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Apontamentos II
A Lírica
A primeira edição global das Rhytmas, impressa por Manuel de Lira, veio a
público em 1595, 15 anos depois da morte do poeta. Pouco depois, (em 1598) surge
uma segunda edição, organizada por Fernão Rodrigues Lobo Soropita, também ele
poeta.
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na primeira edição se recolhem 170 peças, a edição preparada por Faria e Sousa conta
com 322 composições, assinalando um movimento de expansão, que haveria de
prolongar-se até metade do século XX.
No século XX e para além das duas edições já referidas (da autoria de Maria de
Lourdes Saraiva e Leodegário de Azevedo Filho) devem mencionar-se ainda mais cinco
empreendimentos qualquer deles (em especial os quatro últimos) assentes em
critérios mais seguros: refiro-me à edição de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes
Vieira (1932), Hernâni Cidade (1946/47), Álvaro Júlio da Costa Pimpão (1944), António
Salgado Júnior (1963) e Maria Vitalina Leal de Matos (2019).
Lírica tradicional
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poeta inovador se torna impossível seguir o critério de que a poesia tradicional é
menos exigente do que aquela que foi escrita em medida italiana.
Em momento posterior, esse estilo viria a ser substituído pela poesia dita
“italianizante”, associada a um maior requinte artístico e a uma maior profundidade
temática. Uma outra tese que circula sobre o papel da medida velha na Lírica de
Camões é a de que nela o poeta teria essencialmente cultivado temas “menores”,
reservando para a medida nova aqueles que se revestem de maior profundidade. A
ideia (corrente entre camonistas de várias gerações) de que, no cômputo geral da
produção camoniana, este tipo de poesia assume um carácter secundário, é muito
favorecido pela reputação da lírica cortesanesca, no seu todo. Para muitos, este tipo
de lírica não passaria de uma produção de carácter engenhoso, que se esgota nas
circunstâncias em que se inspira. Fundados nesta ideia, alguns vão ao ponto de
considerar que o seu interesse seria muito mais documental do que estético.
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camoniana. Com esta designação, Sérgio pretende sobretudo defender a ideia de que
esta longa composição representa verdadeiramente uma palinódia, ou seja, uma
rasura de tudo o que antes tinha escrito ou, pelo menos um ponto de chegada e de
superação de um percurso assinalado por grandes tensões.
Pode assim pensar-se que a linha que conduz dos trovadores a Camões não é
contínua, mas derivada. Em si mesma, a existência de coincidências temáticas não
prova o contacto direto. O que essa situação indicia é que o poeta recolhe ainda por
diversas vias (algumas das quais alheias à circulação livresca) o essencial de uma
cultura e de uma prática poéticas que tem raízes medievais.
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insólitas, próprias do convívio palaciano. No Cancioneiro Geral, compilado e publicado
por Garcia de Resende em 1516 não faltam poemas alusivos a circunstâncias fortuitas.
Pode ser “a um cavalo porque escoicinhava muito” a um clérigo que lamenta a perda
de uma pipa de vinho, etc.
Refiro-me à Cantiga a Dona Guiomar de Blasfé (p. 61), que se queimara com ua
vela no rosto e às trovas “a ua senhora que estava rezando por uas contas” (p.28).
p. 61
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p. 28
O desconcerto do mundo
Em mar de contentamentos.
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injustiça geral, que permite o bem-estar sem limites dos maus (nadam em “mar de
contentamentos” e os “graves tormentos” destinados aos bons, apenas por serem
“bons”. A última parte do poema, aquela que se refere ao caso pessoal do sujeito
poético deve ser entendido em registo de ironia. É verdade que foi “mau” e que sofreu
por isso o devido castigo, mas a mensagem essencial não resulta desse facto. O que
importa proclamar é que o seu castigo justo constitui uma exceção num mundo que
funciona exatamente ao contrário, ou seja, em flagrante desconcerto moral. Como se a
maldade do poeta fosse episódica, em contraste com a maldade constante que impera
no mundo, tal como o poeta a vê e a sofre.
O Amor
Por sua vez, o Amor suscita uma representação abundante. Para além do estilo
petrarquista, que não é exclusivo da medida nova, merecem destaque a insistência
com que se alude à denúncia da sua subversão através da mentira (da amada) ou da
sua secundarização em face de interesses materiais.
A surpresa vem, em primeiro lugar, da inversão dos códigos que dizem respeito
à beleza feminina. Ao contrário do que normalmente sucede, a mulher é desta vez
nomeada. O seu nome é Bárbara (ou Bárbora) e os seus atributos físicos são muito
diferentes do modelo renascentista que podemos encontrar na poesia ou na pintura
da época. Aos olhos verdes, cabelos louros e pele alva é agora contraposta a “pretidão
de amor” envolvendo a generalidade do corpo feminino. Em consonância com esta
subversão situam-se os efeitos do desejo masculino: à perturbação e ao sofrimento
que derivam da distância, contrapõe-se agora “a presença serena que a tormenta
amansa”. O poema termina mesmo com a inversão do tópico do amor que mata:
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O Desengano
E do bem só a lembrança.
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A Lírica em Medida nova
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O gosto de um suave pensamento
p. 117
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De forma separada ou conjunta, estas duas notas hão de surgir várias vezes ao longo da Lírica e
também da Épica do poeta. O facto de este soneto aparecer em posição inicial nas edições
quinhentistas da Lírica leva a supor que Camões o pudesse ter escolhido para introdução de toda
a sua poesia.
As tensões
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de outra natureza: a mulher pode estar morta ou, estando viva, pode encontrar-se
condicionada por motivos sociais ou outros.
Carência e Culpa
Ó ninfa delicada,
Honra da Natureza!
