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RESUMO: Este artigo discute a obra poética inicial de Ezra Pound, pré-imagista, com foco no
uso do monólogo dramático como recurso expressivo de poéticas da tradição ocidental, em
especial provençal e toscana medieval. A tradução do poema “Cino” e a análise de suas
referências literárias mostram que Pound não imita necessariamente a voz e o estilo do poeta
ficcionalizado em seus monólogos dramáticos, mas se vale de outros expedientes, mais sutis e
sofisticados, que lidam com questões como intertextualidade e a relação entre narrativa
histórica e de ficção.
Palavras-chave: Ezra Pound; personae; monólogo dramático; intertextualidade.
ABSTRACT: This article discusses the early and pre-imagistic poetical work of Ezra Pound,
focusing on the dramatic monologue as a resource to express poetics of the western tradition,
especially medieval Tuscan and Provençal. The translation of the poem Cino to the Brazilian
Portuguese language and the analysis of its literary references reveal that Pound does not
necessarily imitate the voice and style of the fictionalized poet in his dramatic monologues,
but uses other subtler and more sophisticated techniques, which deal with matters such as
intertextuality and the relation between fictional and historical narratives.
Keywords: Ezra Pound; personae; dramatic monologue; intertextuality.
1. INTRODUÇÃO
1 Mestrando, UFPR.
pelos doze anos seguintes como editor, crítico e escritor2. 1920 é o ano de
publicação de “Hugh Selwyn Mauberley”, último poema que Pound compôs
antes de se dedicar exclusivamente aos Cantos, e também de sua despedida de
Londres, rumo a Paris. Ao longo desses doze anos, Pound publicou mais de uma
dúzia de livros de poemas3 e de uma centena de artigos e ensaios em vários
periódicos. Muito embora seja comum delimitar este período como a primeira
fase de sua obra4, em que os fundamentos do modernismo literário anglo-
americano estavam em gestação e desenvolvimento, as opiniões divergem
quanto à qualidade e relevância dos livros e poemas iniciais (1908 a 1912),
anteriores à assimilação da experiência das vanguardas europeias da década de
mil novecentos e dez. Marjorie Perloff (1993, p. 278), por exemplo, considera
Cathay (1915) a primeira publicação importante de Pound e, quando comenta
poemas do multifacetado Lustra (1916), são estes de recorte claramente
imagista. David Perkins, em sua monumental obra A History of Modern Poetry,
sobre o modernismo anglo-americano, entende que antes de Ripostes (1912) os
poemas de Pound só podem ser lidos com proveito no contexto de uma poética
eduardiana (1976, p. 454). Hugh Witemeyer, ao escrever sobre a primeira
poesia de Pound, também reconhece em Ripostes a transição de um estilo
romântico para outro modernista (1999, p. 47). Dirceu Villa, dentre os poucos
brasileiros que escreveram sobre o tema, expressa a opinião de que nos
primeiros poemas, antes da “guinada vanguardista”, Pound ainda não tinha
encontrado uma voz própria e sua poética estaria muito ligada a modelos
vitorianos e pré-rafaelitas (2011, p. 10 e p. 42). Essas leituras, embora não
2 Mario Faustino (1976), Augusto de Campos (1985) e Dirceu Villa (2011) descrevem o perfil
de agitador cultural de Pound na Londres dos anos 1910.
3 A Lume Spento (1908), A Quinzaine for his Yule (1908), Personae (1909), Exultations (1909),
Provença (1910), Canzoni (Londres, 1911), Rispostes (1912), Cathay (1915), Lustra (1916),
Lustra, versão expandida e publicada nos EUA (1917), Quia Pauper Amavi (1919), The Fourth
Canto (Londres, 1919), Hugh Selwyn Mauberley (1920), Umbra: The Early Poems (1920).
4 O Cambridge Companion to Ezra Pound, por exemplo, segue essa periodização.
2. O BAILE DE MÁSCARAS
lhe adequada para expressar o caráter dessa poesia, não só a de sua primeira
juventude, mas a de toda aquela composta antes de 1920.
