Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E A ARTE DE BAUDELAIRE
Organizadores:
The aim of the present article it is to follow the traces of prose poetry. In
order to do so, we have organized a brief collection evoking the first experi-
Fluxo da Submissão ments from the XVII century on, mentioning Fénélon, Aloysius Bertrand
and some others. Furthermore, we expatiate on the founder of the genre,
Submetido em: 25/02/2022 Charles Baudelaire – the protagonist of that story. We address the last mas-
terpiece of the French author, released in 1867, Petites poèmes en prose, a
Aprovado em: 22/08/2022 major milestone for the Literary Modernity and to the history of the inter-
section between poetry and prose. It is also analyzed the importance of the
translation to the aesthetic influences in Baudelaire, his context and the leg-
Distribuído sob acy he has left to other artists as a reference to even more audacious literary
experiments.
Baudelaire; Prose poetry; Aloysius Bertrand; Translation .
BRESSAN; RIBEIRO
foi responsável ainda por um tratado poético forte retomada de formas curtas, ainda que
no qual afirmava que a versificação perdia tenha havido uma recuperação pari passu de
muito mais do que ganhava com as rimas: formatos tradicionais como o idílio, a elegia, a
acabava carecendo muito em variedade e canção e a pastoral. Todavia, não eram
facilidade da harmonia5. exatamente recompostos à risca, uma vez que
Impressionado com a obra de Fénélon e foram ressignificados com mais hibridismo e
com a ascensão de outros opositores dos liberdade quanto às opções estéticas.
ditames da tradição do verso, como Thomas É das canções e baladas9 de Chansons
Corneille, o escritor satírico e poeta Nicolas madécasses (1787) de Évariste de Parny que os
Boileau discute em tom de achaque, em carta a românticos emprestam a brevidade e os
Charles Perrault, a respeito das imprudências parágrafos curtos de suas experimentações
de se aviltar os modelos clássicos como aqueles aludindo a formas clássicas, como em Ballades,
preconizados pelo poeta e dramaturgo Jean legendes et chants populares de l’Angleterre e
Racine. É nessa correspondência que o termo d’Écosse (1825) de François Loève-Veimars e
“poema em prosa6” aparece pela primeira vez. Balades Allemandes (1827), de Ferdinand
Quase vinte anos mais tarde, a mesma Flocon (PAIXÃO, 2014). À época, buscar um
expressão seria usada pelo abade Jean Baptiste sentido de autoria na reapropriação de modelos
em Refléxions critiques sur la poésie et sur la imutáveis durante séculos era como escrever
peinture (1719) no qual escrevera que “os bons uma nova história sobre um palimpsesto, uma
poemas sem versos, são como os versos sem vez que
poesia” (BAPTISTE apud PAIXÃO, p. 40,
2014). cada autor procurava imprimir uma marca pes-
soal na recriação das formas tradicionais. Por
Nesse contexto, a prosa se afigura como consequência, houve um notável alargamento
uma alternativa para flexibilizar a liberdade de do conceito de ritmo poético, levando muitos
composição – uma espécie de reação às formas textos a se desvincularem da métrica, fazendo
rígidas da tradição clássica. Assim, as as frases ganharem naturalidade e se aproxima-
experimentações do pensador Jean Jacques rem do fluxo da prosa. Pode-se afirmar que a
primeira metade do século XIX foi pródiga no
Rousseau ainda no século XVII são tomadas surgimento de alternativas para a crise do verso
como referência, caso de suas Rêveries du (PAIXÃO, 2014, p. 43)
promeneur solitaire (1782). Trata-se de uma
publicação bastante experimental composta de Na esteira de efervescentes modifica-
pequenos excertos de cunho pessoal: um ções, a palavra poema passa a ganhar novo
devanear como postura física diante do mundo. significado, o qual perdura até hoje: uma peça
Aqui, prosa e poesia estão simbioticamente curta e autônoma. Se antes o termo costumava
mescladas, o livro escrito em cartas de baralho ser associado aos longos textos épicos, com os
enquanto refletia e caminhava sozinho em valores românticos começará a contemplar
meio às paisagens naturais. A obra influenciara também produções em versos menores, ou
imediatamente as produções da prosa de petites epopées, como denominou Vitor Hugo, o
naturalidade de Jean Marmontel, Jean primeiro personagem dessa história. Em meio
Grainville, e um pouco mais adiante, do célebre às re-designações das noções de verso, a poesia
François Chateaubriand em Atala (1801) e Les é escrita em novas páginas.
