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PÁGINAS DE UM MESMO LIVRO: O POEMA EM PROSA

E A ARTE DE BAUDELAIRE

Olivia Scarpari Bressan


oliviascarpari@gmail.com
Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mestra
em Letras, Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC-RS) e doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pa-
raná (UFPR) onde pesquisa relações entre literatura e imprensa.

Gustavo Silveira Ribeiro


Dossiê gutosr1@hotmail.com
Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É doutor em
Estudos Literários - Literatura Comparada pela mesma instituição.
Modernismos e modernidades na
literatura e nas artes

Organizadores:

Dra. Juliana Mantovani Resumo/Abstract


Palavras-chave/Keywords
Dr. Sidney Barbosa
O intento deste artigo é seguir o rastro do poema em prosa. Para isso, reali-
zamos um breve apanhado a partir do século XVII, evocando as primeiras
Dr. Rémy Lucas tentativas de Fénélon a Aloysius Bertrand, e, logo após, discorremos sobre o
fundador do gênero, Charles Baudelaire – o protagonista dessa história. De-
bruçamo-nos sobre Petites poèmes en prose, última obra do escritor francês
lançada em 1867, marco fundador para a modernidade literária e para a his-
tória da intersecção entre poesia e prosa. Analisamos igualmente a importân-
v. 31, n. 59, ago. 2022 cia da tradução para as influências estéticas em Baudelaire, seu contexto e
Brasília, DF seu legado para outros artistas que o sucederam e tiveram sua obra como
referência para experimentações literárias ainda mais ousadas.
ISSN 1982-9701
Baudelaire; Poema em prosa; Aloysius Bertrand; Tradução

The aim of the present article it is to follow the traces of prose poetry. In
order to do so, we have organized a brief collection evoking the first experi-
Fluxo da Submissão ments from the XVII century on, mentioning Fénélon, Aloysius Bertrand
and some others. Furthermore, we expatiate on the founder of the genre,
Submetido em: 25/02/2022 Charles Baudelaire – the protagonist of that story. We address the last mas-
terpiece of the French author, released in 1867, Petites poèmes en prose, a
Aprovado em: 22/08/2022 major milestone for the Literary Modernity and to the history of the inter-
section between poetry and prose. It is also analyzed the importance of the
translation to the aesthetic influences in Baudelaire, his context and the leg-
Distribuído sob acy he has left to other artists as a reference to even more audacious literary
experiments.
Baudelaire; Prose poetry; Aloysius Bertrand; Translation .
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Páginas de um mesmo livro: o poema em prosa e a arte de Baudelaire

