco e o sublime, o terrivel e ferentes eras do homem e da sociedade. Eis suas três
o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter faces, de juventude, de virilidade e de velhice. Que se
préprio da terceira época de poesia, da literatura atual. examine uma literatura em particular, ou todas as lite-
Assim, para resumirmos rapidamente os fatos que raturas em massa, chegar-se-4 sempre ao mesmo fato: os
observamos até aqui, a poesia tem trés idades, das quais poetas liricos antes dos poetas épicos, os poetas épicos
cada uma corresponde a uma época da sociedade: a ode, antes dos poetas dramaticos. Na Franca, Malherbe® an-
a epopéia, o drama. Os tempos primitivos são liricos, os
tempos antigos são épicos, os tempos modernos sao dra-
miticos. A ode canta a eternidade, a epopéia soleniza a Deixa ao historiador a exata série dos fatos gerais, a ordem
hist6ria, o drama pinta a vida®. O caréter da primeira das datas, as batalhas, as conquistas, os desmembramentos
poesia é a ingenuidade, o carater da segunda € a simpli- de impérios, todo o exterior da história. Toma o seu interior,
cidade, o cariter da terceira, a verdade. Os rapsodos
O que a histéria esquece ou desdenha, os pormenores de
vestuirio, de costumes, de fisionomias, a parte de baixo dos
acontecimentos, a vida, em uma palavra, lhe pertence”. Nota
transcrita por Michel Cambien, op. cit, p. 54.
82. Atreu, rei de Micena, matando os sobrinhos ¢ oferecendo-os
79. Dante emprega csta expressão na Divina Comédia, no canto como alimento ao proprio pai das criancas, atraiu a maldicio
1V do Inferno. Mantivemos a grafia de Hugo. sobre sua familia: os Atridas. Agamenon, Orestes ¢ Elctra são
80. Hugo vai expor agora sua Teoria sobre o drama. seus descendentes.
81. Diz Hugo numa nota: “Mas, dir-se-4, o drama pinta também a 83. Malherbe é pocta lirico francês (1555-1628), além de teórico
histéria dos povos. Sim, mas como vida, não como bistória da pocsia.
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tes de Chapelain®, Chapelain antes de Corneille; na an- dia e a noite, a vida e a morte. Mas seria poesia, loucura
tiga Grécia, Orfeu* antes de Homero, Homero antes de talvez; e que é que isso prova™?
Ésquilo; no livro primitivo, a Gênese antes dos Reis, os Atenhamo-nos aos fatos reunidos mais acima: com-
Reis antes de Jó*; ou, para retomar esta grande escala de pletemo-los aliás por uma observação importante. É que
todas as poesias que percorríamos há pouco, a Bíblia não pretendemos de maneira alguma atribuir às três
antes da Ilíada, a Ilíada antes de Shakespeare. épocas da poesia um domínio exclusivo, mas somente
A sociedade, com efeito, começa por cantar o que fixar seu caráter dominante. A Bíblia, este divino monu-
sonha, depois conta o que faz, e enfim se põe a pintar o mento lírico, encerra, como o indicávamos há pouco,
que pensa. É, digamo-lo de passagem, por esta última uma epopéia e um drama em germe, os Reis e Jó*, Sen-
razão que o drama, unindo as mais opostas qualidades, te-se em todos os poemas homéricos um resto de poesia
pode bem ser ao mesmo tempo cheio de profundidade lírica e um começo de poesia dramática. A ode e o dra-
e cheio de relevo, filosófico e pitoresco. ma se cruzam na epopéia. Há tudo em tudo; só que
Seria conseqiiente acrescentar aqui que tudo, na na- existe em cada coisa um elemento gerador ao qual se
tureza e na vida, passa por estas três fases, do lírico, do subordinam todos os outros, e que impõe ao conjunto
épico e do dramático, porque tudo nasce, age e morre. seu caráter próprio.
Se não fosse ridículo misturar as fantásticas aproxima- O drama é a poesia completa. A ode e a epopéia
ções da imaginação com as severas deduções do racioci- não o contêm senão em germe; ele as contém, uma e
nio, um poeta poderia dizer que o nascer do sol, por outra, em desenvolvimento; ele as resume e encerra am-
exemplo, é um hino; seu meio-dia, uma brilhante epo- bas. Certamente, aquele que disse: os franceses não têm
péia; seu declínio, um sombrio drama em que lutam o cabeça épica”, disse uma coisa justa e fina; se tivesse
mesmo dito os Modernos, a frase espirituosa teria sido
uma frase profunda. É, no entanto, incontestável que há
sobretudo gênio épico nesta prodigiosa Atália, tão ele-
84. Chapelain, pocta francês (1595-1674), redator dos Sentimentos
da Academia sobre o Cid, é o autor de um poema épico: A
Donzela. Embora projetado e anunciado desde 1625, só foi 87. La Harpe conta: “Riu-se mil vezes deste geômetra que dizia da
publicado em 1656, sendo portanto posterior ao Cid de Cor- tragédia de Fedra: 'Que é que isso prova?” (Liceu ou Curso
neille (1636). de Literatura Antiga e Moderna, XII, XV).
85. Orfeu, o mais célebre músico da Antigúidade, desceu aos In- 88. Chateaubriand diz: “Há três estilos principais na Escritura”
fernos para reclamar Eurídice que acabava de morrer ¢, com (Gênio do Cristianisino, 2º parte, Livro V, Cap. 1D.
sua música, fascinou as divindades infernais. 89. Malézieu, a0 ser consultado sobre a Henriade de Voltaire,
86. Três livros do Antigo Testamento. teria respondido: “Os franceses não têm cabeça épica”.
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vada e tão simplesmente sublime que o século real não des, para lançar-se no oceano do drama. Enfim, como o
a pôde compreender”, É certo ainda que a série dos lago, o drama reflete o céu; como o rio, reflete suas
dramas-crônicas de Shakespeare apresenta um grande margens; mas só tem abismos e tempestades.
aspecto de epopéia. Mas é sobretudo a poesia lírica que É, pois, no drama que tudo vem dar, na poesia mo-
convém ao drama; nunca o perturba, dobra-se a todos derna. O Paraíso Perdido é um drama antes de ser uma
os seus caprichos, folga sob todas as suas formas, ora epopéia. É, sabe-se, sob a primeira destas formas que
sublime em Ariel, ora grotesca em Calibã””. Nossa época, ele se apresentou de início à imaginação do poeta, e
dramática antes de tudo, é por isso mesmo eminente- que permanece sempre impresso na memória do leitor,
mente lírica. É que há mais de uma relação entre o co- tanto a antiga armação dramática está ainda saliente sob
meço e o fim; o pôr-do-sol tem alguns traços do seu o edifício épico de Milton”"! Quando Dante Alighieri ter-
nascer; o ancião se torna novamente criança. Mas essa minou o temível “Inferno™?, fechou suas portas, e não
última infância não se assemelha à primeira; é tão triste lhe resta mais senão dar um nome 2 sua obra, o instinto
quanto a outra era alegre. Passa-se 0 mesmo com a de seu gênio faz com que veja que este poema multifor-
poesia lírica. Deslumbrante, sonhadora na aurora dos me é uma emanação do drama, não da epopéia; e no
povos, reaparece sombria e reflexiva no seu declínio. A frontispício do gigantesco monumento, escreve com sua
Bíblia se abre risonha com o Gênese, e se fecha sobre o pena de bronze: Divina Comédia”*.
ameaçador Apocalipse. A ode moderna é sempre inspi- Vê-se, pois, que os dois únicos poetas dos tempos
rada, mas não é mais ignorante. Medita mais do que modernos que são do porte de Shakespeare se reúnem
contempla; seu sonho é melancolia. Vê-se, por seus par- na sua unidade. Concorrem com ele para imprimir a tin-
tos, que esta musa se uniu com o drama.
Para tornar sensíveis, por uma imagem, as idéias que
acabamos de aventurar, compararíamos a poesia lírica 92. Tendo o jovem pocta inglés Milton (1608-1674) assistido em
Milão a uma comédia de Andreino, teria composto parte de
primitiva a um lago tranquúilo que reflete as nuvens e as
uma tragédia com o mesmo assunto, ¢ a peça teria comecado
estrelas do céu; a epopéia é o rio que dele provém e que com o mondlogo de Satd que se encontra no Paraiso Perdi-
corre, refletindo suas margens, florestas, campos e cida- do, Canto 1V.
93. A Divina Comédia se compde de um prélogo ¢ três partes: o
“Inferno”, o “Purgatério” e o “Paraiso”.
90. Atália é uma das obras-primas de Racine (1639-1699), drama- 94. Segundo Rivarol, Dante deu tal titulo 2 sua obra porque “ten-
turgo frequentemente lembrado no Prefácio. do honrado a Eneida com o nome de Alla tragédia, quis
91. Ariel ¢ Caliba são personagens da Tempestade de Shakespea- tomar um titulo mais humilde, que melhor conviesse ao estilo
re. O primeiro é o espírito do ar, gracioso ¢ leve; o segundo, que emprega, tão diferente, com efeito, daquele de seu mes-
um demônio disforme ¢ malfazcjo. tre”. Nota de Michel Cambien, op. cit., p. 58
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ta dramática em toda a nossa poesia; são como ele, mes- rios. Depois, é tempo de dizê-lo em voz alta, e é aqui
cla de grotesco e de sublime; e, longe de o puxarem sobretudo que as exceções confirmariam a regra, tudo o
para si, neste grande conjunto literário que se apóia em que está na natureza está na arte.