Natchez (1826). Este último, inclusive, discute
a forma apresentada em Atala no prefácio: “É Um ponto de virada chamado Aloysius
uma espécie de poema, metade descritivo, Bertrand
metade dramático”7. Diz-se, contudo, que o
impacto de Rêveries tocou Baudelaire, tendo a Fazia um ano que Aloysius Bertrand
partir dela influenciado sua célebre teoria sobre havia morrido e, no entanto, sua obra
o flâneur, o caminhante da cidade8. permaneceria viva por muitos séculos.
Com a invasão romântica no século Fernando Paixão (2014) define a produção
XIX, a crise do verso só recrudesce. Há uma
114
como “um livro deflagrador de uma escrita responsável pela consolidação do termo, já que
repleta de novas possibilidades” (p. 43). antes dele “era utilizado principalmente para
Tratava-se de Gaspard de la nuit, espécie de referir-se aos textos de prosa que apresenta-
bíblia a ser consultada no mínimo vinte vezes, vam inclinação poética nas descrições e narra-
para citar Baudelaire, pelos modernistas dos tivas” (PAIXÃO, 2014, p. 41). Para entender
anos que viriam. Fadas, bruxos, gnomos como essa experimentação ocorre, daremos
alquimistas. É possível que, do título, também uma olhada na situação de Baudelaire, nosso
emanassem sentidos de escuridão noturna e protagonista.
satanismo provenientes da corruptela de
Kaspar, demônio da lenda de Fausto10. O protagonista Baudelaire, o gigante albatroz
Dotado de um estilo conciso e direto, de asas pesadas
Bertrand constrói uma visualidade pelas
escolhas de palavras evocadoras do universo da Charles Baudelaire, nascido em 9 de
cor, da luz e do espaço. Profundamente abril de 1821 e falecido aos 46 anos no último
influenciado pela pintura flamenga, o livro dia de agosto de 1867, dispensa apresentações.
acentua o caráter grotesco das composições, Sua vida cheia de sobressaltos e maldições
emulando em palavras a estética de Breughel e parece relacionar-se extensamente com sua
de Rembrandt11. Erigira uma atmosfera única, produção poética. E até por aí tiramos uma
noturna, onírica, plena de bruxaria, medida: Baudelaire lembra um romântico por
alquimistas e desviantes que se chocava com o sua acidentada trajetória. No entanto, o poeta
idílio romântico pastoral. se diferencia em muitos aspectos de seus
Mas não é apenas pela temática que contemporâneos e é sobre essas diferenças que
Bertrand se destaca: Gaspard de la Nuit abriga iremos nos debruçar.
o nascedouro da discussão e criação de formas Em conferência seminal em 1924 intitu-
que irão desabrochar com Baudelaire, lada Situação de Baudelaire, Paul Valéry (2007)
Rimbaud e Mallarmé, para ficar apenas em assevera: “Posso dizer então que se existem en-
três poetas batizados pela crítica como tre nossos poetas, poetas maiores e dotados de
malditos. Como um todo, o livro cultiva uma maior força que Baudelaire, absolutamente ne-
estrutura em abismo – livro dentro de um livro nhum é mais importante.” (p. 21) . E se per-
–, algo próprio da narrativa em prosa, mas gunta: “De onde vem essa importância singu-
utilizada como artifício na poesia. Ele “propõe lar?” (p. 21). Para além dos aspectos temáticos
uma experiência formal que implica um sopro e formais explorados pelo poeta que iremos dis-
diferente da linguagem” (PAIXÃO, 2014, p. cutir mais adiante, tentaremos responder o
47). Esse sopro é o mérito de ter criado um questionamento de Valéry demonstrando tal
gênero próprio, que negocia com a intensidade singularidade.
