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Teoria da Literatura II – Prof.

Luís Dizei: “Nós somos vossas, mas o intento


Antologia 6 Dante Alighieiri (1265-1321) Quer que não mais volteis a nos rever”.
Balada (Diego Raphael) Com ela não fiqueis, não é Amor;
Guido Cavalcanti (c.1259-1300) Vós que tão bem sabeis falar d'Amor, Então vagai com vosso ar dolente
Ballata (Augusto de Campos) ouvi minha balada piedosa Como as irmãs antigas ao penhor.
Quando da morte devo tirar vida que fala d'uma dama desdenhosa, Quando encontrardes dama de valor,
e do pesar prazer, a qual roubou-me o peito por valor. Chegai dizendo a ela, humildemente:
o que me vem fazer “A vós viemos prestar nosso louvor”.
Amor que em tanta dor a amar convida? Tanto desdenha aquele que a admira
que dele abaixa o olhar em amargura, Francesco Petrarca (1304-1374)
Como convida o coração a amar, pois ao redor de seus olhos retira Soneto (Jamil Almansur Hadad)
ah, tão cheio de dor um gênio a crueldade e desventura. Quando entre as outras vens, clara Senhora,
e de suspiros tão tomado, Mas este olhar traz a doce figura Em tua face Amor ledo fulgura;
que já nem compaixão pode clamar que faz a alma gentil dizer: "Mercê!" Quando cada uma é menos bela e pura
e perdeu toda a cor Tão virtuosa que, quando se vê, Que tu, minha alma bem mais se enamora.
pelo mal que me tem já conquistado? suspira o coração imerso em dor. E eu bendigo o lugar, o tempo e a hora
Canto, prazer, serenidade, agrado Em que mirei tão soberana altura.
me são dor e desgosto: Eis o que diz: "Serei um tanto hostil E digo: – “Alma, agradece a alta ventura
é so ver em meu rosto com aqueles quem desejam meu olhar, De ser de tanto honor dignada agora”.
que a Morte à minha face é devlvida! pois nele trago o bom senhor gentil Dela te vem esta amorosa idéia,
que já me fez sentir seu dardejar". Que, a quem a segue, ao sumo Bem envia,
Amor, que no prazer se vê nascer, Pois acredito que cerra o olhar Pouco prezando o que cada um anseia;
no coração repousa, pra observá-los quando bem lhe apraz; É dela que provém graça animosa,
formando de desejo outra pessoa, desse modo a formosa dama faz Que ao céu te eleva pela destra via.
mas seu poder faz logo perecer, quando se olha, para o próprio honor. E esta esperança faz a alma orgulhosa.
e amar já não mais ousa
quem sabe como o amor o galardoa. Eu não espero que pela piedade Soneto (Jamil Almansur Hadad)
Por que a amar ainda se afeiçoa? deseje contemplar algum semblante, A alma minha gentil que agora parte
É só porque ele vê pois é dama feroz em sua beldade Tão cedo deste mundo à outra vida
que eu já peço mercê a que no olhar transporta Amor galante. Terá certo no céu grata acolhida,
à Morte que com mais dor me revida. Mas tanto quer guardá-lo que, possante, Indo habitar sua mais beata parte.
não me permite ver tanta virtude; Ficando entre o terceiro lume e Marte,
Eu devo lamentar meu sofrimento no entanto o meu desejo não se ilude Será a vista do sol escurecida;
mais que qualquer mortal: e luta com o desdém, o meu temor. Virá depois muita alma ao céu subida
que a Morte no meu coração foi pôr Vê-la – portento de natura e arte.
um coração que só me dá tormento Soneto (Diego Raphael) E se pousasse entre Mercúrio e Lua,
feito de um amor tal Palavras que no mundo vão correr, Brilhara mais do que eles nossa bela,
que dói lá onde eu tenho o meu valor. Vós que nascestes com meu nascimento, Como só se espalhara a fama sua.