Prólogo alexandrino clássico2, símbolo da cultura e


identidade francesas.
O século XIX foi uma época de O que Hugo apresentara, no entanto,
mudanças profundas. A revolução francesa não deixou de ser o verso alexandrino, ele
tinha acabado de completar uma década, a propunha apenas que o hemistíquio fosse
discussão sobre os últimos anos da monarquia e deslocado da sexta sílaba poética para a
da instauração da república assomavam. quarta, o que resultava em uma cadência
Também o sujeito desse período viu o diferente. Tal modificação gerou tanto
crescimento das cidades, das aglomerações alvoroço que a reação a ela foi chamada de
humanas, do surgimento de novas tecnologias, Revolta Hugoliana. A intensa vontade de
da eletricidade, do vapor, da ascensão do modificação levou Victor Hugo uma vez a
Capitalismo, da proliferação de fábricas. dizer: “O romantismo é o liberalismo na
Natural que, nesse contexto, a arte respondesse literatura3” (tradução nossa).
com novos movimentos e discutisse até mesmo Aos olhos do hoje, ainda que tal batalha
outras formas de expressão que dessem conta possa soar incompreensível, a situação dá
dessas modificações políticas, sociais e conta do conservadorismo e da sacralidade das
culturais. formas fixas de até então. Sobre o ocorrido,
Foram muitos os autores importantes Hugo compôs o poema Réponse à un acte
abrigados no período. Mas é de Victor Hugo d’accusation, publicado apenas mais tarde, em
que nos deteremos agora para chegarmos Les Contemplations (1856), com os versos que
muito em breve em Baudelaire. Nascido em marcavam a alteração provocadora: “Eu atirei
1802, quando o século “tinha dois anos”1, o os versos nobres aos cachorros pretos da prosa
autor representou um marco para a época. (...)/ Os escritores colocaram o idioma em
Prolífico artista, promovera renovações liberdade4” (tradução nossa).
importantes na poesia e na arte dramática, Se Hugo não foi o precursor das
ainda que a mão pesada do tempo o tenha discussões sobre as formas fixas e imutáveis
consagrado por sua produção em prosa, como dos versos, certamente essa pequena revolução
Les travailleurs de la Mer, Les Misérables e iria marcar os próximos passos do século XIX
Notre Dame de Paris que eternizou a catedral em termos de experimentalismo. Mas antes de
como principal ponto turístico de Paris. vermos o que ocorreu depois, retornemos
Pois Victor Hugo, o prosador, também alguns capítulos atrás.
protagonizara um paradigmático confronto por
sua produção para o teatro francês, em Primeiras páginas da história do poema em
episódio que ficou conhecido como a batalha de prosa
Hernani. À época, a estreia de Hernani, peça
teatral da lavra do escritor, prometia Para Fernando Paixão (2014), em
representar uma pequena revolução em termos estudo sobre o poema em prosa
de quebra canônica de tempo, lugar e ação. contemporâneo, o primeiro sinal de
Hugo contava com 27 anos e já fazia questionamento do modelo clássico de
parte da cena cultural parisiense como escritor composição poética se dá com a publicação em
publicado. Era fevereiro de 1830 e Hernani 1699 de Les Aventures de Télémaque de
começa a ser encenado na Comédie Française, o François de Fénélon. A motivação para a
mais importante teatro francês. No saguão de escrita do volume foi simples, porém nobre: o
entrada, os Jeunes-France, como eram escritor era preceptor – figura aliás muito
chamados os contestadores românticos da comum nessa época – de Luís, duque de
época, estavam em polvorosa: vestidos com Borgonha. A ideia foi mesclar trechos
seus gilets rouges e postura impertinente, narrativos a momentos líricos, visando facilitar
vaiavam os nobres de cabeleiras postiças de a compreensão do pequeno nobre – para quem
habits noirs que se apegavam às formas fixas Fénélon representou influência determinante –
clássicas, mais precisamente ao verso quando ouvia as peripécias de Ulisses. Fénélon
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foi responsável ainda por um tratado poético forte retomada de formas curtas, ainda que
no qual afirmava que a versificação perdia tenha havido uma recuperação pari passu de
muito mais do que ganhava com as rimas: formatos tradicionais como o idílio, a elegia, a
acabava carecendo muito em variedade e canção e a pastoral. Todavia, não eram
facilidade da harmonia5. exatamente recompostos à risca, uma vez que
Impressionado com a obra de Fénélon e foram ressignificados com mais hibridismo e
com a ascensão de outros opositores dos liberdade quanto às opções estéticas.
ditames da tradição do verso, como Thomas É das canções e baladas9 de Chansons
Corneille, o escritor satírico e poeta Nicolas madécasses (1787) de Évariste de Parny que os
Boileau discute em tom de achaque, em carta a românticos emprestam a brevidade e os
Charles Perrault, a respeito das imprudências parágrafos curtos de suas experimentações
de se aviltar os modelos clássicos como aqueles aludindo a formas clássicas, como em Ballades,
preconizados pelo poeta e dramaturgo Jean legendes et chants populares de l’Angleterre e
Racine. É nessa correspondência que o termo d’Écosse (1825) de François Loève-Veimars e
“poema em prosa6” aparece pela primeira vez. Balades Allemandes (1827), de Ferdinand
Quase vinte anos mais tarde, a mesma Flocon (PAIXÃO, 2014). À época, buscar um
expressão seria usada pelo abade Jean Baptiste sentido de autoria na reapropriação de modelos
em Refléxions critiques sur la poésie et sur la imutáveis durante séculos era como escrever
peinture (1719) no qual escrevera que “os bons uma nova história sobre um palimpsesto, uma
poemas sem versos, são como os versos sem vez que
poesia” (BAPTISTE apud PAIXÃO, p. 40,
2014). cada autor procurava imprimir uma marca pes-
soal na recriação das formas tradicionais. Por
Nesse contexto, a prosa se afigura como consequência, houve um notável alargamento
uma alternativa para flexibilizar a liberdade de do conceito de ritmo poético, levando muitos
composição – uma espécie de reação às formas textos a se desvincularem da métrica, fazendo
rígidas da tradição clássica. Assim, as as frases ganharem naturalidade e se aproxima-