Shakespeare, Dante e Milton são de alguma forma os E, colocando-nos sob este ponto de vista para julgar
dois arcobotantes do edifício do qual ele é o pilar cen- nossas pequenas regras convencionais, para desenredar
tral, os contrafortes da abóbada da qual ele é o fecho. todos estes labirintos escolásticos, para resolver todos
Permitam-nos retomar aqui algumas idéias já enun- estes problemas mesquinhos que os críticos dos dois
ciadas, mas nas quais é preciso insistir. Aqui chegamos, últimos séculos laboriosamente levantaram ao redor da
agora é preciso que de lá partamos de novo. arte, ficamos surpreendidos pela prontidão com a qual a
Do dia em que o cristianismo disse ao homem: questão do teatro moderno se torna límpida. O drama
não precisa senão dar um passo para rebentar todos es-
Você é duplo, você ¢ composto de dois seres, um perecivel, tes fios de aranha com que as milícias de Lilliput acredi-
o outro imortal; um carnal, o outro ctéreo; um, prisioneiro dos taram assujeitá-lo no seu sono”*.
apetites, necessidades e paixões, o outro levado pelas asas do
entusiasmo ¢ da fantasia: aquele, enfim, sempre curvado para a Assim, pedantes estouvados (um não exclui o outro)
terra, sua mãe, estoutro lançado sem cessar para o céu, sua pátria”; pretendem que o disforme, o feio, o grotesco nunca de-
vam ser objetos de imitação para a arte; responde-se-lhes
desde este dia foi criado o drama. Será, com efeito, outra que o grotesco é a comédia, e que, aparentemente, a
coisa este contraste de todos os dias, esta luta de todos os comédia faz parte da arte. Tartufo não é belo, Pourceaug-
instantes entre dois princípios opostos que sempre estão nac não é nobre; Pourceaugnac e Tartufo são admiráveis
em presença na vida, e que reivindicam o homem desde jatos da arte”.
o berço até a sepultura? Se, repelidos deste entrincheiramento na sua segun-
A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso da linha de fiscalização, renovarem sua proibição do
tempo é, pois, o drama; o caráter do drama é o real; o grotesco aliado ao sublime, da comédia fundida na tra-
real resulta da combinação bem natural de dois tipos, gédia, faça-se com que vejam que, na poesia dos povos
o sublime e o grotesco, que se cruzam no drama, como cristãos, o primeiro destes dois tipos representa a fera
se cruzam na vida e na criação. Porque a verdadeira humana, o segundo a alma. Estes dois ramos da arte, se
poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrá- se impede que seus galhos se misturem, se são sistema-
95. Tnfluência de Chateaubriand (Gênio do Cristianismo, 2º e 3º 96. Alusão as Viagens de Gulliver, de Swift,
partes) c de Mme. de Staél (Da Literatura). 97. Personagens de Moliêre, em pecas com o mesmo nome
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ticamente separados, produzirão como frutos, de uma a Esculdpio’®. Assim, Elizabeth'"" blasfemará e falará la-
parte, abstrações de vícios, de ridículos; de outra, abstra- tim. Assim Richelieu suportará o capuchinho José"”; e
ções de crime, de heroísmo e de virtude. Os dois tipos, Luís XI, seu barbeiro, mestre Olivier, o Diabo. Assim
assim isolados e entregues a si mesmos, ir-se-ão cada Cromwelldir: : Tenho o parlamento no meusacoeoreino
um por seu lado, deixando entre eles o real, um à sua meu bolso'™; ou, com a mão que assina a sentença de
direita, o outro 2 sua esquerda. Conseqiientemente, de- morte de Carlos I'™, borrará com tinta o rosto de um
pois destas abstrações, restará alguma coisa a represen- regicida que lhe devolverá rindo'*”, Assim César no carro
tar: o homem. Depois destas tragédias e comédias, do triunfo terá medo de tombar"*“. Porque os homens de
alguma coisa a fazer: o drama. gênio, por grandes que sejam, têm sempre sua fera que
No drama, tal como se pode, se não executá-lo, pe- parodia sua inteligência. É por isso que entram em con-
lo menos concebê-lo, tudo se encadeia e se deduz assim tato com a humanidade; é por isso que são dramáticos.
como na realidade. O corpo representa o seu papel como “Do sublime ao ridículo há apenas um passo”, dizia Na-
a alma; e os homens e os acontecimentos, postos em jogo poleão"”, quando se convenceu de que era homem; e
por este duplo agente, passam alternadamente, cômicos este relâmpago de uma alma de fogo que se entreabre,
e terríveis, algumas vezes terríveis e cômicos, 20 mesmo ilumina ao mesmo tempo a arte e a história, este grito de
tempo. Assim dirá o juiz: “Condenado à morte, e vamos angústia é o resumo do drama e da vida.
jantar"* Assim, o senado romano deliberará sobre o
rodovalho de Domiciano”. Assim Sócrates, bebendo a
cicuta e falando da alma imortal e do deus único, inter-
romper-se-á para recomendar que se sacrifique um galo 100. to narrado por Platão (Fedon, 118).
101. Elizabeth da Inglaterra.
3
102. Joseph du Tremblay, conselheiro particular de Richelicu
103. Villemain, na História de Cromuwell, conta que Lord-protetor,
98. Voltaire, em Sócrates, faz com que uma de suas personagens, Cromwell, dizia, jactanciosamente, ter “o rei sob sua mão e o
um juiz, proponha a condenação de todos os geômetras, ao Parlamento no bolso”. Nota de Michel Cambien, op. cit., p. 62.
que o outro responde: “Sim, nós o enforcaremos na primeira 104. Carlos I, rei da Inglaterra (1600-1649), cuja condenacao e
sessão. Vamos jantar”. morte deram o poder a Cromwell.
99. Domiciano, imperador romano (81-96), pelo que nos conta a 105. Segundo Villemain, na sua História de Cromuell.
“Sátira IV”, de Juvenal, teria recebido um enorme rodovalho 106. Dado cuja fonte é ignorada. Sactonio dá uma imagem dife-
de presente ¢, não sabendo o que fazer com ele, teria con- rente de César.
sultado seus conselheiros. Após grandes reflexões foi-lhe 107. Frase do Bispo de Pradt, na História da Embaixada no Grão-
aconselhado a fabricação de um cnorme recipiente para aco- ducado de Varsóvia, em 1812. Nota de Michel Cambien, op.
modar um peixe tão grande. cit., p. 64.
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Coisa surpreendente, todos estes contrastes se en- to ao trivial e ao ridiculo. Portanto, freqiientemente ina-
contram nos próprios poetas, tomados como homens. A preensivel, freqientemente imperceptivel, sempre está
força de meditarem sobre existência, de fazerem ressal- presente no palco, ainda quando se cala, ainda quando
tar sua pungente ironia, de lançarem abundantemente o se oculta. Gragas a ele, não há impressdes monétonas.
sarcasmo e a zombaria sobre nossas enfermidades, estes Ora langa riso, ora langa horror na tragédia. Fard com
homens que tanto nos fazem rir se tomam profunda- que se encontrem o boticirio e Romeu, as trés feiticeiras
mente tristes. Estes Demócritos são também Heráclitos. e Macbeth, os coveiros e Hamlet'. As vezes, enfim,
Beaumarchais era tristonho'®, Moliêre era sombrio, pode sem discordância, como na cena do rei Lear e seu
Shakespeare, melancólico. bufio, mesclar sua voz gritante com as mais sublimes, as
É, pois, o grotesco uma das supremas belezas do mais ldgubres, as mais sonhadoras musicas da alma'.
drama. Não é só uma conveniência sua; é frequente- Eis o que soube fazer entre todos, da maneira que
mente uma necessidade. Algumas vezes chega em mas- lhe é prépria e que seria tão inútil quanto impossivel
sas homogêneas, em caracteres completos: Dandin, imitar, Shakespeare, este deus do teatro, em quem pare-
Prúsias, Trissotin, Brid'oison, a ama de Julieta; algumas cem reunidos, como numa trindade, os trés grandes gé-
vezes, marcado pelo terror, como: Ricardo III, Bégears, nios caracteristicos de nosso teatro: Corneille, Moliére,
Tartufo, Mefistófeles; algumas vezes, mesmo, velado Beaumarchais.
pela graça e elegância, como: Fígaro, Osrick, Mercutio, Vé-se como a arbitraria distinção dos géneros se des-
D. Juan'®. Infiltra-se por toda a parte, pois da mesma morona depressa diante da razão e do gosto. Nio se
forma que os mais vulgares têm várias vezes acessos de poderia menos facilmente arruinar a pretensa regra das
sublime, os mais elevados pagam frequentemente tribu- duas unidades. Dizemos duas e não trés unidades'2, vis-
to que a unidade de ação ou de conjunto, a Unica ver-
dadeira e fundada, está há muito tempo fora de causa.
Corneille, em nome deste mesmo Aristóteles, “no capítu- oferecer alids a mesma resisténcia. Não tinha, no génio
lo décimo primeiro de sua Arte Poética, no qual se vê a nem no cardter, a altiva aspereza de Corneille. Subme-
condenação do Cid”; em nome de Platão “livro décimo teu-se em siléncio, e abandonou aos desdéns de seu
de sua República”; em nome de Marcelino, “no livro vigé- tempo a arrebatadora elegia de Ester; a magnifica epo-
simo sétimo; pode-se ver”; em nome das “tragédias de péia de Atdlia. Por isso, deve-se crer que, se não tivesse
Níobe e de Jefte”; em nome do “Ajax de Sófocles”; em sido paralisado como o foi pelos preconceitos de seu
nome do “exemplo de Eurípedes”; em nome de “Hein- século, se tivesse sido menos freqiientemente torpedea-
sius, no capítulo seis, Constituição da Tragédia; e Scalige- do pelos cldssicos, não teria deixado de lançar Locusta'*
ro o filho, nas suas poesias”; enfim, em nome dos no seu drama entre Narciso e Nero, e sobretudo nio
“Canonistas e Jurisconsultos, no título das Núpcias”. Os teria relegado aos bastidores esta admirdvel cena do
primeiros argumentos se dirigiam à Academia, o último banquete em que o aluno de Séneca envenena Britanico
ao Cardeal. Depois das alfinetadas, o golpe decisivo. Foi na taga da reconciliacio. Mas pode-se exigir do pdssaro
preciso um juiz para resolver a questão. Chapelain deci- que voe sob um recipiente pneumitico? Quantas bele-
diu. Corneille se viu então condenado, o leão foi amorda- zas entretanto nos custam as pessoas de gosto, desde
çado, ou, para dizer como naquela época, “la Corneillefoi Scudéry até Ta Harpe! Compor-se-ia uma belissima obra
déplumée” (a gralha foi depenada)'”, Eis agora o lado do- com tudo o que seu árido sopro secou em germe. Além
loroso deste drama grotesco: foi depois de ter sido assim disso, nossos grandes poetas souberam ainda fazer jor-
quebrado desde seu primeiro jato, que este gênio, bem rar seu génio através de todas estas dificuldades. Foi
moderno, bem nutrido pela Idade Média e pela Espanha, muitas vezes em vão que se quis empareda-los nos dog-
forçado a mentir para si mesmo e a lançar-se na Antigui- mas e regras. Como o gigante hebreu, levaram consigo
dade, nos deu esta Roma castelhana, incontestavelmente para a montanha as portas de sua prisao!
