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MARÍLIA DE DIRCEU, DE

TOMÁS ANTÔNIO
GONZAGA
Prof. Bruno
Tomás Antônio de Gonzaga
Há em Tomás Antônio Gonzaga um homem de letras jurídicas e de alta burocracia que
escreveu ainda jovem um Tratado de Direito Natural com o intuito de galgar um posto
na Universidade de Coimbra, e viveu a vida toda metido em ofícios e pareceres. [...]
Mas houve, dentro do quarentão sólido, prático e prudente, um lírico que a inclinação
por Marília fez despertar, e um satírico a quem picaram os desmandos de um tiranete.
[...] Gonzaga é conaturalmente árcade e nada fica a dever aos confrades de escola na
Itália e em Portugal.
(BOSI, 2015, p. 75)
Tomás Antônio de Gonzaga
As liras são exemplo do ideal de aurea mediocritas que apara as demasias da natureza e
do sentimento. A “paisagem”, que nasceu para arte como evasão das cortes barrocas,
recorta-se para o neoclássico na cenografia idílica. Esta prefere ao mar e à selva o
regato, bosque, o horto e o jardim. A natureza vira refúgio (locus amoenus) para o
homem do burgo oprimido por distinções e hierarquias.
(BOSI, 2015, p. 75)
Apresentação de Dirceu
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Eu não sou, minha Nise, pergureiro, A Cresso não igualo no tesouro;
que viva de guardar alheio gado; Mas deu-me a sorte com que honrado viva.
nem sou pastor grosseiro, Não cinjo coroa d’ouro;
dos frios gelos queimado, Mas povos mando, e na testa altiva
que veste as pardas lãs do seu cordeiro. verdeja a coroa do sagrado louro.
Graças, ó Nise bela, Graças, ó Nise Bela,
graças à minha estrela! Graças à minha estrela!
Apresentação de Dirceu
As fortunas, que em torno de mim vejo,
por falsos bens, que enganam, não reputo;
mas antes mais desejo:
Não para me voltar soberbo em bruto,
por ver-me grande, quando a mão te beijo.
Graças, ó Nise Bela,
graças à minha estrela!
[...]
Vocabulário
Nise: a referência à mitologia greco-romana, como as musas (ninfas dos bosques e dos rios, que
inspiravam as artes), era um traço característico do arcadismo, que consistia na retomada da
Antiguidade clássica. Neste poema a musa tem o nome de Nise.

Cresso: alusão à figura histórica de Marco Licínio Crasso (115 a.C. – 53 a.C.), dando origem à
expressão “erro crasso”.
Carpe diem
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Minha bela Marília, tudo passa; A devorante mão da negra morte
a sorte deste mundo é mal segura; acaba de roubar o bem que temos;
Se vem depois dos males a ventura, até na triste campa não podemos
Vem depois dos prazeres a desgraça. Zombar do braço inconstante da sorte:
Estão os mesmos deuses qual fica na sepulcro,
sujeitos ao poder do ímpio fado: que seus avós ergueram, descansado;
Apolo já fugiu do céu brilhante, qual no campo, e lhe arranca os frios ossos
já foi pastor de gado. ferro do torto arado.
Carpe diem
Ah! Enquanto os destinos impiedosos Ornemos as nossas testas com flores,
não voltam contra nós a face irada, e façamos de feno um brando leito;
Façamos, sim, façamos, doce amada, prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
os nossos breves dias mais ditosos. gozemos do prazer de sãos amores.
Um coração que, frouxo, Sobre as nossas cabeças,
a grata posse de seu bem difere, sem que o possam deter, o tempo corre;
a si, Marília, a si próprio rouba, e para nós o tempo que se passa
e a si próprio fere. também, Marília, morre.
[...]
Locus amoenus
42 Cos doces pontos
Num sítio ameno, Em tom de graça, a mão atina,
cheio de rosas, ao terno amante e a voz iguala
de brancos lírios, Manda Marília à voz divina.
murtas viçosas, que toque e cante.
Ela, que teve
Dos seus amores Pega na lira, de rir-se ideia,
na companhia, sem que a tempere, nem move os olhos,
Dirceu passava a voz levanta, de assombro cheia.
alegre o dia. e as cordas fere.
Locus amoenus
Então Cupido Quando num peito
aparecendo, assento faço,
à bela fala, do peito subo
assim dizendo: à língua e braço.