experimentações do pensador Jean Jacques rem do fluxo da prosa. Pode-se afirmar que a
primeira metade do século XIX foi pródiga no
Rousseau ainda no século XVII são tomadas surgimento de alternativas para a crise do verso
como referência, caso de suas Rêveries du (PAIXÃO, 2014, p. 43)
promeneur solitaire (1782). Trata-se de uma
publicação bastante experimental composta de Na esteira de efervescentes modifica-
pequenos excertos de cunho pessoal: um ções, a palavra poema passa a ganhar novo
devanear como postura física diante do mundo. significado, o qual perdura até hoje: uma peça
Aqui, prosa e poesia estão simbioticamente curta e autônoma. Se antes o termo costumava
mescladas, o livro escrito em cartas de baralho ser associado aos longos textos épicos, com os
enquanto refletia e caminhava sozinho em valores românticos começará a contemplar
meio às paisagens naturais. A obra influenciara também produções em versos menores, ou
imediatamente as produções da prosa de petites epopées, como denominou Vitor Hugo, o
naturalidade de Jean Marmontel, Jean primeiro personagem dessa história. Em meio
Grainville, e um pouco mais adiante, do célebre às re-designações das noções de verso, a poesia
François Chateaubriand em Atala (1801) e Les é escrita em novas páginas.
Natchez (1826). Este último, inclusive, discute
a forma apresentada em Atala no prefácio: “É Um ponto de virada chamado Aloysius
uma espécie de poema, metade descritivo, Bertrand
metade dramático”7. Diz-se, contudo, que o
impacto de Rêveries tocou Baudelaire, tendo a Fazia um ano que Aloysius Bertrand
partir dela influenciado sua célebre teoria sobre havia morrido e, no entanto, sua obra
o flâneur, o caminhante da cidade8. permaneceria viva por muitos séculos.
Com a invasão romântica no século Fernando Paixão (2014) define a produção
XIX, a crise do verso só recrudesce. Há uma
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como “um livro deflagrador de uma escrita responsável pela consolidação do termo, já que
repleta de novas possibilidades” (p. 43). antes dele “era utilizado principalmente para
Tratava-se de Gaspard de la nuit, espécie de referir-se aos textos de prosa que apresenta-
bíblia a ser consultada no mínimo vinte vezes, vam inclinação poética nas descrições e narra-
para citar Baudelaire, pelos modernistas dos tivas” (PAIXÃO, 2014, p. 41). Para entender
anos que viriam. Fadas, bruxos, gnomos como essa experimentação ocorre, daremos
alquimistas. É possível que, do título, também uma olhada na situação de Baudelaire, nosso
emanassem sentidos de escuridão noturna e protagonista.
satanismo provenientes da corruptela de
Kaspar, demônio da lenda de Fausto10. O protagonista Baudelaire, o gigante albatroz
Dotado de um estilo conciso e direto, de asas pesadas
Bertrand constrói uma visualidade pelas
escolhas de palavras evocadoras do universo da Charles Baudelaire, nascido em 9 de
cor, da luz e do espaço. Profundamente abril de 1821 e falecido aos 46 anos no último
influenciado pela pintura flamenga, o livro dia de agosto de 1867, dispensa apresentações.
acentua o caráter grotesco das composições, Sua vida cheia de sobressaltos e maldições
emulando em palavras a estética de Breughel e parece relacionar-se extensamente com sua
de Rembrandt11. Erigira uma atmosfera única, produção poética. E até por aí tiramos uma
noturna, onírica, plena de bruxaria, medida: Baudelaire lembra um romântico por
alquimistas e desviantes que se chocava com o sua acidentada trajetória. No entanto, o poeta
idílio romântico pastoral. se diferencia em muitos aspectos de seus
Mas não é apenas pela temática que contemporâneos e é sobre essas diferenças que
Bertrand se destaca: Gaspard de la Nuit abriga iremos nos debruçar.
o nascedouro da discussão e criação de formas Em conferência seminal em 1924 intitu-
que irão desabrochar com Baudelaire, lada Situação de Baudelaire, Paul Valéry (2007)
Rimbaud e Mallarmé, para ficar apenas em assevera: “Posso dizer então que se existem en-
três poetas batizados pela crítica como tre nossos poetas, poetas maiores e dotados de
malditos. Como um todo, o livro cultiva uma maior força que Baudelaire, absolutamente ne-
estrutura em abismo – livro dentro de um livro nhum é mais importante.” (p. 21) . E se per-
–, algo próprio da narrativa em prosa, mas gunta: “De onde vem essa importância singu-
utilizada como artifício na poesia. Ele “propõe lar?” (p. 21). Para além dos aspectos temáticos
uma experiência formal que implica um sopro e formais explorados pelo poeta que iremos dis-
diferente da linguagem” (PAIXÃO, 2014, p. cutir mais adiante, tentaremos responder o
47). Esse sopro é o mérito de ter criado um questionamento de Valéry demonstrando tal
gênero próprio, que negocia com a intensidade singularidade.
de sentidos ao explorar a brevidade. Na época em que Baudelaire começou a
Gaspard de la nuit será fonte de produzir, Victor Hugo reinava absoluto. Era
inspiração para Baudelaire e Mallarmé. Para o disciplinado, prolífico e gozava de boa saúde.
primeiro, serão referências as ideias oximóricas, Tanto assim, que mesmo sendo mais velho que
as imagens descontínuas e uma tensão pelo Baudelaire, morre quase vinte anos depois des-
controle rítmico e uso de formas fixas, como a te último. Desfrutando dessas características,
balada, associadas às formas mais flexíveis, Hugo “escreve cem ou duzentos mil ver-
como o poema em prosa. Para o segundo, a sos” (VALÉRY, 2007, p. 25), atingindo o ápice
introdução de pausas e espaços em branco que de sua potência como versificador. Era um prá-
emulam silêncio. tico.
Todavia, é importante ressaltar que, Intuindo a brevidade de sua biografia, e
apesar desse histórico das ligações entre poema buscando se diferenciar da figura mastodôntica
e prosa a partir do século XVIII, esses textos de Victor Hugo, Baudelaire alia sua prática
não podem ser relacionados com o poema em poética ao pensamento teórico: produz ensaios
prosa como o entendemos hoje. É Baudelaire o e artigos sobre sua arte e sobre outros aspectos
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da vida moderna e da cena cultural parisiense. plena força. (p. 22)