Esse local maldito, onde o Amor Dizendo à dona de meus sentimentos: A Marte certo não chegara ela.
de tal modo consiste “Vós que o terceiro céu sabeis mover”, Mas se mais alto o seu vulto flutua,
que a minha vida triste Segui aonde ela está; deveis saber Vencera Jove e qualquer outra estrela.
lhe é fonte de alegria não devida. Que há de chorar com vosso esquecimento;

1
François Villon (1431-depois de 1463) 1 que voa da própria casa
Balada das damas dos tempos idos (Modesto de Comigo me desavim, e sobe à pátria divina.
Abreu) sou posto em todo perigo; 22
Dizei-me em que terra ou país não posso viver comigo Não é, logo, a saudade
Está Flora, a bela romana; nem posso fugir de mim. das terras onde nasceu
Onde Arquipíada ou Taís, a carne, mas é do Céu,
que foi sua prima germana; Com dor, da gente fugia, daquela santa Cidade,
Eco, a imitar na água que mana antes que esta assi crescesse; donde esta alma descendeu.
de rio ou lago, a voz que a aflora, agora já fugiria E aquela humana figura,
E de beleza sobre-humana? de mim, se de mim pudesse. que cá me pode alterar,
Mas onde estais, neves de outrora? não é quem se há-de buscar:
Que meio espero ou que fim é raio da Fermosura,
E Heloísa, a mui sábia e infeliz do vão trabalho que sigo, que só se deve de amar.
Pela qual foi enclausurado pois que trago a mim comigo, 23
Pedro Abelardo em São Denis, tamanho imigo de mim? Que os olhos e a luz que ateia
por seu amor sacrificado? 2 o fogo que cá sujeita,
Onde, igualmente, a soberana O sol é grande: caem coa calma as aves, não do sol, mas da candeia,
Que a Buridan mandou pôr fora Do tempo em tal sazão, que sói ser fria. é sombra daquela Ideia
Num saco ao Sena arremessado? Esta água que de alto cai acordar-me-ia, que em Deus está mais perfeita.
Mas onde estais, neves de outrora? Do sono não, mas de cuidados graves. E os que cá me cativaram
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves, são poderosos afeitos
Branca, a rainha, mãe de Luís Qual é tal coração que em vós confia? que os corações têm sujeitos;
Que com voz divina cantava; Passam os tempos, vai dia trás dia, sofistas que me ensinaram
Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz Incertos muito mais que ao vento as naves. maus caminhos por direitos.
E a que no Maine dominava; Eu vira já aqui sombras, vira flores,
E a boa lorena Joana, Vi tantas águas, vi tanta verdura, Transforma-se o amador na coisa amada
Queimada em Ruão? Nossa Senhora! As aves todas cantavam de amores. Transforma-se o amador na coisa amada,
Onde estão, Virgem soberana? Tudo é seco e mudo; e, de mistura, Por virtude do muito imaginar;
Mas onde estais, neves de outrora? Também mudando-me eu fiz doutras cores. Não tenho, logo, mais que desejar,
E tudo o mais renova: isto é sem cura! Pois em mim tenho a parte desejada.
Príncipe, vede, o caso é urgente: Se nela está minha alma transformada,
Onde estão elas, vede-o agora; Luís Vaz de Camões (c.1524-1580) Que mais deseja o corpo de alcançar?
Que este refrão guardeis em mente: Sôbolos rios que vão Em si somente pode descansar,
Onde estão as neves de outrora? 21 Pois consigo tal alma está ligada.
Mas ó tu, terra de Glória, Mas esta linda e pura semidéia,
Quatrain se eu nunca vi tua essência, Que, como o acidente em seu sujeito,
Je suis Villon, dont il me poise, como me lembras na ausência? Assim com a alma minha se conforma,
Né de Paris emprés Pontoise Não me lembras na memória, Está no pensamento como idéia;
Et de la corde d’une toise senão na reminiscência. E o vivo e puro amor de que sou feito,
Saura mon col qu emon cul poise Que a alma é tábua rasa, Como a matéria simples, busca a forma.
