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Estudos Camonianos (2023-2024)

Apontamentos II

A Lírica

Ao contrário do que sucedia em outros géneros considerados mais prestigiados


(como era o caso da epopeia) até finais do século XVI a Lírica não era objeto de
impressão regular. À morte de Camões, apenas três textos líricos tinham sido
publicados: o primeiro foi a ode “Aquele único exemplo”, dedicada ao Conde de
Redondo, Vice-Rei da Índia, que abre o Colóquio dos Simples e Drogas…”, datado de
1563. Para além de poder ser explicado em função de uma forte cumplicidade pessoal
(existente entre Garcia de Orta e Camões) é necessário lembrar que, na época, uma
das funções da poesia era justamente a de certificar e enaltecer feitos, incluindo as
obras que resultavam de um saber tão necessário como era o saber médico ou
farmacológico reunido por um português, que alcançou na Índia grande repercussão.
O mesmo sucede com a Elegia “Depois que Magalhães teve tecida”, dedicada a D.
Leonis Pereira (governador de Malaca). introduz a História da Província de Santa Cruz,
de Pero de Magalhães Gândavo, publicado em 1576 na oficina de António Gonçalves (a
mesma onde, 4 anos antes, tinham sido compostos Os Lusíadas). O citado livro
enaltece as riquezas do Brasil e pode ser comparado a um tratado geográfico referindo
as riquezas e as possibilidades de colonização do território brasileiro.

Na mesma obra, figura ainda o soneto “Vós, ninfas da gangética espessura”


dedicado ao mesmo D. Leonis Pereira, celebrando o seu triunfo sobre o Rei de Achém.

A primeira edição global das Rhytmas, impressa por Manuel de Lira, veio a
público em 1595, 15 anos depois da morte do poeta. Pouco depois, (em 1598) surge
uma segunda edição, organizada por Fernão Rodrigues Lobo Soropita, também ele
poeta.

As duas edições foram patrocinadas pelo livreiro Estêvão Lopes. Em 1607 e


1616, são publicadas novas edições por Domingos Fernandes, livreiro da Universidade;
em 1656, vem a público uma outra (desta vez impressa nas oficinas de Paulo
Craesbeck), que inclui a primeira edição de uma peça de teatro (El Rei Seleuco). Já
perto do final de Seiscentos (1685), na Imprensa de Teotónio Dâmaso de Melo, surge
uma edição que Manuel de Faria e Sousa comentara em boa parte, sem, no entanto,
ter chegado ao fim. Uma vez que Camões não procedeu a nenhuma publicação global,
existem diferenças importantes entre todas estas edições. Bastará dizer que, enquanto

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na primeira edição se recolhem 170 peças, a edição preparada por Faria e Sousa conta
com 322 composições, assinalando um movimento de expansão, que haveria de
prolongar-se até metade do século XX.

Já no século XIX, o número de edições aumenta bastante: merecem destaque


as Obras de Luís de Camões, editadas pelo Visconde de Juromenha (1860-66) as Obras
Completas, editadas por Teófilo Braga (1873-74) e o Parnaso de Luís de Camões,
editado por Ferreira de Brito, em 1880. Com o objetivo de reforçar a glória do poeta,
estes editores abandonam hesitações e escrúpulos, aceitando a autoria camoniana
para muitos textos.

No século XX e para além das duas edições já referidas (da autoria de Maria de
Lourdes Saraiva e Leodegário de Azevedo Filho) devem mencionar-se ainda mais cinco
empreendimentos qualquer deles (em especial os quatro últimos) assentes em
critérios mais seguros: refiro-me à edição de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes
Vieira (1932), Hernâni Cidade (1946/47), Álvaro Júlio da Costa Pimpão (1944), António
Salgado Júnior (1963) e Maria Vitalina Leal de Matos (2019).

Embora existam vantagens em considerar a obra lírica de Camões na sua


globalidade, é costume estabelecer uma distinção entre os versos que foram
compostos em medida velha (ou tradicional) e os que obedecem ao metro italiano (de
dez sílabas). Em geral, o primeiro tipo de poesia é menos valorizado do que o segundo.
Como veremos, porém, trata-se de um pressuposto que carece de alguma matização.

Lírica tradicional

Designa-se por medida velha (poesia tradicional ou poesia em redondilha) a


lírica composta em verso irregular (com predominância dos versos de cinco ou de sete
sílabas) existente nos cancioneiros peninsulares, produzida ao longo de todo o século
XV e grande parte do século XVI. Em Portugal (e também em Espanha) a introdução do
decassílabo (Medida Nova) faz-se de forma gradual e não superadora, desde meados
da terceira década de Quinhentos. De tal forma que boa parte dos poetas que
acabariam por distinguir-se no culto da medida nova optaram por não enjeitar o verso
antigo, continuando a usá-lo, em regime de alternância. Assim aconteceu, desde logo,
entre nós, com Sá de Miranda (1487-1558) que, embora introduzindo os novos metros
e as novas formas estróficas na poesia portuguesa, não abdicou, ele próprio, de
continuar a poetar “à maneira antiga”. De tal modo que, também relativamente ao

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poeta inovador se torna impossível seguir o critério de que a poesia tradicional é
menos exigente do que aquela que foi escrita em medida italiana.