Em Personae os poemas estão dispostos em conjuntos que correspondem
aos principais livros publicados (Ripostes, Cathay, Lustra). Porém, os poemas da
fase pré-imagista estão coligidos numa primeira seção mais geral denominada
Poems of 1908-1911. Essa seção é composta de 42 poemas que, ancorados numa
jovial erudição e se valendo de procedimentos tais como a adaptação e a
dramatização, buscam apresentar poetas e poéticas do passado. Nesses poemas
Pound evoca a figura de várias personagens, seja de poetas como Bertran de
Born (“Sextina: Altaforte”) e François Villon (“Villonaud for this Yule”), ou de
personagens históricas, como o bíblico Simão Zelotes (“Ballad of the Goodly
Fere”). Há obras que se enquadram mais no conceito tradicional de tradução ou
pastiche, como o poema baseado na obra de Heinrich Heine (“Translations and
Adaptations from Heine”). Há também poetas anônimos, cuja voz pretende
expressar a poética mais geral de uma época ou cultura, como no poema “E
assim em Nínive” (“And thus in Nineveh”), do qual transcrevo em tradução os
primeiros versos:
5
No original: “Aye! I am a poet and upon my tomb / Shall maidens scatter rose leaves / And
men myrtles, ere the night / Slays day with her dark sword. // 'Lo ! this thing is not mine /
Embora Nínive seja uma das cidades assírias que caíram na influência
política e comercial da Babilônia há alguns milênios, e nesse monólogo o poeta
seja anônimo, as principais máscaras dos poemas pré-imagistas de Pound são de
poetas medievais identificáveis, sobretudo provençais e toscanos. Atento a isso,
Hugh Witemeyer, num difundido artigo intitulado “Early Poems”, relaciona os
poemas do período pré-imagista aos estudos acadêmicos do jovem professor de
literatura medieval. Com efeito, Pound havia estudado, entre 1901 e 1906,
língua e literatura românica medieval na Universidade da Pensilvânia, Filadélfia,
e no Hamilton College em Clinton, Nova York. Após adquirir o grau de mestre
ministrou alguns cursos numa faculdade de Indiana (1907-1908) e num
instituto de ensino superior em Londres (1909-1910). Daí o caráter didático,
pontuado por Witemeyer, muitas vezes atribuído a esses poemas:
Tal como o curso escolar The Spirit of Romance, vários de seus primeiros
poemas buscam recriar o caráter (virtù) singular de algum escritor, ou
geral de certa literatura, esquecida nos dias de hoje. Neste mesmo viés, os
monólogos dramáticos ou personae de Pound têm funções tanto didáticas
quanto expressivas. Eles pretendem direcionar o interesse do leitor à
sensibilidade e realizações de figuras históricas fundamentais, mas pouco
conhecidas, tais como as dos trovadores provençais. (WITEMEYER, 1999,
p. 44)
Nor thine to hinder, / For the custom is full old, / And here in Nineveh have I beheld / Many a
singer pass and take his place / In those dim halls where no man troubleth / His sleep or song.
And many a one hath sung his songs / More craftily, more subtle-souled than I.” (POUND,
1990, p. 40)
Muitos dos poemas iniciais de Pound podem ser chamados de “Um poema
à maneira de Villon”, Rosseti ou Bertran de Born, e de uma dúzia de outros
escritores. Através do pastiche, o principiante aprende como os efeitos
característicos dos grandes poetas foram alcançados em termos de
arranjos puramente verbais. Como resultado destes exercícios
cuidadosamente planejados, seus próprios recursos técnicos serão
ampliados e assim quando chegar o momento de escrever um trabalho
original não será freado por incapacidade técnica. (RUTHVEN, 1969, p. 02)
6 No original: “LOQUITUR: En Betrans de Born. / Dante Alighieri put this man in hell for that
he was a stirrer-up of strife. / Eccovi! / Judge ye! / Have I dug him up again? / The scene is his
castle, Altaforte. “Papiols” is his jongleur. “The / Leopard,” the device of Richard (Cœur de
Lion).” (POUND, 1990, p. 26)
7 No primeiro verso: “Loquitur”, do latim, significa “fala”, na terceira pessoa do singular. “En”,
3. “CINO” TRADUZIDO
CINO
Campanha italiana, 1309, em plena estrada
***
4. CINO SI FO DA PISTOIA
mulheres são todas iguais — razão por que é melhor compor canções sobre o
sol — Cino argumenta que os seus relacionamentos com elas (lábios, corpos)
sempre derivam em recordações (pequenas joias) e terminam como objeto de
sua poesia (almas da canção). Estas duas estrofes funcionam como uma
introdução, tanto ao tema (trocar as mulheres pelo sol) quanto à personalidade
de Cino (jovial e galhofeira).