Tal movimento em direção a uma reflexão
mais ampla, que extrapola a prática, em muito A partir da postura negacionista
acelera seu amadurecimento artístico, ao evidenciada no excerto acima, é possível
mesmo tempo em que o distancia de uma compreender o porquê T. S Eliot, em ensaio
concepção de criação ligada aos preceitos sobre o autor, classifica-o como o “primeiro
românticos. antirromântico na poesia” (p. 214). Em seu
Victor Hugo, por sua vez, costumava, projeto de prefácio de As Flores do Mal,
como um bom romântico, datar deliberada- Baudelaire escreve: “Poetas ilustres dividiram
mente suas produções para que pudessem ser entre si, durante muito tempo, as províncias
relacionadas à sua biografia. Baudelaire, ao mais floridas do campo poético. Farei,
contrário, não fazia marcações temporais: a portanto, algo diferente” (BAUDELAIRE
construção de suas poesias era intencionalmen- apud VALÉRY, p. 22). Mas em que
te impessoal. Mesmo que teça um eu que per- constituiria esta diferença?
passa Flores do Mal, por exemplo, entende-o, É importante dizer que Baudelaire se
paradoxalmente, como forma de neutralizar os distancia do ideal romântico por sua obsessão
sentimentos pessoais. Certa vez escrevera: pela perfeição. Para os românticos tudo o que
“Lágrimas? Sim, mas aquelas ‘que não vêm do vinha diretamente da alma era digno de valor.
coração”(BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, Tanto assim que Valéry (2007) critica as
1991, p. 37). O poeta é um fingidor, afinal. produções da época visto que, “a obra
Nas palavras da especialista em romântica, em geral, suporta muito mal uma
Whitman, Besty Erkkila (1980), a importância leitura lenta e sobrecarregada com as
de Baudelaire residiria na construção de uma resistências de um leitor difícil e refinado.
poesia que retratasse “tanto o registro da Baudelaire era esse leitor” (p. 23). Ele adorava
experiência individual quanto o espelho da caçar as debilidades da escrita romântica,
experiência humana coletiva12” (p. 53, ainda que, para Eliot (1989) houvesse “em suas
tradução nossa). Esse é um dos primeiros sinais afirmações uma boa parte de resíduo
de despersonalização na lírica moderna: poesia romântico” (p. 212), pois Baudelaire jamais
e pessoa empírica passariam a não mais serem conseguiu afastar-se do que chama de
entendidas como uma unidade, algo tão oposto sinceridade fundamental.
ao centramento do eu do poeta no Romantismo À medida em que a vontade de
(FRIEDRICH, 1991). perfeição de Baudelaire crescia, maior também
Ao presenciar a franca ascensão da ficava seu horror pela natureza, pelo instinto.
modernidade, do capitalismo, da metrópole Desta, afinal, poderiam vir os imperativos da
Paris, o poeta percebe que precisa abordar sobrevivência do corpo, o retrocesso, as
outros temas, explorar outros ritmos em seus brutalidades, “a natureza não ensina nada (...)
versos, mais afinados à realidade que vê. Diz ela que faz com que o homem mate seu
Valéry (2007): semelhante e o coma13” (BAUDELAIRE apud
JUNQUEIRA,1985, p. 55, tradução nossa). A
No momento em que atinge a idade adulta, o virtude residiria no avanço representado pelo
romantismo está no apogeu: uma deslumbrante artificial. O ideal baudelairiano de paisagem
geração tem a posse do império das Letras:
Lamartine, Hugo, Musset, Vigny são os mestres
era uma metrópole sem plantas, representante
do momento. Coloquemo-nos na situação de um da supremacia da técnica. Em última
jovem que atinge, em 1840, a idade de escrever. instância, vitória do humano e do civilizado
(...) esses homens que lhe parecem preencher sobre a animalidade e o instinto.
todo o espaço da celebridade proibindo-lhe, um, Ao repelir a natureza, Eliot classifica
o mundo das formas; outro, o dos sentimentos;
outro o pitoresco; outro, a profundidade. Trata-
Baudelaire (1989) como “nem naturalista, nem
se de distinguir-se a todo custo de um conjunto humanista” (p. 212). Ele nutria verdadeiro
de grandes poetas excepcionalmente reunidos “asco pelo real” (FRIEDRICH, 1991, p. 53).
por algum acaso na mesma época, todos em E, portanto, nada irritava mais Baudelaire do
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que relacioná-lo com a corrente realista. Afinal, e suas noções de criação. Poe era alguém do
a banalidade realista levava à negação do “novo mundo”, mundo esse muitas vezes
espírito. É de se imaginar seu profundo interpretado pelos franceses como rude e
desgosto quando o livro Les Fleurs du mal foi tacanho. Com concepções artísticas que
condenado judicialmente sob acusação de ser renovaram o olhar de Baudelaire, tal
realista. Para o poeta, o mérito da arte seria confluência foi determinante para a trajetória
gerar transformação e não emular uma cópia dos dois, de origens tão distintas.
das baixezas morais e estéticas da vida
mundana (FRIEDRICH, 1991). Duas figuras centrais se encontram: a
A obsessão pela técnica também não o importância da tradução na obra de Baudelaire
fazia, contudo, alinhar-se à corrente
Parnasiana. Ainda que tanto esta escola Só ó fato de Baudelaire ter sido
quanto o poeta fossem reativos à intensidade e influenciado por alguma leitura de fora de seu
ao exagero do romantismo em detrimento da país soa muito moderno e cosmopolita. O caso
ação refletida e racionalizada. Como bem é que sabia um outro idioma, ensinado pela
sintetiza Valéry (2007): “o romantismo (...) foi mãe e, quando lera as primeiras linhas de Poe a
aquilo a que o naturalismo ripostou e contra o que teve acesso, relata assim a experiência: “A
que se reuniu o Parnaso; foi, da mesma primeira vez que eu abri um livro dele, eu vi,
maneira, o que determinou a atitude particular com espanto e arrebatamento, não apenas
de Baudelaire” (p. 23). assuntos vislumbrados por mim, mas FRASES
De todo modo, ser parnasiano para pensadas por mim e escritas por ele vinte anos
Baudelaire significava prescindir da visão antes15” (BAUDELAIRE, 1973, p.362,
espiritual e centrada na alma para priorizar o tradução nossa).
objetivo e o impessoal. Como esclarece Erkkila As primeiras traduções francesas da
(1980), Baudelaire procura abrir e sugerir “a obra do poeta e prosador norte-americano
dimensão espiritual do mundo moderno e datam de 1845, realizadas por uma certa
inventar e manter uma maneira mais mística e Madame Isabelle Meunier. Aquelas ideias
poética de ver e conhecer a vida14” (p. 54, arrebatariam Baudelaire: foi tomado por um
tradução nossa). Essa concepção de arte ligada afã para que todos as conhecessem. Ele escreve
à alma e ao místico faz com que Baudelaire a Saint-Beuve: “É preciso, digo, eu desejo que
antecipe certas bases do movimento simbolista Edgar Poe, que não é grande coisa na América,
que surgiria vinte anos depois e que se torne um grande homem para a
comentaremos mais à frente. França16” (BAUDELAIRE, 1973, p. 343).
A situação de excepcionalidade em que O entusiasmo de Baudelaire rendeu
se encontra Baudelaire – distante do outros casos, no mínimo, curiosos, muitos deles
Romantismo, do Parnasianismo, do Realismo, contados com uma dose de humor e absurdo
do Naturalismo e antecipador do Simbolismo, por Ada Chiabrandi (1930), estudiosa da
mas ainda não lá – fazia com que ele se influência de Poe em Baudelaire:
afigurasse, segundo Eliot, como alguém “muito
adiante do ponto de vista de sua própria época, Admiração e surpresa transformaram-se
rapidamente no ímpeto de tornar Poe
embora tivesse muitíssimo a ver com ela.” (p. conhecido. A todos que encontrava, Baudelaire
212). Desse modo, seria difícil uma avaliação costumava perguntar: ´Você conhece Poe?’, e
“de seu valor e do exato lugar que ele então contava, de improviso, vividamente a
ocupa” (p. 216), o que não impedia, no história do Gato Preto. (...) A animação cresceu
entanto, o autor inglês de considerar a um ponto em que seu desejo era tornar Poe
conhecido em todo território francês, propondo-
Baudelaire como “o maior exemplar da poesia se à empreitada de traduzir perfeitamente os
moderna em qualquer idioma” (p. 216). trabalhos dele. (...) Se alguém por acaso
Outro ponto diferencial para configurar admitisse que não soubesse quem era Poe,
Baudelaire como o mais importante poeta Baudelaire se enraivecia - ora nunca ter ouvido
moderno foi seu contato com Edgar Allan Poe sobre Poe! Asselineau conta de uma visita que