Na 1ª edição da Lírica de Camões (1595), a secção destinada à medida velha


(denominada “grosas e voltas”) ocupa o último lugar, quer na disposição quer na
hierarquia estabelecida pelo editor (Fernão Rodrigues Lobo Soropita) que atribui a
primazia ao soneto, seguindo-se “canções e odes”, “elegias e oitavas” e, em quarto
lugar (imediatamente antes da medida velha), as ” éclogas”.

Com ligeiras oscilações, pode dizer-se que a tendência para menosprezar a


poesia tradicional no conjunto da Lírica de Camões se manteve até aos nossos dias.
Para Wilhelm Storck, o estudioso alemão que escreveu Vida e Obra de Camões
(publicada em 1897, em português, com tradução de C.M. de Vasconcelos), a medida
velha corresponderia a uma fase inicial da produção do poeta, talvez coincidindo com
o período anterior à sua entrada na Corte.

Em momento posterior, esse estilo viria a ser substituído pela poesia dita
“italianizante”, associada a um maior requinte artístico e a uma maior profundidade
temática. Uma outra tese que circula sobre o papel da medida velha na Lírica de
Camões é a de que nela o poeta teria essencialmente cultivado temas “menores”,
reservando para a medida nova aqueles que se revestem de maior profundidade. A
ideia (corrente entre camonistas de várias gerações) de que, no cômputo geral da
produção camoniana, este tipo de poesia assume um carácter secundário, é muito
favorecido pela reputação da lírica cortesanesca, no seu todo. Para muitos, este tipo
de lírica não passaria de uma produção de carácter engenhoso, que se esgota nas
circunstâncias em que se inspira. Fundados nesta ideia, alguns vão ao ponto de
considerar que o seu interesse seria muito mais documental do que estético.

Há relativamente poucos anos esta visão menorizante começou a atenuar-se.


Se é certo que o “modo peninsular” serviu a Camões para exercitar os seus dotes de
poeta repentista e convivial, de apurada agudeza retórica e notável sentido jocoso,
não pode ignorar-se que nele o escritor também projeta (embora de maneira
diferente) os temas que dão corpo à sua mundividência profunda.

A ideia de que estaríamos perante uma “poesia preparatória”, logo superada


pelo deslumbramento do “lume de Toscana”, ou seja, pela novidade proveniente de
Itália, não encontra fundamento credível. Mesmo desconhecendo a cronologia
rigorosa da produção camoniana, parece certo que textos como “Nunca em prazeres
passados” (p.75) ou as Redondilhas de “Sôbolos Rios que vão” (p.105) terão sido
escritos após o regresso de Camões da Índia.

Invocando fundamentos plausíveis (em particular o número de quintilhas – 76)


Vasco Graça Moura chega a propor o ano de 1576 como data de composição deste
último poema ao qual António Sérgio viria a chamar “coluna vertebral” da lírica

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camoniana. Com esta designação, Sérgio pretende sobretudo defender a ideia de que
esta longa composição representa verdadeiramente uma palinódia, ou seja, uma
rasura de tudo o que antes tinha escrito ou, pelo menos um ponto de chegada e de
superação de um percurso assinalado por grandes tensões.

A circunstância de o poeta ter feito do poema um longo exame de vida, prova


que a medida velha lhe serviu de molde artístico permanente, no mesmo plano de
formas poéticas de vocação confessional como são a canção ou a elegia.

Invertendo a tendência para menorizar este tipo de poesia, uma estudiosa


como Isabel Almeida vai ao ponto de defender que a Medida Velha representa para
Camões um espaço de liberdade, tanto na expressão de sentimentos como na
fundamentação de ideias próprias. Mais liberto da força coerciva dos géneros da
medida nova, o poeta poderia exprimir de forma mais sincera e inventiva os seus
anseios.

Mesmo considerando apenas o aspeto quantitativo, a poesia tradicional de


Camões assume uma importância considerável no âmbito da sua obra. Se tomarmos
como referência a edição de Costa Pimpão, verificamos que estão escritas em medida
velha 118 composições, provenientes das diferentes edições impressas (75 da primeira
edição, 17 da edição de 1598, 17 da edição de 1616, 11 da edição de 1668 e 11 da
edição de 1861). Por outro lado, a variedade de formas métricas e estróficas recobre o
vasto repositório da poesia peninsular, abarcando subgéneros como a cantiga, o
vilancete, a esparsa, a trova, o labirinto, o convite ou o abc. Podemos encontrar estas
formas nos cancioneiros peninsulares dos séculos XV e XVI. Alguma coincidência
temática entre a poesia de Camões e a tradição trovadoresca que esteve ativa no
espaço galaico-português entre os séculos XII e XIV pode fazer supor um contacto
direto. O que se conhece sobre a circulação dos textos e sobre as dinâmicas de
oralidade relacionadas com eles faz acreditar numa outra possibilidade: a de que
Camões não conheceu essa tradição mas sim os ecos que dela ficaram nos
cancioneiros ibéricos dos séculos XV e princípios do século XVI.

