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2.

Vozes Interrompidas e Subterrâneas:


Palavras e ciladas, vazio e fim de mundo (1968-1972)

Tude a paranóia os assaxinatos têm me persg


Timamente não sei razão não devo deixar pis
Ercito principmente a insegurança a total fal
Tias polítiquis mínimis no mais nu sem sol
Emos partir viver no exilis
(Luis Olavo Fontes, “Fug 42”)

2.1. Dos trópicos à margem... passagem à experiência

A árdua tarefa de estabelecer o divisor de águas entre a tropicália e a poesia


subseqüente se revela até na dificuldade de nomeá-la, e quem o fez ressalvou que se tratava
mais de um nome, na falta de algo melhor, do que de uma classificação: “poesia pós-
tropicalista”, para Heloisa Buarque de Hollanda; “nova poesia” para Armando Freitas F°;
“marginália” ou “pós-vanguardas marginais”, para Affonso Romano de Sant’Anna. Este,
entre os primeiros críticos dessa transição, a partir de 1968 veria sobrevir, a uma poética
tropical e solar, “uma música e uma literatura underground, mais mórbida, esotérica,
penumbrista e decadentista, onde não faltam os orientalismos hippies”, efetuando uma
apologia da “curtição do momento” e do “lado sujo e sórdido da vida” como modo de se opor
ao sistema e se diferenciar da limpeza característica da bossa nova1. As opiniões de
Sant’Anna acerca desta “lixeratura”, como ele a chamou, recebidas como desabonadoras ou
pouco sensíveis ao fenômeno em questão, acarretou inúmeras reações por parte de poetas,
leitores simpáticos e críticos mais afins com sua linguagem, que passaram então a procurar
compreender e legitimar aquela nova forma de fazer poesia. Ao longo da década de 1970, os
jornais alternativos, como Opinião, Movimento, Gam etc., e mesmo a grande imprensa,
veicularam entrevistas, depoimentos, artigos e matérias diversas, de Cacaso, Silviano
Santiago, Bernardo Vilhena, Ana Cristina César, Eudoro Augusto, Leila Míccolis, entre
outros tantos, que, como Hollanda e Messeder Pereira, trabalharam “no sentido de demonstrar
como essa poesia, desmentindo o senso comum, foi extremamente atenta às crises político-
existenciais da história de seu tempo, e ainda como se empenhou, em verso e prosa, em
redefinir a maneira de pensar e viver a poesia”2.
Naquele quadro, contudo, sob o jugo da censura política e das contradições e respostas
polêmicas à emergência da indústria cultural, as transformações do processo cultural não se
davam de maneira imediata, tampouco linear. Armando Freitas F° vê, naquele momento em
que as vanguardas se desmontavam, articulando-se com a música tropicalista e o cinema
2

novo, o surgimento da “nova poesia” mediante a atuação de poetas que, ao participar da


discussão, transformaram-se e, como “mutantes em transe e em trânsito”, realizaram a
transição do tropicalismo para a poesia marginal, ou melhor, prepararam o terreno para esta à
medida que abriam os jogos formais à experiência. Se o “eixo drummond-cabral” que
referenciava as vanguardas já começara, com os tropicalistas, a ser mudado para o eixo da
“lição de 22” dos primeiros modernistas – especialmente a obra oswaldiana que, junto com
Luis Aranha, trazia para o texto escrito as técnicas cinematográficas do corte e montagem,
além da rapidez do poema-minuto e do poema-piada –, agora se retomaria ademais a lição de
outros modernistas, como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, e
ainda João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, e, sobretudo, Manuel Bandeira 3. Paulo
Leminski sintetizaria, muitos anos mais tarde: “isso de querer/ser exatamente aquilo/que a
gente é/ainda vai/nos levar além”4...
Três conjuntos de questões se desdobram neste ponto, merecendo atenção. Em primeiro
lugar, a (re)tomada da experiência como matéria de poesia. A modernidade, diz Martin Jay5,
estabeleceu uma diferenciação entre forma e conteúdo e produziu uma espécie de fetiche da
forma auto-suficiente como lugar privilegiado da significação e do valor da arte.
Acompanhando este movimento, o próprio discurso crítico centrou-se nas questões formais,
de modo que a história da estética modernista (no mundo europeu/norte-americano) foi
freqüentemente escrita como o triunfo da forma sobre o conteúdo, ou o tema ou a experiência.
Problematizando esta configuração, Jay discute a existência do amorfismo e do disforme
como contra-tendência moderna – com base nos trabalhos de Georges Bataille, Rimbaud,
fotógrafos surrealistas e na música atonal, que apresentam algo que não é comumente
formalizável no âmbito da tradição ocidental – e defende o modernismo como um campo de
tensões entre os impulsos formais, que têm como parâmetro “o olho do espírito”, e os
impulsos amórficos ou disformes, cuja referência é o corpo realmente existente, perecível e
marcado pela experiência do tempo, da deformação e da dor, que não é representável. Além
disto, segundo os estudos de Peter Bürger, as vanguardas européias de início do século XX,
em contraposição ao formalismo modernista, voltaram-se ativamente para a experiência, em
sua dimensão existencial e política. Deste modo, uma arte que afirma a experiência encontra-
se perfeitamente dentro do conjunto de problemas da modernidade, tanto quanto da estética
modernista. No caso do Brasil, há distinções a serem sublinhadas. Em virtude de nossa
história pós-colonial, como já observado, o modernismo brasileiro não se mostrou, ao
contrário do europeu, adepto do estrito formalismo ou da arte-pela-arte, mas, em busca da
face nacional, pensou com vigor a relação entre arte e experiência histórica. Inversamente,
3

foram nossas vanguardas estéticas dos anos 1950-60 que, em nome da atualização das artes
para acompanhar o processo de modernização do país, tornaram-se mais propriamente
esteticistas, isto é, promotoras de um desenvolvimento da linguagem artística como um setor
mais isolado de outros setores da vida. Assim sendo, um movimento de reaproximação da
experiência significa, no Brasil, estabelecer laços com modernismo local, especialmente em
sua primeira geração, e com as vanguardas européias nas quais nossos modernistas beberam.
Entretanto, uma preocupação generalizada com a experiência teve lugar a partir da
segunda metade do século XX, revelando-se uma questão de época ou Stimmung –
compreendido como uma “voz” ou “sensibilidade cultural comum”6 –, correlacionada aos
efeitos da fugacidade moderna. Os poetas brasileiros tê-lo-iam sentido e partido em busca de
referências que os permitissem elaborar poeticamente – com variadíssimos níveis de
qualidade – o que viviam, encontrando-as especialmente em Manuel Bandeira e seus
“alumbramentos”, ou seja, nas pequenas iluminações dos fatos cotidianos que os tornavam
imantados de carga poética e sentido vital.
Um segundo ponto se desdobra das reflexões de Antônio Cândido sobre o modernismo
brasileiro. Este movimento teria significado um novo, e particularmente forte, momento da
dialética universal-local que marca nossa cultura, pois ao realizar uma pesquisa lírica,
temática e formal, e indagar sobre os destinos humanos, sobretudo no Brasil, retomaram
temas que haviam até então ficado no ar, mas num plano diverso, de onde deriva seu teor de
ruptura: reconheceram a ambigüidade fundante da cultura brasileira, sua herança “latina-
européia” ao mesmo tempo que “mestiça-tropical”, derivada de culturas ameríndias e
africanas, e ao fazê-lo, moveram camadas profundas do inconsciente coletivo e pessoal e
culminaram por criar uma consciência literária liberta de recalques históricos, sociais e
étnicos. As tradições populares que antes eram vistas como “deficiência” da cultura local,
passaram a ser valorizadas e adquiriram estado de literatura7. Assim sendo, pode-se indagar se
a possibilidade de um desrecalque promovido pela literatura não estaria, sutil ou
obscuramente, compreendida no bojo da lição que os poetas dos anos 1970 aprendiam com os
modernistas? E neste caso, o que havia a desrecalcar naquele novo momento?
Em terceiro lugar, trata-se de discutir os poetas da transição à poesia marginal, a “linha
média”, conforme propõe Armando8, para quem Torquato Neto, Waly Salomão (que por
vezes assinava Sailormoon, o navegante da lua) e Chacal seriam os mais representativos,
junto com a revista Navilouca organizada pelos dois primeiros. Chacal, porém, embora tenha
feito algum poema concreto e participado da revista, está entre os iniciadores da “geração
mimeógrafo” e os mais atuantes poetas marginais de meados dos anos 1970, de cuja
4

linguagem é um dos principais representantes. Menos conhecido no Rio de Janeiro no início


daquela década, o curitibano Paulo Leminski, no entanto, aproxima-se da linha média por sua
afinidade com os concretistas de São Paulo, com os músicos tropicalistas e, sobretudo, por
seu modo particular de ver a poesia, optando por uma via transversal “entre a precisão da
forma e a descompressão do verso, a consciência do dizer e a paixão da palavra”, que o
conduziu a uma espécie de liberdade de linguagem atenta às exigências da construção formal,
tanto quanto às contingências do vivido, permitindo-lhe contaminações diversas e um caráter
expressional marcado pelo humor irreverente e coloquial, de feição oswaldiana 9, conforme a
tendência da época. Deste modo, embora o poeta não se considerasse marginal e fizesse
restrições à falta de rigor dessa poesia, havendo até mesmo conflitado com Cacaso em uma
mesa-redonda sobre literatura10, seu comportamento era todavia caracteristicamente “à
margem” e “contra o sistema”, e suas declarações comportavam os problemas comuns de sua
geração – ele mesmo se afirmava pertencente à “geração 68” –, como se vê:

Já fui marxista. Mas acho que tudo está amarradinho demais na teoria marxista.
Hoje acho a ideologia nociva à poesia. Ela é apenas um dos instrumentos para
entender a realidade. A poesia é algo que deve obedecer apenas à sua sensibilidade e
inteligência […] eu não agüento mais pessoas que têm um estoque enorme de
certezas. Eu quero é a incerteza. […] A boa poesia nunca se impõe num primeiro
momento. Ela tem que se impor depois. A poesia é a surpresa, é o antidiscurso.[…]
Não vejo consistência na poesia marginal. Você pode ser contra a poesia concreta,
mas pelo menos ela tem o mérito de ser clara. 11

Leminski, que por essa época escrevia em guardanapos de bar e qualquer retalho de
papel as notas para seu primeiro livro Catatau (1975), só encontraria contudo ampla
ressonância como poeta a partir de 1980, quando publicou uma reunião de seus poemas
escritos até então12, tornando-se uma das tônicas do meio intelectual, com seus poemas,
traduções, resenhas, programas televisivos. Assim, a melhor imagem constelar daquele
momento parece ser a figura controversa, angustiada e fértil de Torquato Neto.

Torquato Neto et al e tal

A vida breve deste poeta, como anotou José Castello, serve de “síntese da grandeza,
mas também dos abismos, que definem a cultura alternativa e rebelde dos anos 60 e 70” 13.
Nascido no Piauí, viveu em Salvador, onde integrou o chamado grupo baiano, e depois no Rio
de Janeiro; se auto-exilou em 1968-69 (quando do decreto do AI-5, estava a bordo de um
cargueiro, indo para Londres e Paris, com a ajuda de Helio Oiticica), sofrendo, na volta,
diversas internações em sanatórios por depressão crônica e excesso de álcool e drogas. Um
5

dos principais poetas-letristas do tropicalismo, afastou-se após dolorosa desavença com


Caetano Veloso. Sua coluna “Geléia Geral”, no jornal Última Hora (RJ), era considerada
underground por seu tom polêmico e iconoclasta. Na verdade, com veemente desejo de
chegar ao “osso das coisas”, criticava com língua ferina a ditadura – tanto a de Estado quanto
a da classe média, que dizia odiar, a indústria fonográfica e seus festivais “inautênticos”, o
conformismo e a arte engajada de modo ingênuo. Sua experiência parecia se alternar entre um
entusiasmo vanguardista e contracultural, por um lado, e uma realidade triste e vazia, por
outro: o “poeta da ruptura”, como gostava de se definir, era também um poeta despedaçado 14.
Em diversos poemas e canções, Torquato trazia à tona um sentimento de silenciamento
e incomunicabilidade, que aliado ao recurso quase constante à figura da ironia, gera um efeito
simultaneamente de denúncia e pungência, como se vê no poema “literato cantabile”15, no
qual o teor marcadamente melódico sugerido pelo título destoa por completo do conteúdo
tematizado:

agora não se fala mais


toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado todo movimento
[...]
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

Começando por afirmar a linguagem como uma armadilha no tempo presente, o texto
continua exemplificando, com ironia de teor político e lingüístico, como isto se procede: se
todo gesto pode ser final, fatal, e se toda palavra é um gesto, resta não falar, não mover, não
mudar. Qualquer possibilidade melódica é sustada por um staccato. Os pássaros, canoros
signos de liberdade, anunciam do precipício (na outra versão se lê: “os pássaros sempre
cantam/nos hospícios”) a derrota das tensões, das crises e dos cismas – no duplo sentido – de
outros tempos, quando o cantar possuía (outro) sentido. Eram tempos certamente difíceis, pois
6

“toda palavra envolve o precipício”, diz mais um verso, porém eram tensões e cisões oriundas
da vida em movimento, eram gesto e palavra, agora imobilizados em uma cilada. Os versos
que iniciam a segunda estrofe indicam ambiguamente tanto que os derrotados devam
agradecer aos vencedores e que não se fale disto, quanto que a gratidão não é endereçada (o
verso não rima, não tem ressonância interna) e não se deve falar com os vencedores. A
retomada dos versos, no final, sublinha com sarcasmo a relação entre derrota, palavra de
gratidão e silêncio. O poema, circular, se fecha como inicia: com a impossibilidade de dizer,
característica de uma condição traumática e melancólica.
Torquato foi um poeta a quem o sentido de um trauma não era estranho, e costumava
associá-lo a seu nascimento a fórceps e à difícil conjugação de um mundo paterno kardecista
com um mundo materno católico, ao que se soma, em certa medida, na sua percepção, sua
migração para os centros urbanos-culturais do país e da Europa, e a lide com o mundo de
todos, vicejante e cão. Mas, neste poema, a incomunicabilidade traumática ultrapassa a
dimensão pessoal, pois a referência político-militar se explicita no signo da guerra e, portanto,
a derrota é coletiva e histórica. Trata-se do âmbito do trauma histórico caracterizado por La
Capra, que, conjuntamente ou para além das condições pessoais e estruturais do humano,
produz cisões específicas em experiências sociais e, conseqüentemente, produz vítimas 16
cujas formas testemunhais apresentam um jogo de luz e sombras, necessidades de falar e
simultaneamente calar, de grande complexidade. As sociedades modernas, continua o autor,
não possuem processos sociais e/ou rituais eficazes para elaboração de um trauma mediante o
luto coletivo; as perdas históricas, como qualquer perda, geram fantasmas ou vazios, que
exigem ser nomeados e especificados para que as feridas sanem. Nesse processo, ou na
ausência dele, as formas de expressar costumam ser confusas e imprecisas, os termos vagos,
os gêneros híbridos, os excessos e as hipérboles adquirem forte apelo, uma vez que significam
uma recusa das normas, sentidas como especialmente restritivas. Seria, possivelmente, mais
uma indistinção característica da reação traumática, visto que não se distingue a regra ética,
legítima e flexível, fundante de qualquer forma de vida em comum, sem a qual o humano se
atrofia e cai numa desorientação anômica, dos limites normativos injustos, que impingem uma
normalização em nome da exploração e de uma falsa conciliação, calando, prendendo ou
matando os transgressores como bodes expiatórios no altar da ordem autoritária. É
interessante notar que Torquato retirou, na segunda versão do poema, os versos sobre a guerra
e o precipício, rearranjando-os de modo mais lapidar e mais concentrado na questão dos
limites: “está vetado qualquer movimento”. Talvez os tenha considerado hiperbólicos ou
excessivamente irônicos ou ainda pouco passíveis de remodelagem poética, mas o fato é que
7

os calou e, se acentuou a violência contida na impossibilidade de dizer, vigente nos hospícios


e na “república do fundo”, retirou as alusões aos seus porquês e seus abismos. Com isso, o
sujeito lírico, também ele, cai na cilada das palavras...
Uma sensibilidade semelhante, mesclando ironia e pungência se encontra na letra da
música “Marginalia II”17, com Gilberto Gil:

eu, brasileiro, confesso


minha culpa, meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu, brasileiro, confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão:

aqui é o fim do mundo


aqui é o fim do mundo
ou lá
[...]
aqui meu pânico e glória
aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história
começa na lua cheia
e termina antes do fim [...]