de sentidos ao explorar a brevidade. Na época em que Baudelaire começou a
Gaspard de la nuit será fonte de produzir, Victor Hugo reinava absoluto. Era
inspiração para Baudelaire e Mallarmé. Para o disciplinado, prolífico e gozava de boa saúde.
primeiro, serão referências as ideias oximóricas, Tanto assim, que mesmo sendo mais velho que
as imagens descontínuas e uma tensão pelo Baudelaire, morre quase vinte anos depois des-
controle rítmico e uso de formas fixas, como a te último. Desfrutando dessas características,
balada, associadas às formas mais flexíveis, Hugo “escreve cem ou duzentos mil ver-
como o poema em prosa. Para o segundo, a sos” (VALÉRY, 2007, p. 25), atingindo o ápice
introdução de pausas e espaços em branco que de sua potência como versificador. Era um prá-
emulam silêncio. tico.
Todavia, é importante ressaltar que, Intuindo a brevidade de sua biografia, e
apesar desse histórico das ligações entre poema buscando se diferenciar da figura mastodôntica
e prosa a partir do século XVIII, esses textos de Victor Hugo, Baudelaire alia sua prática
não podem ser relacionados com o poema em poética ao pensamento teórico: produz ensaios
prosa como o entendemos hoje. É Baudelaire o e artigos sobre sua arte e sobre outros aspectos
115
que relacioná-lo com a corrente realista. Afinal, e suas noções de criação. Poe era alguém do
a banalidade realista levava à negação do “novo mundo”, mundo esse muitas vezes
espírito. É de se imaginar seu profundo interpretado pelos franceses como rude e
desgosto quando o livro Les Fleurs du mal foi tacanho. Com concepções artísticas que
condenado judicialmente sob acusação de ser renovaram o olhar de Baudelaire, tal
realista. Para o poeta, o mérito da arte seria confluência foi determinante para a trajetória
gerar transformação e não emular uma cópia dos dois, de origens tão distintas.
das baixezas morais e estéticas da vida
mundana (FRIEDRICH, 1991). Duas figuras centrais se encontram: a
A obsessão pela técnica também não o importância da tradução na obra de Baudelaire
fazia, contudo, alinhar-se à corrente
Parnasiana. Ainda que tanto esta escola Só ó fato de Baudelaire ter sido
quanto o poeta fossem reativos à intensidade e influenciado por alguma leitura de fora de seu
ao exagero do romantismo em detrimento da país soa muito moderno e cosmopolita. O caso
ação refletida e racionalizada. Como bem é que sabia um outro idioma, ensinado pela
sintetiza Valéry (2007): “o romantismo (...) foi mãe e, quando lera as primeiras linhas de Poe a
aquilo a que o naturalismo ripostou e contra o que teve acesso, relata assim a experiência: “A
que se reuniu o Parnaso; foi, da mesma primeira vez que eu abri um livro dele, eu vi,
maneira, o que determinou a atitude particular com espanto e arrebatamento, não apenas
de Baudelaire” (p. 23). assuntos vislumbrados por mim, mas FRASES
De todo modo, ser parnasiano para pensadas por mim e escritas por ele vinte anos
Baudelaire significava prescindir da visão antes15” (BAUDELAIRE, 1973, p.362,
espiritual e centrada na alma para priorizar o tradução nossa).
objetivo e o impessoal. Como esclarece Erkkila As primeiras traduções francesas da
(1980), Baudelaire procura abrir e sugerir “a obra do poeta e prosador norte-americano
dimensão espiritual do mundo moderno e datam de 1845, realizadas por uma certa
inventar e manter uma maneira mais mística e Madame Isabelle Meunier. Aquelas ideias
poética de ver e conhecer a vida14” (p. 54, arrebatariam Baudelaire: foi tomado por um
tradução nossa). Essa concepção de arte ligada afã para que todos as conhecessem. Ele escreve
à alma e ao místico faz com que Baudelaire a Saint-Beuve: “É preciso, digo, eu desejo que
antecipe certas bases do movimento simbolista Edgar Poe, que não é grande coisa na América,
que surgiria vinte anos depois e que se torne um grande homem para a
comentaremos mais à frente. França16” (BAUDELAIRE, 1973, p. 343).