Pode assim pensar-se que a linha que conduz dos trovadores a Camões não é
contínua, mas derivada. Em si mesma, a existência de coincidências temáticas não
prova o contacto direto. O que essa situação indicia é que o poeta recolhe ainda por
diversas vias (algumas das quais alheias à circulação livresca) o essencial de uma
cultura e de uma prática poéticas que tem raízes medievais.

No plano temático, a poesia tradicional de Camões pode organizar-se em torno


de quatro grandes grupos: tópicos de circunstância, o desconcerto do mundo, o
desengano e o amor. O primeiro núcleo será aquele que mais se aproxima do que
entendemos por poesia cortesanesca, inspirada por incidentes fortuitos ou situações

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insólitas, próprias do convívio palaciano. No Cancioneiro Geral, compilado e publicado
por Garcia de Resende em 1516 não faltam poemas alusivos a circunstâncias fortuitas.
Pode ser “a um cavalo porque escoicinhava muito” a um clérigo que lamenta a perda
de uma pipa de vinho, etc.

Embora não possam ignorar-se algumas afinidades, o caso de Camões é bem


diferente. Na poesia camoniana de medida velha as circunstâncias não esgotam o
interesse das composições. A título de exemplo, vejam-se dois poemas que, sob a
aparência de superficialidade jocosa, manifestam realidades mais profundas.

Refiro-me à Cantiga a Dona Guiomar de Blasfé (p. 61), que se queimara com ua
vela no rosto e às trovas “a ua senhora que estava rezando por uas contas” (p.28).

No primeiro caso, a queimadura da vela é comparada com o sofrimento que a


dama causa em quem a ama sem esperança:

Aquele rosto que traz

O mundo todo abrasado,

Se foi da flama tocado,

Foi porque sinta o que faz.

p. 61

No segundo caso, a agudeza manifesta-se no efeito provocado pela visão da


mulher que reza:

Peço-vos que me digais

As orações que rezastes

Se são pelos que matastes,

Se por vós, que assi matais?

Se são por vós, são perdidas;

Que, qual será a oração

Que seja satisfação,

Senhora de tanta vida?

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p. 28

Em qualquer um destes casos, a nota lúdica é objeto de uma interpretação


existencial que traz a marca camoniana. O que caracteriza essa marca é a
incongruência por parte da dama que reza, enquanto permanece insensível ao
sofrimento alheio. De tal forma que ao poeta a quem é dado ver a mulher que reza,
ocorre perguntar pelo beneficiário da prece. Aproveitará aos que perderam a vida por
ela. Porém, se a oração for de natureza penitencial, será vã, uma vez que as vidas
sacrificadas foram já tantas que é impossível obter qualquer tipo de absolvição.

O desconcerto do mundo

Também o desconcerto do mundo marca presença na poesia em medida velha,


sobretudo através da esparsa “Os bons vi sempre passar” (p.102):

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos

E para mais me espantar

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau. Mas fui castigado.

Assi que só para mim

Anda o mundo ordenado.

À primeira vista, parece estarmos apenas perante a confissão de uma culpa,


que foi objeto de castigo justo. Mas é bem mais do que isso. Na esparsa dá- se nota da

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injustiça geral, que permite o bem-estar sem limites dos maus (nadam em “mar de
contentamentos” e os “graves tormentos” destinados aos bons, apenas por serem
“bons”. A última parte do poema, aquela que se refere ao caso pessoal do sujeito
poético deve ser entendido em registo de ironia. É verdade que foi “mau” e que sofreu
por isso o devido castigo, mas a mensagem essencial não resulta desse facto. O que
importa proclamar é que o seu castigo justo constitui uma exceção num mundo que
funciona exatamente ao contrário, ou seja, em flagrante desconcerto moral. Como se a
maldade do poeta fosse episódica, em contraste com a maldade constante que impera
no mundo, tal como o poeta a vê e a sofre.

A ideia de que o mundo se encontra desregulado surge com frequência na


tradição poética ocidental. O tema é fartamente acolhido por Camões, quer na Lírica
quer na Épica.

O Amor

Por sua vez, o Amor suscita uma representação abundante. Para além do estilo
petrarquista, que não é exclusivo da medida nova, merecem destaque a insistência
com que se alude à denúncia da sua subversão através da mentira (da amada) ou da
sua secundarização em face de interesses materiais.