que, com a escrita doutrina
Francisco Sá de Miranda (1481-1558) celeste, tanto imagina,

2
O desconcerto do Mundo Tão rico me é teu doce amor lembrado, Y mientras triunfa con desdén lozano
Os bons vi sempre passar que nem com reis trocava meu estado. Del luciente cristal tu gentil cuello,
No mundo graves tormentos; Goza cuello, cabello, labio y frente,
E, para mais me espantar, Soneto 130 (Bárbara Heliodora) Antes que lo que fue en tu edad dorada
Os maus vi sempre nadar Não tem olhos solares meu amor; Oro, lilio, clavel, cristal luciente,
Em mar de contentamentos. Mais rubro que seus lábios é o coral; No sólo en plata o vïola troncada
Cuidando alcançar assim Se neve é branca, é escura a sua cor; Se vuelva, más tú y ello juntamente
O bem tão mal ordenado, E a cabeleira ao arame é igual. En tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.
Fui mau, mas fui castigado. Vermelha e branca é a rosa adamascada
Assim que, só para mim, Mas tal rosa sua face não iguala; Francisco de Quevedo (1580-1645)
Anda o mundo concertado. E há fragrância bem mais delicada Cerrar podrá mis ojos la postrera
Do que a do ar que minha amante exala. sombra, que me llevare el blanco día;
Soneto Muito gosto de ouvi-la, mesmo quando i podrá desatar esta alma mía
Alma minha gentil, que te partiste Na música há melhor diapasão; hora, a su afán ansioso lisongera:
Tão cedo desta vida, descontente, Nunca vi uma deusa deslizando mas no de essotra parte en la rivera
Repousa lá no Céu eternamente Mas minha amada caminha no chão. dejará la memoria, en donde ardía;
E viva eu cá na terra sempre triste. Mas juro que esse amor me é mais caro nadar sabe mi llama la agua fría,
Se lá no assento etéreo, onde subiste, Que qualquer outra à qual eu a comparo. i perder el respeto a lei severa.
Memória desta vida se consente, Alma, a quien todo un dios prisión ha sido,
Não te esqueças daquele amor ardente Luis de Gôngora (1561-1627) venas, que humor a tanto fuego han dado,
Que já nos olhos meus tão puro viste. 1 medulas, que han gloriosamente ardido;
E se vires que pode merecer-te Ilustre y hermosísima María, su cuerpo dejarán, no su cuidado;
Alguma cousa a dor que me ficou Mientras se dejan ver a cualquier hora serán ceniza, mas tendrá sentido;
Da mágoa, sem remédio, de perder-te, En tus mejillas la rosada aurora, polvo serán, mas polvo enamorado.
Roga a Deus, que teus anos encurtou, Febo en tus ojos, y en tu frente el día,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Y mientras con gentil descortesía Paul Fleming (1609-1640)
Quão cedo de meus olhos te levou. Mueve el viento la hebra voladora Meditação sobre o tempo (Augusto de Campos)
Que la Arabia en sus venas atesora Vives no Tempo sem saber o que é o tempo;
William Shakespeare (1554-1616) Y el rico Tajo en sus arenas cría; Ignoras de onde vens e no que te deténs.
Soneto 29 (Vasco Graça Moura) Antes que de la edad Febo eclipsado, Sabes apenas que num Tempo foste feito
De mal com os humanos e a Fortuna, Y el claro día vuelto en noche obscura, E que num outro Tempo ainda serás desfeito
choro sozinho o meu banido estado. Huya la aurora del mortal nublado; Mas o que foi o Tempo que te trouxe incluso?
Meu vão clamor o céu surdo importuna Antes que lo que hoy es rubio tesoro E o que há de ser aquele que te fez sem uso?
e olhando para mim maldigo o fado. Venza a la blanca nieve su blancura,
A querer ser mais rico em esperança, Goza, goza el color, la luz, el oro. O Tempo é sim e não, o homem se multiplica
como outros ter amigos e talento, 2 Mas o que é este sim e não ninguém explica.
invejando arte de um, doutro a pujança, Mientras por competir con tu cabello O Tempo morre em si e a si mesmo renasce.
do que mais gosto menos me contento. Oro bruñido al sol relumbra en vano, O de que tu e eu viemos, de nós mesmos nasce.