Não é a gentileza
Fora do natural?
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p. 321
Natureza e Cultura
Consciência e Alienação
A primeira oitava constitui a síntese de todo o longo poema (composto por 232
versos):
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Quem tão experimentado e tão discreto
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Lhe tira a doce vida descansada!
Os códigos
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A poesia do século XVI só pode entender-se no quadro do que normalmente se
designa por imitação. O significado da palavra não pode ser transposto para o nosso
tempo sem algumas explicações. No quadro da arte quinhentista, imitação não
significa o decalque dos modelos e muito menos a sua “cópia”. Imitar os bons modelos
significava sobretudo conhecê-los e dar conta desse conhecimento na criação
atualizada que era a arte da época. Tratava-se, portanto de um diálogo apropriador e
seletivo, que prestigiava o ato artístico, uma vez que nele deveriam existir equilíbrios
entre a observância e a transformação.
São vários os códigos que podem invocar-se como suporte da Lírica camoniana.
Não pode esquecer-se, desde logo, a tradição greco-latina, tão presente na
incorporação de mitos ou no diálogo assíduo com nomes maiores como Ovídio, Catulo,
Propércio e Virgílio (acima de todos). De entre os códigos modernos, os que assumem
maior importância para a compreensão do universo do autor são, sem dúvida, o
neoplatonismo e o petrarquismo. Não deve esquecer-se, de resto, que, apesar da sua
dimensão renovadora, ambos os códigos são eles próprios, devedores da tradição
antiga. Afirmar apenas, como algumas vezes acontece, que a Lírica de Camões se
inscreve nesse quadro geral é dizer pouco.
É isso mesmo que sucede na já citada Égloga dos Faunos. Nela se retrata o
achamento pelos faunos de ninfas que se banham num lago situado numa clareira.
Surpreendida, as ditas ninfas saem da água e fogem internando-se no bosque de onde
tinham vindo. Embora pouco dotados para a perseguição (por terem pés caprinos), os
faunos perseguem-nas em desespero. A teoria toma corpo nos argumentos dos dois
faunos perseguidores. Tentando convencer as ninfas a deterem-se os perseguidores
recorrem a fundamentos neoplatónicos. A ponto de se poder dizer que os ditos faunos
parecem leitores de Marsilio Ficino e Leão Hebreu, dois dos mais influentes intérpretes
do neoplatonismo filosófico.
e a Natureza
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para aumentar as cousas que criou.
p. 371-72
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redondilhas, o substrato cristão atribui coerência à solução que se entrevê: a rasura de
todos os desconcertos e ilusões, mediante a adoção do canto divino e a entrada na
Eternidade da Jerusalém celeste.
As citadas redondilhas constituem, desde logo, o poema mais longo que nos
chegou de Camões. Trata-se de 366 versos, alinhados em quintilhas (na primeira
edição das Rimas) ou em décimas na maior parte dos casos. O fundamento é claro e
assumido: parafrasear um salmo bíblico (136), que se inicia com o versículo “Sobre os
rios de Babilónia” e alude ao desterro escravizante dos israelitas na Babilónia, depois
da queda de Jerusalém e da consequente destruição do Templo.
Tal como os judeus tinham recusado obedecer às ordens dos seus carcereiros
para que cantassem (argumentando que o canto que se deve ao Senhor não deve se
cantado em “terra alheia”) também o poeta manifesta consciência revelada do exílio
que é a vida terrena. À Luz dessa consciência decide cancelar o canto ao profano que o
tinha ocupado no passado, dependurar os instrumentos musicais inerentes a esse
mesmo canto e adotar uma atitude nova. Precisava, para tanto, de adotar um canto
radicalmente diferente, tocado ao som de novos instrumentos. À Babilónia dos afetos
humanos contrapõe a Jerusalém Celeste onde apenas existe a realidade duradoura e
segura do amor divino.
A forma como termina o seu poema reflete esse mesmo horizonte antevisto
através da reminiscência (que distingue da memória):
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Ali achará alegria
Se só com te imaginar
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Mas são mais aqueles que nele veem um sinal da dinâmica criadora de Camões,
que vai da inquietude até ao desespero, do sofrimento angustiante até ao vislumbre
de uma paz mística e cristã, como era próprio da época.
É por ter feito da poesia uma imitação da vida (e não apenas uma imitação dos
tópicos e do estilo petrarquista) que Camões pode ser tomado, ele próprio como
modelo que se projetou na posteridade até aos nossos dias. O teor intimista e
confessional da sua poesia não valida totalmente uma biografia real. Mas é quase
impossível não acreditar, pelo menos, nos fundamentos emocionais que invoca.
Os géneros
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enganoso de Almeno ou da VIII, consagrada à perda amorosa vivida pelo pescador
Aónio, a quem apenas responde a Natureza. Por detrás dos diferentes cambiantes que
podem notar-se numa ou noutra composição, a leitura continuada das oito églogas
institui uma sensação crepuscular de impossibilidade de diálogo entre os mundos
masculino e feminino, entre o homem e aquilo que o transcende. Se, em abstrato, a
égloga se destina justamente a celebrar o diálogo produtivo e luminoso não podemos
deixar de concluir que assim não sucede em Camões.
Essa mesma tónica confirma-se e acentua-se nas elegias, que são textos
especialmente propensos à evocação de perdas.
Mesmo nas Odes, teoricamente mais aptas a acolher o canto eufórico, Camões
não deixa de problematizar o infortúnio, evidenciando mesmo, em alguns casos, a
análise das contradições em que o seu canto se apoia. É isso que sucede com a Ode VI,
onde o neoplatonismo é objeto de uma desenvolvida análise teórica, aplicada ao seu
caso pessoal.
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