No fim do mundo, aqui ou lá (o poema também faz referência ao terceiro mundo), reina
a aflição da vida sem a abundância de suas fontes nutritivas (o pão seco), o desespero e a
incomunicabilidade (segredo) acerca de sonhar uma outra situação, a culpa dos degredados,
cuja condição inativa na pátria mergulha o poeta em melancolia e solidão, ironicamente em
contraste com a pujança dos trópicos (o texto faz referências a cascatas, palmeiras, araçás,
juritis etc.). O pânico e glória (in)confessáveis do brasileiro se abriga num núcleo de
experiência espacial-temporal eivada de dor e beleza, pois que fortemente marcada pelo signo
do fim: o lugar é o “fim do mundo”, expressão que também significa algo reprovável, que não
tem cabimento; e o tempo é uma história inconclusa...

2.2. O “vazio cultural” e a palavra subterrânea

A percepção melancólica de uma história brasileira que terminava inacabada possuía


ampla ressonância social. O período logo após o AI-5 foi caracterizado à época como um
momento de “vazio cultural” e “falta de ar”. A questão foi nomeada e discutida em artigos de
Zuenir Ventura publicados na revista Visão, em julho de 1971 e agosto de 1973, como um
8

diagnóstico retrospectivo do estado da cultura brasileira naqueles anos, provocando impacto


no meio cultural. O balanço era realizado em contraposição à grande criatividade artística dos
decênios anteriores e oferecia

uma perspectiva sombria: a quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento


da temática polêmica e da controvérsia na cultura, a evasão de nossos melhores
cérebros, o êxodo de artistas, o expurgo nas universidades, a queda de venda dos
jornais, livros e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos
valores estéticos, a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo
fácil. [...] Sem germes e sem herança, sem promessas e sem caminhos, sem busca e
sem questionamento crítico, sem o fermento da inquietação e sem a livre disposição
criadora, o que seria da cultura brasileira na década de 1970? 18

O jornalista considerava que a crise da cultura não advinha apenas da censura política,
mas também das próprias contradições, acima expostas, de uma cultura híbrida e em
transição, para as quais os artistas não encontravam saídas e respostas definidas. Transferir a
responsabilidade daquela cultura “anódina e insossa” somente para a censura estatal
denunciava uma certa infantilização e arrefecimento crítico da intelligentsia nacional, que
encobria seu “aviltamento qualitativo” e “descenso estético”, derivados de sua perplexidade e,
quem sabe, de seu próprio movimento de introjeção repressiva e autocensura. Traduzindo as
discussões, os artigos caracterizavam a atmosfera cultural da época como “perplexa diante de
perguntas”, “desencorajada pela censura”, “impotente diante do AI-5”, “dilacerada por
dentro” e “pressionada por fora”. A arte de “fisionomia polimórfica, incrivelmente
camaleônica” era criticada em todas as suas formas, o que demonstra a confusão de valores
que imperava no Estado e na sociedade, não só entre os artistas, como entre seus críticos e
entre o público receptor em geral:

Se se apresenta eufórica, conformada, concessionária ou aderente, falando uma


linguagem vulgar, inofensiva, e pensando como uma retardada mental, ainda assim a
arte é acusada: ou de maus modos ou de baixo nível. Se se mostra descabelada,
marginal, distante e alheia, fugindo subterraneamente dos caminhos conhecidos e
sonhando com paraísos artificiais, é olhada como a perdição dos bons costumes. Se
finalmente assume um ar mais sério, crítico e resistente, não submisso, é censurada
como portadora do mal e da destruição. 19

Parecia não haver saída e novos tratados teóricos se faziam necessários para dar conta
daquela “inexistente estética do silêncio e do medo”, que se apresentava como sintoma das
dificuldades de expressão, da emergência da censura interna ao lado da externa, da opção pelo
silêncio em alguns casos. O próprio “vazio” era uma metáfora para tentar descrever o quadro
cultural daqueles anos, cujo sentido se revela pelo fato de as correntes críticas dominantes no
período anterior, de imensa politização da cultura (1964-68), haverem perdido em boa parte a
9

possibilidade de influir diretamente sobre seu antigo público, marginalizando-se na nova


pauta cultural.
Tratava-se, principalmente, da vertente estético-política de cunho nacional-popular – de
matriz romântica e modernista, valorizando e mesmo idealizando “a nação” e “o povo” cujas
tradições buscava resgatar – que não suportava os golpes dos novos tempos modernos,
conservadores e autoritários, e para qual a censura, as prisões e exílios, ao lado da crescente
passividade política do público, significaram uma estocada praticamente fatal. Essa produção
cultural engajada, uma vez fracassada em seus intentos revolucionários e impedida de chegar
aos setores populares, acabou por ter de integrar-se aos circuitos do sistema cultural burguês
(teatro, cinema, disco, TV) e a ser consumida por um público já “convertido” de intelectuais e
estudantes de classe média20.
Sofria-se a desfiguração das utopias emancipadoras, realizada pelo contra-ataque
ideológico do regime militar, que recorria tanto à espionagem, à polícia política e à censura
como à propaganda estatal, utilizando os meios de comunicação de massa para veicular
mensagens “saneadoras” anti-comunistas ou “pedagógicas”, visando a educar a população
moralmente dentro do universo de concepções que a Assessoria Especial de Relações
Públicas (AERP, instalada em 1969) considerava civilizatório21. Mas para tal desfiguração
utópica contribuía também o refluxo da ação política contestatória em todo o mundo após
1968, acompanhado de revisões no pensamento crítico, sobretudo no que concerne às leituras
de mundo marxistas, e suas derivações no campo intelectual.
Afinavam-se com esta revisão crítica os princípios gerais das vanguardas, especialmente
o concretismo e o movimento tropicalista. O grande equívoco do esforço político da
vanguarda, diz Hollanda, consistia em ter caído na armadilha desenvolvimentista, acreditando
que o subdesenvolvimento nacional seria apenas uma etapa em fase de superação para um
patamar desenvolvido, cujo modelo de modernização eram as economias capitalistas centrais,
embora o movimento tivesse o mérito de haver discutido a modernidade e ampliado o debate
cultural nos anos 1950-60. Outro erro residiria na onipotência da linguagem, em que se supõe
que a palavra é de capaz de dizer fielmente o real e transformá-lo, o que seria um equívoco
das vanguardas: “Essa crença no poder e na onipotência da palavra, quando levada a
extremos, termina por revelar-se em impotência, provocando a chamada ‘crise das
vanguardas’, que promove violentas cisões e revisões em muitos de seus integrantes” 22.
Assim, o período sofria o abalo decorrente tanto da retração da vertente popular-
nacionalista, já mencionado, quanto da vertente oposta, dos concretistas-tropicalistas, que se
via, ademais, atingida pela prisão de Gil e Caetano, o silenciamento de outros companheiros
10

como Tom Zé, a ruptura de Torquato com o tropicalismo, bem como por sérias críticas, como
a de Schwarz, que os considerava ambíguos e por demais moldáveis às ingerências da
indústria cultural, em nome da modernidade, confundindo democratização com massificação
e conferindo ao seu verbo um poder demasiado: um dos problemas da atitude tropicalista
consistia em não perceber que “os elementos de uma alegoria não são transfigurados
artisticamente: persistem na sua materialidade documental, são como que escolhos da história
real, que á a sua profundidade”23.
Como se pode constatar, o debate sobre o vazio dizia respeito a um inventário de perdas
e danos relativo ao passado recente. Àqueles que viam um esvaziamento da cena cultural se
contrapunham os defensores da vitalidade e heterogeneidade do campo literário num novo
momento, sobretudo com o florescimento das tendências pós-tropicalistas24 e marginais, que
se colocavam, em graus diversos, mais ou menos próximas das vanguardas, do modernismo,
da contracultura e da questão nacional, mas todas efetuando uma revalorização da
discursividade, ao lado da canção.

Surge o verbo “underground”

Na linha tropicalista e contracultural, os pós-tropicalistas25 buscavam aprofundar a


atualização da linguagem e a relacionavam a uma opção existencial, de modo que a
descontinuidade e o mundo fragmentado, característicos da modernidade, marcavam
visceralmente sua estética e sua experiência de vida. Além da estirpe poética escolhida pelos
concretistas, passava-se a incorporar os poetas beatnicks norte-americanos e autores como
McLuhan, Marcuse, Norman Mailer. Uma “imprensa alternativa” surgia – Pasquim,
Bondinho, Flor-do-Mal – guardando um tom underground. A coluna jornalística de Torquato
louvava tais publicações e procurava enfatizar o significado prefixal (sub, sob) daqueles
qualificativos que entravam em circulação, num tempo em que a palavra necessária havia que
ser subjacente, pois não se podia protestar em voz alta sobre o chão:

Pois é: a palavra subterrânea debaixo da pele do uniforme de colégio que me


vestem, apareceu primeiro no pasquim, num Pasquim do ano passado, lançada às
feras e aos olhares tortos por Hélio Oiticica, o tal. A palavra subterrânea na seção
Underground, de Maciel. Simplifico e explico que subterrânea deve significar
underground, só que traduzido para o brasileiro curtido de nossos dias, do qual se
fala tanto por aí. 26

A referência a Luis Carlos Maciel não era fortuita. Mobilizando sua formação marxista,
existencialista e contracultural, ele cumpria um papel de divulgador de idéias e líder
11

geracional em sua página do Pasquim. À preocupação com o “aqui e agora”, com a


“revolução” do corpo e do comportamento, e o decorrente deboche contra os “caretas”,
somavam-se as drogas, a psicanálise, o rock, gerando um sentimento de forte recusa dos
projetos políticos anteriores, tanto populistas quanto de esquerda, e um progressivo
desinteresse pela política, ou um interesse bastante enviesado, configurando um dos veios
daquela forma de viver que pejorativamente se apelidou então de “desbunde”27. Na visão de
Carlos Nelson Coutinho, à época um combativo lukacsiano, a idéia marcuseana da “Grande
Recusa”, que num primeiro momento servira de estímulo à “impaciência revolucionária” da
luta armada no Brasil, foi rapidamente transformada – graças sobretudo à peculiar recepção
de Maciel – em negação irracionalista de todo o legado da cultura ocidental, inspirando a
contracultura, ou mais precisamente aquela “versão tropicalista da Kulturkritik romântico-
anticapitalista” que vicejou no início do decênio de 1970 no Brasil28.
Na opinião de outros críticos, diversamente inseridos naquela movimentação juvenil,
tratava-se de uma crise típica da modernidade, que o tropicalismo já expressara e os pós-
tropicalistas aprofundaram. A crise da razão no Brasil, dizia Messeder Pereira, devia-se às
mudanças sofridas, a partir dos anos 1960, no projeto desenvolvimentista de nação, que
aglutinara diversos setores sociais num pacto populista que garantiria um certo
compartilhamento social dos ganhos. Os limites desse projeto, e sua ruptura pela instauração
da ditadura civil-militar, trouxeram uma crise de confiança, inclusive na racionalidade
tecnológica que acompanhava a modernização, agora transformada em uma racionalidade
estritamente tecnocrática, em que a técnica se torna mero instrumento de dominação e
repressão, num projeto de desenvolvimento excludente e concentrador, conduzido, com
violência, por um Estado autoritário. Desenvolver-se-ia, a partir de então, de forma nebulosa e
muitas vezes dolorosa, uma nova percepção do processo modernizador como
obrigatoriamente contraditório, onde o arcaico não era mais contingencial e superável, mas
contrapartida estruturante do moderno29. De fato, vivia-se o fim de um mundo, como dizia a
letra-poema de “Marginália II”, cujo título também pode ser lido como referência aos que
ficariam de fora dos novos rumos modernizadores do país, ou àqueles que, na contracorrente,
enxergavam o avesso desastroso desse processo. Em tal quadro, os três eixos do debate
cultural no Brasil, entre os anos 1950-70, ainda conforme Messeder, sofreriam uma rotação de
ângulo, tendo nos pós-tropicalistas o ponto medial desse movimento: a) no eixo da relação
entre arte e progresso/tecnologia industrial, a mudança de sentido social do instrumento
técnico provocou uma desconfiança para com a modernidade semelhante ao que se via nas
rebeliões contraculturais de todo o mundo. Deriva daí a experiência chamada de “desbunde”,
12

vista como crise da juventude ocidental em oposição aos ideais capitalistas. O estilo de vida
baseado no hedonismo, na ludicidade, na erotização das relações sociais, na psicanálise e no
psicodelismo significava um redimensionamento das formas consagradas de apreensão da
realidade e da experiência; b) no eixo do engajamento político-cultural, a derrota do projeto
político das esquerdas sob a ditadura e o estrangulamento dos canais de discussão e
engajamento pós-68 – restando as situações-limite da clandestinidade e da luta armada –
traziam dúvidas a respeito do encaminhamento e da natureza da luta política. Em resultado,
esta foi redimensionada, tornando-se o cotidiano uma alternativa sentida como concreta, para
ser o vértice da experiência cultural, de sua crítica e da política, de onde a politização do
cotidiano como marca das realizações daquelas gerações; c) no eixo da relação entre arte e
teoria, a derrota do pensamento de esquerda por um lado gerava insegurança e acusações de
“teoricismo” e “vanguardismo”, fazendo muitos jovens se precaverem contra a “retórica
intelectual”; por outro lado, as posturas contraculturais, contrárias a qualquer discurso
institucionalizado, criticando a lentidão no agir implicada pela reflexão teórica e afeitas ao
pensamento místico e ao uso de drogas como estados de consciência alternativos à
racionalidade ocidental, levavam a uma recusa do modo intelectual de leitura do mundo. Em
suma, o anti-intelectualismo, o anti-tecnicismo e a politização do cotidiano eram os três focos
da reorientação cultural ocorrida naqueles tempos30.
Deste modo, diz Hollanda, a valorização da “marginalidade” urbana e psicodélica, a
recepção do pensamento místico e seitas orientais, a liberação erótica incorporando a
bissexualidade, a festa combatendo a seriedade existencial foram percebidas por aqueles
poetas como um comportamento descolonizado e ilegal, e portanto, como um gesto perigoso e
contestatório, assumido como político. Estava em curso uma mudança de foco nos interesses,
bem como um remapeamento na realidade 31. De fato, deslocava-se em todo o mundo o eixo
da crítica política de uma idéia-práxis de “revolução” para uma atitude de “rebeldia” diante
das coisas, conforme os termos sugeridos por Otávio Paz para analisar as transformações
sócio-políticas em curso na época32. Esta questão, desdobrando-se da contracultura e dos
movimentos de 1968, associava-se, de um prisma econômico, a uma rebeldia dos intelectuais
e profissionais liberais contra sua própria proletarização, gerando como tal posturas distintas
em relação à modernização capitalista, à indústria cultural, ao comportamento social, sexual e
afetivo. Na concepção de Marcuse, as condições objetivas do capitalismo naquele momento
exigiam a incorporação de todos os trabalhadores, inclusive a intelligentsia, promovendo a
integração das diversas classes sociais na sociedade de consumo e, portanto, arrefecendo a
consciência revolucionária. Entretanto, grupos minoritários, mais de classe média do que
13

operários propriamente em sua composição, mantiveram um espírito de ruptura em nome da


autodeterminação e da emancipação, rebelando-se contra as engrenagens capciosas da
satisfação administrada, do poder brutal – já despido das formalidades, hipócritas que fossem,
da cultura liberal33, que demandava ao menos aparência de verdade e justiça –, e da
mercantilização de todos os valores.
Para a compreensão do quadro, contribui ainda a leitura de Hollanda sobre os processos
que afetam o poeta moderno: com base em Benjamin, Auerbach e Otávio Paz, a autora
correlacionava as angústias pós-tropicalistas à crise do herói moderno, justamente num tempo
de fatalidade e horror que o exigiria; à crise da figura arquetípica do poeta, como “grande
criatura” de dons especiais, ao mesmo tempo objeto de desejo e ridículo na modernidade,
conduzindo, como se vê em Baudelaire, a uma luta desesperada e à mescla do desprezível
com o sublime; à crise dos sujeitos e dos significados dada pela fragmentação da imagem do
mundo, uma vez que o progresso técnico rompeu a continuidade de tempo e espaço,
acarretando também a desagregação do eu, que, obstinado em si mesmo, separou-se do outro
como elemento constitutivo da consciência, de modo que a poesia moderna se lançaria em
busca da alteridade, para reunir o que foi separado, e para isso tentaria devolver à linguagem
sua capacidade metafórica, como figura necessária para dar presença ao outro. No entanto, a
chave das representações artísticas modernas, já mostrara Benjamin, residiria no
procedimento alegórico, que, com profunda desconfiança tanto da realidade quanto da
imagem, apresenta o mundo, o sujeito e seu outro – vários outros – em fragmentos, mas não
no todo34.
Embora a figura da alegoria sirva para melhor compreender o que se fazia, é preciso
lembrar que o caráter fragmentário e fragmentador daqueles sujeitos e suas obras poéticas
continha uma força de cisão muito profunda, chegando em diversos casos ao ponto limite da
loucura e da morte, que abrangiam naquele contexto uma carga de significação deveras
particular. Enquanto meio de (auto)superação de limites, a “loucura” era vista, e até
valorizada, como um modo de romper com a lógica sistêmica e com a racionalidade, fosse do
pensamento de direita ou de esquerda, porém ultrapassava uma atitude literária – que tem
tradição na história da literatura –, pois os pós-tropicalistas viviam visceralmente suas opções
estéticas, trazendo-as para o centro de suas vivências: “a partir da radicalização do uso de
tóxicos e da exacerbação das experiências sensoriais e emocionais, vimos um sem número de
casos de internamento, desintegrações e até suicídios, bem pouco literários”, lamenta
Hollanda35. A dor psíquica e as pulsões de morte falavam alto no mundo da palavra
subterrânea. São sempre situações extremamente difíceis para quem as vive ou com elas
14

convive, e que, se têm raízes nos meandros insondáveis do inconsciente pessoal e familiar,
radicam outrossim nos meandros da vida social e histórica. Novamente, e tristemente, é a
vida, obra e morte de Torquato Neto que ilustra e fornece indícios dessas sofridas interseções:

... em sociedade tudo se sabe e eu estou é muito louco, viva deus, amigo.
compreenda: não está na hora de transar derrotas. é pelo outro lado: nós lidamos
com a indústria da inflação: vamos envenená-la, amigo: do lado de dentro,
morrendo: olhe, porque uma vez eu saí pra passear as pessoas não me chamaram de
volta nem fizeram a menor questão de obscurecer a transa: foi na base da família
brasileira: disseram: é covarde: eu passei três meses nos hospício, logo em seguida.
acusação – alcoolismo. e tomei injeção pra caralho. eu não fecho, almir, com essa
linguagem. eu lhe garanto que na geléia geral brasileira, aqui e agora, o demônio
está vencendo, mas eu não posso é desistir. escrevi lá: abaixo a geléia geral. três
vezes. as pessoas pensaram que era a coluna. tradução: não sabem onde é que vivem
e a alienação grassa.36

Navilouca como a vida

Mesmo em sua dor, ou justamente por havê-la assumido na medida do possível, o poeta
mobilizou grande parte de uma geração de artistas. A revista experimental Navilouca, ou
Almanaque dos Aqualoucos, publicação-síntese desse grupo, em “primeira edição única” de
1974, foi concebida e organizada por Torquato e Waly Salomão desde bem antes (a coluna
Geléia Geral já a anunciava em 1971-72), com inspiração na Stultifera Navis medieval, navio
que circundava a costa européia recolhendo os desajustados de todos os tipos. Analogamente,
Navilouca abrigava os que consideravam marginais àquela ordem, e se fazia sob a égide de
uma nova sensibilidade, com um trabalho coletivo e multifacetado, empenhado na
experimentação radical de linguagens e na recusa do discurso institucional ou acadêmico.
Além dos organizadores, participavam da revista artistas plásticos, cineastas, poetas
concretistas, jovens poetas, músicos37. O primeiro poema, o soneto “sonoterapia” de Augusto
de Campos, trazia como último verso o índice esfíngico da revista: “só o incomunicável
comunica”. Com efeito, a maior parte dos textos levava a experimentação de sua linguagem
ao maior grau possível, às vezes a ponto de esgarçamento, como em Rogério Duarte, cujos
trabalhos – de músico, poeta, designer, cineasta, ator – guardavam o signo da experiência
limítrofe no sentido acima apontado:

Brutalmente A Qualquer Momento Pode Surgir A Vida, Eu Sei Que Não Estou Preparado. O
Medo Que É Sombra Da Luxúria, Aproveitou-Se Do Meu Corpo Inteiro Como Morada Do Seu
Escuro. Eu Sinto, Quando Estou Falando Com Alguém, Nitidamente A Sensação De Não
Controlar A Espontânea Linguagem De Loucura E Sofrimento Que Torna Como Que
Desconcertantemente Ridícula (Já Que A Cobre E Nega) A Comunicação Esboço-Vomitada. [...]
Hereafter All Will Be Different, You Need To Get A Very Human Face [...]38
15

Entre a vitalidade expansiva, até mesmo brutal em seu brotar, e a obscuridade do medo,
um discurso permeado simultaneamente de dor, desrazão e coerência escolhe uma língua
estrangeira para a afirmação utópica de um mundo de face mais humana. Por que certas
enunciações são efetuadas em outra língua, seja por opção consciente ou intuitiva, é toda uma
questão a ser considerada. Em geral, trata-se de dizer algo que soaria ao sujeito enunciador
impossível ou por demais estranho (ou reprovável) em sua língua materna. A questão se
complica quando se pergunta o quê é enunciado desta maneira enviesada em correlação com
seu momento histórico. Decerto, um bloqueio de outro tipo, que não a censura política,
impedia o autor de afirmar tempos humanamente melhores, a não ser que um sentido elíptico
estivesse a subentender uma intenção revolucionária. Ou talvez, o desejo do melhor do
humano tenha-se tornado, aos olhos daqueles tempos brutais, uma singeleza impronunciável,
absorvida pela dinâmica da incomunicabilidade traumática, uma vez que, como observa
Adorno, “as coisas mais delicadas, abandonadas à sua própria inércia, tendem a culminar
numa brutalidade inimaginável”39. Ou quiçá se tratasse de um problema especificamente
artístico, o de tentar formular, nas palavras de Pignatari “os passos leves do vento/por
entre/nos interstícios”. No dizer de Hélio Oiticica, que criticava a tacanhez da sociedade
brasileira, incapaz de compreender obras vanguardistas, o gesto experimental, como um ato
cujo resultado é por definição desconhecido, consistia em algo mais do que arte experimental
e precisava ser positivado: “Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das
coisas”. Este parecia ser o âmago da proposição poética de Waly Sailormoon, que em
“Planteamiento de Cuestiones”, reclamava:

Quueu não estou disposto a ficar exposto a cabecinhas


ávidas quadradas ávidas em reduzir todo esforço
grandioso como fosse expressão de ressentimentos por
não se conformar aos seus padrões culturais:

Cioso do que era sentido como um gesto de grandeza – lutar contra padrões culturais
considerados ultrapassados e mesquinhos –, e que não se deveria deixar reduzir ou perverter
em sua intenção, o poeta numerava suas preocupações, manifestando o desejo de que sua
poesia fosse lida como experimentação de novas estruturas, isto é, como “um modo de
composição não naturalista. Alargamento não ficcional da escritura”, pois não lhe bastava
mimetizar o real circundante, era preciso ampliá-lo. Por isso, “eu preciso de um sonho muito
grande MUITO GRANDE para não me acabar ou [repete] para não me acabar
SUBDESENROLADO”, para o que seria preciso “produzir o melhor de mim pari passu com a
perda da esperança [...] a Inteligência não pode muito; é preciso PIQUE, resistência ao
16

desgaste, ao estraçalhamento, à devagareza, ao medo, ao (+) acanhamento, etc etc etc etc etc.”
O recurso ao espanhol e à intercalação de maiúsculas e minúsculas não eram igualmente
ocasionais. Na derrota do projeto de uma revolução sul-americana unificada, restava a palavra
explorada em todas as suas possibilidades vocais e gráficas, para dizer, quem sabe?, o que não
se diz: em “(Prosseguimento do discurso Huracán – do mesmo autor; Waly, o fedayin)”, o
poeta, disposto a “limpar o lixo emocional – remover o empanamento dos sentidos”,
sobrepunha assertivas, aparentemente díspares, como “ A HISTÓRIA NÃO NOS ABSORVERÁ”
e “ABAJO LOS GÉRMENES DE POBREDUMBRE ” ou ainda “Tenho fome de me tornar em
tudo que não sou”... A proposta do “Marinheirin da Lua (alma lírica paquidérmica)” almejava
mares mais vastos40. Mas não era tempo de singrá-los. Por ora, o que era cabível daquele
projeto estético-político-existencial da Navilouca talvez apenas se descortinasse, entre véus,
como sugerem os versos “subterrâneos” de Haroldo de Campos:

e nesta margem da margem há pelo menos margem [...] uma garrafa ao mar pode ser a
solução botelheiro de más botelhas [...] e quando a manhã for saindo você virá sendo [...] e
ainda tenho uma vez esta história é muito simples é uma história de espantar não conto
porque não conto porque não quero contar [...]

Poder e cilada da linguagem – sociedade e sujeito em crise

Ainda que se quisesse contar, o que se via prioritariamente era uma linguagem entre a
dificuldade de dizer e a abertura de veredas, o que bem se traduz na imagem de cilada
levantada por Torquato. A crítica jornalística – e sempre vale pensar em que medida ela não
reflete o senso-comum – mostrava-se dura com o comportamento “udigrudi”, cujas
conseqüências políticas e existenciais não lhe pareciam promissoras, pois se a palavra
subterrânea considerava a sociedade como o reino da desumanização, acabaria por se retrair,
movida por um estado de espírito simultaneamente crítico, abstrato e individualista: “embora
marcada originalmente por uma inconformidade, essa atitude vai resultar objetivamente numa
aceitação resignada de que o mundo e as coisas não podem ser modificados”41. Mas não era
exatamente o caso dos poetas pós-tropicalistas, entre os quais predominava a percepção da
linguagem como artifício eficaz para driblar padrões literários e políticos, para questionar
formas dissimuladas de poder de qualquer tipo, constituindo como caminho possível uma
poesia que se queria combativa. A palavra poética, nua e insinuante, poderia e deveria ser
trabalhada como instrumento de comunicação de idéias e formas renovadoras e, enquanto tais,
elementos de transformação social.
17

E os tempos eram propícios a isto, tempos em que os signos possuíam grande


ressonância social, quando, diz um testemunho, “palavras cantadas e rimas valiam tanto
quanto fuzis”42. Exagero que fosse, porquanto incomparáveis em sua força destrutiva, estava
dada a crença no poder de fogo do verbo. “Uma palavra é mais que uma palavra, além de uma
cilada”, e por isto, dizia Torquato em numerosas variações, “a poesia é a mãe das artes/& das
manhas em geral”, “o poeta é a mãe das armas/& das artes em geral”, “a poesia é o pai das
ar/timanhas de sempre [...] poetemos pois” 43. Assim sendo, se aquela poesia underground não
foi além do que poderíamos chamar de uma vontade de potência, tampouco cabia no lugar-
comum simplificador que lhe fora atribuído. Waly Salomão redargüiria peremptório:
“Desbunde e desbundado são o que pode refletir o olho reificador do sistema”. Adorno
observa como a crítica burguesa, especialmente a crítica reacionária, chega a compreender a
crise da sociedade e do indivíduo, mas busca causas ontológicas, imputando a
responsabilidade disso ao indivíduo em si, sua vacuidade, mecanicidade ou fraqueza
neurótica, em vez de criticar o princípio social da individuação em crise. Contudo, a
sociedade não é um todo derivado da atitude imediata de homens em convivência, mas um
sistema de que os encerra, (de)forma e os penetra até a medula daquela humanidade que um
dia os determinou como indivíduos. A dialética do sujeito contemporâneo consiste em que o
ser, já em alguma medida reduzido e degradado pelo domínio da esfera de produção sobre o
corpo e os valores, é capaz de resistir enquanto esta esfera não se torna absoluta. Neste
interregno, em que um tipo de sujeito se dissolve sem que outro tenha emergido, a experiência
individual necessariamente se apóia no antigo sujeito. O valor da experiência subjetiva na era
de sua decadência, na modernidade tardia, reside em que a força do protesto passou para o
indivíduo que, por um lado, havia-se tornado mais enriquecido e diferenciado, mas por, outro,
enfraquecido pelo esvaziamento do mundo sócio-político, que é o outro pólo condicionante da
construção da subjetividade, num processo complexo que atinge seu ápice em estados
ditatoriais. Além do mais, se a história é uma sucessão de vitórias e derrotas, há que se
considerar, como fizera Benjamin, o que não se inseriu nessa dinâmica e ficou a meio
caminho, “os resíduos e pontos sombrios [....] é da essência do vencido aparecer em sua
impotência como inessencial, marginal, ridículo”44. Pode-se compreender, assim, o marginal-
desbundado em relação às feridas da derrota política e da crise do sujeito no mundo
contemporâneo.
De maneira semelhante, quando indagado sobre os “desbundados”, o escritor e letrista
Abel Silva observou haver mais de um tipo de desbunde, sendo o de Torquato especial, uma
vez que em sua fragilidade e solidão realizava uma “obra de sintoma”, pessoal e cultural, que
18

sua morte veio sacramentar como testemunho de uma verdade, “a verdade do poeta no
momento secreto”, aquele poeta que havia sido marginalizado e sabia pensar no fim. A
sensação exposta por Abel ultrapassava uma vida particular, sua percepção da existência no
início dos anos 1970 era a de um barco que afundara para todos em “um momento histórico
completamente original no Brasil [...] Foi o maior trauma coletivo brasileiro, foi a nossa
guerra civil espanhola, nossa Guerra o Vietnã [...] um envolvimento total, uma implosão”45.

A falta do trágico no mundo triste – testemunho de um poeta

A implosão incluiria os símbolos catalisadores do que se havia apresentado como as


duas opções da juventude politizada na virada dos anos 1960 para os 70, a luta armada e o
comportamento contracultural. Conforme a percepção do estudante-guerrilheiro e presidiário-
poeta, Alex Polari, à medida que o regime ditatorial estreitava os espaços de participação
político-social, os caminhos-do-meio ficavam mais difíceis, de modo que

Foi isso precisamente que minha geração escolheu em 1969. Desbunde, piração ou
guerrilha, já que a militância ao nível do reformismo era negada. Quem optou por
alguma coisa intermediária optou geralmente pela integração total, pela corrupção
ou pela mediocridade. Resistência marginal só houve essas duas. 46

A recusa do mediano ou da conciliação colocava diversos setores daquela “geração” no


limiar de uma dimensão trágica – compreendendo-se a tragicidade no sentido goethiano de
conflito irremediavelmente inconciliável, dado ao homem que se enfrenta com as aporias do
destino, com as experiências-limite e com a difícil constituição do elo entre dor e
conhecimento – de quase impossível viabilização social na modernidade e, ainda menos, na
cultura brasileira nela inserida, desenhada grosso modo por um traço antitrágico e por uma
longa trajetória de conciliações políticas47. As duas opções radicais de então se viam
constrangidas entre o salto trágico e o recuo diante do choque violento produzido pela morte
de Carlos Lamarca, um dos expoentes da guerrilha rural no sertão da Bahia, em dezembro de
1971, e pelo suicídio de Torquato Neto, no Rio de Janeiro, em 197248.
A sensibilidade aguda e desajustada de Torquato constituiu, na época, uma das
principais antenas dos bloqueios postos à vida social. O poeta apresentava um certo senso
trágico que exercia à sua volta um misto de fascínio e repulsa, que se comprova pelos
momentos em que ficou isolado, mesmo por seus pares. Quando de sua desavença com o
tropicalismo, definira o movimento como “a ausência de consciência da tragédia em plena
tragédia”49, o que significava ter uma visão peculiar da experiência histórica em curso,
19

tornando-o incompreendido por sua concepção incomum ou, ao menos, “adiantada” em


relação aos que com ele se afinaram. Roberto Vecchi observa ter havido duas faces na
modernidade do Brasil, uma “rutilante” e outra “sombria e até tenebrosa”, tendo a segunda
ocupado um lugar menor em comparação às representações culturais dominantes da nação,
permanecendo na forma de resíduos trágicos nos tecidos narrativos. Na virada do século XIX
para o XX, portanto na aurora do moderno brasileiro, teria ocorrido um processo social de
“remitologização da cultura”, evidentemente vinculado ao nacionalismo, que os modernistas
em suas expressões mais canônicas acabaram por incorporar, relegando os códigos trágicos
nas manifestações modernas fundadoras na nação.
Neste sentido, se o modernismo desrecalcou elementos populares e étnicos, como
sugere Antônio Cândido, em sua versão oficial contribuiu para recalcar em nossa história
cultural a compreensão trágica da existência, a lide social com os extremos e as aporias,
especialmente na modernidade, que se mantém entre nós como cacos discursivos que
eventualmente se reativam, mas desprovidos de sua profundidade genealógica. Assim, a
forma trágica passível de ser configurada na literatura brasileira mostra uma insuficiência, a
insuficiência mesma da tragicidade, que deixa “os rastros de uma presença que foi tentada e
não vingou”, como um esvaziamento50. Os textos de Torquato Neto se enquadram nesta
dinâmica, havendo funcionado, em seu momento, como uma espécie de pára-raios. Em
“Cogito”, um dos seus poemas mais conhecidos, o sujeito lírico tematizava novamente a
impossibilidade de continuar um projeto humano iniciado:

eu sou como eu sou


pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou


agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou


presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou


vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
20

Em um jogo de metonímias e metáforas – em que as relações de contigüidade (a parte


pelo todo) metonímicas se entrelaçam às aproximações metafóricas do que é diverso –, o
poeta constrói o texto em três partes, de acordo com os três tempos básicos da experiência,
passado, presente e futuro. Na primeira parte-estrofe, o sujeito lírico se qualifica como
“pronome/pessoal intransferível”, ou seja, o eu é irrevogavelmente si mesmo e também um
pro-nome, algo anterior e propenso ao nome que o designa. Neste espaço-tempo prévio, como
um prólogo, está aberta a possibilidade para algo que ainda não é, mas se anuncia. Tal como
na concepção de Oiticica o projeto da obra de arte é o pró-objeto, o homem de Torquato é um
projeto de si, iniciado em medida tão ampla que não coube nas limitações do seu momento
histórico. Neste sentido, a medida humana se restringiu ao parcial, o homem é pro-pré-
homem, parte metonímica de si. Em estudo sobre a arte brasileira contemporânea e sua
relação com o momento autoritário, Jaime Ginzburg chama a atenção para a experiência
inconclusa como uma característica dos contextos de catástrofe e desumanização, quando os
artistas e escritores buscam formas que, de algum modo, estejam vinculadas a uma
experiência delicada e fragmentária de constituição subjetiva 51. Entre essas formas
expressivas, justamente a metonímia ocupa um lugar de destaque. Segundo Márcio
Seligmann-Silva52, o autor de testemunhos de acontecimentos excessivamente dolorosos é um
ser repleto de símbolos culturais que, como tal, domina em algum grau artifícios poetológicos,
isto é, uma lógica poética de se expressar, necessária nesses discursos que apresentam
eventos-limite vividos. A dificuldade dos testemunhos, porém, reside justamente em traduzir
o teor particular da experiência histórica experimentada ao universal da discursividade, de
modo que as formas de dizer testemunhais são mais indexais que simbólicas, nem sempre
havendo clara separação entre a mímese e o objeto mimetizado. A metonímia é justo o topos
de linguagem dessa contigüidade e da parcialidade. Por isso, as erupções metonímicas na
dicção testemunhal são como as ruínas da catástrofe, a figura demandada pela encenação da
incompletude na poética das ruínas, em que os silêncios, também eles, mimetizam as lacunas
insuperáveis desses falares – “destes dizeres tão calares” de Leminski: “É quando a vida
vase./É quando como quase./Ou não, quem sabe.”53
Na segunda parte, composta pela segunda e terceira estrofes, é o tempo presente que
perfaz o sujeito. Ainda metonimicamente, a subjetividade, cuja constituição depende das
articulações de todos os tempos, fica reduzida ao agora, sua parcela imediata, excluindo a
memória que ativa o passado (“sem grandes segredos dantes”) e as projeções que chamam o
futuro, que por não ser, carrega sempre a perspectiva do novo (“sem novos secretos dentes”).
O signo dos dentes se reitera nos textos de Torquato e cumpre aqui o papel de elo de ligação
21

deste poema com outros textos e do eu com o outro. Nos excertos “D’Engenho de Dentro”,
repetem-se as digressões que relacionam o eu intransferível ao nome, seja pela alusão ao
pronome, seja ao anonimato. A idéia de intransferibilidade do sujeito remete obrigatoriamente
à alteridade, a quem ou àquilo que não se é e para o qual seria desejável, embora inexeqüível,
transferir-se. Deste modo, o sujeito se vê nas fronteiras de seu próprio nome, seu pronome
pessoal reto (não há nenhum oblíquo, no poema) é fatalmente “eu” e não pode ser “ele” ou
“tu”... Igualmente o outro é si mesmo e se apresenta desdentado: “a melhor sensação é a de
reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso
gritar: ‘meu nome é torquato neto, etc. etc.’; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu
nome é vitalino; e outra: meu nome é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum
interesse: minhas aventuras, nem um pingo.” 54 Naquele contexto vale não o que se fez ou faz,
mas o que se é – e quem conhece o próprio ser, senão apenas o nome próprio? Não há outra
forma de reconhecimento social, de si e do outro, de si através do outro e vice-versa, a não ser
(aqui cabe o trocadilho) pelo nome, que o outro enuncia com ausência de dentes. O outro é
introduzido no poema através desta imagem, índice da loucura dominada, do homem
destituído de sua agressividade, mas também da capacidade de morder os nacos da vida, do
brasileiro pobre desprovido de saúde mental e oral. Neste ponto, a metonímia se intercala ao
jogo metafórico, pois a história do homem singular é a história de todo um povo e este não
pode expressar-se com todas as articulações possíveis da fala, pois é configurado como “voz
sem dentes”.
A rima que se estabelece entre os termos dentes, presente e indecente, liga a segunda à
terceira estrofe, ainda sob a dimensão temporal do agora. Se a indecência remete a formas
eróticas não aceitas pelas convenções sociais, a sugestão é invertida – indecente é ser
convencional neste moldes – mediante a associação do indecente ao ser em pedaços,
fragmentado e sem ferrolhos que unam as partes do objeto corporal ou mental (analogamente,
os “parafusos soltos” são uma expressão coloquial que designa a loucura). A sensação de
abjeção ou obscenidade está vinculada à aparição do que foi recalcado e esquecido, cujo
retorno, na leitura freudiana, surte o efeito do ominoso, daquele “estranho-familiar” sentido
como insólito e nefasto. Na linguagem dos testemunhos, é comum o surgimento do abjeto, diz
Seligmann-Silva55, quando o desrecalque “encena o obsceno”, isto é, o que está fora de cena,
mas faz parte da voz de um sujeito que se enuncia como resto de um mundo destruído. Assim,
“indecente/feito um pedaço de mim” tematiza a indignidade da “vida danificada”, conforme a
formulação adorniana, nas várias facetas do dano, do pedaço que não se completa, do que foi
pré-concebido mas não encontrou as formas de se realizar ou se formulou fora dos padrões em
22

cuja circunscrição opera o reconhecimento social, do sofrimento derivado de tudo isto, que
não encontra remédio na sociedade que o gerou.
Alterou-se a fórmula cartesiana prometida no título: penso, mas não existo como pensei
ou como pensaram. Isto, porém, possui contraditoriamente inestimável valor. Em sua crítica à
condescendência inocente, Adorno considera que as manifestações de pequenas alegrias e
beleza sem responsabilidade reflexiva são expressão de ignomínia para a existência que se
constituiu de maneira diferente do comum, e que não encontra mais beleza ou consolo algum
senão dentro do olhar que encara o horrível, para resistir e sustentar, não obstante, a
possibilidade de algo melhor, o que exige uma implacável consciência da negatividade 56. Aos
que desafinam “o coro dos contentes” – a imagem é do próprio Torquato – há um tipo de
redenção possível, na vida rasurada que ainda assim mantém laivos de dignidade humana
diante da destruição de seu mundo e da morte. É o que se percebe na última estrofe de
“Cogito”, na terceira parte em que o eu se identifica com o tempo futuro pela vidência, a visão
prognóstica do porvir e do fim que, contudo, diferentemente da angústia profética, permite ao
sujeito lírico a experiência do presente pacificado, do homem quite com sua dimensão
possível, sua mescla de grandeza e ruína, sem ter perdido, no roldão destruidor do seu tempo
histórico, a consciência trágica da morte – apenas o homem e seu nome, diante do
incomensurável, segurando o valor da existência. Com os dentes.
A propósito, Torquato gostava de associar sua imagem ao vampiresco e havia mesmo
desempenhado o papel de vampiro em Nosferatu no Brasil, filmado em super-8 por Ivan
Cardoso. No cartaz do filme, como em Navilouca e no fotopoema “gélida gelatina-gôsto de
mel”57, a imagem da gilete chama a atenção. Conectavam-se, nesta poética, os dentes
vampirescos que sugam das artérias a seiva vital e a gilete passível de cortá-las e esvair a
vida. Associam-se os instrumentos que sangram, pois que o sangue da vida e da morte é um
só: é a própria imagem do início e do fim, que tanto se repete nos seus textos. Assim, se
suicídio do poeta foi um espanto para amigos e leitores, faz sentido em sua poética e sua-
nossa história. Apesar de ser inútil tentar desvendar os motivos de um suicida, cabe pensar a
relação existente entre o suicídio e a vida social, uma vez que se trata da eliminação de um
corpo que é ao mesmo tempo individual e coletivo, uma escolha subjetiva em meio às
múltiplas determinações do corpo social.
Pensando os quadros sociológicos do suicídio, Durkheim os insere numa das dinâmicas
que participam da “corrente coletiva exterior às consciências particulares”, uma vez que nem
todos os aspectos da vida social são materializados, nem pela arte, nem pela moral, restando
sentimentos vivos e difusos, espalhados pela sociedade como ecos de emoções e impressões
23

concretas. Não se trata, frisa o autor, de confundir o tipo coletivo com o tipo médio de uma
sociedade, mas de compreender que os indivíduos, e com eles os suicídios, são tensionados
pelo duplo movimento de serem conduzidos pelo fluxo social tanto quanto por suas
propensões pessoais. Como toda sociedade alia, em proporções que variam consoante sua
cultura, “o egoísmo, o altruísmo e uma certa anomia”, quando o equilíbrio destes elementos se
desfaz, aquele que prepondera se torna suicidogêneo. Entretanto, nem toda sociedade
apresenta especial propensão ao suicídio como ocorre na sociedade burguesa, onde a
“hipercivilização” que origina a tendência anômica e a tendência egoísta resulta também no
afinamento dos sistemas nervosos, “tornando-os excessivamente delicados; por isso, são
menos capazes de se dedicarem fielmente a um objeto definido, mais contrários à disciplina,
mais acessíveis tanto à irritação violenta quanto à depressão exagerada”, inversamente ao que
ocorre nas sociedades “primitivas”, onde se desenvolvem o altruísmo excessivo e uma
insensibilidade que facilita a renúncia58. Em suma, as condições sociais do suicídio são dadas
pelos excessos deste tipo de civilização, que produz momentos de ausência de regras e uma
tal interação entre subjetividade e objetividade que os indivíduos se tornam especialmente
suscetíveis a alterações emocionais patológicas.
Os estudos de Marx-Peuchet, de modo semelhante, perguntam pela natureza dessa
sociedade que propicia um número tão elevado de suicídios, considerando-os sintomas da
organização social deficiente, cuja contra-face é a insuficiência das vidas privadas, ou seja,
“um dos sintomas da luta social geral”, da qual os combatentes se subtraem, ou por estarem
cansados de serem vitimados, ou por se insurgirem contra a idéia de virem a figurar entre os
carrascos. Se a miséria é o maior motivo do suicídio, não é todavia o único: as classes mais
favorecidas também o praticam, impulsionadas pelos mais diversos fatores, das doenças aos
amores traídos, dos sofrimentos familiares às rivalidades, e mesmo “o desgosto de uma vida
monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido [...] e até o próprio amor à vida, essa força
enérgica que impulsiona a personalidade, é freqüentemente capaz de levar uma pessoa a
livrar-se de uma existência detestável.”59
Mantidas as devidas diferenças, ambos os autores observam a impossibilidade do
indivíduo permanecer isento à patologia social do mundo burguês. Para safar-se, diz Adorno,
seria preciso viver de tal modo que se fosse capaz de pôr termo à vida a qualquer momento, o
que faria emergir como triste verdade a doutrina niestzschiana da morte livre. De maneira
diversa do que pensavam os artistas do Jugenstil ou artnouveau, para quem era possível
morrer belamente, a morte “reduziu-se ao desejo de abreviar a infinita humilhação do existir,
24

bem como o infinito sofrimento de morrer em um mundo no qual há muito tempo há coisas
piores a se temerem do que a morte.”60
A morte, nestes casos, é concebida de maneira tal que é possível aproximá-la de uma
dialética trágica: morrer por amor à vida, dentro dos limites antitrágicos impostos na
modernidade, gerando irresolúvel tensão. Aquele “poeta das elipses desconcertantes, dos
inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua que caracteriza a modernidade”,
nas palavras de Leminski, era também um visionário da decadência e um poeta das
interrupções, inclusive de sua existência mesma61. E de certo modo, também a morte do
próprio Leminski, no final dos anos 1980, aproximava-se desse campo de tensões, havendo
sido considerada por diversos amigos e críticos como um lento suicidar-se, na medida que se
conceba haver escolha no vício que arruinou sua saúde. Sua poética, nos últimos anos, foi
assinalada pelo tema da morte.

2.3. Efervescência cultural interrompida

Já bem antes, ao homenagear o amigo em “Coroas para Torquato”62, o poeta curitibano


fornecia indícios sobre as possíveis razões do sofrimento de toda uma geração de artistas no
modo como o contexto histórico era sentido:

um dia as fórmulas fracassaram


a atração dos corpos cessou
as almas não combinam
esferas se rebelam contra a lei das superfícies [...]
abaixo o senso das proporções
pertenço ao número
dos que viveram uma época excessiva

Desalinhando os versos consagrados com que Manuel Bandeira terminou o poema


“Arte de amar” – “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo./Porque os corpos se
entendem, mas as almas não” –, bem como os ensinamentos pitagóricos acerca da
proporcionalidade (o poeta freqüentou, durante um período de sua vida, um templo
pitagórico), afirma o sujeito lírico o fracasso das fórmulas que um dia sustentaram um mundo,
que também foi seu. A “medida do impossível” e a “época excessiva”, agora fracassadas,
remetiam ao projeto de transformação social, política e humana que se fortalecera nos anos
1950 e início dos 60, sob o nacional-desenvolvimentismo (e a despeito ou em virtude dele),
que se manteve clandestino e ferido mas ainda pulsante na primeira fase da ditadura civil-
militar (1964-67), e que fora golpeado de morte pelo AI-5 e seus desdobramentos ditatoriais.
Consistia, nas palavras de Marcelo Ridenti, no projeto dos “homens que se faziam novos, e
25

tiveram o desabrochar impedido pela modernização conservadora do capitalismo”, a qual


obstaculizou a formação de homens criadores e ativos, criativos portanto, em prol da
(de)formação de homens consumidores e passivos diante da história 63. A experiência
democrática e nacionalista dos anos 1945-1964, quando também se propagaram idéias
socialistas misturadas às trabalhistas, configurando as ambigüidades e a complexidade do
populismo brasileiro, havia selado fortemente com um cunho anticapitalista a formação
daquela geração interrompida, por assim dizer. Como aponta Roberto Schwarz, se em 1964 o
governo militar chegara a preservar o meio cultural, tendo-lhe bastado cortar seu contato com
a massa operária e camponesa, em 1968 seria “necessário liquidar a própria cultura viva do
momento”, pois os estudantes e o público dos melhores filmes, livros, teatro, música, já
constituíam uma população “politicamente perigosa”, de modo que era preciso substituir ou
censurar os professores, encenadores, escritores, músicos, editores... Na visão deste autor, o
grande dilema do movimento cultural nos anos 1970 consistia numa espécie de dor de
“floração tardia”, ou seja, num amadurecimento democrático na área cultural após dois
decênios de elaboração e trabalho (os anos 50 e 60), justamente sob o regime ditatorial,
quando as condições sociais que o propiciaram não mais existiam, derivando em uma crise
aguda da intelectualidade progressista64.
Em numerosos testemunhos de época, os termos-chave, como um denominador comum
para rememorar o fenômeno, são uma “efervescência” que foi brutalmente “interrompida” e
terminou por se perder65. Esta efervescência testemunhada pelos sujeitos ativos daquele
processo histórico indicam uma experiência de sociabilidade aprofundada, um
compartilhamento de idéias, projetos e atitudes traduzindo-se em expressão criativa e ação
política de grande intensidade – “a sensação de tocar com o dedo a História”, no dizer de Jean
Marc Van Der Weid –, cuja interrupção foi dolorosamente sentida. Deste modo, a
mobilização, a expressão artística e as projeções utópicas que antes se encontravam no plano
do plausível, agora eram sentidas como excessos e impossibilidades, ainda que mesmo assim
afirmadas pelos poetas. Um depoimento do professor e filósofo Leandro Konder contribui
para elucidar a percepção e o movimento poético de então:

[...] a minha primeira impressão, quando olho para trás, é a de ver ruínas
arqueológicas de uma cultura dizimada pelo AI-5, pela repressão, pelas torturas,
pelo “milagre brasileiro”, pelo “vazio cultural”, pela disciplina tecnocrática e pela
lógica implacável do mercado capitalista. [...] Quantas ilusões se desfizeram! [...]
Mas é evidente que nem tudo se perdeu: ficou o esforço, ficaram gestos de grandeza,
preocupações fecundas. E onde o pensamento político carecia de lucidez, a
sensibilidade dos artistas produzia criações cheias de encanto, livros, poemas,
filmes, canções. Obras cuja vitalidade não pode ser negada, porque ainda hoje
circulam entre nós e nos emocionam. 66
26

Este encanto e vitalidade da arte, entretanto, não significavam uma lúcida vidência nem
um conjunto homogêneo de proposições, ao contrário, a pujança advinha de um esforço de
reação às ruínas, compondo um variado mosaico de vertentes, caminhos, busca de respostas.
No campo poético, o momento veio exigir a mudança de rumo e dicção não apenas dos “pós-
tropicalistas”, como se viu, mas outrossim de poetas que vinham surgindo no final dos anos
60, como Armando Freitas Filho, Chico Alvim e Cacaso, entre outros, os quais transitariam
dos meios intelectuais para as ruas agitadas da poesia alternativa e “marginal”, que surgia
paralelamente e se afirmaria nos anos subseqüentes. Em depoimento no aniversário dos 40
anos do golpe de 1964, que considerava uma festa fúnebre, Armando elegeu avaliar as perdas
daquela geração, cuja juventude foi cortada, segundo ele: “Vencemos um tempo, mas
pagamos um preço, às vezes alto. [...] eu poderia ser uma pessoa mais completa do que sou
hoje”67.
A alusão à incompletude nos remete novamente aos problemas da constituição da
subjetividade e dos discursos testemunhais na contemporaneidade brasileira. O projeto
autoritário de formação social no Brasil, recorda J.Ginzburg68, afetava os sujeitos, que se
vêem impedidos de conduzir suas próprias trajetórias, acusando em seus textos o impacto
agônico dos processos de desorganização de suas referências e sentidos para o que seja a
relação indivíduo-sociedade e a própria constituição histórica do humano.