135. Alusão aos versos de Mairet, que imagina a reação de Guillén 136. Locusta, envencnadora romana responsivel pela morte do
de Castro, autor das Mocidades do Cid, diante da imitação de imperador Cláudio (por ordem de Agripina) ¢ de Britânico
Corneille. O dramaturgo espanhol diria que “a gralha” foi (por ordem de Nero).
“depenada” 137. Alusio a uma proeza de Sansio (Juizes, XV, 1-3).
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Repete-se entretanto, e repetir-se-á algum tempo e nos braços. As Fúrias respondem 2 sombra sangrenta de Clitem-
ainda, sem duvida'®®: — Sigam as regras! Imitem os mo-
nestra, com uivos sem nenhuma articulação... À arte estava em sua
infância no tempo de Ésquilo, como em Londres no tempo de
delos! Foram as regras que formaram os modelos™! — Shakespeare.
Um momento! Há neste caso duas espécies de modelos,
os que se fizeram segundo as regras, €, antes deles, os — Os Modernos? Ah! Imitar imitações! Graças!
que segundo os quais, se fizeram as regras. Ora, em qual — Má””º, objetar-se-á ainda, a maneira pela qual
destas duas categorias o gênio deve procurar um lugar? concebe a arte, o senhor parece esperar somente grandes
Ainda que seja sempre duro estar em contato com os poetas, contar sempre com o gênio? — A arte não conta
pedantes, não vale mil vezes mais dar-lhes lições que com a mediocridade. Não lhe prescreve nada; não a co-
deles receber? E depois, imitar? O reflexo vale como a nhece; a mediocridade não existe para ela. A arte dá asas
luz? O satélite que se arrasta sem cessar no mesmo cír- e não muletas. Ai! D'Aubignac seguiu as regras, Campis-
culo vale como o astro central e gerador? Com toda a sua tron imitou os modelos. Que lhe importa! Não constrói
poesia, Virgílio é apenas a lua de Homero. seu palácio para as formigas. Deixa-as fazer seu formi-
E vejamos: quem imitar? — Os Antigos? Acabamos gueiro, sem saber se elas virão apoiar na sua base esta
de provar que seu teatro não tem coincidência alguma paródia de seu edifício.
com o nosso. Aliás, Voltaire, que não aceita Shakespeare, Os críticos da escola escolástica põem seus poetas
não aceita tampouco os gregos. Ele vai dizer-nos por numa singular posição. De uma parte, gritam sem parar:
que: “Imitem os modelos!” — De outra, têm o costume de
proclamar que “os modelos são inimitaveis!” Bem, se seus
Os gregos arriscaram espetáculos não menos revoltantes para
operérios, à força de labor, conseguem fazer passar neste
nós. Hipólito, partido por sua queda, vem contar seus ferimentos e
desfiladeiro alguma palida contraprova, algum decalque
lançar gritos dolorosos. Filotecto cai nos seus acessos de
sofrimento; um sangue negro corre de sua chaga. Édipo, coberto descolorido dos mestres, estes ingratos, 20 examinarem o
desangue que goteja ainda do resto de seus olhos que acaba de refaccimiento™' novo, exclamam ora: “Isto não se as-
arrancar, queixa-se dos deuses e dos homens. Ouvem-se os gritos semelha a nada!” Ora: “Isto se assemelha a tudo!” E, por
de Clitemnestra estrangulada pelo próprio filho, e Electra grita no
uma lógica feita expressamente, cada uma destas duas
palco: “Fira, não a poupe, ela não poupou nosso paí”. Prometeu
está preso num rochedo com cravos que lhe enterram no estômago férmulas é uma critica.
138. Hugo começa a tratar do problema da imitação. 140. É a conjunglo italiana equivalente a “mas”.
139. Chapelain, na introdução aos últimos cantos de A Donzela de 141. Hugo deve ter querido dizer rifacimento, palavra italiana que
Orléans, diz: “Torna-se poeta pelo estudo das regras”. significa “restauração”, “ação de fazer novamente”
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Digamo-lo, pois, ousadamente'?. Chegou o tempo neira da abelha, que voa com suas asas de ouro, pousa
disso, e seria estranho que nesta época, a liberdade, sobre cada flor, e tira o mel, sem que o cálice nada perca
como a luz, penetrasse portoda a parte, exceto no que há de seu brilho, a corola, nada de seu perfume.
de mais nativamente livre no mundo, nas coisas do pen- O poeta, insistamos neste ponto, não deve, pois, pe-
samento. Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. dir conselho senão à natureza, à verdade, e à inspiragio,
Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da que é também uma verdade e uma natureza. Diz Lope
arte! Não há regras nem modelos; ou antes, não há outras de Vega:
regras senão as leis gerais da natureza que plainam sobre
toda a arte, e as leis especiais que, para cada composição, Cuando he de escribir una comedia,
resultam das condições de existência próprias para cada Encierro los preceptos con seis Ilaves"“.
assunto™?, Umas são eternas, interiores, e permanecem;
Para encerrar os preceitos, com efeito, não sio
as outras, variáveis, exteriores, e não servem senão uma
vez. As primeiras são o madeiramento que sustenta a demais seis chaves. Que o poeta se guarde sobretudo de
copiar quem quer que seja, Shakespeare como Moliére,
casa; as segundas, os andaimes que servem para construí-
Schiller como Corneille. Se o verdadeiro talento pudesse
la e que se refazem para cada edifício. Estas são enfim a
abdicar a este ponto de sua prépria natureza, e deixar
ossatura, aquelas o vestuário do drama. Além disso, re-
gras não se escrevem nas poéticas. Richelet não o imagi- assim de lado sua originalidade pessoal, para transfor-
mar-se em outro, tudo perderia ao representar este papel
na"*, O gênio, que adivinha antes de aprender, extrai,
para cada obra, as primeiras da ordem geral das coisas, as
de Sésia'. É o deus que se faz valete. É preciso inspirar-
se nas fontes primitivas. É a mesma seiva, espalhada pelo
segundas do conjunto isolado do assunto que trata. Não à
maneira do químico que acende seu fogareiro, sopra seu
fogo, esquenta seu cadinho, analisa e destrói; mas à ma-
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solo, que produz todas as árvores da floresta, tão diversas dinadamente, que não tendo raiz na terra nem génio na
quanto ao porte, aos frutos, e à folhagem. É a mesma alma, tiveram de limitar-se à imitação. Como diz Charles
natureza que fecunda e nutre os gênios mais diferentes. O Nodier, depois da escola de Atenas, a escola de Alexan-
verdadeiro poeta é uma árvore que pode ser açoitada por dria. Entao a mediocridade caiu como um diltvio; pulu-
todos os ventos e irrigada por todos os orvalhos, que traz laram então estas poéticas, tio embaragosas para o
suas obras como seus frutos, da mesma forma que o talento, tão cémodas para ela. Disseram que tudo estava
tabuleiro trazia suas fábulas"””. Para que se prender a um feito, proibiram a Deus criar outros Moliêres, outros Cor-
mestre? Enxertar-se com um modelo? Vale mais ainda ser neilles. Colocaram a meméria no lugar da imaginagio. A
o espinheiro ou cardo, alimentado com a mesma terra questdo mesma foi regulada soberanamente: ha aforis-
que o cedro e a palmeira, que ser o fungo ou o líquen mos para isso. “Imaginar”, diz La Harpe com sua ingé-
destas grandes árvores. O espinheiro vive, o fungo vege- nua seguranga, “não é no fundo senão lembrar-se”,
ta. Aliás, por maiores que sejam, este cedro e esta palmei- A natureza pois"® A natureza e a verdade. — E aqui,
ra, não é com o suco que deles se tira que se pode ficar a fim de mostrar que, longe de demolir a arte, as idéias
grande. A parasita de um gigante serd no miximo um novas querem somente reconstrui-la mais sélida e me-
ando. O carvalho, por mais colossal que seja, não pode lhor fundada, tentemos indicar qual é o limite intrans-
produzir e alimentar senão o visco. ponivel que, em nossa opinido, separa a realidade
Que nés não nos enganemos. Se alguns de nossos segundo a arte da realidade segundo a natureza. Há
poetas puderam ser grandes, embora imitadores, mode- irreflexdo em confundi-las, como o fazem alguns parti-
lando-se na forma antiga, escutaram ainda freqiiente- darios pouco avancados do Romantismo. A verdade da
mente a natureza e seu préprio génio, foram eles mes- arte não poderia jamais ser, assim como virios disseram,
mos por um lado. Seus ramos se agarravam à drvore a realidade absoluta'. A arte não pode apresentar a
vizinha, mas a raiz mergulhava no solo da arte. Eram a propria coisa. Suponhamos, com efeito, um destes pro-
hera, e não o visco. Depois, vieram os imitadores subor- motores irrefletidos da natureza absoluta, da natureza
vista fora da arte, na representacio de uma pega român-
tica, do Cid, por exemplo: — Que é isso? dird ele 2 pri-
147. Hugo escreve fabliere não fabuliste, partindo das afirmações meira palavra. O Cid fala em versos! Não é natural falar
de Mme. de Bouillon. Esta dizia que, da mesma forma que “a
árvore que traz maçãs ¢ chamada macieira” (pommien), La
Fontaine era um fablier porque “suas fábulas nasciam espon-
taneamente no seu cérebro, ¢ aí se encontravam feitas, sem 148. Hugo começa a tratar das Relagdes entre a arte e a naturcza.
meditagao de sua parte, assim como as macas na macicira”. 149. Mme. de Staél fala da “ilusão nas artes” (Da Alemanba, 1,
Frases transcritas por Michel Cambien, op. cit., p. 78. XV).
