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Camões Um mover de olhos brando e piadoso

Corrente renascentista
Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;


um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo gracioso;

Um escolhido ousar; ũa brandura;


um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:
Brando: meigo
Esta foi a celeste formosura
Gesto: rosto
da minha Circe, e o mágico veneno
Despejo: desembaraço
que pôde transformar meu pensamento.
Vergonhoso: recatado, tímido
Sofrimento: paciência
Circe: feiticeira da mitologia grega que deu a
beber aos companheiros de Ulisses a poção
mágica que os transformou em animais,
impedindo assim, que o herói prosseguisse
viagem e se afastasse dela.
Estrutura externa
Um mover d’olhos brando e piadoso, A
Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto, B
quási forçado; um doce e humilde gesto, B
A A composição poética é
de qualquer alegria duvidoso;
constituída por duas quadras
Um desejo quieto e vergonhoso; e dois tercetos (soneto), em
A
um repouso gravíssimo e modesto; B metro decassilábico, com um
ũa pura bondade, manifesto B esquema rimático :
indício da alma, limpo gracioso; A

Um escolhido ousar; ũa brandura; C ABBA///ABBA//CDE//CD


um medo sem ter culpa; um ar sereno; D E verificando-se a existência
um longo e obediente sofrimento: E
de rima interpolada em A,
C
emparelhada em B e
Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno D interpolada em CDE.
que pôde transformar meu pensamento. E
Estrutura interna
Um mover d'olhos, brando e piadoso,
1º momento: sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Elogio das qualidades morais e psicológicas, quase forçado; um doce e humilde gesto,
por uma acumulação de predicados; de qualquer alegria duvidoso;

A figura feminina não é real, nem concreta,


um despejo quieto e vergonhoso;
nem palpável.
um repouso gravíssimo e modesto;
Este retrato corresponde a um modelo de üa pura bondade, manifesto
beleza tão perfeita que só pode ser indício da alma, limpo e gracioso;
entendido como idealização.
um encolhido ousar; üa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;
2º momento:
Síntese das qualidades e efeito sobre o esta foi a celeste fermosura
EU lírico. da minha Circe, e o mágico veneno
O amor é visto como uma poção
que pôde transformar meu pensamento.
venenosa que determina o rumo da vida
do sujeito.
1ª estrofe: descreve fisicamente sugerindo um
comportamento de delicadeza (ideal de beleza
Um mover d'olhos, brando e piadoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto, clássico)
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso; 2ª e 3ª estrofe: descreve o carácter da amada,
quebrando a imagem de delicadeza com antíteses
um despejo quieto e vergonhoso; (manifesto indício, encolhido ousar) e sugerindo que
um repouso gravíssimo e modesto; há algo mais na mulher.
üa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso; 4ª estrofe: esclarece o assunto do poema, eleva
beleza da amada a um patamar divino (celeste
um encolhido ousar; üa brandura;
formosura) e compara-a a uma feiticeira da mitologia
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
(retomada da cultura greco-latina) que o encanta. A
um longo e obediente sofrimento;
emoção, porém, não é totalmente boa, perturbando o
esta foi a celeste fermosura Eu lírico.
da minha Circe, e o mágico veneno As antíteses "manifesto indício", "encolhido ousar"
que pôde transformar meu pensamento. sugerem o jogo de sedução feminino, que ora
esconde (indício) e ora mostra (manifesto). A
comparação com uma feiticeira também sugere o
jogo.
O retrato da amada mostra um ideal de
beleza clássico.
Segue um procedimento anafórico
(repetição de uma mesma estrutura) -
"um (...)“, só se esclarecendo o assunto
do poema na última estrofe .
“É porventura (este) o mais célebre […] retrato da mulher amada que Camões
deixou. O retrato, feito com base em enumerações iniciadas por “Um” (o que
marca uma certa indefinição) é quase convencional, à maneira petrarquista:
da amada se refere mais que os traços físicos a impressão que causam –
brandura, piedade, timidez, gravidade, modéstia, bondade, serenidade,
melancolia. Mas repare-se que cada um dos traços aponta, de certo modo,
para antíteses “brando e honesto/quase forçado”, “encolhido ousar”, “doce e
humilde gesto/de qualquer alegria duvidoso” – etc.
E porquê a tristeza, o “medo sem ter culpa”, o “longo e obediente
sofrimento”? Esta mulher enigmática […] é, afinal, ela própria, sede de
contradição, como se revela na 2ª parte do soneto […]; é também a Circe, a
feiticeira, que, com “mágico veneno”, perturbou, transformou o pensamento
[…] do poeta.”
in Eu cantarei de amor, Amélia Pinto Pais
Tema: BELEZA FEMININA
 Beleza da mulher amada e fascínio que
ela exerce no sujeito lírico.
o amor petrarquista / saudosista
O soneto apresenta um retrato da
mulher amada, onde se dá maior
relevo aos traços morais.

O conjunto de qualidades que lhe é


dado tende a produzir uma imagem de
perfeição e a não individualização da
mulher.

Como as qualidades morais são em


maior número, parece ser sobretudo a
beleza espiritual que fascina o sujeito
poético.
Trata-se de um retrato mais espiritual do que físico, que se conclui com
uma referência à transformação do seu pensamento provocada pela sua
formosura, que funcionaria como um “mágico veneno”.

Esta escassa referência a características físicas e a predominância das


qualidades morais remetem-nos para a ideologia platónica.

Todavia, é sobretudo nítida a influência petrarquista no ideal de beleza


feminina, e nas qualidades morais atribuídas à mulher, expressas por
uma adjectivação abundante e por substantivos abstractos.