2.4. No campo das palavras minadas – ferida e reação na linguagem

No Brasil, como em toda parte, os poetas buscaram no humor e em diversos


subterfúgios da linguagem alguns recursos para lidar com tal estado de coisas. Antes de mais
nada, havia que combater um processo de perversão de sentidos posto em curso pelos
governos militares, não apenas mediante a propaganda oficial, veiculada nos sistemas de
rádios e televisão, como também nos documentos governamentais, nos textos jurídicos e nos
discursos presidenciais. A começar pelo golpe de 1964, que o regime militar auto-intitulou de
“revolução”, invertendo e chamando para si uma das idéias fundamentais do processo político
anterior, tradicionalmente assumida pelas esquerdas, para as quais a revolução significa a
modificação profunda da ordem capitalista vigente, e não sua manutenção 69. O termo
“democracia” sofria também semelhante inversão. Segundo o discurso oficial, fazia-se uma
revolução militar para impor uma ditadura que garantiria a democracia e o desenvolvimento
no país desordenado por subversivos comunistas, em nome da segurança nacional, conforme
27

se deduz, a título de exemplo, do seguinte trecho do preâmbulo do Ato Institucional n° 2,


promulgado pelo governo Castelo Branco em outubro de 1965:

A revolução está viva e não retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a
empreendê-las, insistindo patrioticamente em seus propósitos de recuperação
econômica, financeira, politica e moral do Brasil. Agitadores de vários matizes [...]
já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento
em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática
e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não
exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação
política da Nação. Não se pode desconstruir a revolução, implantada para
restabelecer a paz, promover o bem-estar do povo e preservar a honra nacional. 70

Tratava-se de produzir meios discursivos de convencimento da sociedade, ou seja,


elaborar uma argumentação lógica e fundamentada em noções de direito constitucional e
teoria política71. Na verdade, o regime ditatorial recorria a diversas áreas de conhecimento
para esta fundamentação argumentativa. Ao estudar o significado do tema da “humanização
do desenvolvimento” e “desenvolvimento psicossocial”, que os presidentes Costa e Silva e
Médici, respectivamente, introduziram nos discursos acerca do planejamento econômico,
contrapondo-se aos planos governamentais anteriores que tratavam estritamente da dimensão
econômica, Renato Ortiz aponta sua incongruência contextual.
Desde o golpe de 1964, mudanças econômicas substanciais reorientavam a sociedade
brasileira para um modelo de desenvolvimento capitalista bastante específico, adquirindo o
processo de modernização uma dimensão sem precedentes. Não só o planejamento estatal se
incrementava com uma nova sistemática e organização, como se difundia em toda a sociedade
um ethos capitalista, de modo que o processo de racionalização não se confinava aos limites
da esfera administrativa, mas se estendia ao comportamento dos indivíduos. As técnicas de
planejamento, como parte dessa racionalização, inicialmente aplicadas na área econômica,
difundiam-se para todas as esferas governamentais, alcançando a cultura, seja mediante a
reforma universitária voltada para a implantação do ensino técnico, seja mediante a criação de
órgãos estatais de fomento cultural que passaram a organizar a esfera cultural. O Conselho
Federal de Cultura do MEC, instituído em 1966, havia consolidado concepções que abrigavam
uma tensão entre o progresso material do país, de um lado, e a cultura “espiritual”, de outro.
Havendo incorporado intelectuais tradicionais, recrutados em Institutos Históricos
Geográficos e Academias de Letras, o Conselho desenvolvera uma visão de cultura
alicerçada, particularmente, na obra de Gilberto Freyre, cultivando o passado nacional com
base nos grandes nomes da história e nas tradições folclóricas, compondo um conjunto de
valores materiais e espirituais acumulados ao longo do tempo, a ser preservado por sua
condição de patrimônio cultural. Derivam dessa idéia de patrimônio duas dimensões distintas:
28

a primeira, de natureza ontológica, concernente ao “ser nacional brasileiro”, como um


substrato filosófico invariável no decurso do tempo; a segunda, de natureza objetiva e
material, traduzida pelo acervo de bens legados pela história, cuja preservação requer uma
estrutura de museus, arquivos e projetos, responsáveis pela conservação de uma memória
asseguradora da identidade nacional. Ao se adequar o discurso tradicional, regionalista,
patriarcal e de preocupações “qualitativas”, à ideologia de segurança nacional, ao espírito de
cálculo do planejamento econômico e à impessoalidade do trato capitalista, desenvolveu-se
um descompasso que se expressaria na polaridade cultura/técnica. No discurso do Conselho,
esta polaridade se reproduzia pela categoria de “humanismo”: o homem brasileiro, tido como
naturalmente humanista, era contraposto à sociedade moderna, dominada pelo
“economicismo” e pelo “tecnicismo” da máquina, de forma que seria preciso separar o que é
singularidade popular daquilo que é massivo, fruto do processo de uniformização cultural
segundo modelos estrangeiros72. A expressão freyriana, “asfixia do humanismo”, foi retomada
para descrever o que ocorria com a cultura ante o avanço técnico típico de uma sociedade que
se industrializa rapidamente, como o Brasil de então. Tal debate certamente orientou as
expressões presidenciais supracitadas, bem como os discurso dos ministros da cultura no
período, Tarso Dutra e Jarbas Passarinho, que incorporaram a tensão entre a dinâmica cultural
e o progresso, ao afirmarem a necessidade de emparelhar a cultura, concebida como valores
espirituais que elevariam a nação à condição de civilização, ao desenvolvimento tecnológico e
econômico, como seu complemento.
De qualquer maneira, a defesa governamental do humanismo naquele momento
ditatorial e de extremada violência, praticada como razão de Estado, soava suficientemente
despropositada para atingir as raias do absurdo. Ademais, uma vez incorporados pelo regime
ditatorial, os argumentos humanistas se veriam rasurados pela pecha do autoritarismo e do
tradicionalismo. Para além da defesa de conceitos, então, tratava-se de acusar o golpe-baixo
de se torcerem sentidos a torniquete, como uma crueldade exercida na carne semântica da
linguagem.
Alguns autores argentinos discutem o trauma a que a língua foi submetida durante a
ditadura militar em seu país (1976-1983), quando as possibilidades lingüísticas de
intercâmbio social ficaram calcificadas, posto que palavras, sintagmas e enunciados diversos
foram degradados pela ação repressora, que não se sustentara apenas na censura, mas também
em uma espécie de língua estatal que culpava a sociedade e que produzia enunciados
corrompidos, fazendo-os perder seu valor de designação. Slogans, eufemismos, toda uma
fraseologia que ocultava a violação dos direitos humanos são paradigmáticos deste processo,
29

percebido pelos argentinos como um arruinamento de sua língua por parte do regime
ditatorial. “As palavras [foram] forçadas a articular o horror mais inumano imaginável, para o
quê primeiramente foram transtornadas, desvirtuadas por meio de diversos procedimentos de
manipulação e degeneração, como os clichês ou frases contagiantes com que o regime
bombardeava qualquer conjectura de discursividade dissidente”, diz Gustavo Lespada 73, para
quem a torpeza brutal com que se corrompeu a linguagem se relaciona ao que foi definido por
Hannah Arendt como a impotência das palavras e do pensamento diante da banalidade do
mal. No que tange à arte – à função estética da linguagem que é criadora, geradora de novos
objetos, contribuindo para a fecundidade da língua –, esta também pôde ser mutilada,
transformada em objeto de repressão e aniquilamento, menos por ter sido esvaziada do que
por saturada, pervertida, vendo afundados na lama seus mecanismos de criatividade e
retroalimentação. A saída possível para a poesia foi tentar se formalizar como uma voz outra,
alternativa à voz central que o Estado se autogarantia pela censura: buscou-se um discurso de
alteridade, nem politicamente militante nem tampouco servil, criando um âmbito difuso,
indômito, um tipo de resistência como uma lógica enviesada, mas real, na contramão da cena
desolada da época. Teria emergido aos poucos dos próprios poetas um discurso crítico, num
processo lingüístico que buscava restituir uma nova capacidade enunciativa, tentando
reorganizar discursivamente os sentidos. Este processo de reparação, restituição e
ressemantização lingüísticas, que não estivera alheio a violentas polêmicas entre os poetas,
veio a se desenvolver em amplitude, na Argentina, no início do período de sua
redemocratização.
Não obstante as diferenças culturais entre as sociedades argentina e brasileira, algumas
semelhanças se fazem notar, visto que os poetas do Brasil tiveram igualmente que lidar com
uma linguagem corrompida e saturada, cujos sentidos retorcidos participavam da banalização
do mal e – o que se não for pior, é tão ruim quanto – da banalização das idéias de cunho
humanista que poderiam erigir-se em força contrapositiva. Eram tempos em que primava
“uma impossibilidade terrível nas palavras”, segundo o verso de Afonso Henriques Neto, em
“Seis percepções radicais”74.
Restou aos poetas buscar, nem sempre com sucesso, um lugar “alternativo” para sua voz
indômita e sua lógica enviesada. Em estudo sobre a resistência poética no contexto da
modernidade, Alfredo Bosi considera que à poesia sobrou apenas ou a colaboração com o
sistema industrial ou maneiras específicas de objeção. Reagir literariamente passou a consistir
na criação de condições para a produção de sentidos contra-ideológicos, como forma de
resistência simbólica aos discursos dominantes. Entre as muitas faces que a poética resistente
30

costuma assumir, mencionadas pelo autor75, a expressão afetivo-confessional e o humor


consistiram nos principais recursos que a nova poesia brasileira dos anos 1970 pôde
encontrar, ainda que se registrem inúmeros tropeços. Em grandes linhas, cinco blocos reativos
ou conjuntos de respostas podem ser detectados na poesia de então, todos perpassados pela
expressão irônico-humorística e afetivo-subjetiva, bem como por muitos tipos de silêncio76.
a) humor: Evidentemente, desde o início se geraram reações por parte de setores sociais
de oposição, que se puseram a contestar o discurso do poder instituído, disputando –
especialmente nos jornais, mediante charges e crônicas – a representação correta dos
acontecimentos políticos, cuja interpretação passava, então, ao campo da lingüística e da
semântica, como mostra o trabalho de Dislane Moraes. Uma vez que a linguagem oficial
manipulava os fatos e a lógica, distorcendo os sentidos, cabia aos opositores, senão
propriamente contra-argumentar em público, o que era proibido pela censura, aos menos criar
um contra-discurso baseado em artifícios literários que provocam riso, como as citações
irônicas e satíricas, que denunciavam as contradições das declarações oficiais e expunham a
tensão entre o que os governantes manifestavam e omitiam, revelando a dualidade que se
estabelecia na vida política entre palavra e ação, aparência e realidade. Estrategicamente,
criavam-se mecanismos textuais que rebaixavam a imagem dos políticos e militares. O
Febeapá de Stanislaw Ponte Preta foi, até 1968, um dos principais lugares de elaboração
desse contra-discurso, seguido posteriormente pela imprensa alternativa, especialmente o
Pasquim. Caricaturavam-se os membros das forças armadas e dos poderes executivo e
legislativo de todas as instâncias...
Um recurso freqüente dos humoristas consistia em associar os militares à figura de
animais, mormente o gorila, o cavalo e o cão, bem como o rato para indicar o caráter
ameaçador e traiçoeiro de uma polícia violenta e imiscuída com organizações armadas extra-
legais, como o Esquadrão da Morte e o Comando de Caça aos Comunistas. Tampouco os
trabalhadores escapavam, tendo sua passividade, ingenuidade ou perplexidade caricaturadas,
por exemplo, pela imagem da vaca (Stanislaw) ou pelas intermináveis discussões da graúna e
do bode no sertão do Nordeste (Henfil). A ridicularização paródica ou o jogo satírico de
estereótipos, que inverte a relação entre fortes e fracos, mostravam pelo avesso as trapaças
praticadas pelo discurso oficial. Aquele humor, recorrendo aos procedimentos literários que
discutem assuntos sérios mediante o cômico, buscava o que se chama de riso fraco,
reflexivo77.
No entanto, isto não se processa de forma simples na sociedade. A disputa pelos termos
se vincula ao papel social do jargão, que, como observa Dolf Oehler, consiste em conferir
31

significado ao momento histórico segundo um modelo pré-existente, reorganizando as novas


configurações segundo um conjunto de pré-concepções, de maneira a dar continuidade a um
projeto. Mas, contrariamente, faz parte dos movimentos de reelaboração histórica se despojar
dos jargões, o que tanto pode significar a criação de um novo corpus conceitual, que seria
propriamente uma nova teorização – que não era o caso em questão –, quanto um processo de
inversão ou perversão de clichês, que pode vir a recalcar conceitos e visões que foram
derrotados na luta política. Deste modo, o humor, como ars poetica para os vencidos, também
ocupa uma dupla posição no trabalho de luto social. As prestidigitações lingüísticas e jogos de
palavras são recursos para combater a censura, criando substituições táticas, analogias,
alusões, associações, que, como “feitiçarias evocatórias”, exigem um leitor cúmplice.
Reside neste ponto o problema: um processo de dor social pode provocar a piada tanto
quanto o esquecimento, decorrendo em leituras geracionais distintas. Por variados motivos,
intencionais ou inconscientes, se algumas leituras insistem em lembrar, outras têm pressa em
apagar vestígios (ainda neste caso, restam detalhes, mais ou menos significativos, posto que
sempre há uma memória involuntária e indelével de uma atmosfera social). Assim, o humor,
ou a poesia irônica e satírica, ao deslocar o pathos para figuras marginais, para outras
configurações de sentido, aloca os termos políticos em contexto semântico estranho, como um
procedimento cifrado, capaz de resultar numa recepção diferenciada da orientação cômico-
crítica. As alegorias animais, por exemplo, podem ressoar como uma alusão à bestialidade,
em contraposição à civilidade pretendida do processo histórico em curso, mas podem todavia
se inclinar à naturalização do mal humano muito comum em momentos de crise – quando se
retoma uma visão pessimista e odiosa do homem e do mundo, apoiada em sua maldade
“natural”, consoante ensinam as tradições filosóficas de base religiosa ou liberal –, elidindo
sua dimensão política e histórica78.
Tal diluição se agrava com uma outra faceta da cultura brasileira, a que evita lidar com
o mal-estar e a discussão sobre o mal para além do imaginário cristão – casos em que seria
“coisa do diabo”, de pessoas ressentidas ou de vãs indagações metafísicas que se desfazem no
ar –, recebendo o tratamento irônico de Carlos Saldanha, no poema intitulado “Zum e
Metafísica”, a começar pela designação dos personagens: Bacamarte, a arma de fogo tosca e
curta que no sentido figurativo indica o sujeito imprestável e pesadão, dirige-se a seu mestre,
como sói acontecer nas escolas orientais, cujo nome profético remete à tradição bíblica:

“Porque ó Venerável, existe o mal?”