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fizera juntamente com Baudelaire a um tivesse se dedicado a introduzi-lo na literatura


americano hospedado em um hotel no europeia.” (p. 27).
Boulevard des Capucines: o hóspede havia
conhecido Poe pessoalmente. Ele estava se
Baudelaire, por seu turno, extrai os
vestindo, mas Baudelaire não queria esperar: princípios que o afastam da primazia da forma
invadiu o quarto e o sabatinou. Seu interlocutor preconizada pelos Parnasianos e o aproximam
não era exatamente favorável a Poe: ele teria de ideais ligados à união da lógica com a
uma mente bizarra e uma conversação imaginação, do misticismo com o cálculo, da
desconexa. Enquanto descia as escadas e saía do
hotel, Baudelaire colocava o chapéu na cabeça e
poesia com precisão matemática – imbricações
dizia violentamente ao americano: “Você não duais próprias de um olhar moderno.
passa de um yankee!” (...) Baudelaire passou Entre os elementos inovadores
horas num bar inglês na Rue de Tivoli, falando preconizados por Poe (2011) estariam: 1) a
com todos que sabiam inglês17. (p. 11-12, inversão da ordem dos atos poéticos: a forma
tradução nossa)
seria a origem do poema e o resultado seria seu
Embebido desse contato, Baudelaire significado; 2) a importância da brevidade de
empreendera uma tradução de duas obras que um poema; 3) a criação de uma impressão de
seriam indispensáveis para a sua própria beleza; 4) a presença do vago como elemento
estética: Filosofia da Composição (1846) e essencial; 5) a valorização de qualidades
Princípio Poético (1850). Sua faina de traduzir pessoais dispensadas ao poema como paciência,
de maneira mais coerente a obra de Poe fez trabalho, concentração e disposição sem
com que seu trabalho ganhasse menção preconceitos.
elogiosa na imemorial Encyclopedia Faria parte da estética racionalista de
Britannica18. Pudera, devotou vinte anos dos Poe promover igualmente o encontro da poesia
quarenta e seis de sua breve existência para com a reflexão acerca da prática. Era preciso
traduzir, compreender e re-criar a obra do separar a lírica do coração, afastar-se do que
dândi norte-americano. classificava como “a embriaguez do coração19”
O impacto foi tamanho na obra do ou como bem se apropria Baudelaire (apud
francês que Valéry (1991) relata que FRIEDRICH, 1991): “A capacidade de sentir
Baudelaire chegou a transcrever por diversas do coração não convém ao trabalho
vezes ideias do poeta de Baltimore como se poético” (p. 37). Tamanha originalidade de
fossem suas. Ao realizar a tradução de Poe, ele ideias enfeitiça o espírito curioso do criador de
não teria inserido certos excertos do original O Albatroz, seu corpo inteiro feito de obsessões.
para aproveitar seus conteúdos no prefácio que Muitos, contudo não acham exatamente
escrevera para a obra. O poeta simbolista que Poe tenha influenciado Baudelaire ao
francês, porém, ameniza: “o plágio seria ponto de considerar sua poética mero plágio do
contestável se seu próprio autor não o tivesse primeiro. Seria, inclusive uma injustiça legar
acusado (...): ‘É permitido, algumas vezes, tamanho crédito para o norte-americano em
presumo, citar-se a si mesmo para evitar detrimento do talento do francês. É a posição
parafrasear-se’.” (VALÉRY, 1991, p. 28). tanto de Ivan Junqueira (1985), tradutor de
O curioso é que à época, Poe era um As Flores do mal, “Baudelaire só toma
escritor menor em seu país de origem. Sua conhecimento da obra de Poe por volta de
morte foi inglória, aos quarenta anos, em uma 1846, numa época em que (...) sua concepção
sarjeta qualquer dos Estados Unidos. O de poesia já se achava nitidamente
fascínio de Baudelaire pelo escritor norte- delineada” (p. 53); quanto de Chiabrandi
americano e sua subsequente prática (1930): "suas leituras de Poe não modificaram
tradutória reverteu para Poe uma fama e seus primeiros pensamentos originais, apenas
status que até então não havia atingido sequer mostraram seu paralelismo19” (p. 16, tradução
em seu país. Diz Valéry (1991) sobre o assunto: nossa).
“Esse grande homem estaria hoje Discutir a ordem dos fatos tem suma
completamente esquecido se Baudelaire não importância para a fortuna crítica dos autores,
sem dúvida, mas a despeito disso, o resultado é
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inconteste: a curiosa consonância entre os dois ras para a história da literatura quanto essas
só foi possível pela tradução da desconhecida acima, marco de uma transição e uma nova
Meunier. A coincidência das ideias de ambos maneira de encarar poesia. Se Bertrand anteci-
evidencia o perfume de um tempo que se pou o verso flexível, Baudelaire o consagrou
embrenhava nas curvas das cidades, demonstra em sua prática e o consolidou para seus suces-
o espírito que flana solto e livre pelo mundo. A sores poéticos.
confluência de Baudelaire e de Poe é a Em seu célebre livro sobre poema em
tradução, que desempenha papel notável de prosa, Suzanne Bernard (1994) chama atenção
intercâmbio, o qual transforma o legado tanto para o fato de que o último volume de Baude-
de um quanto de outro. laire pouco tem a ver com a unidade caracterís-
O impacto da obra de Baudelaire, no tica de sua estética anterior. Faz sentido, se le-
entanto, não se resume à absorção das ideias de varmos em consideração que Flores do Mal é
Poe. Nutria também outras obsessões, sendo o composto apenas de sonetos alexandrinos –
poeta original e curioso que era. Propõe então ainda que represente renovação do modelo de
uma nova forma em seu derradeiro livro, versificação de Racine. O belo em Baudelaire
síntese das produções poéticas anteriores com residia até então no desenvolvimento de for-
aquelas ensaísticas. mas métricas perfeitas que remetiam à arte
clássica e a uma presente musicalidade e magia
Pequenos Poemas em Prosa, enfim o clímax reverberada pelo trabalho com a linguagem.
Na filosofia de composição baudelairia-
O prefácio de Pequenos poemas em prosa, na, importava pouco se não fosse um poeta
última obra escrita por Baudelaire, presta profícuo, que sua obra se resumisse a um conci-
homenagem à Aloysius Bertrand, o sombrio so volume. Não obstante tivesse se consumido
inventor de um novo gênero do qual falávamos em edições e mais edições revistas e ampliadas
algumas páginas antes. Morto jovem por ao longo dos anos, o bem maior era que atingis-
tuberculose, bem ao estilo dos românticos, o se a beleza como um produto da razão e do cál-
autor de Gaspard de La nuit não chegou a ver culo. O poeta tal qual “um dançarino que
seu paradigmático livro publicado. Já célebre partiu mil vezes os ossos em segredo, antes de
por Flores do Mal, Baudelaire (1995) escreve se apresentar em público” (BAUDELAIRE
então um prefácio endereçado ao romancista apud FRIEDRICH, 1991, p. 41).
francês Arsène Houssaye no qual revela: Em Pequeno Poemas em prosa, a
obsessão característica de Baudelaire reside já
Devo-lhe dizer uma breve confissão. Foi ao na hesitação da escolha de um título para a
compulsar, pela vigésima vez no mínimo [grifo
nosso], o famoso Gaspard de la Nuit, de
obra. Segundo seu tradutor no Brasil, Aurélio
Aloysius Bretrand (...) que me veio a ideia de Buarque de Holanda (1995), o poeta publicou
tentar algo semelhante, e de aplicar à certa vez uma série curta com os primeiros
observação da vida moderna e mais abstrata, o poemas em prosa, sob título de Poèmes
processo que ele aplicara à pintura da vida nocturnes. Logo após, lançou alguns outros
antiga, tão estranhamente pitoresco. (p. 277)
E mais ainda,
compilados como Petits poèmes en prose, depois
qual de nós, em seus dias de ambição, não mais dois poemas intitulados Le spleen de Paris
sonhou com o milagre de uma prosa (que fosse) e, finalmente, saíram os últimos, organizados
poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante sob o título Petits poèmes lycanthropes.
maleável e bastante rica em contrastes para se Quanto à criação, a mudança estética
adaptar aos movimentos líricos da alma, às
ondulações do devaneio, aos sobressaltos da
corporificada por Pequenos Poemas em prosa
consciência? É sobretudo da frequentação das viria de um lugar de mudança de realidade. Se-
grandes cidades, é do cruzamento de suas ria preciso encontrar ou inventar “uma nova
inúmeras relações que nasce este ideal obsessor. linguagem e uma nova forma para expressar os
(p. 277) temas do mundo moderno21” (ERKKILA,
1980, p. 56, tradução nossa). Assim, Baudelaire
Poucas linhas foram tão transformado- parece ter usado os recursos prosaísticos com o
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intuito de traduzir em palavras a vida excelente perfume comprado no melhor