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em versos'®, — Como quer então que ele fale? — Em é um espelho ordinário, uma superfície plana e unida,
prosa. — Seja. — Após um instante: — Como, retomará devolverá dos objetos apenas uma imagem apagada e
ele se for consequente, o Cid fala em francês! — E en- sem relevo fiel, mas descolorida; sabe-se que a cor e a
tão? — A natureza quer que ele fale sua língua, ele não uz perdem 2 simples reflexão. É, pois, preciso que o
pode falar senão espanhol. — Não compreenderemos drama seja um espelho de concentração que, longe de
nada; mas seja ainda. — Crêem que isso é tudo? Não é; enfraquecê-los, reúna e condense os raios corantes, que
antes da décima frase castelhana, deve levantar-se e per- faça de um vislumbre uma luz, de uma luz uma chama.
guntar se este Cid que fala é o verdadeiro Cid, em carne Só então o drama é arte.
e osso? Com que direito este ator, que se chama Pedro O teatro é um ponto de ótica. Tudo o que existe no
ou Tiago, toma o nome de Cid? Isto é falso. — Não há mundo, na histéria, na vida, no homem, tudo deve e
razão alguma para que não exija em seguida que se pode ai refletir-se, mas sob a varinha magica da arte. A
substitua essa rampa pelo sol, esses mentirosos bastido- arte folheia os séculos, folheia a natureza, interroga as
res por árvores redis, casas reais. Pois, uma vez nesta crénicas, aplica-se em reproduzir a realidade dos fatos,
via, a lógica nos agarra pelo colarinho, não podemos sobretudo a dos costumes e dos caracteres, bem menos
mais deter-nos. legada a davida e à contradição que os fatos, restaura o
Deve-se, pois, reconhecer, sob pena de absurdo, que os analistas truncaram, harmoniza o que eles desem-
que o domínio da arte e o da natureza são perfeitamente parelharam, adivinha suas omissdes e as repara, preen-
diferentes. À natureza e a arte são duas coisas, sem o che suas lacunas por imaginagdes que tenham a cor do
que uma ou a outra não existiria. A arte, além de sua tempo, agrupa o que deixaram esparso, restabelece o
parte ideal, tem uma parte terrestre e positiva. Por mais jogo dos fios da providéncia sob as marionetes humanas,
que faça, está emoldurada entre a gramática e a pro- reveste o todo com uma forma ao mesmo tempo poética e
sódia, entre Vaugelas e Richelet. Tem, para suas mais natural, e lhe dá esta vida de verdade e de graca que gera
caprichosas criações, formas, meios de execução, todo a ilusdo, este prestigio de realidade que apaixona o es-
um material para pôr em movimento. Para o gênio, são pectador, e primeiro o poeta, pois o poeta é de boa fé.
instrumentos; para a mediocridade, ferramentas. Assim, a finalidade da arte é quase divina: ressuscitar, se
Outros, parece-nos, já o disseram: o drama é um es- trata da histéria; criar, se trata da poesia.
pelho em que se reflete a natureza. Mas, se este espelho É uma grande e bela coisa ver desdobrar-se com esta
amplidão um drama em que a arte desenvolve poderosa-
mente a natureza; um drama em que a ação caminha para
150. Chapelain já pensava no “absurdo (de falar) em versos”. Nota a conclusio com um andar firme e ficil, sem difusio e
de Michel Cambien, op. cit., p. 81. sem estrangulamento; um drama enfim em que o poeta
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preencha plenamente a finalidade múltipla da arte, que é avenidas da arte estejam obstruídas por espinheiros
abrir ao espectador um duplo horizonte, iluminar ao diante dos quais tudo recue, exceto as vontades fortes.
mesmo tempo o interior e o exterior dos homens; o ex- Aliás, é este estudo, sustentado por uma ardente inspira-
terior, pelos discursos e ações; o interior, pelos apartes e ção, que preservará o drama de um vício que o mata: o
monólogos; cruzar, em uma palavra, no mesmo quadro, comum. O comum é o defeito dos poetas de curta visão
o drama da vida e o drama da consciência. e de curto folego. É preciso que nesta perspectiva do
Concebe-se que, para uma obra deste gênero, se o palco, toda figura seja reduzida a seu traço mais saliente,
poeta deve escolher nas coisas (e ele o deve), não é mais individual, mais preciso. O vulgar e o trivial mesmo
o belo, mas o caracteristico’. Não que convenha dar, devem ter um acento. Nada deve ser abandonado.
como se diz hoje, cor local”*, isto €, acrescentar tarde Como Deus, o verdadeiro poeta está por toda parte pre-
demais alguns toques berrantes aqui e ali num conjunto sente, a0 mesmo tempo, na sua obra. O génio se asse-
aliás perfeitamente falso e convencional. A cor local não melha 2 máquina de cunhar que imprime a efigie real
deve estar na superfície do drama, mas no fundo, no tanto nas moedas de cobre como nos escudos de ouro.
próprio coração da obra, de onde se espalha para fora Não hesitamos, e isto provaria ainda aos homens de
dela própria, naturalmente, igualmente, e, por assim di- boa fé quao pouco procuramos deformar a arte, nio
zer, em todos os cantos do drama, como a seiva que hesitamos em considerar o verso' como um dos meios
sobe da raiz à última folha da árvore. O drama deve mais proprios para preservar o drama do flagelo que
estar radicalmente impregnado desta cor dos tempos; acabamos de assinalar, como um dos diques mais po-
ela deve, de alguma forma, estar no ar, de maneira que derosos contra a irrupção do comum, que assim como a
não se note senão ao entrar e ao sair que se mudou de democracia, corre transbordante nos espiritos. E aqui,
século e de atmosfera. É preciso certo estudo, certo que a jovem literatura ja rica em tantos homens e tantas
trabalho para aí chegar; tanto melhor. Está bem que as obras, nos permita indicar-lhe um erro em que parece
que ela caiu, erro alids demais justificado pelas inacredi-
taveis aberragdes da velha escola. O novo século está
nesta idade de crescimento em que se pode facilmente
151. Hugo vai tratar do Problema da cor local.
152. A expressão cor local, provinda da pintura, toma um sentido endireitar.
literário na época do romantismo, Berchet, num artigo de Formou-se, nos últimos tempos, como uma penúl-
1818, define-a como “uma modificação de imagens, de pen- tima ramificagio do velho tronco cldssico, ou melhor,
samentos, de sentimentos, de manciras de dizer exclusiva-
mente próprias de tal estado da natureza humana, e de tal
momento da civilização que ao pocta agrada reproduzir”.
Transcrição de nota de Michel Cambien, op. cit., p. 84. 153. Hugo vai tratar do Verso dramitico.
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como uma destas excrescências, um destes pólipos que desta. Ele deve ser descrito!isto é, enobrecido. Uma cena
a decrepitude desenvolve e que são bem mais um signo de corpo de guarda, uma revolta de populacho, o mer-
de decomposição que uma prova de vida. Formou-se cado de peixes, o presídio, a taberna, a poule au pot de
uma singular escola de poesia dramática. Esta escola nos Henrique 1V, são para ela uma grande fortuna™. Apode-
parece ter tido como mestre e como tronco o poeta que ra-se disso, lava essa canalha, e cose nessas vilanias suas
marca a transição do século XVIII ao século XIX, o ho- lantejoulas e adornos: purpureus assuitur pannus. Sua
mem da descrição e da perifrase, esse Delille”* que, di- finalidade parece ser a entrega de certificado de nobreza
zem, cerca do seu fim, vangloriava-se, à maneira das a toda esta plebe do drama. E cada um destes certifica-
enumerações de Homero, de ter feito doze camelos, dos da grande chancela é uma tirada”“”,
quatro cães, três cavalos, aí incluído o de Jó, seis tigres, Essa musa, imagina-se, é de uma rara hipocrisia.
dois gatos, um jogo de xadrez, um jogo de dados, um Acostumada como está às carícias da perífrase, a palavra
tabuleiro de jogo, um bilhar, vários invernos, muitos ve- própria, que a maltrataria algumas vezes, a horroriza. Não
rões, muitas primaveras, cinquenta pores-de-sol, e tantas convém à sua dignidade falar naturalmente. Sublinha o
auroras que ele se perdia a contá-las. velho Corneille por sua maneira de dizer cruamente:
Ora, Delille passou para a história da tragédia. É o
pai (ele, e não Racine, grande Deus!) de uma pretensa
. Un tas d'bommes perdus de dettes et de crimes'>.
. Chimêne, qui 'eiit cru? Rodrigue, qui l'edt dit'™?
escola de elegância e bom gosto que floresceu recente- . Quand leur Flaminius marchandait Annibal'®,
mente. A tragédia não é para esta escola o que foi para o
velho “Gilles” Shakespeare, por exemplo, uma fonte de
emoções de toda natureza; mas uma cômoda moldura
para a solução de um grande número de pequenos pro- 155. Stendhal já notar O que há de anti-romantico ¢ o Sr. Le-
blemas descritivos que ela se propõe durante o percur- gouvé, na sua tragédia Henrigue 1V, não podendo reproduzir
a verdadeira es- a mais bela expressio deste rei patriota: ‘Gostaria que o ma
so. Esta musa, longe de repelir, como
pobre campongs de meu reino pudesse ter pelo menos a
cola clássica francesa, as trivialidades e as baixezas da poule au pot (a galinha na pancla) aos domingos’™ (Racinee
vida, procura-se ao contrário e as reúne avidamente. O Shakespeare, Cap. 11D.
grotesco, evitado como se fora má companhia pela tra- 156. Stendhal também criticara a tirada.
gédia de Luís XIV, não pode passar tranqúuilo em frente
157. Cina, V, 1, v. 1493: “Um monte de homens perdidos de divi-
das e de crimes”.
158. O Cid, 11, 1V, v. 947: “Chimena, quem o teria crido? Rodrigo,
quem o teria dito?”
154. Delille é poeta francês (1738-1813) muito admirado por seus 159. Nicomedes, 1, 1, v. 22: “Pelo qual seu Flaminius negociava
contemporâneos. Annibal”. Hugo modifica o começo do verso.