O poema de amor mais surpreendente e que mais memória haveria de deixar


entre os leitores de Camões haveria de ser o que ficou conhecido por “Endechas a
Bárbara escrava”:

A surpresa vem, em primeiro lugar, da inversão dos códigos que dizem respeito
à beleza feminina. Ao contrário do que normalmente sucede, a mulher é desta vez
nomeada. O seu nome é Bárbara (ou Bárbora) e os seus atributos físicos são muito
diferentes do modelo renascentista que podemos encontrar na poesia ou na pintura
da época. Aos olhos verdes, cabelos louros e pele alva é agora contraposta a “pretidão
de amor” envolvendo a generalidade do corpo feminino. Em consonância com esta
subversão situam-se os efeitos do desejo masculino: à perturbação e ao sofrimento
que derivam da distância, contrapõe-se agora “a presença serena que a tormenta
amansa”. O poema termina mesmo com a inversão do tópico do amor que mata:

E pois nela vivo, é força que viva.

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O Desengano

O tema do Desengano aproxima-se da versão renascentista, com uma forte


vertente existencial (p.75).

É o que sucede na Glosa ao mote “Foi-se gastando a esperança,/fui entendendo


os enganos/do mal ficaram meus danos/e do bem só a lembrança”.

Aí encontramos a representação de uma história de desencanto gradualizado,


que coincide com o advento da consciência. Afinal, tudo o que era prazer era ilusório e
antecedia sistematicamente o sofrimento. Neste mesmo texto apontam-se já os dois
agentes do desengano que hão de marcar presença em toda a obra camoniana: Amor
e Destino, em articulação estreita.

Ainda nesse poema encontramos a proclamação de uma atitude de trágica


reincidência:

Dobre-se o mal, falte a vida

Creça a fé, falte a esperança,

Pois foi mal agradecida;

Fique a dor n’alma imprimida,

E do bem só a lembrança.

Organizada em torno de alguns núcleos temáticos, a poesia camoniana em


medida velha não deve ser considerada como periférica. Continua a ser possível (e
desejável) apreciá-la à luz dos códigos, dos géneros e dos circuitos de difusão próprios
da época. Mas é importante integrá-la na restante obra de Camões. Sem ter em conta
a densidade presente em algumas composições tradicionais não é possível
compreender a inquirição sobre o mundo e sobre a condição humana que subjaz a
toda a obra do poeta. Por outro lado, contudo, sem se ter em conta a dimensão
humorística ou engenhosa (que não se confunde com expressão superficial). A sua
importância advém não apenas da frequência com que ocorre mas também do facto
de nunca se esgotar em si mesma.

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A Lírica em Medida nova

Uma narrativa de amores fracassados

Embora já visíveis na medida velha, o estilo e a mundividência de Camões vão


encontrar confirmação desenvolvida na lírica em medida nova. Independentemente
dos diferentes géneros que a assinalam, a Lírica camoniana em registo italianizante
impressiona pela sua coesão. O leitor continuado retém a ideia de que nela se conta
uma história. O mundo representado nos versos de Camões é feito de tensões, de
avanços imponderados, retrocessos, perdas e algumas (raras) visões de esperança e de
resgate.

Qualquer leitura global deve ressalvar as dúvidas de autenticidade que


subsistem acerca de alguns poemas. Um dos casos em que essa autenticidade é mais
duvidosa é, por exemplo, aquela que abrange a poesia de conteúdo religioso. Na falta
de elementos probatórios, uns tendem para a acolher no cânone, considerando como
fortemente verosímil a existência de uma última fase acentuadamente metafísica;
outros excluem esses textos, justamente porque perturbam, de alguma forma, uma
outra imagem que se quer fazer prevalecer: a imagem de um poeta questionador,
insubmisso e dialético até ao final da sua vida.

O próprio poeta invoca insistentemente os passos principais dessa narrativa,


envolvendo um tempo próprio e implicando protagonistas estáveis: o sujeito
masculino, a mulher amada e os oponentes poderosos que tanto podem ser do mundo
como podem situar-se num plano transcendente. Neste último caso, situam-se fora
das possibilidades de ação e de conhecimento do poeta. Não é ainda por acaso que a
escrita lírica surge como necessidade de alívio, desafogo ou pulsão incontrolada.
Outras vezes, aparece sob a forma de proveito e exemplo para destinatários bem
identificados: aqueles que tendo experimentado os efeitos conjugados do Amor e do
Destino podem beneficiar das recomendações alheias. Essa assimilação entre a escrita
poética e a vivência amorosa surge bem representada num soneto em particular.
Refiro-me à seguinte composição:

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Esperança de algum contentamento,

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O gosto de um suave pensamento

Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

Minha escritura a algum juízo isento,

Escureceu-me o engenho co tormento,

Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

A diversas vontades! Quando lerdes

Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...

E sabei que segundo o amor tiverdes,

Tereis o entendimento de meus versos!

p. 117

Para além de uma narrativa de condicionamento (a Fortuna leva o poeta a


escrever sobre a esperança amorosa e o Amor interrompe a sua escrita para que não
avisasse outros dos seus efeitos negativos), o poeta fala de “um breve livro” que
contém “casos tão diversos”.