Na terceira estrofe, Cino imagina o que pensariam ou sentiriam, após a sua
partida, as várias mulheres com quem esteve. Elas lamentam a sua perda e,
como cada qual tem uma experiência própria e pessoal com Cino, a imagem que
elas fazem dele nem sempre coincide, daí a aparente contradição entre o
“ousado”, o “galhardo”, o “triste” e “o mais forte de sua tribo”: são recordações
de diversas mulheres costuradas, que criam uma atmosfera cômica. A
introdução dessa segunda voz, uma voz coletiva e feminina imaginada por Cino,
é sentida nos planos do ritmo e da rima. Sem muito esforço, é possível imaginá-
lo imitando caricaturalmente o modo de falar dessas mulheres.
Mas Cino não se limita a pintá-las sofrendo por sua ausência, ele
dramatiza também o encontro de uma delas com um tal “Monsenhor”, ocasião
em que a dama finge quase não se lembrar do poeta e chega a pôr em dúvida a
autoria de suas canções. As hesitações da mulher, seus “ah, sim”, criam um ritmo
sonoro-sintático bastante coloquial. O verso entre parênteses “(são tudo a
mesma coisa esses malandros)” parece representar a fala de um terceiro,
provavelmente do tal “Monsenhor”, mas poderia ser o pensamento da própria
dama, ou, forçando um pouco a interpretação, a voz do arranjador do poema, a
voz de Ezra Pound. A dama, ao fim da conversa, fingindo uma vez mais
tal Monsenhor.
10 “Cino pistoriensem, amorem; amicum eius, rectitudinem” (Livro II, parágrafo 2).
quais o poeta se deleita (che a simil di biltate con molte donne sparte mi diletti). É
muito possível que o argumento do poema de Pound tenha se originado desses
sonetos.
Contudo, notam-se mais diferenças que semelhanças entre o Guittoncino
histórico e o Cino ficcional. Com efeito, se aquele recusou o conselho de Alighieri
e justificou sua conduta amorosa e poética com o exílio, a personagem de Pound
decidiu abandonar a poética do amor, ao argumento de que todas as mulheres
são iguais, e, em vez de concentrar seu estro numa só dama, apontou sua voz
para a natureza e o mito. Embora haja uma ou outra correspondência estilística
entre a fictícia voz de Cino e o estilo poético de Guittoncino (como o uso da
interjeição “Deh!”, recorrente em seus sonetos, e traduzido no monólogo por
“Bah!”11), todo o resto parece invenção, em especial a canção ao sol, inexistente
em seu cancioneiro. Uma hipótese é que Pound esteja fazendo uma referência ao
poema de Francisco de Assis (Cantico del Sole), compilado e traduzido em The
Spirit of Romance (POUND, 1968, p. 101). Por outro lado, esta ode pagã ao sol —
radicalmente distinta da de Francisco de Assis — estaria adiantando em pelo
menos um século a ascensão da mitologia greco-romana como topos do
renascimento italiano. Nos poemas de Guittoncino pude encontrar apenas duas
menções a “Giove” e nenhuma a Febo Apolo. Deus, em contrapartida, é
mencionado e evocado constantemente e, de fato, não se me afigura possível
encontrar qualquer indício de paganismo nos poemas de Guittoncino.
A despeito dessas possibilidades de leitura, o que me parece relevante é
que o poema, lido na perspectiva de uma crítica histórica (que aqui apenas
esbocei), lança luz sobre a complexidade e variedade do conceito de amor dos
poetas do Stil Nuovo, frequentemente simplificado. De fato, é generalizada a
11 O uso da interjeição “Deh” (provavelmente do latim Dee), nas funções exclamativa e
vocativa, é bastante comum no período. Alighieri, por exemplo, usa-a ao menos uma dezena de
vezes na Commedia. Entretanto a recorrência nos sonetos de Guittoncino é característica de
sua poesia.
singulariza a coisa não é a coisa ela mesma, mas a postura do poeta para com a
coisa. Essa dessacralização do objeto poético é mais um traço da modernidade
da poesia do jovem Pound.
REFERÊNCIAS
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KENNER, Hugh. Poetry of Ezra Pound. New York: New Directions, 1968.
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WITEMEYER, Hugh. “Early Poetry 1908-1920”. In NADEL, Ira. The Cambridge Companion to
Ezra Pound. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.