A situação de excepcionalidade em que O entusiasmo de Baudelaire rendeu
se encontra Baudelaire – distante do outros casos, no mínimo, curiosos, muitos deles
Romantismo, do Parnasianismo, do Realismo, contados com uma dose de humor e absurdo
do Naturalismo e antecipador do Simbolismo, por Ada Chiabrandi (1930), estudiosa da
mas ainda não lá – fazia com que ele se influência de Poe em Baudelaire:
afigurasse, segundo Eliot, como alguém “muito
adiante do ponto de vista de sua própria época, Admiração e surpresa transformaram-se
rapidamente no ímpeto de tornar Poe
embora tivesse muitíssimo a ver com ela.” (p. conhecido. A todos que encontrava, Baudelaire
212). Desse modo, seria difícil uma avaliação costumava perguntar: ´Você conhece Poe?’, e
“de seu valor e do exato lugar que ele então contava, de improviso, vividamente a
ocupa” (p. 216), o que não impedia, no história do Gato Preto. (...) A animação cresceu
entanto, o autor inglês de considerar a um ponto em que seu desejo era tornar Poe
conhecido em todo território francês, propondo-
Baudelaire como “o maior exemplar da poesia se à empreitada de traduzir perfeitamente os
moderna em qualquer idioma” (p. 216). trabalhos dele. (...) Se alguém por acaso
Outro ponto diferencial para configurar admitisse que não soubesse quem era Poe,
Baudelaire como o mais importante poeta Baudelaire se enraivecia - ora nunca ter ouvido
moderno foi seu contato com Edgar Allan Poe sobre Poe! Asselineau conta de uma visita que
117
inconteste: a curiosa consonância entre os dois ras para a história da literatura quanto essas
só foi possível pela tradução da desconhecida acima, marco de uma transição e uma nova
Meunier. A coincidência das ideias de ambos maneira de encarar poesia. Se Bertrand anteci-
evidencia o perfume de um tempo que se pou o verso flexível, Baudelaire o consagrou
embrenhava nas curvas das cidades, demonstra em sua prática e o consolidou para seus suces-
o espírito que flana solto e livre pelo mundo. A sores poéticos.
confluência de Baudelaire e de Poe é a Em seu célebre livro sobre poema em
tradução, que desempenha papel notável de prosa, Suzanne Bernard (1994) chama atenção
intercâmbio, o qual transforma o legado tanto para o fato de que o último volume de Baude-
de um quanto de outro. laire pouco tem a ver com a unidade caracterís-
O impacto da obra de Baudelaire, no tica de sua estética anterior. Faz sentido, se le-
entanto, não se resume à absorção das ideias de varmos em consideração que Flores do Mal é
Poe. Nutria também outras obsessões, sendo o composto apenas de sonetos alexandrinos –
poeta original e curioso que era. Propõe então ainda que represente renovação do modelo de
uma nova forma em seu derradeiro livro, versificação de Racine. O belo em Baudelaire
síntese das produções poéticas anteriores com residia até então no desenvolvimento de for-
aquelas ensaísticas. mas métricas perfeitas que remetiam à arte
clássica e a uma presente musicalidade e magia
Pequenos Poemas em Prosa, enfim o clímax reverberada pelo trabalho com a linguagem.