Indaga o ressentido Bacamarte.

“Eu é que sei?”, brada Malaquias,


32

“Porque não é o mundo


em forma de livro,
com ilustrações sem sépia,
ou hachurado grosso,
ou escrito em papel de arroz?
Enfim, vamos parar
Com perguntas tolas
E vá me buscar uma cerveja.” 79

A promessa latente de um ensinamento profundo sobre a existência humana se esvai no


final imprevisível, característico do humor, quando se resolve a questão não com uma
resposta, mas com a desqualificação da pergunta como tolice. Sendo o mundo naturalmente
ilegível, desiste-se de procurar entendê-lo.
E ainda que se buscasse, o pensamento requerido para estabelecer as necessárias
articulações filosóficas e históricas se via diante das diversas armadilhas postas no campo da
linguagem sob a ditadura, exigindo recursos extras para o trabalho de resistência, os quais não
eram de fácil aquisição e nem todos os poetas surgidos na época deles dispunham.
b) desistência: Em princípio, a possibilidade da desistência se fazia plausível e, sem
dúvida, muitos se entregaram a esta via, quando, no meio do caminho da vida, encontraram-se
em uma selva escura. O próprio tema da desistência se tornou matéria de poesia, como revela
o poema de Capinam, “Poeta e Realidade (O Desistente)”:

Vou tentar a desistência [...]


– sendo fatalidade, fico aqui –
se em tudo existe a própria máquina
pouco acrescenta ir ou não ir.80

Mediante um movimento mimético, em que a voz lírica em primeira pessoa imita um


modo de pensar dominado pela tendência fatalista diante das engrenagens sistêmicas, o poeta
advertia sobre um posicionamento ou conduta factível naquelas circunstâncias. Procedimento
análogo se vê no seguinte texto de Antônio Carlos Secchin:

Há um mar no mar que não me nada


e não se entorna em ser espuma ou coisa fria.
Me sinto cheio de palavra e de formato,
murado em mim sob a ciência desse dia.
Na sonância do que vive,
minha fala é desistência,
e dizer é corroer o que se esquiva,
reter a letra a cicatriz do som vazio.
Sou apenas quinze avos da loucura,
a dar um nome à ironia do que dura.81

Um sujeito lírico repleto como um mar represado que, embora “cheio de palavra e de
formato”, não tem meios de entornar, apresenta-se no fio tenso entre um falar que é desistir ou
33

tentar corroer loucamente algo que se esquiva, como o sinal restante (letra, cicatriz) de um
som esvaziado, porque ferido, e que todavia ironicamente perdura, pedindo um nome como
pedem as dores, para que possam sanar. A referência à ditadura através da rima (“do que
dura”) consistia em um dos recursos alusivos da época, ligando a dor do espírito ao contexto
histórico-político.
Mas o fato mesmo de se fazer poesia sobre a desistência significa uma sorte de
resistência da linguagem artística que trará sempre em seu bojo, como o oco das moedas
furadas, a possibilidade do gesto desertor. Assim, estruturalmente tensa, a arte poética se
manterá no campo de manobras.
Diferentemente da desistência, as outras reações que se seguem travaram um embate
para manter ou devolver à função estética da linguagem seu poder de retroalimentação da
língua e da cultura, apresentando diferentes graus de aproximação em suas intenções ou
resultantes poéticas.
c) explosão da linguagem: Uma primeira sorte dessas respostas resistentes,
característica desse momento “pós-tropicalista”, se encontra formulada por Torquato Neto no
texto “Pessoal intransferível” (mais uma vez), da coluna Geléia Geral de 14 de setembro de
1971: “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo
sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é
destruir a linguagem e explodir com ela.”82 A proposta estética experimental é investida de
uma força estilhaçadora cuja imantação poética, para além do verso e do medo, reside na
explosão da palavra, conforme se cumpre na espécie de dicção verborrágica de Waly Salomão
em seu primeiro livro, Me segura que’eu vou dar um troço, de 1972, em que se criticam todas
as formas de linguagem bem-comportada, cujo avesso histérico se condensa no originalíssimo
título.
O poeta relatava ter sido preso duas vezes; sendo que na primeira vez, no presídio do
Carandiru (SP), por porte de maconha, viveu um processo de liberação da escrita que lhe
permitiu, ao invés da vitimização, um ato de teatralização da experiência do mundo e do eu,
descentrando a identidade subjetiva e social por meio de textos ostensivamente fragmentários,
mas que mantinham uma unidade básica de preocupações críticas, como se lê nos seguintes
trechos de “Self-portrait”, o auto-retrato do “baiano faminto”:
[...]
Minha língua – mas qual mesmo minha língua, exalta e iluda ou de
reexame e corrompida?
– quer dizer: vou vivendo, bem ou mal, o fim de minhas
medidas [...]
34

eficácia da linguagem na linha Pound Tse Tung. sou um reaça tento puxar
tudo pra trás: li retrato do artista quando jovem na tradução brasileira.
[...]
Esses selvagens esfarrapados perdidos no fundo do seu pântano,
proporcionavam um espetáculo bem miserável; mas a sua própria
decadência tornava ainda mais sensível a tenacidade com que tinham
preservado alguns traços do passado [...]
Nado neste mar antes que o medo afunde minha cuca. óbito
ululante: não há nenhuma linguagem inocente. ou útil. ou melhor:
nenhuma linguagem existente é inocente ou útil. nadar na fonte é proibido
e perigoso.
[...]
Self-portrait. Eu falava mal de todo mundo com minha compoteira
de doces caseiros. Eu era o mais provinciano dos seres. pinchadores de
terrível língua. [...] estou travando uma luta titânica contra a hidra de
lerna. Já não estou me reconhecendo mais neste assunto fedorento
bitritropicalista tipo alfininha biscoito de louça romanesca.
[...]
Derradeira photo: mágoas de caboclo: estou levando uma vida de
sábio santo solitário: acordo ao romper da barra do sol me levanto saio
pra passear nos arredores ouvindo passarinhos indo até a fonte d’água
vendo a cidade do Corcovado cantando pra dentro:

O fim abrupto do poema, um recurso estilístico freqüente naquele período, condiz com a
interrupção da efervescência político-cultural acima apontada, quando não se pode mais soltar
a voz e se passa, quando muito, a “cantar para dentro”. O par exuberância-corte dá corpo aos
fragmentos de Waly, um poeta erudito (embora não acadêmico, cujas formas de expressão
rejeitava), que permeia sua escrita de inúmeras referências intertextuais, de teor político,
filosófico, lingüístico, pessoal, coletivo, inter-nacional, chegando a uma espécie de
composição rocambolesca83 – “o macarrão do Salomão, a salada do Salomão”, como ele
mesmo propagandeava sua obra, brincando ironicamente com sua provável invendabilidade e,
decorrentemente, com os produtos culturais que se faziam vender naquele contexto de
afirmação da cultura de massas patrocinada pelo regime ditatorial. Rocambolesca porém não
desprovida de sentidos, pois não se configura um estilo non-sense, nem um fluxo surreal de
associações inconscientes, mas um dizer entrecortado porque composto de múltiplos recortes
referenciais, que não conotam uma unidade de experiência, mas uma variedade delas,
articuladas frouxamente por associações livres que encadeiam reflexões sobre a sociedade, a
história, a linguagem poética e política: “quando quero saber o que ocorre à minha volta/ligo a
tomada abro a janela escancaro a porta/experimento invento tudo [...]/tudo sentir total é chave
de ouro do meu jogo/é fósforo que acende o fogo da minha mais alta razão” (em “Olho de
Lince”). O autor retirava material poético tanto da tradição letrada quanto de conversas que
ouvia e transcrevia, criando uma colagem em que tensionava elementos díspares, com um
35

objetivo crítico e por vezes anárquico que evidenciava a passagem da sensibilidade mais
erudita dos anos 1950 para uma nova forma de percepção84.
Entrevistado sobre seu livro, Waly afirma que “Antônio Cândido quase entendeu o
alicerce do Me segura quando assinalou a RUPTURA DE GÊNEROS que ali de fato se
perfaz...”85 Em debate no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, em 1975, Antônio Cândido
esboçaria uma análise dos principais traços formais da época, considerados em seus nexos
sociais. A poesia do início daquela década havia hipertrofiado o recurso literário, de resto
normal, de romper com os nexos miméticos entre arte e realidade, tornando-o em prática
sistemática – o que equivalia, na esfera da prosa, à dissolução da narrativa realista. Na visão
deste autor, a crise da dicção realista se relacionava à crise das hierarquias tradicionais na
sociedade, derivada das tensões das lutas de classes, em que as posições sociais se
reajustavam. Correspondentemente, via-se um processo de transformação e fusão dos gêneros
literários tradicionais, por obra de autores que colocavam os elementos genéricos em
contextos alternativos, misturando poesia, conto e novela dos mais diversos modos. Sendo
assim, entretanto, a mudança formal que incorpora a ruptura dos nexos miméticos e mescla a
estrutura dos gêneros é, também ela, um ato de mímese de uma mudança social, no sentido
que confere Adorno86 à relação entre forma artística e sociedade moderna.
Em uma leitura transversal a esta, La Capra considera que os gêneros híbridos – não
somente aqueles que se misturam entre si, mas nos quais se apresentam indistintamente o que
foi experiência, o que é elaboração posterior da experiência e o que é inventado – provocam
grande incômodo para o historiador justamente por esta indistinção em que verdade e ficção
se indissociam. No entanto, segundo o autor, as aporias, a confusão derivada da supressão de
fronteiras, ou a dupla inscrição do tempo, quando se imiscuem passado e presente ou futuro,
são sinais de uma indistinção conceitual – inclusive na crítica literária e filosófica, em que a
indistinção é perceptível, por exemplo, na indecidibilidade da “voz média” (Barthes), que
mantém uma zona ambígua de posições entre a transitividade e a intransitividade do discurso;
ou na apologia da différance (Derrida) extremada, quando cai num relativismo cultural sem
mediações reguladoras – que está vinculada psicanaliticamente aos mecanismos do trauma e
da reatualização pós-traumática, como “situações em que o passado nos acossa e nos possui,
de modo que nos vemos enredados na repetição compulsiva de cenas traumáticas, cenas em
que o passado retorna e o futuro fica bloqueado ou enrolado em um círculo melancólico e
fatal que se retroalimenta”87.
A se considerar tais observações, há um fator testemunhal traumático – com sua forma
específica de mímese social, entremeada de cortes enviesados que ocultam e transfiguram os
36

reveses sofridos – na literatura de gêneros rompidos ou híbridos que se efetuou nos anos
1970. Essas formas, realizadas como experimentação artística, faziam parte da explosão da
linguagem de Torquato e Waly Salomão, bem como do hibridismo88 que caracterizou a escrita
de Leminski, seja em seus ensaios, poesia, correspondência ou prosa ficcional, como se pode
constatar pela dificuldade de qualificar o “romance-idéia” que é Catatau, em que se
superpõem formas de linguagem tão distintas quanto a gíria, o português seiscentista, a
proposta joyceana de romance-rio, a montagem de palavras das Galáxias de Haroldo de
Campos, a dicção jornalística do Pasquim...
Contudo, é preciso destacar, esses jovens poetas viam seu trabalho bem menos como
testemunho, e ainda menos traumático, do que como uma forma de invenção capaz de
intervenção social.
d) linguagem guerrilheira: Uma outra maneira de reação poética à violência sofrida
pela linguagem no período, afirmando a crença no poder de intervenção da palavra, é o
próprio Leminski quem sintetiza, nestes famosos versos do livro Não fosse isso e era menos,
não fosse tanto e era quase:

en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas

Metalingüístico e politicamente posicionado, sem ser “engajado” no sentido de então, o


poema amalgama referências políticas e literárias importantes na época, como o latino-
americanismo e a concepção vanguardista do poder dos signos, para apresentar a concepção
da linguagem guerrilheira, reforçada no texto pela escolha da língua espanhola, em remissão
às guerrilhas do continente sul-americano.
Na leitura de Célia Pedrosa, os signos para Leminski são sinais de vida que constituem
toda linguagem e se organizam num duplo movimento de permanência e negação, não
havendo portanto qualquer pacificação no campo da expressão, de onde a idéia de guerrilha,
que era ademais fundamental para a experiência política e cultural de sua geração como
estratégia de luta. A ela se associa a linguagem porque em ambas, como dizem seus versos,
“as batalhas nunca são decisivas/as vitórias são confusas” e é preciso se inserir no terreno
inimigo para ali se nutrir e minar sua força.
Leminski buscava desautomatizar o uso da palavra e, bastante crítico da indústria
cultural, parecia acreditar que valia a pena nela se inserir para transformar seu modus
37

operandi desde dentro, o que conferia sentido aos seus trabalhos em agências de publicidade e
na televisão. Nisto consistia, por sinal, a definição do próprio Leminski segundo Waly
Salomão. Para os dois poetas, diz Pedrosa, a linguagem, no contexto de crise que se vivia,
devia compor um espaço de crítica à dicotomia entre arte e vida, de modo que a atitude
guerrilheira significaria tanto o rechaço à erudição livresca, quanto a inserção do artista no
mundo contracultural e da cultura de massas, embora sempre criticando o espontaneísmo da
geração marginal, cujo rótulo recusavam89.
A força significativa, para os sujeitos históricos imersos naquele contexto, dessa
imagem da linguagem guerrilheira é atestada pelo quanto foi retomada, seja por poetas ou
pela crítica especializada, para conferir valor de resistência à produção poética da época.
e) experiência e precariedade – poética intervalar: As formas desta poesia “marginal”,
que transformavam as coisas mais cotidianas em matéria poética, constituíam uma terceira
maneira de embate da linguagem. No entanto, ainda que espontânea e variada, a poética
decorrente se construía em linhas gerais pela metaforização do verbo, como uma poética de
alusões, configurando-se como um uso outro da linguagem, que lançava mão de truques
retóricos e metáforas que permitiam um modo de dizer enviesado, “de olho na fresta” como se
dizia, numa atitude de certa malandragem que embutia a crítica social em procedimentos
lúdicos e lingüísticos90. O seguinte poema de Capinam anunciava seu objetivo explicativo,
como indica o título, de desvelar estes mecanismos pelos quais um humano desespero chega a
constituir uma lógica verdadeira mediante lacunas, com passos saltados como numa dança, ou
como num alinhavo:

POETA E REALIDADE (DIDÁTICA)


A poesia é a lógica mais simples.
[...]
(Maior surpresa terão passado
os que julgam que me engano:
ah não sabem quanto quero o sapato
não sabem quanto trago de humano
nesse desespero escasso.

Não sabem mesmo o que falo


em teorema tão claro.

Como não se cansariam ao me buscar os passos


Pois tenho os pés soltos e ando aos saltos
E, se me alcançassem, como se chocariam ao saber que faço
A lógica da verdade pelos pontos falsos.)91

Uma tal lógica poética necessariamente se faz de intervalos elípticos, vazios ambíguos
entre o que se diz e o que não se chega a dizer, mais uma vez hipertrofiando, “aos saltos”, os
intervalos comuns da enunciação. Cacaso92 observara que esta poesia muitas vezes retinha um
38

grau relevante de precariedade e inacabamento, correspondente, em sua opinião, às “ações e


intenções contemporâneas que ainda estão-se processando”, de modo que o precário é o que
reveste a experiência de sujeitos imersos em um processo de transformações tão profundas e
recentes que não se pode vê-las em seu acabamento. E, vale lembrar, este processo envolvia
circunstâncias de interrupção e sofrimento de tal ordem que implicava também mudanças na
linguagem. Surge, assim, uma zona de sombra entre o dito e o silêncio, como uma reserva
estimulante de caracteres recessivos, não evidentes, de manifestações ambíguas, conforme diz
Lespada93, em que a palavra não é explicitada porque apareceu em condições irreproduzíveis,
o que se evidencia pela “forma informe” da elipse, que nomeia sem propriamente nomear o
oco que foi deixado pela mutilação do humano. É, portanto, como uma referência oblíqua
feito um rastro lateral que se acessa, de viés, a verdade contida nessa poesia – e só interessam
verdades que não sejam tautológicas, ou todo esforço do teorema resta inútil, o que aumenta a
dor do dizer.
Resulta daí uma poética intervalar, lacunar, em que a voz alternadamente se elide e se
positiva, sendo esta sua forma específica de reação à crise da linguagem.
Em Armando Freitas F° – que se inicia na poesia junto à vanguarda práxis dos anos
1960, posteriormente migrando para círculos próximos aos “marginais”, sem com eles se
confundir – esta forma de poética encontra seu representante melhor acabado, manifestando-
se em textos tão recortados e intervalares que chegam a se tornar o próprio “Antitexto” que
intitula o poema:

Cravado em mim o meu silêncio fala:


folha em branco, exercício do sangue
[...]
seiva, assim, tão silente e cega
como o fio dessa faca na bainha

do meu gesto: uma palavra-lapso


no espaço da intenção – vôo mudo,
[...]
uma vida de intervalos espreita
pela lucarna recortada no corpo

por uma lâmina de lacunas – tudo é fresta,


desvão, onde nada pousa sua ausência;

onde ninguém, ode sem voz nem olhos,


– um nulo lugar de nãos – aonde?