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. Ah! ne me brouíllez pas avec la république! Etc., ete'*. Em suma, nada é tão comum quanto essa elegancia e
essa nobreza de convencio. Nada achado, nada imagina-
Não pode suportar seu: “Tout beau, monsieur”™ E do, nada inventado neste estilo. Viram-se por toda a
foram necessários muitos seigneur! e muitos madame! parte: retérica, empolação, lugares-comuns,
fleurs de coll-
para poder perdoar nosso admirável Racine por seus ége, poesia de versos latinos. Idéias não originais vestidas
chiens'® 1ão monossilábicos, e este Claude tão brutal- com imagens de pacotilha. Os poetas desta escola são
mente mis dans le lit de Agripina'º, elegantes como principes e princesas do teatro, sempre
Esta Melpómene, como ela se chama, fremiria se tives- seguros de encontrarem nos compartimentos catalogados
se de tocar numa crônica. Deixa ao empregado do guar- da loja mantos e coroas de ouro falso, que não tém senão
da-roupa o cuidado de saber em que época se passam os ainfelicidade de haverem servido a todos. Se estes poetas
dramas que ela inspira. A história, aos seus olhos, é de não folheiam a Biblia, não é que não tenham também seu
mau tom e de mau gosto. Como, por exemplo, tolerar reis grosso livro: o Diciondrio das Rimas. É esta sua fonte de
e rainhas que blasfemam? É preciso elevá-los da dignida- poesia, fontes aquarum'®,
de real à dignidade trágica. Foi numa promoção deste Compreende-se que, em tudo isto, a natureza € a
tipo que ela enobreceu Henrique IV. Foi assim que o rei verdade se transformam no que podem. Seria puro acaso
do povo, “limpo” pelo sr. Legouvé, viu seu venire-saint- se pudesse sobrenadar algum resto delas neste cataclismo
grisexpulso vergonhosamente de sua boca por duas sen- de falsa arte, de falso estilo, de falsa poesia. Eis o que
tenças, e que foi reduzido, como a jovem do JSabliau, a causou o erro de varios de nossos distintos reformadores.
não mais deixar cair desta boca real senão pérolas, rubis Chocados pela rigidez, pelo aparato, pelo pomposo desta
e safiras"*. O falso total, na verdade. pretensa poesia dramatica, acreditaram que os elementos
de nossa linguagem poética eram incompativeis com o
natural e o verdadeiro. O alexandrino os aborrecera tan-
tas vezes, que o condenaram, de alguma forma, sem
160. Nicomedes, 11, TU, v. 564: “Ah! não indisponha contra mim a quererem ouvi-lo, e concluiram, talvez um pouco preci-
república”. pitadamente, que o drama devia ser escrito em prosa’®.
161. Horácio, 111, V1, v. 1009: “Ó meus irmãos! — Calma, não os
choreis todos”.
162. Atália, 11, V, v. 506: “Quc cães devoradores se disputavam
entre eles' excessivamente francas ¢ rudes. Ventre-saint-gris era uma
163. Britânico, IV, 11, v. 1137: “Pôs Cláudio no meu leito, e Roma blasfémia familiar de Henrique IV.
aos meus joelhos (pés 165. Expressio biblica: “as fontes das águas”.
164. Legouvé, poeta francês (1764-1812), foi célebre por suas 166. Hugo está em desacordo com Mme. de Staél (Da Alemanba,
perífrases como fito de evitar expressões que lhe pareciam 11, TX) e Stendhal (Racine e Shakespeare).
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todas as suas pregas. Que poderiam então perder a na-
Enganavam-se. Se o falso reina, com efeito, no es-
tureza e a verdade ao entrarem no verso? Perguntamos
tilo como na marcha de certas tragédias francesas, não
aos nossos “prosaistas” mesmos, o que elas perdem na
era aos versos que se devia deitar as culpas, mas aos
poesia de Moliêre"*? O vinho, permitam-nos mais uma
versificadores. Era preciso condenar, não a forma em-
trivialidade, deixa de ser vinho pelo fato de estar na
pregada, mas os que haviam empregado esta forma; os
garrafa?
operdrios, e não a ferramenta.
Se tivéssemos o direito de dizer qual poderia ser, em
Para convencer-se dos poucos obstáculos que a na-
nosso gosto, o estilo do drama, quereríamos um verso
tureza de nossa poesia opõe à livre expressão de tudo o
livre, franco, leal, que ousasse tudo dizer sem hipocrisia,
que é verdadeiro, não é talvez em Racine que se deve
tudo exprimir sem rebuscamento e passasse com um
estudar nosso verso, mas freqiientemente em Corneille,
movimento natural da comédia à tragédia, do sublime ao
sempreem Moliêre. Racine, divino poeta, é elegíaco,
grotesco; alternadamente postivo e poético, ao mesmo
lirico épico; Moliêre é dramático. É tempo de punir
tempo artístico e inspirado, profundo e repentino, amplo
críticas amontoadas pelo mau gosto do último século
e verdadeiro; que soubesse quebrar a propósito e deslo-
contra esse estilo admirável, e dizer em alta voz que
car a cesura para disfarçar sua monotonia de alexandrino;
Moliêre ocupa o ponto culminante de nosso drama, não
mais amigo do enjambement que o alonga que da inver-
apenas como poeta, mas ainda como escritor'”. Palmas
são que o embaraca; fiel 2 rima, esta escrava rainha'™, esta
vere habet iste duas'®.
graça suprema de nossa poesia, este gerador de nosso
Nele, o verso abraça a idéia, nela se incorpora es-
metro; inesgotável na variedade de seus giros, inapreen-
treitamente, cinge-a e a desenvolve ao mesmo tempo,
sível nos seus segredos de elegância e de execução; a
confere-lhe uma figura mais esbelta, mais estrita, mais
tomar como Proteu'”, mil formas sem mudar de tipo e de
completa e no-la dá, de alguma forma, na sua essência
caráter, evitando a tirada; divertir-se no diálogo; ocultar-
mais pura. O verso é a forma ótica do pensamento. Eis
se sempre atrás da personagem; ocupar-se antes de mais
porque convém sobretudo à perspectiva cênica. Com-
nada com estar em seu lugar, e quando lhe acontecesse
posto de uma certa maneira, comunica seu relevo a coi-
sas que, sem ele, passariam insignificantes e vulgares.
Torna mais sólido e mais fino o tecido do estilo. É o nó 169. Hugo emprega prosaístes, sem aspas, c não prosateurs
que prende o fio. É o cinto que sustenta a roupa e lhe dá (prosadores).
170. Alusão a Boileau, que diz: *A rima é uma escrava, e não deve
senão obedecer” (Arte poética, 1, v. 30).
167. Moliêre não foi, realmente, admirado no século XVIII.
171. Proteu, deus marinho, recebeu de Poscidão o poder de mu-
dar de forma (Odisséia, IV).
168. “Ele tem realmente duas palmas”.
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ser belo, sê-lo apenas de alguma forma, por acaso, contra rito do ator, adverte-o do que ele omite e do que ele
a vontade e sem sabê-lo; lírico, épico, dramático, segun- acrescenta, impede-o de alterar seu papel, de substituir-
do a necessidade; poder percorrer toda a gama poética, se ao autor, torna sagrada cada palavra, e faz com que o
ir de alto a baixo, das idéias mais elevadas às mais vulga- que disse o poeta se encontre, por muito tempo depois,
res, das mais bufas às mais graves, das exteriores às mais indelével ainda na memória do ouvinte. A idéia, domi-
abstratas, sem jamais sair dos limites de uma cena falada; nante no verso, toma de repente algo de mais incisivo e
numa palavra, tal como faria o homem a quem uma fada de mais brilhante. É o ferro que se torna aço.
tivesse dotado com a alma de Corneille e a cabeça de Sente-se que a prosa, necessariamente bem mais tí-
Moliêre. Parece-nos que este verso seria de fato tão belo mida, obrigada a privar o drama de toda poesia lírica ou
quanto a prosa'™. épica, reduzida ao diálogo e ao positivo, está longe de
Não haveria nenhuma relação entre uma poesia des- ter estes recursos. Tem asas bem menos amplas. É, em
te gênero e aquela da qual há pouco fazíamos a autópsia seguida, de um muito mais fácil acesso; a mediocridade
cadavérica. O matiz que as separa será de fácil indica- aí se encontra à vontade; e, por causa de algumas obras
ção, se um homem de espírito, a quem o autor deste notáveis, como as que estes últimos tempos viram apa-
livro deve um agradecimento pessoal, nos permite recer, a arte estaria depressa atravancada de abortos e
tomar-lhe emprestada essa maliciosa distinção: a outra embriões. Uma outra fração da reforma se inclinaria
poesia era descritiva, essa seria pitoresca. para o drama escrito ao mesmo tempo em prosa e em
Repetimo-lo sobretudo: o verso no teatro deve des- verso, como fez Shakespeare. Esta maneira tem suas
pojar-se de todo amor-próprio, de toda exigência, de vantagens. Poderia, no entanto, haver disparidade nas
toda faceirice. Não é senão uma forma, e uma forma que transições de uma forma a outra, e quando um tecido é
deve tudo admitir, que nada deve impor ao drama, e ao homogéneo, é bem mais sólido. Além disso, que o dra-
contrário deve dele tudo receber para tudo transmitir ma esteja escrito em prosa, que esteja escrito em verso,
ao espectador: francês, latim, textos de leis, blasfêmias que esteja escrito em verso e em prosa, isto não é senão
reais, locuções populares, comédia, tragédia, riso, lágri- uma questão secundária. A categoria de uma obra deve
mas, prosa e poesia. Ai do poeta se seu verso se faz de ser fixada não segundo sua forma, mas segundo seu
rogado! Mas esta forma é uma forma de bronze que valor intrínseco. Nas questões deste tipo, só há uma so-
emoldura o pensamento em seu metro, sob a qual o lução; só há um peso que pode fazer inclinar a balança
drama é indestrutível, que o grava mais adiante no espí- da arte: é o gênio.