Observa-se, ainda, que, na esteira de Petrarca, as qualidades morais


predominam sobre as físicas e o fascínio resulta, portanto, da beleza
espiritual.
Um mover d'olhos, brando e piadoso, Olhar, riso, gesto:
sem ver de quê; um riso brando e honesto, caracterizados por atitudes,
qualidades, estados.
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso; Artigo indefinido: indica
elevado nível de
abstração.
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
üa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;
Atributos habitualmente
não próprios de uma
um encolhido ousar; uma brandura; dama galante; antes do
galante!
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento; Cadência monótona e
iterativa do retrato:
esta foi a celeste fermosura sublinha a serenidade da
amada.
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
Beleza: aqui caracterizada pelos sentimentos
Um mover d'olhos, brando e piadoso,
e por elementos de ordem moral e
sem ver de quê; um riso brando e honesto, psicológica.
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso; Qualidades interiores mais importantes do
que os atributos físicos.
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
üa pura bondade, manifesto Poder ‘maligno’ da amada: amor como
alquimia.
indício da alma, limpo e gracioso;
O seu carácter sublime transforma-se em
ameaça.
um encolhido ousar; uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Aspeto espiritual
um longo e obediente sofrimento;
+
Aspeto material
esta foi a celeste fermosura =
da minha Circe, e o mágico veneno Elevação (o caminho divino)
que pôde transformar meu pensamento.
Assunto
 Camões expõe à maneira de Petrarca os
atributos morais da mulher amada, a sua
Circe (feiticeira), que “pôde transformar-lhe o
pensamento”: brandura, piedade,
honestidade, doçura, humildade, modéstia,
bondade, retraimento, serenidade,
obediência e mansidão.
 Trata-se de um retrato idealizado,
indefinível.
Desenvolvimento do assunto
1ª parte Faz-se uma enumeração dos atributos físicos e morais da
(quadras+ 1º mulher amada, repetindo-se a mesma estrutura frásica
terceto) (artigo indefinido + substantivo + adjetivo). Trata-se do
retrato da mulher amada, onde são focados aspetos assaz
abstratos (cf. artigo indefinido). Na 1ª quadra, referem-se
aspetos exteriores (olhar, riso, rosto) e, em seguida, a
descrição da amada engloba atitudes, qualidades e
estados.
2ª parte Atentar no pronome demonstrativo “Esta”, que introduz o
(2º terceto) fim da enumeração presente na 1ª parte.
Nesta 2ª parte, sintetizam-se os atributos da mulher amada,
que fascina o poeta.
Estrutura interna

Este poema está dividido em duas partes lógicas.

A primeira parte é as duas quadras e o primeiro terceto e corresponde à


acumulação de atributos físicos e morais da figura feminina. Assim, são feitas
referências ao “mover d’olhos”, ao “sorriso”, ao “gesto”, às quais são sempre
atribuídas qualidades morais: “Um mover d’olhos brando e piadoso,”, “um
sorriso brando e honesto,” e “um doce e humilde gesto,”.

A segunda parte é ultimo terceto e corresponde à síntese de todos esses


atributos reunidos na expressão “celeste fermosura”, que, além da beleza,
remete para o carácter divino da mulher. Esta é também, metaforicamente,
apresentada como Circe, ou seja, uma feiticeira que encanta o poeta como
seu mágico veneno, isto é, a sua perfeição, que seduz o poeta e lhe
transforma o pensamento.
Ao carácter descritivo do poema, constituído por uma enumeração de
qualidades e seus efeitos no sujeito, determina a utilização de certos
recursos estilísticos:
Anáfora – repetição do artigo indefinido em início de verso, e que marca a
passagem de uma qualidade para outra;
Discurso Valorativo - traduz o juízo de valor que o sujeito faz da amada, e assenta,
sobretudo, em adjectivos e expressões que contêm uma apreciação subjectiva das
suas qualidades;
Adjetivação, que marca o discurso valorativo que o sujeito tece sobre a mulher
amada;
Abundância de adjetivos e substantivos abstractos e a quase inexistência de
verbos;
Substantivação de verbos: “um mover de olhos”, “um encolhido ousar”
Artigo Indefinido - sugere proximidade afetiva entre o sujeito e a amada;
Antítese - “celeste fermosura” / “mágico veneno”, “um mover de olhos(…)” / “sem
ver de quê” que comprova que está a ser descrita uma mulher quase indefinível.
Enumeração assindética - acumulação de segmentos de frase, separados por ponto
e vírgula, e sem recorrer à copulativa “e”;
Metáfora - “mágico veneno”, “a minha Circe”.
Encavalgamento ou transporte, que acentua a fluidez do ritmo da enumeração;
Em síntese
Tema a beleza da amada
"mover d'olhos brando e piadoso", "riso brando e honesto",
Qualidades físicas da amada
"ar sereno".
branda e piedosa, honesta, doce, alegre sem exagero,
Qualidades psicológicas da
maneira de estar serena, bondosa, alma pura, ousada com
amada
medida, sofredora.
Classe social da amada Senhora "celeste fermosura"
celeste fermosura da minha Circe
Justificação de expressões a sua beleza é celestial, divina mas também diabólica pois
conseguiu prendê-lo irremediavelmente.

Recursos estilísticos utilizados Adjetivação: simples, dupla e tripla: em todo o poema;


no retrato Antítese: “celeste fermosura”; “mágico veneno”
Metáfora; Hipérbole; Anáfora
Soneto. ABBA/ABBA/ CDE/ CDE
Tipo de composição
Rima emparelhada e interpolada.

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