Na filosofia de composição baudelairia-
O prefácio de Pequenos poemas em prosa, na, importava pouco se não fosse um poeta
última obra escrita por Baudelaire, presta profícuo, que sua obra se resumisse a um conci-
homenagem à Aloysius Bertrand, o sombrio so volume. Não obstante tivesse se consumido
inventor de um novo gênero do qual falávamos em edições e mais edições revistas e ampliadas
algumas páginas antes. Morto jovem por ao longo dos anos, o bem maior era que atingis-
tuberculose, bem ao estilo dos românticos, o se a beleza como um produto da razão e do cál-
autor de Gaspard de La nuit não chegou a ver culo. O poeta tal qual “um dançarino que
seu paradigmático livro publicado. Já célebre partiu mil vezes os ossos em segredo, antes de
por Flores do Mal, Baudelaire (1995) escreve se apresentar em público” (BAUDELAIRE
então um prefácio endereçado ao romancista apud FRIEDRICH, 1991, p. 41).
francês Arsène Houssaye no qual revela: Em Pequeno Poemas em prosa, a
obsessão característica de Baudelaire reside já
Devo-lhe dizer uma breve confissão. Foi ao na hesitação da escolha de um título para a
compulsar, pela vigésima vez no mínimo [grifo
nosso], o famoso Gaspard de la Nuit, de
obra. Segundo seu tradutor no Brasil, Aurélio
Aloysius Bretrand (...) que me veio a ideia de Buarque de Holanda (1995), o poeta publicou
tentar algo semelhante, e de aplicar à certa vez uma série curta com os primeiros
observação da vida moderna e mais abstrata, o poemas em prosa, sob título de Poèmes
processo que ele aplicara à pintura da vida nocturnes. Logo após, lançou alguns outros
antiga, tão estranhamente pitoresco. (p. 277)
E mais ainda,
compilados como Petits poèmes en prose, depois
qual de nós, em seus dias de ambição, não mais dois poemas intitulados Le spleen de Paris
sonhou com o milagre de uma prosa (que fosse) e, finalmente, saíram os últimos, organizados
poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante sob o título Petits poèmes lycanthropes.
maleável e bastante rica em contrastes para se Quanto à criação, a mudança estética
adaptar aos movimentos líricos da alma, às
ondulações do devaneio, aos sobressaltos da
corporificada por Pequenos Poemas em prosa
consciência? É sobretudo da frequentação das viria de um lugar de mudança de realidade. Se-
grandes cidades, é do cruzamento de suas ria preciso encontrar ou inventar “uma nova
inúmeras relações que nasce este ideal obsessor. linguagem e uma nova forma para expressar os
(p. 277) temas do mundo moderno21” (ERKKILA,
1980, p. 56, tradução nossa). Assim, Baudelaire
Poucas linhas foram tão transformado- parece ter usado os recursos prosaísticos com o
119
Ele abriria caminho para a poesia de Rimbaud, Alguns dos seus conteúdos sobre o impacto da
Mallarmé e tantos outros. modernidade galvanizada (termo cunhado pelo
poeta estaduninense), continuarão vivos na
Considerações finais: um desfecho aberto, livre e produção literária do autor de The Waste land.
branco Os relógios de Dali ficariam bem em um quadro
com “prados pintados de vermelho, árvores
Poucas definições estanques resumem pintadas de azul” (BAUDELAIRE apud
Charles Baudelaire. Talvez a palavra que mais FRIEDRICH, p. 56), ao som da voz de
o sintetize seja: moderno. Admirador da rua e Rimbaud recitando seus poemas. Visionário e
da renovação, nele também convivia um independente, Baudelaire personificou a figura
profundo respeito pelas formas clássicas. Da do dândi soturno e genial no imaginário
arte romântica empresta a brevidade; entende moderno. Acima de tudo, também foi (e é) um
a poesia como arte mágica, e o poeta, como poeta incontornável cuja influência reverbera
uma espécie de mago. Concede roupagem e até os dias de hoje nas muitas produções
estilo diferenciados à poesia, inaugura a prosa literárias, seja de prosa, de poesia ou do poema
poética, faz a Europa conhecer e respeitar em prosa, zona cinzenta e de intersecção sobre
Edgar Allan Poe. a qual fizemos o esforço de seguir os rastros do
Sua aparente indefinição o constitui co- desenvolvimento neste artigo.