Além disso, prosador ou versificador, o primeiro, o
indispensável mérito de um escritor dramático, é a cor-
172. É a opinião dos filósofos do século XVIII. reção. Não esta correção totalmente de superfície, quali-
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dade ou defeito da escola descritiva, que faz de Lho- de Montaigne não é mais a de Rabelais, a lingua de Pas-
mond'™ e de Restaut'™ as duas asas de seu Pégaso'” mas cal não é mais a de Montaigne, a lingua de Montesquieu
esta correção intima, profunda, meditada, que estd im- não é mais a de Pascal. Cada uma destas quatro linguas,
pregnada do génio de um idioma, que sondou suas rai- tomada em si, é admi vel, porque é original. Toda épo-
zes, escavou as etimologias; sempre livre, porque estd ca tem suas idéias préprias; € preciso que tenha também
segura da sua ação, e vai sempre de acordo com a lógica as palavras proprias a estas idéias. As linguas sio como
da lingua. Nossa Senhora a gramática dirige a outra em o mar, oscilam sem parada. Num certo momento, dei-
tutela; esta conserva à corda a gramitica'™. Pode ousar, xam uma costa do mundo do pensamento e invadem
arriscar, criar, inventar seu estilo; ela tem o seu direito. uma outra. Tudo o que suas ondas assim abandonam
Pois, se bem que certos homens tenham dito que não seca e se apaga do solo. É desta maneira que idéias se
haviam pensado no que diziam, e entre os quais é preci- extinguem, que palavras se vão. Sucede com idiomas
so colocar especialmente o que escreve estas linhas, a humanos como com tudo. Cada século traz e leva algu-
lingua francesa não esti fixa e não se fixara'”. Não se ma coisa. Que é que se pode fazer? Isto é fatal. Seria,
fixa uma lingua. O espirito humano estd sempre em pois, em vão querer petrificar a mével fisionomia de
marcha, ou, se se quiser, em movimento, e as linguas nosso idioma sob uma forma dada. É em vio que nossos
com ele. As coisas são assim. Quando o corpo muda, Josués'™ literarios gritam 2 lingua para que se detenha;
como não mudaria a roupa? O francés do século XIX as linguas nem o sol não mais se detém. No dia em que
não pode mais ser o francés do século XVIII; tanto se fixarem, é porque estão mortas. — É por isso que o
quanto este não € o francés do século XVII, tanto quanto francés de uma certa escola contemporinea é lingua
o francés do século XVII não é o do século XVI. A lingua morta.
Tais são, aproximadamente, e menos os desenvolvi-
mentos aprofundados que poderiam completar a sua
173. Lhomond, latinista e gramático francés (1727-1794) evidéncia, as idéias atuais do autor deste livro sobre o
174. Restaut, gramitico francés (1696-1764).
175. Pégaso, cavalo com asas da mitologia grega, simboliza aqui a drama. Está longe além disso de ter a pretensio de apre-
inspiragio poética. sentar seu ensaio dramático como uma emanagio destas
176, É conveniente conhecer o que Hugo diz, no Preficio de idéias, que, bem ao contrario, não sio talvez elas mes-
Odes e Baladas: “Está bem claro que a liberdade não deve mas, para falar naturalmente, senão revelacdes da exe-
jamais ser anarquia; que a originalidade não pode em caso
algum servir de pretexto à incorregdo. Numa obra literária, a
exccução deve ser tanto mais irrepreensivel quanto mais ou-
sada for a concepção”. 178. Josug, sucessor de Moisés, fez parar o curso do sol, a fim de
177. Alusio a uma passagem do Preficio de Odes e Baladas. prolongar o dia e conseguir a vitória durante uma batalha
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cução. Ser-lhe-ia muito cômodo, sem dúvida, e mais Dassam por vinte buracos, e encontram enfim dois ou
hábil, assentar seu livro no prefácio e defendê-los, um s que não podem admiti-los"™®". Teria sido pois dar-se
pelo outro. Ele prefere menos habilidade e mais fran- um trabalho inútil e acima de suas forças. O que advo-
queza. Quer, pois, ser o primeiro a mostrar a fragilidade 30U, ao contrario, foi a liberdade da arte contra o despo-
do nó que liga este prefácio a este drama. Seu primeiro ismo dos sistemas, dos cédigos e das regras. Tem por
projeto, bem determinado de início, por preguiça, era hibito seguir a0 acaso o que toma para sua inspiragio,
apresentar a obra sozinha ao público; el demonio sin las mudar de molde tantas vezes quanto de composi¢io. Do
cuernas"”, como dizia Yriarte. Foi depois de tê-la devi- dogmatismo, nas artes, é do que foge antes de tudo. Não
damente fechado e concluído, que, por solicitação de queira Deus que ele aspire a ser destes homens, roman-
alguns amigos provavelmente muitos cegos, decidiu ticos ou cldssicos, que compõem obras em seu sistema,
dar-se importância a si mesmo num prefácio, traçar, por que se condenam a não terem jamais sendo uma forma
assim dizer, o mapa da viagem poética que acabava de 10 espirito, a sempre provarem alguma coisa, a segui-
fazer, explicar-se as aqui: ções boas ou más que dela rem outras leis e não as de sua organizacio e de sua
trazia, € Os novos aspectos sob os quais o domínio da natureza: A obra artificial desses homens, por mais ta-
arte se lhe havia oferecido ao espírito. Tirar-se-á, sem lento que tenham alids, não existe para a arte. É uma
dúvida, vantagem desta confissão para repetir a censura teoria, não uma poesia.
que um crítico da Alemanha lhe dirigiu'®, de fazer “uma Após ter, em tudo o que precede, tentado indica qual
poética para a sua poesia”. Que importa? Ele teve, de foi, segundo nós, a origem do drama, qual é seu cariter,
início, antes a intenção de desfazer do que de fazer poé- qual poderia ser seu estilo, eis o momento de descermos
ticas. Em seguida, não valeria mais fazer poéticas segun- destes cumes gerais da arte ao caso particular que lá nos
do uma poesia, do que poesia segundo uma poética? ‘ez subir'™®. Resta-nos falar ao leitor sobre nossa obra,
Mas não, ainda uma vez, ele não tem o talento para sobre este Cromwell; e como não é um assunto que nos
criar, nem a pretensão de estabelecer sistemas. “Os siste- agrade, diremos pouca coisa em poucas palavras.
mas”, diz espirituosamente Voltaire, “são como ratos que Olivier Cromwell é do nimero destas personagens
da histéria que são ao mesmo tempo muito célebres e
muito pouco conhecidas. A maior parte de seus biégra-
179. “O diabo sem os cornos”. Hugo emprega “cuernas” não fos, e no número estão os que sio historiadores, deixou
cucrnos”, assim como escreve Yriarte e não o correto Iriarte,
180. J. P. Richter dissera de sua Introdução à Estética (1804) que
ela não era “um discurso de carpinteiro pronunciado do alto
de uma construção acabada”. Transcrição de nota de Michel 181. A frase de Voltaire estd algo modificada
Cambien, op. cit, p. 95. 182. Hugo vai tratar agora de sua peça Cromuwell.
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incompleta esta grande figura. Parece que não ousaram comprazia; orador pesado, difuso, obscuro, mas hábil
reunir todos os traços deste bizarro e colossal protótipo em falar a lingua de todos os que queria seduzir; hipó-
da reforma religiosa, da revolução política da Inglaterra. crita e fanatico; visiondrio dominado por fantasmas de
Quase todos se limitaram a reproduzir em dimensões sua infancia, cria nos astrélogos e proscrevia-os; descon-
mais extensas o simples e sinistro perfil que Bossuet tra- fiado em excesso, sempre ameagador, raramente sangui-
çou, desde seu ponto de vista monárquico e católico, de nério; rigido observador das prescrições puritanas, a
seu púlpito de bispo apoiado no trono de Luís XIV'*, perder gravemente várias horas por dia em chocarrices;
Como todos, o autor deste livro a isto se atinha. O brusco e desdenhoso com seus familiares, carinhoso
nome de Olivier Cromwell lhe despertava somente a com os sectdrios que
temia; enganava sem remorsos
idéia sumária de um fanático regicida, grande capitão. com sutilezas, usava de asticia para com sua conscién-
Foi bisbilhotando na crônica, o que fez com amor, foi cia; inesgotavel em habilidade, em armadilhas, em re-
escavando ao acaso nas memórias inglesas do século cursos; dominava sua imaginação por sua inteligéncia;
XVII, que ele se surpreendeu de ver desenrolar-se pou- grotesco e sublime; enfim, um destes homens quadra-
co a pouco diante de seus olhos um Cromwell comple- dos pela base'™ como os chamava Napoledo, o tipo e o
tamente novo. Não era mais somente o Cromwell militar, chefe de todos estes homens completos, em sua lingua
o Cromwell político de Bossuet; era um ser complexo, exata como a dlgebra, colorida como a poesia.
heterogéneo, múltiplo, composto de todos os contrários, O que escreve isto, em presenca deste raro e sur-
mescla de muito mal e de muito bem, cheio de gênio e preendente conjunto, sentiu que o perfil apaixonado de
de mesquinhez; uma espécie de Tibé o-Dandin', tira- Bossuet não mais lhe bastava. Pds-se a rodar em torno
no da Europa e joguete de sua família; velho regicida, a desta alta figura, e foi entio tomado por uma ardente
humilhar os embaixadores de todos os reis, torturado tentação de pintar o gigante sob todas as suas faces, sob
por sua jovem filha realista; austero e sombrio em seus todos os seus aspectos. A matéria era rica. Ao lado do
costumes e mantendo quatro bobos da corte ao seu re- homem de guerra e do homem de Estado, restava esbo-
dor; autor de maus versos; sóbrio, simples, frugal, e çar o tedlogo, o pedante, o mau poeta, o visionario, o
guindado na etiqueta; soldado grosseiro e político pene- bufão, o pai, o marido, o homem-Proteu, em uma pala-
trante; experimentado nas argúcias teológicas, nelas se vra, o Cromwell duplo, homo et vir',
183. Bossuet, no Discurso Filnebre de Henriqueta da França. 185. Consta no Memorial de Santa Helena
184. Tibério, imperador romano (14-37), cuja crueldade e vida 186. “Homo” designa o ser humano, em geral; a humanidade.
irregular são notórias. Dandin é o juiz patife e ridiculo da “Vir" designa o homem, com as caracteristicas que o distin-
peça Os Litigantes, de Racine. guem da mulher.