atribulada que emergia em Paris. perfumista da cidade. (...) / – Ah, miserável,
cão! se eu te houvesse oferecido um embrulho de
Segundo o entendimento de Walter excremento decerto o cheirarias com delícia e
Benjamin, que devotou uma série de ensaios talvez o tivesses devorado.
críticos enaltecendo o impacto da obra de Bau-
delaire, este livro teria sido inspirado pelo cho- Um hemisfério numa cabeleira
que e o contato com as massas urbanas. A mul-
Deixa-me respirar longamente, longamente, o
tidão se imbricaria completamente no processo cheiro dos teus cabelos, mergulhar neles todo o
criativo do poeta, a um ponto em que já estava meu rosto, como um homem sedento na água de
impregnada no corpo dele, constituindo organi- uma fonte, e agitá-los com a mão como um
camente sua visão do mundo. Retratá-la a par- lenço perfumado, para sacudir recordações pelo
tir de um narrador estilhaçado seria uma forma ar.(...) Deixa-me morder longamente as tuas
negras e pesadas tranças. Quando me ponho a
de restituir o devido valor para essa secreta mordiscar os teus cabelos elásticos e rebeldes,
constelação, a ser apreendida por meio da parece-me que estou comendo recordações.
“multidão fantasma das palavras, dos frag-
mentos, dos inícios de versos com que o poeta, A sopa e as nuvens
nas ruas abandonadas, trava o combate pela
A louca da minha bem-amada me dava de
prosa poética.” (BENJAMIN, 1989, p. 113) jantar, e pela janela aberta da sala de refeições
As potencialidades da prosa passam a eu contemplava as movediças arquiteturas que
ficar a serviço da poesia. Tanto assim, que Deus faz com as nuvens, as maravilhosas
Baudelaire (2009) dissera uma vez: “Sê sempre construções do impalpável. (...)/ De súbito senti
poeta, mesmo em prosa” (p. 144). E ele foi poe- um violento murro nas costas e ouvi uma voz
rouca e encantadora (...) que me dizia: Trate de
ta: foi aquele que expressou em seu último li- tomar a sua sopa, seu maluco, mercador de
vro a fragmentação da personalidade de um eu nuvens!
-lírico cujos sentidos são complexos na moder-
nidade expressa pelas ruas das cidades. A obra
nasce da união de contrários: “prosa e poesia, A poesia é entendida aqui como arte
liberdade e rigor, anarquia destrutiva e arte or- abstrata, como linhas de um movimento livre,
ganizativa (...) a contradição interna, suas an- um arabesco, “o mais espiritual de todos os de-
tinomias profundas, perigosas – e fecundas; sua senhos” (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH,
tensão perpétua e seu dinamis- 1991, p. 57). Favorece a descrição imagética, a
mo ” (BERNARD, 1994, p. 434, tradução
22 reflexão. Ao desafiar os limites da palavra, ele
nossa). também busca por uma nova forma de viver.
A experimentação de linguagem feita Como bem resume Eliot (1989), a invenção da
por Baudelaire está intrinsicamente colada à linguagem explorada por Baudelaire acontece
forma. A dualidade que sempre perpassou o em um momento em que, particularmente, a
que escrevia, agora é expressa por meio do poesia francesa estava ávida para encontrar
manejo entre dois impulsos de expressão outras maneiras de expressão. Tal ousadia ren-
aparentemente tão distintos. Tudo isso para de a ele o status de grande marco divisório na
evidenciar uma vida interior tortuosa. Os poesia.
pequenos poemas em prosa são sinônimo de Curiosamente, assim como Bertrand,
liberdade de pensamento, no qual o poeta fonte de inspiração, Baudelaire morre antes de
realiza as aproximações de vocábulos ver a publicação do livro que lhe ocupou mais
improváveis. Os contrastes são surpreendentes, de dez anos de incansável trabalho. Dois anos
como podemos constatar em alguns excertos da depois de sua morte em 1867, Petites poèmes en
obra: prose foi publicado e as edições seguintes, a
partir de 1870, são chamadas Spleen de Paris.
O cão e o frasco Essa obra seria o paradigma fundador da
modernidade literária. Seus sucessores a
– Meu belo cão (...), vem cá, respirar um
usaram como referência para ousar ainda mais.
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Ele abriria caminho para a poesia de Rimbaud, Alguns dos seus conteúdos sobre o impacto da
Mallarmé e tantos outros. modernidade galvanizada (termo cunhado pelo
poeta estaduninense), continuarão vivos na
Considerações finais: um desfecho aberto, livre e produção literária do autor de The Waste land.
branco Os relógios de Dali ficariam bem em um quadro
com “prados pintados de vermelho, árvores
Poucas definições estanques resumem pintadas de azul” (BAUDELAIRE apud
Charles Baudelaire. Talvez a palavra que mais FRIEDRICH, p. 56), ao som da voz de
o sintetize seja: moderno. Admirador da rua e Rimbaud recitando seus poemas. Visionário e
da renovação, nele também convivia um independente, Baudelaire personificou a figura
profundo respeito pelas formas clássicas. Da do dândi soturno e genial no imaginário
arte romântica empresta a brevidade; entende moderno. Acima de tudo, também foi (e é) um
a poesia como arte mágica, e o poeta, como poeta incontornável cuja influência reverbera
uma espécie de mago. Concede roupagem e até os dias de hoje nas muitas produções
estilo diferenciados à poesia, inaugura a prosa literárias, seja de prosa, de poesia ou do poema
poética, faz a Europa conhecer e respeitar em prosa, zona cinzenta e de intersecção sobre
Edgar Allan Poe. a qual fizemos o esforço de seguir os rastros do
Sua aparente indefinição o constitui co- desenvolvimento neste artigo.
mo um ser entre, um flâneur moderno “em bus-
ca de aventura indo atrás de uma tira de papel Referências