mo um ser entre, um flâneur moderno “em bus-
ca de aventura indo atrás de uma tira de papel Referências
abandonada aos caprichos do ven-
to” (BENJAMIN, 1989, p.39), um artista pro- BAUDELAIRE, Charles. Correspondance I.
fundamente entendedor de seu tempo e que Paris: Pléiade, 1973.
também marcou o seu tempo: um “exilado no _____________. As flores do mal. Rio de
chão, em meio à turba obscura”, Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
(BAUDELAIRE, 1985, p.111), um poeta “que _____________. Poesia e prosa. Rio de Janeiro:
enfrenta os vendavais e ri da seta no ar” (p. Nova Aguilar, 1995.
111). Mas para quais caminhos apontariam es- _____________. Meu coração desnudado. Belo
sa seta? Horizonte: Autêntica, 2009
No seu afã por situar as palavras BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um
organicamente ao impulso poético, é tido como lírico no auge do capitalismo – Obras Escolhidas
um antecipador dos experimentos simbolistas. III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
O impacto da poesia de Baudelaire faz dele o BERNARD, Suzanne. Le Poème en prose.
primeiro de uma linhagem. Explica Marcel De Baudelaire jusqu'à nos jours. Paris :
Raymond (1997) em seu livro De Baudelaire ao Librairie A - G. Nizet, 1994.
Surrealismo: “Uma primeira linhagem, a dos BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Notícia
artistas, iria de Baudelaire a Mallarmé, depois a sobre Baudelaire. In : BAUDELAIRE,
Valéry; uma outra, a dos videntes, de Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Baudelaire a Rimbaud, depois aos últimos Aguilar, 1995
aventureiros” (p. 11). Concorda Valéry (2007): CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São
“Nem Verlaine, nem Mallarmé, nem Rimbaud Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.
teriam sido o que foram sem a leitura de As CHIABRANDI, Ada P. The influence of Edgar
Flores do Mal na idade decisiva” (p. 29). Allan Poe on Charles Baudelaire. 1930. 83 f.
Baudelaire antevê igualmente “uma Dissertação (Mestrado) – Master of Arts,
arte surgida da fantasia criativa como: Boston University, Massachusetts, Boston,
surnaturalisme.” (apud FRIEDRICH, 1991, p. 1930. Disponível em: <https://core.ac.uk/
56). Para Eliot (1989), Baudelaire “antecipou download/pdf/142049312.pdf>. Acesso em: 26
muitos problemas, tanto no plano estético jul. 2020.
quanto no plano moral, aos quais ainda diz ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art, 1989.
respeito o destino da poesia moderna” (p. 209). ERKKILA, Betsy. Whitmann among the
121
French. New Jersey: Princeton University, langue en liberté. Disponível em: https://
1980 play.google.com/books/reader?
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica id=u4dTAAAAcAAJ&hl=pt&pg=GBS.PA9.
moderna. São Paulo: Duas cidades, 1991. Acesso em 27 jul. 2020.
JUNQUEIRA, Ivan. A arte de Baudelaire. In:
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio 5 Do original: Notre versification perd plus, si je
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 ne me trompe, qu'elle ne gagne par les rimes: elle
METLICA, Alessandro. L’estétique flamande perd beaucoup de variété, de facilité et
de Gaspard de la nuit. La Giroflée: Bulletin de d’harmonie. Souvent la rime qu’un poète va
l’association pour la mémoire d’Aloysius chercher bien loin, le réduite à allonger et à faire
Bertrand, Lille, France, v. , p.57-66, mar. languir son discours (FÉNELON, 1843, p. 219).
2010. Disponível em: <http:// A citação consta no Tome troisième de Oeuvres
marion.pecher.free.fr/Documents/ Complètes de Fénélon e é precedida por Les
LaGiroflee2.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2020. Aventures de Télémaque: Disponível em:
PAIXÃO, Fernando. Arte da pequena reflexão. https://play.google.com/books/reader?