Refere-se depois à natureza dos casos evocados

Verdades puras são e não defeitos

E às características restritas que devem possuir os destinatários capazes de entender os versos


do poeta:

E sabei que, segundo o amor tiverdes

Tereis o entendimento de meus versos.

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De forma separada ou conjunta, estas duas notas hão de surgir várias vezes ao longo da Lírica e
também da Épica do poeta. O facto de este soneto aparecer em posição inicial nas edições
quinhentistas da Lírica leva a supor que Camões o pudesse ter escolhido para introdução de toda
a sua poesia.

Assim terá antes feito Petrarca com o soneto

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono


Di quei sospiri ond'io nudriva 'l core
In sul mio primo giovenile errore
Quand'era in parte altr'uom da quel ch'i' sono,

Del vario stile in ch'io piango et ragiono


Fra le vane speranze e 'l van dolore,
Ove sia chi per prova intenda amore,
Spero trovar pietà, nonché perdono.

Ma ben veggio or sí come al popol tutto


Favola fui gran tempo, onde sovente
Di me mesdesmo meco mi vergogno;

Et del mio vaneggiar vergogna è 'l frutto,


E 'l pentersi, e 'l conoscer chiaramente
Che quanto piace al mondo è breve sogno.

As tensões

A história a que me tenho vindo a referir engloba o enamoramento por uma


mulher distante. A circunstância verifica-se em outros poetas que Camões toma por
modelo: a Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca ou a Isabel Freire, de Garcilaso de la
Vega. No caso vertente, porém, a mulher surge sem nome e sem traços distintivos,
mesmo no plano fisionómico, onde os estereótipos prevalecem largamente “olhos
verdes”, testa de neve e ouro”.

A tónica mais insistente é a distância que medeia entre o poeta e a mulher


amada. Pode tratar-se de uma distância social, desde logo. A ideia mais forte, contudo,
é a de que o poeta e a amada se encontram irremediavelmente separados por fatores

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de outra natureza: a mulher pode estar morta ou, estando viva, pode encontrar-se
condicionada por motivos sociais ou outros.

Carência e Culpa

A primeira tensão apresenta a Carência e a Culpa como polos extremos. De um


lado situa-se a dificuldade da resignação perante a distância que separa o amador da
amada; do outro, situa-se a Culpa, resultado direto e doloroso da ousadia que, num
determinado momento, levou o poeta a tentar o contacto com a amada. Se a ausência
é dificilmente suportável, a culpa que resulta do contacto causa profunda insatisfação
e arrependimento. O poeta dá assim conta das diferentes etapas desse processo
passional, fazendo dele o núcleo de uma história infeliz. É o que sucede concretamente
na Égloga II, centrada no infortúnio do pastor Almeno, que releva a incongruência
verificada entre a beleza delicada da amada e o seu comportamento desumano:

Ó ninfa delicada,

Honra da Natureza!

Como pode isto ser,

Que de tão peregrino parecer

Pudesse proceder tanta crueza?

Não vem de nenhum jeito

De causa divinal contrário efeito.

Não basta, ó ninfa bela,

Que podes perverter a Natureza?

Não é a gentileza

De tal gesto celeste

Fora do natural?

Não pode a Natureza fazer tal.

Tu mesma, bela Ninfa, te fizeste;

Porém, porque tomaste

Tão dura condição, se te formaste?

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p. 321

A delicadeza da amada confunde-se com a sua aparência que, de tão perfeita, se


confunde com a Natureza. A sua conduta, porém, constitui um fator de afastamento.
Neste plano, só pode admitir-se uma ambiguidade relevante (“Tu mesma, bela ninfa, te
fizeste”). O verbo “fazer” remete para uma ambiguidade relevante: a ninfa pode ter-se
criado a si mesma (não sendo, neste caso, uma criatura de Deus). Nesse sentido pode
concluir-se que se terá pervertido, adotando a dura condição que a caracteriza.

Natureza e Cultura

Uma outra tensão envolve aspetos sobretudo doutrinais. Falo agora da


oposição entre Natura e Cultura, entendendo pelo primeiro termo os impulsos
humanos e pelo segundo o conjunto de convenções, constrangimentos e interditos
que com ele colidem. Aplicada ao comportamento feminino, o binómio suscita uma
contradição entre o que está supostamente conforme a Natureza (a recetividade ao
Amor e ao Desejo masculinos) e o que resulta de uma prática calculada por parte da
mulher, ilustrada pela mentira ou pela fuga. A esse respeito, a figura da ninfa revela-
se bem ilustrativa desta tensão: trata-se, como é sabido, de uma representação da
mulher na qual coincidem a beleza e o comportamento furtivo. Deste modo, o poeta
retrata com insistência o encontro e a perseguição inútil do sujeito masculino a uma
ninfa inumana, que resiste tanto aos fundamentos naturais como aos apelos da razão.

Consciência e Alienação

De entre os textos líricos que surgem consagrados a este tema, merecem


destaque as Oitavas dedicadas “A D. António de Noronha/sobre o desconcerto do
mundo”.