abandonada aos caprichos do ven-
to” (BENJAMIN, 1989, p.39), um artista pro- BAUDELAIRE, Charles. Correspondance I.
fundamente entendedor de seu tempo e que Paris: Pléiade, 1973.
também marcou o seu tempo: um “exilado no _____________. As flores do mal. Rio de
chão, em meio à turba obscura”, Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
(BAUDELAIRE, 1985, p.111), um poeta “que _____________. Poesia e prosa. Rio de Janeiro:
enfrenta os vendavais e ri da seta no ar” (p. Nova Aguilar, 1995.
111). Mas para quais caminhos apontariam es- _____________. Meu coração desnudado. Belo
sa seta? Horizonte: Autêntica, 2009
No seu afã por situar as palavras BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um
organicamente ao impulso poético, é tido como lírico no auge do capitalismo – Obras Escolhidas
um antecipador dos experimentos simbolistas. III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
O impacto da poesia de Baudelaire faz dele o BERNARD, Suzanne. Le Poème en prose.
primeiro de uma linhagem. Explica Marcel De Baudelaire jusqu'à nos jours. Paris :
Raymond (1997) em seu livro De Baudelaire ao Librairie A - G. Nizet, 1994.
Surrealismo: “Uma primeira linhagem, a dos BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Notícia
artistas, iria de Baudelaire a Mallarmé, depois a sobre Baudelaire. In : BAUDELAIRE,
Valéry; uma outra, a dos videntes, de Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Baudelaire a Rimbaud, depois aos últimos Aguilar, 1995
aventureiros” (p. 11). Concorda Valéry (2007): CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São
“Nem Verlaine, nem Mallarmé, nem Rimbaud Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.
teriam sido o que foram sem a leitura de As CHIABRANDI, Ada P. The influence of Edgar
Flores do Mal na idade decisiva” (p. 29). Allan Poe on Charles Baudelaire. 1930. 83 f.
Baudelaire antevê igualmente “uma Dissertação (Mestrado) – Master of Arts,
arte surgida da fantasia criativa como: Boston University, Massachusetts, Boston,
surnaturalisme.” (apud FRIEDRICH, 1991, p. 1930. Disponível em: <https://core.ac.uk/
56). Para Eliot (1989), Baudelaire “antecipou download/pdf/142049312.pdf>. Acesso em: 26
muitos problemas, tanto no plano estético jul. 2020.
quanto no plano moral, aos quais ainda diz ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art, 1989.
respeito o destino da poesia moderna” (p. 209). ERKKILA, Betsy. Whitmann among the
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JUNQUEIRA, Ivan. A arte de Baudelaire. In:
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio 5 Do original: Notre versification perd plus, si je
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 ne me trompe, qu'elle ne gagne par les rimes: elle
METLICA, Alessandro. L’estétique flamande perd beaucoup de variété, de facilité et
de Gaspard de la nuit. La Giroflée: Bulletin de d’harmonie. Souvent la rime qu’un poète va
l’association pour la mémoire d’Aloysius chercher bien loin, le réduite à allonger et à faire
Bertrand, Lille, France, v. , p.57-66, mar. languir son discours (FÉNELON, 1843, p. 219).
2010. Disponível em: <http:// A citação consta no Tome troisième de Oeuvres
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POE, Edgar Allan Poe. A filosofia da 6 Do original : Il y a des genres de poésie où
composição. Rio de Janeiro: 7 letras, 2011. non seulement les Latins ne nous ont point
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em: https://www.bartleby.com/28/14.html. comme, par exemple, ces poèmes en prose que
Acesso em: 26 jul. 2020. nous appelons romans [...] In : BOILEAU-
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao DÉSPREAUX, Boileau. Lettre à Perrault.
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VALERY, Paul. Variedades. São Paulo, play.google.com/books/reader?
Iluminuras, 2007. id=mnwTAAAAQAAJ&hl=pt_BR. Acesso
em 25 jul. 2020
7 Do original : C’est une sorte de poème, moitié
Originais/Notas descriptif, moitié dramatique . In :
CHATEAUBRIAND, François. Oeuvres
1 « Ce siècle avait deux ans » , poema de Victor complètes. 1801. p. 629. Disponível em :
Hgo que consta em Les Feuilles d’automne https://play.google.com/books/reader?
(1831). id=l0JNAAAAcAAJ&hl=pt_BR&pg=GBS.P
P1 . Acesso em 25 jul. 2020
2 Sobre as regras definidoras do verso
alexandrino clássico, o professor Rogério 8 Informações consultadas em: https://
Chociay (1974) especifica: “O verso www.theguardian.com/books/2011/jul/15/
alexandrino clássico toma por base reveries-solitary-walker-rousseau-review.
hemistíquios hexassílabos, mas a relação 6+6 Acesso em: 25 jul. 2020
deve neste caso dar invariavelmente doze
sílabas” (p.125). 9 Chociay (1974) esclarece que a balada
apresenta uma estrutura estrófica com três
3 Do original: Le romantisme, c’est (...) le oitavas e um quarteto. A estrutura métrica
libéralisme en littérature . In: HUGO, Victor. apresenta versos octossílabos.
Littérature et Philosophie mêlées. Disponível
em : http://www.quandletigrelit.fr/images/ 10 Do original: La critique a formulé plusieurs
Victor-Hugo-Litterature-et-Philosophie- hypothèses sur les origines de ce nom. La piste
melees.pdf. Acesso em 26 jul. 2020. considérée comme la plus digne de foi est celle qui
conduit à Kaspar, nom par lequel on désigne le
4 Do original : J’ai jeté le vers noble aux chiens diable dans la légende de Faust
noirs de la prose (...)/ Les écrivains ont mis la
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11 Informações do parágrafo retiradas do the host: ‘C´est ne qu’un yankee!’ (…)