Poema em prosa contemporâneo. São Paulo: id=X8ZIAQAAMAAJ&authuser=0&hl=pt_B
Iluminuras. 2014. R. Acesso em 25 jul. 2020
POE, Edgar Allan Poe. A filosofia da 6 Do original : Il y a des genres de poésie où
composição. Rio de Janeiro: 7 letras, 2011. non seulement les Latins ne nous ont point
________. Poetic principle. 1909. Disponível surpassés, mais qu'ils n'ont pas même connus:
em: https://www.bartleby.com/28/14.html. comme, par exemple, ces poèmes en prose que
Acesso em: 26 jul. 2020. nous appelons romans [...] In : BOILEAU-
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao DÉSPREAUX, Boileau. Lettre à Perrault.
surrealismo. São Paulo: EDUSP, 1997. 1823. p. 352. Disponível em : https://
VALERY, Paul. Variedades. São Paulo, play.google.com/books/reader?
Iluminuras, 2007. id=mnwTAAAAQAAJ&hl=pt_BR. Acesso
em 25 jul. 2020
7 Do original : C’est une sorte de poème, moitié
Originais/Notas descriptif, moitié dramatique . In :
CHATEAUBRIAND, François. Oeuvres
1 « Ce siècle avait deux ans » , poema de Victor complètes. 1801. p. 629. Disponível em :
Hgo que consta em Les Feuilles d’automne https://play.google.com/books/reader?
(1831). id=l0JNAAAAcAAJ&hl=pt_BR&pg=GBS.P
P1 . Acesso em 25 jul. 2020
2 Sobre as regras definidoras do verso
alexandrino clássico, o professor Rogério 8 Informações consultadas em: https://
Chociay (1974) especifica: “O verso www.theguardian.com/books/2011/jul/15/
alexandrino clássico toma por base reveries-solitary-walker-rousseau-review.
hemistíquios hexassílabos, mas a relação 6+6 Acesso em: 25 jul. 2020
deve neste caso dar invariavelmente doze
sílabas” (p.125). 9 Chociay (1974) esclarece que a balada
apresenta uma estrutura estrófica com três
3 Do original: Le romantisme, c’est (...) le oitavas e um quarteto. A estrutura métrica
libéralisme en littérature . In: HUGO, Victor. apresenta versos octossílabos.
Littérature et Philosophie mêlées. Disponível
em : http://www.quandletigrelit.fr/images/ 10 Do original: La critique a formulé plusieurs
Victor-Hugo-Litterature-et-Philosophie- hypothèses sur les origines de ce nom. La piste
melees.pdf. Acesso em 26 jul. 2020. considérée comme la plus digne de foi est celle qui
conduit à Kaspar, nom par lequel on désigne le
4 Do original : J’ai jeté le vers noble aux chiens diable dans la légende de Faust
noirs de la prose (...)/ Les écrivains ont mis la
122
13 Do original: la nature n’enseigne rien, (...) 19 Do original: the intoxication of the heart.
c’est elle aussi qui pousse l’homme à tuer son Disponível em: POE, Edgar Allan. Poetic
semblable, à le manger. principle. 1909. https://
www.bartleby.com/28/14.html. Acesso em 26
14 Do original: the spiritual dimension of the jul. 2020.
modern world and to invent and to maintain a
more mystic and ‘poetic’ way of seeing and 20 Do original: his reading of Poe did not change
knowing life his first original thoughts, it merely showed their
parallelism
15 Do original: La première fois que j’ai ouvert
un livre de lui, j’ai vu, avec épouvante et
21 Do original: a new language and new form in
ravissement, non seulement des sujets rêvés par
which to express the themes of the modern world.
moi, mais des PHRASES pensées par moi et
écrites par lui vingt ans auparavant 22 Do original: prose et poésie, liberté et rigueur,
anarchie destructrice et art organisateur. (…) sa
16 Do original: Il faut, c’est à dire, je désire que
contradiction interne, ses antinomies profondes,
Edgar Poe, qui n’est pas grand chose en
dangereuses – et fécondes; sa tension perpétuelle
Amérique, devienne un grand homme pour la
et son dynamisme.
France
123