A primeira oitava constitui a síntese de todo o longo poema (composto por 232
versos):

Quem pode ser no mundo tão quieto

Ou quem terá tão livre o pensamento,

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Quem tão experimentado e tão discreto

Tão fora, enfim, de humano entendimento

Que, ou com público efeito, ou com secreto,

Lhe não revolva e espante o sentimento,

Deixando-lhe o juízo quase incerto,

Ver e notar do mundo o desconcerto? (p.286)

Enumeram-se, de seguida, exemplos de desconcertos morais, até que surge


uma fábula concreta, que tem por protagonista um tal Trasilau:

De um certo Trasilau se lê e escreve,

Entre as cousas da velha Antiguidade

Que perdido o grão siso um tempo teve

Por causa de uma grave infirmidade.

E, enquanto de si fora, doudo esteve,

Tinha por teima e cria por verdade

Que eram suas as naus que navegavam

Quantas no porto Píreo ancoravam.

Por um senhor mui grande se teria

(além da vida alegre que passava)

pois nas que se perdiam não perdia

e das que vinham salvas se alegrava.

Não tardou muito tempo quando, um dia,

Um Crito, seu irmão, que ausente estava,

À terra chega; e vendo o irmão perdido,

Do fraternal amor foi comovido.

Aos médicos o entrega, e com aviso

O faz estar à cura refusada.

Triste, que por tornar-lhe o caro siso

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Lhe tira a doce vida descansada!

As ervas Apolíneas, de improviso,

O tornam à saúde atrás passada.

Sesudo, Trasilau ao caro irmão

Agradece a vontade, a obra não.

Porque, depois de ver-se no perigo

Dos trabalhos, que o siso lhe obrigava,

E despois de não ver o estado antigo

Que a vã opinião lhe apresentava,

- Ó inimigo irmão, com cor damigo!


- Para que me tiraste (suspirava)

De mais quieta vida e livre em tudo

Que nunca a pôde ter nenhum sesudo?

Por que rei, por grande fortaleza?

Que me dava que duque me trocara?

Por que senhor de grande fortaleza?

Que me dava se o mundo se acabara

Ou que a ordem mudasse a natureza?

Agora é-me pesada a vida cara;

Sei que cousa é trabalho e que tristeza.

Torna-me a meu estado, que eu te aviso

Que na doudice só consiste o siso. (p.289-290

Os códigos

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A poesia do século XVI só pode entender-se no quadro do que normalmente se
designa por imitação. O significado da palavra não pode ser transposto para o nosso
tempo sem algumas explicações. No quadro da arte quinhentista, imitação não
significa o decalque dos modelos e muito menos a sua “cópia”. Imitar os bons modelos
significava sobretudo conhecê-los e dar conta desse conhecimento na criação
atualizada que era a arte da época. Tratava-se, portanto de um diálogo apropriador e
seletivo, que prestigiava o ato artístico, uma vez que nele deveriam existir equilíbrios
entre a observância e a transformação.

São vários os códigos que podem invocar-se como suporte da Lírica camoniana.
Não pode esquecer-se, desde logo, a tradição greco-latina, tão presente na
incorporação de mitos ou no diálogo assíduo com nomes maiores como Ovídio, Catulo,
Propércio e Virgílio (acima de todos). De entre os códigos modernos, os que assumem
maior importância para a compreensão do universo do autor são, sem dúvida, o
neoplatonismo e o petrarquismo. Não deve esquecer-se, de resto, que, apesar da sua
dimensão renovadora, ambos os códigos são eles próprios, devedores da tradição
antiga. Afirmar apenas, como algumas vezes acontece, que a Lírica de Camões se
inscreve nesse quadro geral é dizer pouco.

É necessário lembrar que a conjugação desses códigos se aplica à grande


maioria dos poetas europeus de Quinhentos. Por isso, mais do que a nomeação,
importa referir a relação particular que Camões mantém com eles.

Deve dizer-se, em primeiro lugar, que, em si mesmo, o neoplatonismo constitui


um horizonte positivo. Nele assenta a ideia de Amor, como energia que subordina
tanto os seres humanos como o mundo, em geral. Na obra de Camões, contudo, o
código em apreço dá origem a uma contradição flagrante entre o que poderemos
designar por uma teoria de luz e uma experiência sombria.

É isso mesmo que sucede na já citada Égloga dos Faunos. Nela se retrata o
achamento pelos faunos de ninfas que se banham num lago situado numa clareira.
Surpreendida, as ditas ninfas saem da água e fogem internando-se no bosque de onde
tinham vindo. Embora pouco dotados para a perseguição (por terem pés caprinos), os
faunos perseguem-nas em desespero. A teoria toma corpo nos argumentos dos dois
faunos perseguidores. Tentando convencer as ninfas a deterem-se os perseguidores
recorrem a fundamentos neoplatónicos. A ponto de se poder dizer que os ditos faunos
parecem leitores de Marsilio Ficino e Leão Hebreu, dois dos mais influentes intérpretes
do neoplatonismo filosófico.