Se assim medito e quase me abomino, Mientras con menosprecio en medio el llano O homem está no Tempo e o Tempo está no
penso feliz em ti e meus pesares Mira tu blanca frente al lilio bello; homem.
(qual cotovia em vôo matutino Mientras a cada labio, por cogello, Mas o Tempo resiste enquanto o homem some.
deixando a terra) então cantam nos ares. Siguen más ojos que al clavel temprano,

3
O Tempo é o que és e és o que é o Tempo. que aos amantes não serve de alcova. E na boca a mais fina pedraria:
Embora tenhas menos do que o tempo tem. Agora, enquanto pousa a cor Gozai, gozai da flor da formosura,
Ah, se esse outro Tempo sem Tempo chegasse Da juventude em ti como na flor Antes que o frio da madura idade
E a nós, de nosso Tempo, esse Tempo arrancasse O orvalho, enquanto por Tronco deixe despido, o que é verdura.
E de nós mesmos, nós, para sermos também Todo poro teu a Alma transpira Que, passado o zênite da mocidade,
Como esse Tempo que nenhum Tempo contém. Com urgentes Fogos, Sem a noite encontrar da sepultura,
Entreguemo-nos aos jogos É cada dia ocaso da beldade.
Andrew Marvell (1621-1678) Do amor e, amantes aves de rapina,
À amada esquiva (Augusto de Campos) Antes de um golpe devoremos nosso Tempo No dia de Quarta-Feira de Cinzas
Dessem-nos Tempo e Espaço afora Que enlagueçamos em seu lento Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te
Não fora crime essa esquivez, senhora. Queixo. Enrolemos nosso alento Te lembra hoje Deus por sua Igreja;
Sentar-nos-íamos tranqüilos E suavidade numa só Esfera. De pó te faz espelho em que se veja
A figurar de modos mil os E rasguemos Prazeres como feras A vil matéria de que quis formar-te.
Nossos Dias de Amor. Eu com as águas Pelos portões férreos da Vida. Lembra-te Deus que és pó para humilhar-te,
Do Humber choraria minhas mágoas; Assim, se não sustamos nosso Sol, E como o teu baixel sempre fraqueja
Tu podias colher Rubis à margem Ao menos o incitamos à corrida. Nos mares da vaidade onde peleja,
do Ganges. Que eu me declarasse Te põe à vista a terra onde salvar-te.
Dez anos antes do Dilúvio! Teus Gregório de Matos (1636-1696) Alerta, alerta, pois, que o vento berra.
Nãos voltar-me-iam a face Soneto Se assopra a vaidade e incha o pano,
Até a Conversão dos Judeus. Anjo no nome, Angélica na cara Na proa a terra tens, amaina e ferra.
Meu Amor vegetal crescendo vasto, Isso é ser flor, e Anjo juntamente Todo o lenho mortal, baixel humano,
Mais vasto que os Impérios, e mais lento, Ser Angélica flor, e Anjo florente Se busca a salvação, tome hoje terra,
Mil anos para contemplar-te a Testa Em quem, se não em vós se uniformara? Que a terra de hoje é porto soberano.
E os Olhos levaria. Mais duzentos Quem veria uma flor, que a não cortara
Para adorar cada Peito, De verde pé, de rama florescente? A N. Senhor Jesus Cristo, com atos de arrepen-
E trinta mil para o resto. E quem um Anjo vira tão luzente dido e suspiros de amor
Um Século para cada parte, Que por seu Deus, o não idolatrara? Ofendido vos tem minha maldade.
O último para o Coração tomar-te. Se como Anjo sois dos meus altares É verdade, Senhor, que hei delinqüido,
Pois, Dama, vales tudo o que ofereço, Fôreis o meu custódio, e minha guarda Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Nem te amaria por mais baixo preço. Livrara eu de diabólicos azares Ofendido vos tem minha maldade.