artigo: L’estétique flamande de Gaspard de la Baudelaire spent hours in an English tavern in
nuit de Alessandro Metlica (2010). Disponível the Rue de Rivoli, talking to anyone who knew
em: http://marion.pecher.free.fr/Documents/ English
LaGiroflee2.pdf. Acesso em: 26 jul. 2020. 18 One of the most brilliant and accurate
12 Do original: both a record of individual translations in literature. In:
experience and a mirror of the collective ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA apud
experience of mankind. CHIABRANDI, 1930, p. 12.

13 Do original: la nature n’enseigne rien, (...) 19 Do original: the intoxication of the heart.
c’est elle aussi qui pousse l’homme à tuer son Disponível em: POE, Edgar Allan. Poetic
semblable, à le manger. principle. 1909. https://
www.bartleby.com/28/14.html. Acesso em 26
14 Do original: the spiritual dimension of the jul. 2020.
modern world and to invent and to maintain a
more mystic and ‘poetic’ way of seeing and 20 Do original: his reading of Poe did not change
knowing life his first original thoughts, it merely showed their
parallelism
15 Do original: La première fois que j’ai ouvert
un livre de lui, j’ai vu, avec épouvante et
21 Do original: a new language and new form in
ravissement, non seulement des sujets rêvés par
which to express the themes of the modern world.
moi, mais des PHRASES pensées par moi et
écrites par lui vingt ans auparavant 22 Do original: prose et poésie, liberté et rigueur,
anarchie destructrice et art organisateur. (…) sa
16 Do original: Il faut, c’est à dire, je désire que
contradiction interne, ses antinomies profondes,
Edgar Poe, qui n’est pas grand chose en
dangereuses – et fécondes; sa tension perpétuelle
Amérique, devienne un grand homme pour la
et son dynamisme.
France

17 Do original: His first admiration and


surprise turned quickly into a fiery enthusiasm to
make Poe known to others. Everyone he met was
asked ‘Do you know Poe?’ and then would come
the story of the Black Cat, vividly in his
improvisation. (…) The enthusiasm increased
into a desire to make Poe known to all France, COMO CITAR
setting himself the immense task of a perfect
translation of Poe’s complete works. (…) If BRESSAN; RIBEIRO. Páginas de um mesmo
anyone he questioned admitted ignorance of Poe, livro: o poema em prosa e a arte de Baudelaire.
Baudelaire would flare up in anger – never to Revista Cerrados, 31(59), p. 112-123. 2022.
have read or heard Poe! Asselineau tells of a visit
https://doi.org/10.26512/cerrados.v31i59.41999
he made with Baudelaire to an American staying
in a hotel in the boulevard of the Capucines; the
American had known Poe personally. He was in
the process of dressing, but Baudelaire would not
wait. He intruded and asked him questions. The
host was not favorable to Poe, saying he had a
bizarre mind and a conversation that was not
consecutive. Walking downstairs and out,
Baudelaire jammed on his hat, saying violently of

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