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Há sobretudo uma época em sua vida em que este espiões o tinham advertido de duas conspiragdes as-
caráter singular se desenvolve sob todas as suas formas ciadas dos cavaleiros e dos puritanos, que deviam,
Não é, como se creria ao primeiro olhar, a do processo de roveitando o seu erro, estourar no mesmo dia? Seria
Carlos 1, por mais sombria e terrivelmente interessante revolução nele produzida pelo siléncio ou pelos mur-
que ela seja; é o momento em que o ambicioso tentou múrios deste povo, desconcertado ao ver seu regicida
colher o fruto desta morte. É o instante em que Crom- finalizar no trono? Seria somente sagacidade do génio,
well, tendo chegado ao que seria para qualquer outro o instinto de uma ambição prudente, ainda que desenfrea-
pincaro de uma fortuna possível, senhor da Inglaterra da, que sabe quanto um passo a mais muda freqiiente-
cujas mil facções se calam sob seus pés, senhor da Escó- mente a posi¢ao e a atitude de um homem, e que não
cia que ele torna um paxalato, e da Irlanda, que ele torna ousa expor seu edificio plebeu ao vento da impopulari-
um presídio, senhor da Europa por suas frotas, por seus dade? Seria tudo isso a0 mesmo tempo? É o que nenhum
exércitos, por sua diplomacia, tenta enfim realizar o pri- documento contemporineo esclarece de maneira sobe-
meiro sonho de sua infância, o último objetivo de sua rana. Tanto melhor; a liberdade do poeta é mais com-
vida, o de fazer-se rei. A história nunca ocultou mais alta oleta, e o drama ganha com estas latitudes que lhe deixa
lição sob um drama mais alto. O Protetor se faz de início a histéria. Vé-se aqui que ele é imenso e tnico; é bem a
rogar; a augusta farsa começa por solicitações de comu- hora decisiva, a grande peripécia da vida de Cromwell. É
nidades, solicitações de cidades, solicitações de condados; 0 momento em que sua quimera lhe escapa, em que o
depois é um projeto de lei do parlamento. Cromwell, presente lhe mata o futuro, em que, para empregar uma
autor anônimo da peça, quer parecer descontente; é vis- vulgaridade enérgica, seu destino falba. O Cromwell in-
to a estender a mão para o cetro e retirá-la; aproxima-se teiro estd em jogo nesta comédia que se representa entre
com passos oblíquos deste trono do qual ele varreu a a Inglaterra e ele.
dinastia. Enfim, decide bruscamente; por ordem sua, Eis, pois, o homem; eis a época que se tentou esbo-
Westminster é embandeirada, levanta-se o estrado, en- çar neste livro.
comenda-se a coroa ao ourives, marca-se o dia da ce- O autor deixou-se arrastar no prazer infantil de fazer
rimônia. Estranho desenlace! É neste mesmo dia, diante mover as teclas deste grande cravo. Certamente, mais
do povo, da milícia, das comunas, nesta grande sala de Tábeis teriam podido dele tirar uma alta e profunda har-
Westminster, sobre este estrado do qual contava descer monia, não destas harmonias que afagam somente os
rei, que, subitamente, como num sobressalto, parece cuvidos, mas destas harmonias intimas que comovem
despertar ao aspecto da coroa, pergunta se sonha, o que odo o homem, como se cada corda do cravo se atasse a
quer dizer esta cerimônia, e num discurso que dura três “uma fibra do coração. Cedeu, ele, ao desejo de pintar
horas recusa a dignidade real. — Seria por que seus “odos estes fanatismos, todas estas superstições, doencas
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das religiões em certas épocas; à vontade de tocar estes por um terceiro; e este Rochester!”, este estranho Roches-
homens, como diz Hamlet"*'; de dispor abaixo e ao redor ter, ridiculo e espirituoso, elegante e crapuloso, blasfe-
de Cromwell, centro e eixo desta corte, deste povo, deste mando sem parada, sempre apaixonado e sempre ébrio,
mundo, associando tudo em sua unidade e imprimindo a assim como se vangloriava ao bispo Burnet', mau poeta
tudo seu impulso: e esta dupla conspiração tramada por e bom fidalgo, viciado e ingénuo, que jogava sua cabega
duas faccdes que se detestam, se coligam para derrubar sem preocupar-se com ganhar a partida, desde que ela o
o homem que os aborrece, mas se unem sem se misturar; divertisse, capaz de tudo, em uma palavra, de astúcia e
e este partido puritano, fandtico, diverso, sombrio, desin- de leviandade, de loucura e de cilculo, de torpeza e de
teressado, tomando como chefe o homem menor para generosidade; e este selvagem Carr', cuja histéria não
um tão grande papel, o egofsta e pusilanime Lambert'™; desenha senão um trago, mas bem caracteristico e bem
e este partido dos cavaleiros, estouvado, alegre, pouco fecundo; e estes faniticos de toda ordem e de todo tipo,
escrupuloso, descuidado, devotado, dirigido pelo ho- Harrison, fanático ladrão; Barebone, comerciante fanati-
mem que, afora o devotamento, o representa menos, o co; Syndercomb, matador; Augustin Garland, assassino
probo e severo Ormond™; e estes embaixadores, tão lacrimejante e devoto; o bravo coronel Overton, letrado
humildes em face do soldado improvisado; e esta estra- um pouco declamador; o austero e rigido Ludlow, que foi
nha corte com a mistura de homens aventureiros e de mais tarde deixar suas cinzas e seu epitdfio em Lausanne;
grandes senhores rivalizando em baixeza; e estes quatro enfim, “Milton e alguns outros que tinham espirito”, como
bufões que o desdenhoso esquecimento da histéria per- diz um panfleto de 1675 (Cromuwell politico), que nos
mitia imaginar; e esta familia da qual cada membro é uma lembra o Dantem quendam da cronica italiana’,
chaga de Cromwell; e este Thurloé™, o Acates”” do Pro- Não indicamos muitas personagens mais secundi-
tetor; e este rabino judeu, este Israel Ben-Manassé'”?, rias, das quais cada uma tem, no entanto, sua vida real e
espido, usurario e astrólogo, vil por dois lados, sublime sua individualidade marcada, e que todas contribuiam
para a sedugdo que esta vasta cena da histéria exercia
sobre a imaginação do autor. Desta cena ele fez este
drama. Lançou-o em versos, porque isto assim lhe agra-
187, Provavel alusão a Hamlet (1L, TD).
188. Lambert, general inglés ambicioso (1619-1683).
189. Ormond, conjurado do partido do rci, na peca de Hugo.
190. Thurlog, secretário de Estado que, por medo dos republica- 193. Rochester, grande senhor ¢ poeta mundano (1647-1680).
nos, apoiou Cromwell (1616-1668). 194. Burnet, prelado e historiador inglés (1643-1715).
191. Acates, amigo ficl de Enéas (Eneida). 195. Carr ¢ 0s nomes que se seguem sio de conjurados puritanos,
192. Ben-Manassé rabino, na peca de Hugo. Na realidadc, trata-se na peca de Hugo.
de Manassés-ben-Israel. 196. “Um certo Dante”. Mas a cronica não foi identificada
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dou. Além do mais, ver-se-á pela leitura como ele pen- cle se entregou livre e dócil às fantasias da composição,
sava pouco em sua obra, ao escrever este preficio, com ao prazer de desenrolá-la em mais amplas dobras, aos
que desinteresse, por exemplo, combatia o dogma das desenvolvimentos que seu assunto comportava, e que,
unidades. Seu drama não sai de Londres, comega no dia se acabarem por distanciar seu drama do teatro, tém
25 de junho de 1657, às trés horas da manhi e acaba no pelo menos a vantagem de torná-lo quase completo sob
dia 26, ao meio-dia. Vé-se que entraria quase na pres- 0 aspecto histérico. Além disso, os comités de leitura sio
crição clássica, tal como os professores de poesia a redi- apenas um obsticulo de segunda ordem. Se acontecesse
gem agora. Que eles não lhe mostrem alids nenhuma que a censura dramdtica, compreendendo quanto estd
gratidão. Não é com a permissio de Aristóteles, mas inocente, exata e conscienciosa imagem de Cromwell e
com a da história, que o autor assim organizou seu dra- de seu tempo estd tomada fora de nossa época, lhe per-
ma; e porque, com igual interesse, prefere um assunto mitisse o acesso do teatro, o autor, mas somente neste
concentrado a um assunto disperso. caso, poderia extrair deste drama uma peça que entio se
É evidente que este drama, nas suas atuais propor- arriscaria no palco, e seria vaiada™.
ções, não poderia enquadrar-se nas nossas represen- Até 14, continuard a manter-se afastado do teatro. E
tações cênicas"””. É longo demais. Reconhecer-se-á deixard sempre bastante cedo, pelas agitações deste
talvez, no entanto, que ele foi em todas as suas partes mundo novo, seu caro e casto retiro. Queira Deus que ele
composto para o palco. Foi ao aproximar-se de seu as- jamais se arrependa de ter exposto a virgem obscuridade
sunto para estudá-lo que o autor reconheceu ou acredi- de seu nome e de sua pessoa aos escolhos, às borrascas,
tou reconhecer a impossibilidade de fazer admitir sua as tempestades da platéia, e sobretudo (pois que importa
reprodução fiel em nosso teatro, no estado de exceção uma queda?) aos miseraveis aborrecimentos dos bastido-
em que está colocado, entre o Caribde acadêmico € o res; de ter entrado nesta atmosfera varidvel, brumosa,
Scila administrativo, entre os júris literários e a censura tempestuosa, em que dogmatiza a ignorfncia, em que
política. Era preciso optar: ou a tragédia insinuante, dis- vaia a inveja, em que rastejam as cabalas, em que a pro-
simulada, falsa, e representada, ou o drama insolente- bidade do talento foi tão freqiientemente desconhecida,
mente verdadeiro, e banido™. A primeira coisa não em que a nobre candura do génio é algumas vezes tão
valia a pena ser feita; preferiu tentar a segunda. É por inoportuna, em que a mediocridade triunfa em rebaixar
isso que, desesperando por não ser jamais encenado, a seu nivel as superioridades que a ofuscam, em que se
197. Hugo vai tratar agora do Problema da representação. 199. Em 1956, houve uma representagao de Cromuwvell, no Louvre,
198. Marion de Lorme c outras peças de Hugo foram proibidas. numa adaptacio de René Bianco ¢ Richard Heinz.
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encontram tantos homenzinhos para um grande, tantas seus gostos que marcam suas paixões, seus hábitos que
nulidades para um Talma*”, tantos mirmídones para um disciplinam seus gostos, amordaçam suas paixões, e este
Aquiles™ Este esbogo parecerá talvez tristonho e pouco numeroso cortejo de homens de todos os tipos que es-
mas não acaba de marcar a diferença que se-
lisonjeiro; tes diversos agentes fazem rodopiarem ao redor dele; a
da solene outra, com seus costumes, suas leis, suas modas, seu
para nosso teatro, lugar de intrigas € tumultos,
espírito, suas luzes, suas superstições, seus aconteci-
serenidade do teatro antigo?