Mas ao meu dorso eu ouço o alado Mas vejo, que tão bela, e tão galharda Maldade que encaminha a vaidade,
Carro do Tempo, perto, perto, Posto que os Anjos nunca dão pesares Vaidade que todo me há vencido,
E adiante há apenas o deserto Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda Vencido quero ver-me e arrependido
Sem fim da Eternidade. Arrependido a tanta enormidade.
Tua Beleza murchará mais tarde, Soneto Arrependido estou de coração,
Teus frios Mármores não soarão Discreta e formosíssima Maria, De coração vos busco, dai-me os braços,
Com ecos do meu Canto: então Enquanto estamos vendo claramente Abraços que me rendem vossa luz.
Os Vermes hão de pôr à prova Na vossa ardente vista o sol ardente, Luz que claro me mostra a salvação,
Essa comprida Virgindade, E na rosada face a aurora fria: A salvação pretendo em tais abraços,
Tua fina Honra convertendo em pó, Enquanto pois produz, enquanto cria Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!
E em cinzas meu desejo. A Cova Essa esfera gentil, mina excelente,
É ótimo e íntimo recanto. Só No cabelo o metal mais reluzente,

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A Jesus Cristo Nosso Senhor Contra o meu coração guerra tão rara, Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Pequei, Senhor; mas não por que hei pecado, Que não me foi bastante a fortaleza. Ferro do torto arado.
Da vossa alta clemência me despido(*); Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
Porque, quanto mais tenho delinqüido, A que dava ocasião minha brandura, Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Vos tenho a perdoar mais empenhado. Nunca pude fugir ao cego engano: Não voltam contra nós a face irada,
Se basta a vos irar tanto pecado, Vós, que ostentais a condição mais dura, Façamos, sim façamos, doce amada,
A abrandar-vos sobeja um só gemido: Temei, penhas, temei; que Amor tirano, Os nossos breves dias mais ditosos.
Que a mesma culpa que vos há ofendido Onde há mais resistência, mais se apura. Um coração, que frouxo
Vos tem para o perdão lisonjeado. A grata posse de seu bem difere,
Se uma ovelha perdida e já cobrada(**), Soneto VII A si, Marília, a si próprio rouba,
Glória tal e prazer tão repentino Onde estou? Este sítio desconheço: E a si próprio fere.
Vos deu, como afirmais na sacra história, Quem fez tão diferente aquele prado?
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Tudo outra natureza tem tomado; Ornemos nossas testas com as flores.
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, E em contemplá-lo tímido esmoreço. E façamos de feno um brando leito,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
(*) despeço De estar a ela um dia reclinado: Gozemos do prazer de sãos Amores.
(**) recuperada Ali em vale um monte está mudado: Sobre as nossas cabeças,
Quanto pode dos anos o progresso! Sem que o possam deter, o tempo corre;
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) Árvores aqui vi tão florescentes, E para nós o tempo, que se passa,
Soneto XIV Que faziam perpétua a primavera: Também, Marília, morre.
Quem deixa o trato pastoril amado Nem troncos vejo agora decadentes.
Pela ingrata, civil correspondência, Eu me engano: a região esta não era: Com os anos, Marília, o gosto falta,
Ou desconhece o rosto da violência, Mas que venho a estranhar, se estão presentes E se entorpece o corpo já cansado;
Ou do retiro a paz não tem provado. Meus males, com que tudo degenera! triste o velho cordeiro está deitado,
Que bem é ver nos campos transladado e o leve filho sempre alegre salta.
No gênio do pastor, o da inocência! Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) A mesma formosura
E que mal é no trato, e na aparência Lira XIV É dote, que só goza a mocidade:
Ver sempre o cortesão dissimulado! Minha bela Marília, tudo passa; Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Ali respira amor sinceridade; A sorte deste mundo é mal segura; Mal chega a longa idade.
Aqui sempre a traição seu rosto encobre; Se vem depois dos males a ventura,
Um só trata a mentira, outro a verdade. Vem depois dos prazeres a desgraça. Que havemos de esperar, Marília bela?