Amor é um brando afeito

que Deus no mundo pôs

e a Natureza

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para aumentar as cousas que criou.

De Amor está sujeito

Tudo quanto posssui a redondeza;

Nada sem este efeito se gerou.

Por ele conservou

A causa principal o mundo amado,

Donde o pai famulento foi deitado.

As cousas ele as ata e as conforma;

Com o mundo reforma

A matéria. Quem há que não o veja?

Quanto meu mal deseja, sempre forma.

p. 371-72

A prática contraria a teoria e fica ilustrada no comportamento das ninfas, que


se banhavam num lago quando são surpreendidas pelos faunos. Ao sentirem-se
contempladas, assumem a atitude de fuga, tantas vezes retratada em quadros do
Renascimento. Neste caso concreto, internam-se na espessura do bosque, que
constitui o seu meio natural. Institui-se assim uma situação recorrente no mundo
camoniano: o sujeito masculino dominado pelos impulsos e a mulher que se furta ao
desejo. A escrita apenas dá conta do desejo tormentoso de quem persegue e deseja,
mas nada diz sobre os sentimentos de quem foge. Daqui resulta uma recriminação
implícita: quem persegue é portador de uma teoria que culpa quem recusa o desejo
masculino. É essa a função do neoplatonismo luminoso: a de funcionar como
legitimação do sujeito desejante e a de condenar a recusa da mulher que procura a
sombra da renúncia. Da parte do sujeito masculino, que reproduz o ponto de vista do
poeta, fica a incompreensão que aponta como um comportamento incoerente e o
sofrimento de quem se vê frustrado nos seus anseios humanos.

Camões recorre ao neoplatonismo em dois momentos particulares da sua obra:


na ilha dos amores, episódio terminal da sua epopeia e nas redondilhas de “Sobre os
Rios que vão”. Todavia, se no primeiro caso (sobre o qual me pronunciarei mais à
frente) o lastro greco-latino permite a construção de uma utopia plástica, no caso das

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redondilhas, o substrato cristão atribui coerência à solução que se entrevê: a rasura de
todos os desconcertos e ilusões, mediante a adoção do canto divino e a entrada na
Eternidade da Jerusalém celeste.

As citadas redondilhas constituem, desde logo, o poema mais longo que nos
chegou de Camões. Trata-se de 366 versos, alinhados em quintilhas (na primeira
edição das Rimas) ou em décimas na maior parte dos casos. O fundamento é claro e
assumido: parafrasear um salmo bíblico (136), que se inicia com o versículo “Sobre os
rios de Babilónia” e alude ao desterro escravizante dos israelitas na Babilónia, depois
da queda de Jerusalém e da consequente destruição do Templo.

A paráfrase de salmos bíblicos (sobretudo os que tinham um carácter


penitencial) era então uma prática habitual em vários poetas. Este mesmo salmo
inspirou idêntico procedimento a outros poetas contemporâneos de Camões.

A diferença reside, neste caso, na reflexão desenvolvida sobre a natureza da


vida humana, do sentimento amoroso, do horizonte de salvação.

Tal como os judeus tinham recusado obedecer às ordens dos seus carcereiros
para que cantassem (argumentando que o canto que se deve ao Senhor não deve se
cantado em “terra alheia”) também o poeta manifesta consciência revelada do exílio
que é a vida terrena. À Luz dessa consciência decide cancelar o canto ao profano que o
tinha ocupado no passado, dependurar os instrumentos musicais inerentes a esse
mesmo canto e adotar uma atitude nova. Precisava, para tanto, de adotar um canto
radicalmente diferente, tocado ao som de novos instrumentos. À Babilónia dos afetos
humanos contrapõe a Jerusalém Celeste onde apenas existe a realidade duradoura e
segura do amor divino.

A forma como termina o seu poema reflete esse mesmo horizonte antevisto
através da reminiscência (que distingue da memória):

Quem do vil contentamento

Cá deste mundo visível,

Quanto ao homem for possível,

Passar logo o entendimento

Para o mundo inteligível:

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Ali achará alegria

Em tudo perfeita e cheia,

De tão suave harmonia

Que nem, por pouca, recreia,

Nem por sobeja, enfastia.

Ai verá tão profundo

Mistério na suma alteza

Que, vencida a natureza,

Os mores faustos do mundo,

Julgue por maior baixeza.

Ó tu, divino aposento,

Minha pátria singular!

Se só com te imaginar

Tanto sobre o entendimento,

Que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir

Para ti, terra excelente,

Tão justo e tão penitente

Que, despois de a ti subir

Lá descanse eternamente. (p. 113-114)

Um poema com estas características de forma e de conteúdo tem suscitado


leituras díspares. Não falta quem o desvalorize, contestando inclusivamente a sua
sinceridade. Afinal, poderia tratar-se de um texto feito sob encomenda, fora do registo
de autenticidade intelectual e emocional que estamos habituados a encontrar na
restante produção camoniana.