Qualquer que seja o fato que advenha, crê dever mentos, e seu povo que todas estas causas primeiras
advertir antecipadamente o pequeno número
de pes- amassam alternadamente como uma cera mole. Conce-
ante be-se que um semelhante quadro será gigantesco. Em
soas que poderiam ser tentadas por um semelh
espetáculo, de que uma peça extraída de Cromuwell não lugar de uma individualidade, como aquela com a qual
É di-
ocuparia menos do tempo de uma representação. o drama abstrato da velha escola se contenta, ter-se-á
fícil que um teatro romântico se estabeleça de outra vinte, quarenta, cinquenta, — que sei eu? — de todos os
maneira. Certamente, se se quiser um teatro diferente relevos e de todas as proporções. Haverá uma multidão
destas tragédias nas quais uma ou duas personagens, no drama. Não seria mesquinho medir-lhe duas horas de
tipos abstratos de uma idéia puramente metafísica, pas- duragio para dar o resto da representagio à 6pera-comi-
seiam solenemente num fundo sem profundidade, ape- ca ou 2 farsa? Encolher Shakespeare por causa de Bo-
nas ocupado por algumas cabeças de confidentes, beéche®? — E que não se pense, se a ação estd bem
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mente sobre o novo. Oprime-o particularmente na críti- tem sua sombra, sua contraprova, sua parasita, seu cldssi-
ca. Os senhores encontram por exemplo, homens vivos co, que se pinta por ele, enverniza-se com suas cores,
que lhes repetem esta definição do gosto emitida por toma sua libré, apanha suas migalhas, e semelhante ao
Voltaire: “O gosto não é outra coisa para a poesia senão aluno do feiticeiro®™, põe em jogo, com palavras retidas
0 que é para os atavios das mulheres””**. Assim, o gosto pela memória, elementos de ação dos quais ele não tem o
é a garridice. Palavras notáveis que descrevem maravi- segredo. Portanto faz bobagens que seu mestre vérias
lhosamente esta poesia pintada, mosqueada, empoada vezes tem muita dificuldade para reparar. Mas o que é
do século XVIII, esta literatura de anquinhas, de pom- preciso destruir antes de mais nada, é o velho falso gosto.
pons e de falbalás. Oferecem admirável resumo É preciso desenferrujar a literatura atual. É em vão que ele
de uma época com a qual os mais altos gênios não pu- a cor i e a embaça. Fala a uma geração jovem, severa,
deram estar em contato sem se tornarem pequenos, pelo poderosa, que não o compreende. A cauda do século
menos por um lado, de um tempo em que Montesquieu XVIII arrasta ainda no século XIX; mas não somos nós,
pôde e teve de fazer O Templo de Gnide, Voltaire O Tem- jovens que vimos Bonaparte, que a seguraremos.
plo do Gosto, Jean-Jacques O Adivinho da Aldeia. Estamos, pois, próximos do momento de ver pre-
O gosto, é a razão do gênio. Eis o que estabelecerá valecer a nova critica, assentada, também ela, sobre uma
logo uma outra crítica, uma crítica forte, franca, erudita, base ampla, sólida e profunda. Compreender-se-á logo,
uma crítica do século que começa a lançar rebentos de maneira geral, que os escritores devem ser julgados,
vigorosos sob os velhos ramos ressequidos da antiga es- não segundo as regras e os gêneros, coisas que estão fora
cola. Esta jovem crítica, tão grave quanto a outra é frívola, da natureza e fora da arte, mas segundo os princípios
tão erudita quanto a outra é ignorante, já criou órgãos que imutáveis desta arte e as leis especiais de sua organização
são ouvidos, e fica-se surpreendido algumas vezes ao en- pessoal. A razão de todos terá vergonha desta crítica que
contrar nas folhas mais leves excelentes artigos dela ema- espancou violentamente Pierre Corneille, amordaçou
nados®. É ela que, unindo-se a tudo o que há de superior Jean Racine, e que não reabilitou risivelmente John Mil-
e de corajoso nas letras, livrar-nos-á de dois flagelos: o ton senão em virtude do código épico do pai Le Bossu?'".
classicismo caduco, e o falso romantismo, que ousa des- Consenti se-4, para compreender uma obra, em tomar o
pontar aos pés do verdadeiro. Porque o gênio moderno já ponto de vista do autor, em olhar o assunto com seus
208. Pretensa citação de Voltaire. 210. Goethe compusera uma balada: “O aprendiz de feiticeiro”.
209. Alusão aos jornais que traziam artigos da jovem critica ro- 211. R. P. Le Bossu, canônico regular (1631-1680), é autor de um
mântica. Tratado do Poema Épico.
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olhos. Abandonar-se-á, e é o Sr. de Chateaubriand que por falta de poder abater-se sobre os objetos com uma
aqui fala, a crítica mesquinha dos defeitos pela grande e tão vasta inteligéncia. E depois, ainda uma vez, há des-
Jfecunda crítica das belezas*”. É tempo de que todos os tas faltas que não se instalam sendo nas obras-primas;
bons espíritos apanhem o fio que liga frequentemente o não é dado senão a certos génios o direito de ter certos
que, segundo nosso capricho particular, chamamos defei- defeitos. Censura-se em Shakespeare o abuso da mertafi-
to ao que chamamos beleza. Os defeitos, pelo menos o sica, o abuso do espirito, das cenas parasitas, das obsce-
que assim nomeamos, são frequentemente a condição nidades, o emprego dos trastes mitoldgicos de moda no
nativa, necessária, fatal, das qualidades. seu tempo, da extravagancia, da obscuridade, do mau
Scit genius, natale comes qui temperat astrum??, gosto, da énfase, das asperezas do estilo. O carvalho,
essa árvore gigante que comparidvamos há pouco com
Onde se viu medalha que não tenha seu reverso? Shakespeare e que com ele tem mais de uma analogia, o
talento que não traga sombra com sua luz, fumaça com carvalho tem o porte bizarro, os ramos nodosos, a folha-
sua chama? Tal mancha pode ser apenas a consequência gem sombria, a casca dspera e dura; mas é o carvalho.
indivisível de tal beleza. Este toque discordante, que me E é por causa disso que ele é o carvalho. Se querem
choca de perto, completa o efeito e dá relevo ao conjun- um tronco liso, ramos direitos, folhas de cetim, dirijam-se
to. Apaguem um, apagam o outro. A originalidade se à pélida bétula, ao sabugueiro oco, ao salguciro chorão;
compõe de tudo isso. O gênio é necessariamente desi- mas deixem em paz o grande carvalho. Não apedrejem
gual. Não há altas montanhas sem profundos precipí- quem lhes dá sombra.
cios. Encham o vale com o monte, não terão mais senão O autor deste livro conhece tanto quanto ninguém
uma estepe, uma landa, a planície dos Sablons em lugar 0s numerosos e grosseiros defeitos de suas obras. Se lhe
dos Alpes, cotovias e não águias. acontece muito raramente corrigi-las, é que sente repug-
É também preciso ter em conta o tempo, o clima, as néncia por voltar tarde demais para uma coisa já termi-
influências locais. A Bíblia, Homero, rios atingem algu- nada. Ignora esta arte de soldar uma beleza no lugar de
mas vezes por suas próprias sublimidades. Quem aí uma mancha, e nunca pôde chamar novamente a inspi-
quereria cortar uma palavra? Nossa fraqueza se assusta ração para uma obra que já esfriou. Que fez ele alids
frequentemente com as ousadias inspiradas do gênio, que valha esta pena? O trabalho que perderia para apa-
gar as imperfei¢des de seus livros, prefere empregi-lo
212. Chateaubriand, a respeito dos Anais Literdrios de Dussault. para despojar seu espirito de defeitos. É seu método não
213. “O gênio a conhece, companheiro que modera a influência corrigir uma obra sendo numa outra obra.
de seu astro natal” (Horácio, Epístolas, 11, TI, 187). Trata-se Além disso, de qualquer maneira que seja tratado
aqui da causa das diferenças de caracteres. seu livro, toma aqui o compromisso de não defendé-lo
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no todo nem em partes. Se seu drama é mau, para que de excentricidade de espírito torna insensíveis ao que impressio-
serve sustentá-lo? Se é bom, por que defendê-lo? O tem- na geralmente os homens?*,
po refutará o valor do livro, ou reconhecê-lo-á. O êxito
— Quem diz aquilo? É Aristóteles. Quem diz isto? É
do momento não concerne senão ao livreiro. Portanto,
Boileau. Vê-se por esta única amostra que o autor deste
se a publicação deste ensaio despertar a cólera da críti-
drama poderia como um outro revestir-se de uma coura-
ca, ele não intervirá. Que lhe responderia? Não é dos
ça de nomes próprios e refugiar-se atrás das reputações.
que falam, assim como diz o poeta castelhano, pela boca
Mas quis deixar este modo de argumentação aos que o
de sua ferida.
crêem invencível, universal e soberano. Quanto a ele,
Por la boca de su herida...º* prefere razões a autoridades; sempre gostou mais das
armas que dos brasões.
Uma última palavra. Pôde-se notar que nesta corrida
um pouco longa através de tantas questões diversas, o Outubro de 1827
autor geralmente absteve-se de apoiar sua opinião pes-
soal em textos, citações, autoridades. Não é, no entanto,
que elas lhe tivessem faltado.
214. Guillén de Castro, nas Mocidades do Cid., 11, 1. 216. Boileau, no Discurso Sobre a Ode. Mas ele se referia apenas a
215. Aristóteles, Poética, XXV. Perrault.
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