Estudando o trabalho de Armando Freitas Fº, Célia Pedrosa observa articulações


intrincadas de valores antagônicos, como permanência e transitoriedade , velocidade e atraso,
sujeito e objeto, presença e ausência, realização e inconclusão. A imagem reiterada em sua
39

poesia da máquina de escrever – título, por sinal, de sua obra reunida – revela-se metáfora e
metonímia do poeta, em tensa relação com o instrumento pelo qual se mede com sua
experiência literária e histórica. Neste medir-se, irrompe uma dicção lacunar, em que o verso
e a sintaxe são trabalhados pelo movimento constante entre enjambement e corte,
continuidade e interrupção, que retardam a fluidez do texto. A imagem da gagueira, ou dos
“dedos gagos”, como ele diz em versos que incorporam um dado biográfico seu, intensifica a
força significativa da “palavra-lapso” que marca “uma vida de intervalos”. Deste modo, o
poeta desnaturaliza a palavra e a experiência, produzindo uma visceralidade simultaneamente
intensa e contida. Em outras palavras, trata-se de uma voz gaga que, contudo, jamais perde o
ímpeto de recusar a apatia e continuar a procura poética de imagens e sentidos, “num misto de
urgência e memória”. Lutando com e contra os signos do cotidiano contemporâneo, Armando
recupera a vertigem da viagem bêbada de Rimbaud, como um barco que aderna para um lado
e outro para manter seu eixo, de onde uma poesia interrogativa e hesitante que lança mão de
numerosos jogos pictóricos de luzes e sombras94, os quais bem se expressam no título de um
de seus livros do decênio de 1970, Mlle.Furta-Cor.
A idéia de uma dicção gaga se encontra também no poema “Mais real”, do livro
Restos & estrelas & fraturas, de Afonso Henriques Neto, reconfirmando o caráter lacunar-
intervalar da poesia daquele período, cujas feridas e cicatrizes timbraram aquilo que Cacaso
chamou de precariedade, podendo tornar sua dicção até mesmo enrouquecida e fracassada:

Eu pergunto ao poeta
onde
onde se infiltra tamanha primavera
de cachoeiras estáticas
de jorros de luz paralisada
ocultas mágicas na retina devastada.
Mas o poeta é sem poema.
Não há versos
algumas cicatrizadas sílabas goradas
gaguejantes guturais.” [...]

Em todas estas vertentes reativas – transpassadas de dor, humor, lacunas e desejo de


intervenção mediante a força da palavra, vale repetir – o nível da qualidade poética variava
bastante, tornando-se ponto central de discussão no final da década, como se verá. Mas é
possível que este impulso de dizer em detrimento da qualidade signifique, na poesia, um
momento de inflexão, de hesitação das “antenas” que sintonizavam a situação e buscavam as
possibilidades de veredas para continuar.
40

A mudança da linguagem discutida pela crítica, à época, apontava o apelo a um uso


excessivo de figuras retóricas e metáforas para se encontrarem caminhos para a expressão em
meio a todo tipo de impasse. Esta tendência à metaforização – note-se que isto ocorre bastante
também entre historiadores, para tratar da década –, por um lado, condiz com a forte
proliferação da poesia naquele momento, enquanto arte-mor das figuras de linguagem, e por
outro, indica um momento histórico de mutações tais que os sujeitos sociais que o vivem não
podem traduzi-lo senão em termos metafóricos95.
Tudo isto qualifica uma experiência histórica em mutação: aponta para um momento
social em que está acontecendo uma mudança de experiência coletiva, cuja difícil expressão
demandará novas formas artísticas, bem como novos métodos historiográficos para sua
compreensão – eis o que parece haver ocorrido no Brasil nos anos 1970, quando não só a arte,
mas também a historiografia adquiriam novas inflexões.
Como se deu esta experiência em sua relação com a poesia da época, os problemas
suscitados, as dificuldades e trunfos desse processo estético-político em um momento
histórico tão significativo para a cultura brasileira é o que se procura tratar nos capítulos que
se seguem. De todo modo, as marcas deixadas por Torquato Neto e sua morte – que, junto a
Waly Salomão, é considerado um farol para a poesia “marginal” que se segue, embora cada
vez mais próxima da experiência cotidiana e subjetiva – estarão presentes, como signo
doloroso de uma experiência histórica em curso que foi interrompida.

1
SANT’ANNA, A. R. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, p.180 e 246.
2
HOLLANDA, H. E MESSEDER PEREIRA,C.A. Poesia Jovem Anos 70 (Literatura Comentada), p.11, nota 1.
3
Cf. FREITAS F°, A. Poesia vírgula viva. In: NOVAES, A. (org). Anos 70, ainda sob a tempestade, p.167-178.
Para a transição, ver esp. p.172.
4
Incenso fosse música., In: Distraídos Venceremos, p.93.
5
JAY, M. El modernismo y el abandono de la forma. In: Campos de fuerza, entre la historia intelectual y la
critica cultural, p.273-291. Cf. também BÜRGER, P. Theory of the Avant-guarde.
6
Ver no cap.8 a discussão sobre a experiência como questão de época, com base em Songs of experience, de
Martin Jay, e sobre o conceito de Stimmung, com base em Enzo Traverso e Hans Ulrich Gumbrecht.
7
CÂNDIDO, A. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade, p.109-112.
8
FREITAS F°, idem, p.185. Uma discussão semelhante se encontra em Brito/Cacaso, em artigo publicado no
jornal Opinião, junho de 1976, em que comenta a antologia de Heloisa Buarque, 26 poetas hoje, apresentando a
opinião de Silviano Santiago (no artigo “Poesia jovem: roteiro de velhas vanguardas a Tropicália e ao marginal
mimeografado”, Jornal do Brasil, 20/12/1975), para quem o ponto de inflexão é Chacal, e a visão de Heloisa,
com que Cacaso parece concordar, situando a virada em Torquato e Waly. Armando engloba os três. Estou aqui
“selecionando” Torquato e Waly, aos quais acrescento a figura de Leminski. Cf. BRITO/CACASO, Não quero
prosa, p.46-47.
9
Cf. MACIEL, M. E. Nos ritmos da matéria, notas sobre as hibridações poéticas de Paulo Leminski. In: DICK,
A. e CALIXTO, F. (org). A linha que nunca termina, pensando Paulo Leminski, p.171-179, citação na p.172. A
autora analisa o poema “Limites ao léu” em que o poeta apresenta seu próprio paideuma. O poeta nasceu em
Curitiba em 1944, descente de polacos e negros, motivo pelo qual se auto-intitulava “mestiço curitibano”.
Estudou no mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde conheceu os clássicos gregos e latinos. Abandonou dois
cursos universitários e se tornou auto-didata. Poeta, judoca, tradutor, letrista de MPB, pai de três filhos, foi
professor de Literatura e História em cursinhos de pré-vestibular durante muitos anos. Também trabalhou em
41

agências de publicidade e no Jornal de Vanguardas, da TV Bandeirantes (1988). Ligado ao grupo concretista e


aos tropicalistas, publicou em numerosos jornais e revistas literárias, sendo os anos 80 seu período mais
profícuo, a despeito do abalo sofrido pelo suicídio de seu irmão e pela morte precoce de seu filho mais velho.
Faleceu de cirrose hepática, em 1989. Uma curiosidade, acerca da postura “marginal” de Leminski, além do
descuido com a aparência e a saúde, é mencionada em sua biografia O bandido que sabia latim, por seu amigo
Toninho Vaz, que relata a recusa do poeta em ter carteira de identidade, o que apelidava de uma bobagem
freudiana.
10
Cf. VAZ, T., idem, p.58. A mesa foi promovida na redação da revista Isto É, em São Paulo, em 9/6/1982, para
um balanço da arte de então, integrada por Cacaso, Ana Cristina César, Arrigo Barnabé, Régis Bonvicino, Buza
Ferraz, Carla Camurati, estudantes da USP, além de Leminski, que teria abandonado o debate abruptamente por
seu “baixo nível”. Depois, procurou aparar as arestas declarando que “nenhum lance de dados abolirá o Cacaso”,
numa referência a Mallarmé (“un coup des dés jamais n’abolira le hasard”), que era um dos poetas do paideuma
concretista. É provável que a situação se tenha criado em torno de poemas como “Estilos de época”, em que
Cacaso atacava o concretismo: “Havia/os irmãos concretos/H. e A. consangüíneos/e por afinidade D.P.,/um trio
bem informado:/dado é a palavra dado/E foi assim que a poesia/deu lugar à tautologia (e ao elogio à coisa
dada)/em sutil lance de dados:/se o triângulo é concreto/já sabemos: tem 3 lados.” Cf. também SALGUEIRO, W.
C. Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70 aos 90), p.44. Uma opinião
diversa encontra-se em SUSSEKIND, Literatura e Vida Literária, para quem Leminski situa-se entre os
marginais, por sua dicção próxima ao cotidiano, sendo mais semelhante a Cacaso do que ele imaginaria.
11
Entrevista ao jovem poeta Rodrigo Garcia Lopes, em 1982, citado por este em “Meu encontro com a ‘besta
dos pinheirais’”, p.51, in: DICK e CALIXTO, op.cit., p.49-53. Quanto à clareza, trata-se de uma opinião
controversa, uma vez que há poesia marginal clara e poesia concreta hermética.
12
O livro Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase, de 1980. Anteriormente, foi realizado o livro
de fotopoemas, Quarenta clics em Curitiba, com o fotógrafo Jack Pires, em 1976, pela editora Etcetera, Curitiba.
13
CASTELO, José. Torquato, uma figura em pedaços. No mínimo. Disponível em:
<http://www.nominimo.com.br/>. Acesso em: 18 mai. 2005. Trata-se de uma resenha da biografia do poeta
escrita por Toninho Vaz.
14
Estas informações sobre Torquato derivam de CASTELLO, op.cit., como também de Os últimos dias de
paupéria, obra póstuma do poeta.
15
TORQUATO NETO. In: Os Últimos Dias de Paupéria, p.369-370. Há duas versões deste poema no livro
(utilizo a primeira), como de vários outros, uma vez que a obra foi organizada post-mortem, a partir inclusive de
manuscritos. Na antologia de HOLLANDA, 26 poetas hoje, encontra-se a segunda versão, ainda com ligeira
modificação: “toda palavra guarda uma cidade”.
16
Não se trata aqui de criar uma vitimização onde ela não existe, ou de exagerar uma dinâmica traumática que é
comum ao humano. Como diz La Capra, ao trauma estrutural – ausências fundamentais e fundantes do ser
humano – estamos todo expostos. Mas o trauma histórico, sim, cria vítimas específicas, com problemas
específicos, e fazer a distinção entre vítimas e perpetradores é crucial para a compreensão e elaboração do
processo traumático. A categoria de vítima neste caso não é psicológica, mas social, política e ética. Cf. LA
CAPRA, D. Escribir la historia, escribir el trauma, p.98. Para as demais discussões, cf. idem, p.85, 95, 197-198.
17
TORQUATO NETO. Os últimos dias de paupéria, página não numerada, a partir da p.387.
18
VENTURA, “O vazio cultural” [Visão, julho de 1971], in: GASPARI, E., HOLLANDA, H.B. e VENTURA,
Z. 70/80 Cultura em trânsito, p.41.
19
VENTURA, idem, p.57.
20
Cf. SCHWARZ, R. Cultura e Política 1964-1969, op.cit., passim. A questão é retomada em HOLLANDA,
H.B. Impressões de viagem, p.35.
21
FICO, C. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA,
J. e DELGADO, L. (org). O tempo da ditadura..., p.193-205.
22
HOLLANDA. Impressões de Viagem, p.46-47, citação na p.53.
23
SCHWARZ, R. Cultura e política..., op.cit., p.33-34. Trata-se de uma questão análoga à onipotência da
linguagem.
24
Ambos os termos, pós-tropicalista e marginal, são insuficientes ou inadequados para a compreensão do
fenômeno. Sigo aqui a denominação de Hollanda, que também a fez por mera “conveniência expositiva”, para
tentar dar conta da diferenciação das duas principais tendências novas, após o tropicalismo. Em especial, a
designação “pós-tropicalista” não se tornou muito corrente, mas parece válida para as vozes que vêm
imediatamente depois e ainda bem ligadas à dicção da tropicália e do concretismo. Affonso Romano falaria de
uma “pós-vanguarda”, em que a poesia se soltava tanto da música quanto dos recursos autoritários e
esterilizantes [sic] da vanguarda concretista e retornava à palavra escrita, deixando porém de ser um artefato
erudito para ser “curtição existencial”. Cf. SANT’ANNA, op.cit., p.113.
25
Como os vê HOLLANDA. Impressões de viagem, p.61-77.
42

26
TORQUATO NETO. A palavra subterrânea. Geléia Geral, Última Hora, 21/09/1971. In: Os Últimos Dias de
Paupéria, p.70.
27
A título de exemplo, segue um trecho da coluna de Maciel, no Pasquim de 13/11/1969: “2) Se a conversa for
sobre psicanálise, pode ser contra, sem medo. No dia seguinte, você conta ao seu analista e ele próprio saberá
compreender. Ele é tão bacana, não é? Diga, portanto, que a psicanálise é uma invenção do século passado, que
não tem mais sentido no mundo de hoje. Quando lhe perguntarem por uma alternativa [...] responda com
simplicidade que são as drogas alucinógenas. [...] 3) ...Você deve referir-se à maconha, principalmente, como se
fosse coca-cola, tratando-a carinhosamente por ‘fumo’, para revelar seu grau de intimidade. [...] 6) ... Prefira
filosofar sobre a inutilidade histórica do teatro. Condene o cinema à mesma sina. Diga até que Godard já acabou
e que a única coisa que existe é o underground.” Citado por HOLLANDA, Impressões de viagem, p.73.
28
Cf. COUTINHO, C.N. Marcuse e a contracultura tupiniquim. In: Cultura e sociedade no Brasil, ensaios sobre
idéias e formas, p.84-88. Cf. também Hollanda, idem.
29
Cf. MESSEDER PEREIRA, Retrato de época, p.78.
30
Idem, p.85-92. Note-se que a tendência ao anti-intelectualismo merece ressalvas: não se pode dizer que eram
refratários ao mundo intelectual poetas como Cacaso, Leminski, Torquato, Waly Salomão, Armando Freitas F°,
Chico Alvim, Carlos Saldanha, Horácio Costa, Carlos Ávila, Ana César, entre outros, sem falar dos poetas-
críticos literários, como Schwarz, Silviano Santiago, Affonso Romano... O tema do anti-intelectualismo será
tratado adiante.
31
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.75.
32
Cf. observações de Otávio Paz em diversos textos, como Convergências.
33
Cf. MARCUSE, H. A esquerda sob a contra-revolução. In: Contra-Revolução e revolta, p.14-23. Ver também
RIDENTI, M. a partir de Mandel, O fantasma da revolução brasileira, p.98-99.
34
HOLLANDA, Impressões de viagem, p.64-67. Heloisa diverge da crítica de Schwarz ao tropicalismo, para
quem a nova proposta sensível-formal, em última instância, não superava os impasses do populismo que
pretendia ultrapassar, não havendo portanto, um remapeamento da realidade propriamente. Segundo a autora,
Schwarz ainda estaria preso à visão de Lukács, que criticava Benjamin por sua valorização da alegoria, a qual
significaria, em sua concepção, uma perda da visão do todo, e conseqüentemente, perda do horizonte do futuro e
uma linguagem do desespero, incapaz de suprir as necessidades universais e históricas da arte. Cf. p.67 ss.
35
HOLLANDA, idem, p.78. Ver também Flora SUSSEKIND, Literatura e Vida literária, para a discussão sobre
literatura e loucura.
36
Carta para Almir. In: Os últimos dias de paupéria, p.346-348. Ver também os excertos: “D’Engenho de
dentro”, de forte carga confessional.
37
Sobre a Stultífera Navis ver HOLLANDA, Impressões de viagem, p.82. A obra – que teve organização e
coordenação editorial de Torquato Neto e Waly Salomão, sendo o editor responsável Lúcio Ubiratan de Abreu –,
contou com trabalhos de: Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Rogério Duarte, Torquato
Neto, Waly Salomão, Jorge Salomão, Duda Machado, Chacal, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Stephen Berg, Luis
Otávio Pimentel, Óscar Ramos, Ivan Cardoso, Luciano Figueiredo, Caetano Veloso.
38
Segundo Hollanda, Rogério Duarte era uma figura importante neste grupo, “investido de um ‘saber superior’
avalizado por um bom número de leituras e de um ‘poder’ conferido pela experimentação sensível limite, até
mesmo próxima da loucura”, idem, p.81. Era amigo de Oiticica, em cuja correspondência encontram-se
observações deferentes a ele.
39
ADORNO, T. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada, p.68.
40
Em matéria jornalística incluída na revista, sobre seu 1° livro, Waly faz várias referências a Marx, como p.ex.:
“tento cumprir os manuscritos econômicos, filosóficos, utópicos de 44. E ao mesmo tempo, supero a boemia
intelectual da época (o mal da época) tentando assumir a responsabilidade com a minha produção, percebendo os
seus limites, o tacanhamento dos editores e todos os etcéteras”. A leitura dos Manuscritos Econômico-
Filosóficos situava Waly numa esquerda atípica para o momento – quando predominavam no cenário brasileiro
as orientações do PCB, vinculado à URSS –, bem como mostrava sua preocupação com os processos de
alienação e, decorrentemente, o desejo de uma experiência-consciência de um humano mais amplo. Note-se que
também Torquato falava em alienação, ver última citação sua.
41
VENTURA, op.cit., p.64.
42
TEIXEIRA, Memórias, esquinas..., op.cit., p.13.
43
Os últimos dias..., p.366, 372, 373. Um desses poemas tem a data de 8/11/71/&sempre, o que não parece
indício de retração da linguagem.
44
ADORNO, op.cit., sobretudo Dedicatória, p.8-10; aforismos 97 e 98, p.131-133. Citação na p.133. Grifo meu.
45
Entrevista de Abel Silva e Waly Salomão a HOLLANDA e GONÇALVES, A ficção da realidade brasileira.
In: NOVAES, Adauto (org). Anos 70, ainda sob a tempestade, p.131-132 e 136, respectivamente. Grifo meu.
46
Depoimento de Alex Polari, no texto de HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira.,
op.cit., p.138.
43