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Mas são mais aqueles que nele veem um sinal da dinâmica criadora de Camões,
que vai da inquietude até ao desespero, do sofrimento angustiante até ao vislumbre
de uma paz mística e cristã, como era próprio da época.

Também o Petrarquismo, código essencialmente fundado na imitação de


Francesco Petrarca (1304-1374) assume importância central na apreciação da obra
camoniana. No caso vertente, ele começa por traduzir-se num conjunto de tópicos
relacionados com a descrição da amada, envolvendo a sua conexão com a natureza e
os momentos que essa relação pressupõe, incluindo equívocos, separações,
obstruções sociais e morais e golpes do destino.

Para além da descrição padronizada da mulher (sobretudo relacionados com


tópicos físico como o cabelo louro, a pele alva, os olhos verdes e a atitude serena)
sobressai na Lírica de Camões o seu comportamento não-natural que pode traduzir-se
em atitudes furtivas ou de recusa. Assim se explica a análise interior e as contradições
vertidas em poemas como “Amor é fogo que arde sem se ver”.

De todos os traços petrarquistas, porém, aquele que se revela mais marcante é,


sem dúvida, a assunção da poesia como imitação da vida. Tomando uma das marcas
que Petrarca retivera do seu contacto com a obra de Santo Agostinho, Camões leva
muito longe a análise da vida interior, colocando-a num patamar de profundidade que
parece situar-se para além dos artifícios da retórica e da poética. Daí resulta a forte
impressão de modernidade que o leitor ainda hoje colhe do contacto com a obra
camoniana no seu todo e com a Lírica em particular.

É por ter feito da poesia uma imitação da vida (e não apenas uma imitação dos
tópicos e do estilo petrarquista) que Camões pode ser tomado, ele próprio como
modelo que se projetou na posteridade até aos nossos dias. O teor intimista e
confessional da sua poesia não valida totalmente uma biografia real. Mas é quase
impossível não acreditar, pelo menos, nos fundamentos emocionais que invoca.

Os géneros

À semelhança de outros escritores quinhentistas, Luís de Camões cultivou os


géneros ditos “maiores” da Lírica moderna. E embora seja possível ler
transversalmente toda a poesia camoniana, é possível detetar uma poética específica
de cada um desses géneros. Para o caso da Égloga, por exemplo, têm sido notadas as
tónicas crepusculares que pontuam o género tal como Camões o assume. Já falámos
da Égloga dos Faunos mas o mesmo pode ser dito da égloga II, centrado no sonho

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enganoso de Almeno ou da VIII, consagrada à perda amorosa vivida pelo pescador
Aónio, a quem apenas responde a Natureza. Por detrás dos diferentes cambiantes que
podem notar-se numa ou noutra composição, a leitura continuada das oito églogas
institui uma sensação crepuscular de impossibilidade de diálogo entre os mundos
masculino e feminino, entre o homem e aquilo que o transcende. Se, em abstrato, a
égloga se destina justamente a celebrar o diálogo produtivo e luminoso não podemos
deixar de concluir que assim não sucede em Camões.

Essa mesma tónica confirma-se e acentua-se nas elegias, que são textos
especialmente propensos à evocação de perdas.

Mesmo nas Odes, teoricamente mais aptas a acolher o canto eufórico, Camões
não deixa de problematizar o infortúnio, evidenciando mesmo, em alguns casos, a
análise das contradições em que o seu canto se apoia. É isso que sucede com a Ode VI,
onde o neoplatonismo é objeto de uma desenvolvida análise teórica, aplicada ao seu
caso pessoal.

De todos os géneros maiores da lírica camoniana, porém, aquele que melhor e


mais completamente representa a mundividência camoniana é a Canção. Tratando-se
de uma forma que acolhe a autobiografia, é nela que o poeta se expõe, de forma mais
humana. Assim sucede nas Canções IX e X, aquelas a que Aguiar e Silva chamou as
“canções da melancolia”. Nesta última, o poeta empreende uma impressionante glosa
do infortúnio pessoal aduzindo pressupostos aplicáveis a toda a sua biografia artística:
nasceu sob “estrelas infelices” e foi sendo manietado pelo Destino e pelo Amor que o
privaram de liberdade.

A Lírica e a restante obra camoniana

Embora possa tomar-se a Lírica em medida nova como objeto de leitura


isolada, o leitor ganha muito em relacionar os seus sentidos com a restante obra do
poeta: com a lírica em medida velha, desde logo; mas também com a épica e mesmo
com o teatro. Mesmo ressalvando a diferença de tom e de estilo que existe entre os
diferentes géneros, pode falar-se de um temário camoniano que possibilita uma
interpretação global. Existe, por exemplo, uma maneira camoniana de exprimir a
tragédia, em termos pessoais e em termos coletivos; existe uma forma camoniana de
questionar o Amor, de denunciar a injustiça, de representar a Natureza, de interpretar
os sinais do tempo interior e do tempo cívico.

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