Ali não há fortuna, que soçobre; Estão os mesmos Deuses Que vão passando os florescentes dias?
Aqui quanto se observa, é variedade: Sujeitos ao poder impio Fado: As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre! Apolo já fugiu do Céu brilhante, E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Já foi Pastor de gado. Ah! Não, minha Marília,
Soneto XCVIII Aproveite-se o tempo, antes que faça
Destes penhascos fez a natureza A devorante mão da negra Morte O estrago de roubar ao corpo as forças
O berço, em que nasci! oh quem cuidara, Acaba de roubar o bem, que temos; E ao semblante a graça.
Que entre penhas tão duras se criara Até na triste campa não podemos
Uma alma terna, um peito sem dureza! Zombar do braço da inconstante sorte. Lira I
Amor, que vence os tigre por empresa Qual fica no sepulcro, Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Tomou logo render-me; ele declara Que seus avós ergueram, descansado; Que viva de guardar alheio gado;

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De tosco trato, d' expressões grosseiro, Leve-me a sementeira muito embora Em que asas veio a chamma?
Dos frios gelos, e dos sóis queimado. O rio sobre os campos levantado: Que mão colheu esta flamma?
Tenho próprio casal, e nele assisto; Acabe, acabe a peste matadora,
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Sem deixar uma rês, o nédio gado. Que força fez retorcer
Das brancas ovelhinhas tiro o leite, Já destes bens, Marília, não preciso: em nervos todo o teu ser?
E mais as finas lãs, de que me visto. Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta; E o som do teu coração
Graças, Marília bela, Para viver feliz, Marília, basta de aço, que cor, que ação?
Graças à minha Estrela! Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela, Teu cérebro, quem o malha?
Eu vi o meu semblante numa fonte, Graças à minha Estrela! Que martelo? Que fornalha
Dos anos inda não está cortado: o moldou? Que mão, que garra
Os pastores, que habitam este monte, Irás a divertir-te na floresta, seu terror mortal amarra?
Com tal destreza toco a sanfoninha, Sustentada, Marília, no meu braço;
Que inveja até me tem o próprio Alceste: Ali descansarei a quente sesta, Quando as lanças das estrelas
Ao som dela concerto a voz celeste; Dormindo um leve sono em teu regaço: cortaram os céus, ao vê-las,
Nem canto letra, que não seja minha, Enquanto a luta jogam os Pastores, quem as fez sorriu talvez?
Graças, Marília bela, E emparelhados correm nas campinas, Quem fez a ovelha te fez?
Graças à minha Estrela! Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores. Tygre! Tygre! Brilho, brasa
Mas tendo tantos dotes da ventura, Graças, Marília bela, que a furna noturna abrasa,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Graças à minha Estrela! que olho ou mão armaria
Depois que teu afeto me segura, tua feroz symmetrya?
Que queres do que tenho ser senhora. Depois de nos ferir a mão da morte,
É bom, minha Marília, é bom ser dono Ou seja neste monte, ou noutra serra,
De um rebanho, que cubra monte, e prado; Nossos corpos terão, terão a sorte
Porém, gentil Pastora, o teu agrado De consumir os dois a mesma terra.
Vale mais q'um rebanho, e mais q'um trono. Na campa, rodeada de ciprestes,
Graças, Marília bela, Lerão estas palavras os Pastores:
Graças à minha Estrela! “Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes.”
Os teus olhos espalham luz divina, Graças, Marília bela,
A quem a luz do Sol em vão se atreve: Graças à minha Estrela!
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve. William Blake (1757-1827)
Os teus cabelos são uns fios d'ouro; O Tygre (Augusto de Campos)
Teu lindo corpo bálsamos vapora. Tygre! Tygre! Brilho, brasa
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, que a furna noturna abrasa,
Para glória de Amor igual tesouro. que olho ou mão armaria
Graças, Marília bela, tua feroz symmetrya?
Graças à minha Estrela!
Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?

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