47
Para o caráter antitrágico da cultura brasileira, cf. STERZI, E. Formas residuais do trágico, alguns
apontamentos. e VECCHI, R. O que resta do trágico: uma abordagem no limiar da modernidade cultural
brasileira. In: FINAZZI-AGRÒ, E. e VECCHI, R. (org). Formas e mediações do trágico moderno, uma leitura
do Brasil, p.103-112 e 113-126, respectivamente.
48
Cf. HOLLANDA e MESSEDER PEREIRA, idem, p.101. Lamarca foi militante da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
49
Apud CASTELLO, idem.
50
Cf. VECCHI, op.cit., p.116-117, 123-124. Para Antônio Cândido, cf. Literatura e cultura de 1900 a 1945,
loc.cit.
51
GINZBURG, J. Cegueira e literatura. In: FINAZZI-AGRÒ,E. e VECCHI, R. op.cit., p.91.
52
Cf. As literaturas de testemunho e a tragédia: pensando algumas diferenças. In: FINAZZI-AGRÒ e VECCHI,
op.cit., p.24-25.
53
“Transmatéria contrasenso”, introdução datada de janeiro 1987, ao livro Distraídos venceremos. Há na obra de
Leminski diversos textos sobre a experiência da inconclusão-interrupção, como no poema Campo de sucatas:
“saudade do futuro que não houve/aquele que ia ser nobre e pobre/como é que tudo aquilo pôde/virar esse
presente podre/e esse desespero em lata?”, do seu livro póstumo, O ex-estranho. Mas o poeta traz ainda uma
outra face dessa circunstância, ao tratar das dificuldades historicamente colocadas aos sujeitos do terceiro
mundo: “um dia/a gente ia ser homero/a obra nada menos que uma ilíada//depois/a barra pesando/dava pra ser aí
um rimbaud/um ungaretti um fernando pessoa qualquer/um lorca um éluard um ginzberg//por fim/acabamos o
pequeno poeta de província que sempre fomos/por trás de tantas máscaras/que o tempo tratou como a flores”. Do
livro Polonaises, 1980.
54
Sem título, datado de 12/10, encontra-se em Os últimos dias... bem como em HOLLANDA, 26 poetas hoje,
p.66-67.
55
Cf. SELIGMANN-SILVA, op.cit., p.26. Para o ominoso, também traduzido como sinistro, cf. FREUD, S. O
sinistro. In: Obras completas. v.3, p.2483-2505. Freud deriva suas reflexões do Unheimlich de Schelling: “tudo
que deveria ter permanecido oculto, secreto, porém se manifestou”, p.2487.
56
ADORNO, op.cit., aforisma 5, p.19.
57
De autoria de Torquato, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos e Ivan Cardoso, reproduzido em Os últimos dias de
paupéria, páginas iniciais não numeradas. Nos excertos D’Engenho de dentro também consta, em 7/4/71: “–
Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. são bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas
dão gilete pra se fazer a barba”.
58
Cf. DURKHEIM, É. O suicídio (Os Pensadores), p.163-202, citação p.201
59
MARX, K. Sobre o suicídio, p.24 e 29. Grifo meu. Trata-se de um capítulo das memórias de Jacques Peuchet,
diretor dos Arquivos da Polícia de Paris sob a Restauração francesa, que Marx alterou ao traduzir para o alemão,
introduzindo interpolações de próprio cunho.
60
ADORNO, op.cit., aforisma 17, p.31.
61
Encontra-se no fotopoema “– EX – PIRA – L –”, de Waly Salomão em homenagem a Torquato, um sentido de
teor semelhante: “Torquato suicida [...]/Torquato não perdeu/Torquato per DEU/ DEU a vida”.
Reproduzido em Os últimos dias..., páginas iniciais não numeradas. Leminski citado por José CASTELLO,
op.cit.
62
In: HOLLANDA, H.B. e MESSEDER PEREIRA, C.A. Poesia Jovem Anos 70, p.16.
63
RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira, p.18 (no “Prefácio Pessoal e político”).
64
Cf. SCHWARZ. Cultura e Política..., op.cit., p. 50.
65
Estes testemunhos se deram em seminários comemorativos dos 40 anos do golpe militar, realizados no
primeiro semestre de 2004 em diversas instituições universitárias e culturais, e acompanhados pela imprensa.
Recolhi pessoalmente informações nos eventos realizados pela UFF/URFJ/CPDOC-FGV e pela UFRJ-
CFCH/Praia Vermelha nos meses de março/abril, quando se realizaram diversas mesas-redondas com a presença
de escritores/poetas, cineastas, teatrólogos, professores, jornalistas, membros de movimentos sociais, estudantis e
da luta armada de então. Inúmeros são os termos para nomear esta “efervescência”: Schwarz dizia que a
sociedade brasileira estava “irreconhecivelmente inteligente”, op.cit.; Walnice Galvão fala em “ensaio geral de
socialização cultural” e Ridenti chama de “agitação e florescimento cultural e político”. Cf. RIDENTI. O
fantasma da revolução brasileira, p.152.
66
O depoimento foi recolhido, junto com diversos outros, por HOLLANDA, H.B. e GONÇALVES, M.A.
Cultura e participação nos anos 60, p.91-92. Para a frase supracitada de Jean Marc Van Der Weid, então líder
estudantil exilado, já mencionado no cap.1, ver p.83-85.
67
Depoimento no Seminário 64+40 realizado pela UFRJ/CFCH Praia Vermelha. Nascido no Rio de Janeiro, em
1940, o poeta é considerado entre os melhores dessa geração pela crítica especializada, vencedor do prêmio
Jabuti de 1985, com o livro 3x4, e do prêmio Alphonsus de Guimaraens, em 2000, com Fio Terra. Foi
44

pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Fundação Biblioteca Nacional, Secretário da Câmara de
Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor da presidência da Funarte, onde se aposentou.
68
Cf. GINZBURG, J., op.cit., p.98.
69
Para uma discussão da apropriação do termo “revolução” pela ditadura militar, ver os livros de M.Ridenti.
70
Cf. trechos dos Atos Institucionais em CASTRO, F. História do Direito, p.523-559.
71
Cf. MORAES, D. “E foi proclamada a escravidão”: Stanislaw Ponte Preta e a representação satírica do golpe
militar. Revista Brasileira de História, n.47, p.68.
72
Ortiz sublinha que estas discussões do CFC não apresentam afinidade com o pensamento da Escola de
Frakfurt, tratando-se de outro veio de raciocínio. Cf. ORTIZ, R. Estado autoritário e cultura. In: Cultura
brasileira e identidade nacional, p.104. Para o restante da análise, p. 80-105.
73
LESPADA, Gustavo. Manifestaciones literárias de la sombra. In: MANZONI, C. (org). Violencia y silencio:
literatura latinoamericana contemporânea, p.225-226. Para estas reflexões, ver também Carlos Battilana. Diario
de Poesía: el gesto de la masividad. In: idem, p.148-149.
74
In: O Misterioso Ladrão de Tenerife, p.38.
75
Bosi fala das seguintes faces da poesia de resistência, ainda que “condenada a dizer apenas resíduos de
paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender”: aquela
que propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica e da natureza); “a melodia dos afetos
em plena defensiva (lirismo de confissão que data, pelo menos, da prosa ardente de Rousseau)”; a crítica, direta
ou velada da (des)ordem estabelecida (vertente que inclui o humor/a sátira/a paródia e o epos
revolucionário/utópico). Cf. BOSI, A. Poesia Resistência. In: O ser e o tempo da poesia, p.142-145.
76
A questão da resistência poética e do silêncio, enquanto uma das tônicas do debate da época, será tratada
especificamente no capítulo 4. Prioriza-se aqui um levantamento geral das principais reações/problemas que já se
iniciavam desde fins dos anos 60 no campo da linguagem.
77
Cf. MORAES, D. “E foi proclamada a escravidão”: Stanislaw..., idem, passim.
78
A partir de OELHER, D. O velho mundo desce aos infernos, esp. p.86-88; 110-111; 125-7; 138; 143; 181;
199-201; 239. O problema da naturalização do mal humano reaparece em várias circunstâncias e será retomado
adiante.
79
In: HOLLANDA. 26 poetas hoje, p.31. O poeta, que depois passou a assinar como Zuca Sardan, fazia
desenhos acompanhando seus poemas, o que acentua seu teor lúdico, de corte sempre muito irônico. Nascido em
1933, formado em arquitetura, seguindo carreira na diplomacia e na poesia (tendo vivido em várias cidades,
mora em Hamburgo, na Alemanha, segundo informação de 2004), o autor já fazia seus “gibis”, manuscritos,
desenhados e mimeografados a álcool muito antes de surgir a poesia marginal dos anos 70, à qual Saldanha foi
incorporado. Para Flora Sussekind, trata-se de um humor gráfico-verbal que brinca com o “sujeito-biográfico”
dominante nos textos da época. SUSSEKIND, Literatura e vida literária, p.19-20.
80
José Carlos Capinam, In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.83. Nascido em Esplanada (BA), em 1941, Capinam
é poeta e compositor, tendo feito canções em parceria com os tropicalistas, como Gilberto Gil (atual Ministro da
Cultura) e Geraldo Azevedo, algumas das quais se tornaram bastante famosas, como Soy Loco por ti América,
Ponteio, Gotham City, Miserere Nobis. Foi Secretário de Cultura da Bahia em 1986 e publicou livros de poesia
ao longo dos anos 80 e 90.
81
Antônio Carlos Secchin, sem título. In: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.131-132. Secchin é carioca, nascido
em 1952; formado em Letras, professor titular de Literatura Brasileira da UFRJ, editor da Revista Poesia
Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, nos anos 90. Tem vários livros publicados, seja de poesia, ficção ou
ensaio. Secchin e Capinam, como outros poetas da antologia de Heloisa, não são poetas “marginais”, mas vozes
da década que respondem de modo independe e muito pessoal às questões literárias do momento, com filiação
cabralina, modernista ou tropicalista. Vale frisar que a tematização da desistência mostra uma tendência de
época, e não uma conduta do indivíduo-poeta.
82
TORQUATO NETO, Os últimos dias..., p.62. A reprodução da página do jornal traz junto ao texto uma foto
do cineasta Godard, sob a qual se lê: “Ilustração: Godard. Poeta. Nunca teve mêdo de quebrar a cara. Quebrou?”.
Deste mesmo texto extraí as epígrafes de Torquato utilizadas neste trabalho. Grifo meu. Obs.: as diferenças de
grafia se devem à reforma ortográfica de 1971.
83
O poema se encontra em HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.182-185. Retiro a imagem do rocambolesco do título
de um outro poema seu: “CONFEITARIA MARSEILLASE - DOCES E ROCAMBOLES”, idem, p.181. Para
outras informações sobre Waly, ver CÍCERO, Antônio. A falange de máscaras de Waly Salomão. In:
Finalidades sem fim; SUSSEKIND, op.cit., p.95-97; Zaluar, Roberto, “Anos 70/anos 90: deslocamentos da
estratégia enunciativa em Waly Salomão”, trabalho apresentado no Simpósio Topologias da Poesia na
Modernidade, no X Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC),
Rio de Janeiro, UERJ, 31.07 a 04.08.2006. Nascido em Jequié (BA), em1943, Waly foi poeta e letrista de
sucesso, compondo canções tropicalistas e outras, entre os anos 70 e 90, quando também publicou vários livros
de poesia. Fez parte do CPC baiano nos anos 60 e definia seu grupo como uma esquerda marxista-existencialista,
45

que lia Marx, Gramsci, Sartre, Camus, Merleau-Ponty. Organizador de textos de Caetano Veloso (Alegria,
alegria), Torquato Neto (Os últimos dias de paupéria) e Hélio Oiticica (Aspiro ao grande labirinto), foi
Secretário Nacional do Livro no governo Lula, no início dos anos 2000, quando faleceu de câncer em 2003, aos
59 anos.
84
Segundo entrevista concedida a Hollanda, e por ela comentada, em Impressões de viagem, p.86.
85
Entrevista a HOLLANDA e GONÇALVES. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, A. op.cit., p.136.
É neste texto que Waly dá como “receita de arte poética” o poema “Olho de lince” supracitado, p.137. A
observação mencionada de Antônio Cândido refere-se à conferência “Vanguarda: renovar ou permanecer”,
proferida no I Ciclo de Debates da Cultura Contemporânea, no Teatro Casa Grande, em 19 de maio de 1975 e
publicada em 1976, sem revisão do autor, segundo Vinícius Dantas, organizador do livro Textos de Intervenção,
op.cit., p.214-225. Há que se ressalvar que a ruptura de nexos miméticos analisada por Cândido refere-se a uma
parte da produção estética, pois havia toda uma outra prática literária que, ao contrário, foi criticada justamente
por sua excessiva adesão ao real, numa mimese pouco elaborada porque muito marcada pela linguagem
jornalística, como nos romances-reportagem. Para uma extensa crítica deste tipo de expressão, dominante na
prosa dos anos 70, ver Flora SUSSEKIND. Literatura e vida literária.
86
Para o sentido de mimese em Adorno, ver GAGNEBIN, J. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno
e Benjamin. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história, referenciado no cap.8.
87
LA CAPRA, op.cit., p. 45-46 e 212.
88
Para o hibridismo da obra de Leminski, cf. MACIEL, M. E., op.cit., esp. p.177-178; as linguagens superpostas
são particularmente distinguidas por HOLLANDA, Impressões de viagem, p.95.
89
Cf. PEDROSA, C. Paulo Leminski: señales de vida y sobrevida. In: CÁMARA, M. Leminskiana: antología
variada, p.325. Para uma discussão problematizadora da relação entre poesia, mercado e mídia, ver o ensaio do
poeta ÁVILA, C. Poesia e sociedade de consumo, in: COSTA, H. (org). A palavra poética na América Latina,
avaliação de uma geração, p.109-118.
90
Cf. HOLLANDA e GONÇALVES, Cultura e participação nos anos 60, p.96-97.
91
José Carlos Capinam, in: HOLLANDA, 26 poetas hoje, p.81-82.
92
BRITO, A .C., Tudo da minha terra, op.cit., p.130.
93
LESPADA, op.cit., p.237.
94
Cf. PEDROSA, Célia. O olhar eloqüente. Poesia Sempre, n.22, jan./mar. 2006, p.177-189.
95
Ver a relação entre linguagem e mudança histórica discutida por Koselleck, no cap. 8.

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