– Do teu amado Nem creias que outro


a lira fias, estilo tome,
só porque dele sendo eu o mestre,
zombando rias? a ação teu nome.
Aurea mediocritas
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Tu não verás, Marília, cem cativos Não verás enrolar negros pacotes
tirarem o cascalho e a rica terra, das secas folhas do cheiroso fumo;
ou dos cercos os rios caudalosos, nem espremer entre as dentadas rodas
ou da minada serra. da doce cana o sumo.

Não verás separar ao hábil negro Verás em cima da mesa


do pesado esmeril a areia grossa, altos volumes de enredados feitos;
e já brilharem os granetes de oiro ver-me-ás folhear os grandes livros,
no fundo da bateia. e decidir os pleitos.
Aurea mediocritas
Enquanto revolver os meus consultos, Se encontrares louvada uma beleza,
tu me farás gostosa companhia, Marília, não invejes a ventura,
lendo os fastos da sábia, mestra História, que tens quem leve à mais remota idade
e os cantos da poesia. a tua formosura.

Lerás em voz alta, a imagem bela;


eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.
Cárcere e resignação
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Esprema a vil calúnia, muito embora, Podem muito, conheço, podem muito
entre as mãos denegridas e insolentes, as fúrias infernais, que Pluto move;
os venenos das plantas mas pode mais que todas
e das bravas serpentes; um dedo só de Jove.

chovam raios e raios, no meu rosto Este deus converteu em flor mimosa,
não hás de ver, Marília, o medo escrito, a quem seu nome deram, a Narciso;
e medo perturbado, fez de muitos os astros,
que infunde o vil delito. qu’inda no céu diviso.
Cárcere e resignação

Ele pode livrar-me das injúrias Porém se os justos céus, por fins ocultos,
do néscio, do atrevido, ingrato povo; em tão tirano mal não me socorrem,
em nova flor mudar-me, verás então que os sábios,
mudar-me em astro novo. bem como vivem, morrem.
Vocabulário
Pluto: de acordo com a mitologia, deus secundário que preside as riquezas; costuma ser confundido com
Plutão (ou Hades, para os gregos), o deus que preside os infernos e o reino da morte.

Narciso: segundo a mitologia grega, Narciso era um jovem belíssimo que, durante uma caçada, viu sua
imagem refletida na água de uma lagoa, enamorou-se imediatamente de si próprio e, desesperado com essa
paixão impossível, definhou até a morte. Conta a lenda que, no lugar onde ele teria morrido, brotou uma
flor que foi chamada de narciso.

Jove: Jove ou Júpiter é o deus supremo da mitologia romana, aquele que detinha o controle dos céus; entre
os gregos é conhecido como Zeus.
Entre o sonho e o real
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Vou-me, ó bela, deitar na dura cama, Pintam que estou bordando um teu vestido;
de que nem sequer sou o pobre dono; que um menino com asas, cego e loiro,
estende sobre mim Morfeu as asas, me enfia nas agulhas o delgado,
e vem ligeiro o sono. o brando fio de oiro.

Os sonhos, que rodeiam a tarimba, Pintam que entrando vou na igreja;


mil cousas vão pintar na minha ideia: pintam que as mãos nos damos, e aqui vejo
não pintam cadafalsos, não, não pintam subir-te à branca face a cor mimosa,
nem uma imagem feia. a viva cor do pejo.
Entre o sonho e o real
Pintam que nos conduz doirada sege Pintam que os mares sulco da Bahia,
À nossa habitação; que mil Amores Onde passei a flor da minha idade;
Desfolham sobre o leito as moles folhas Que descubro as palmeiras, e em dois bairros
Das mais cheirosas flores. Perdida a grã cidade.

Pintam que dessa terra nos partimos; Pintam leve escaler, e que na prancha
Que os amigos, saudosos e suspensos, O braço já te of’reço, reverente;
Apertam nos inchados, roxos olhos Que te aponta co dedo, mal te avista,
Os já molhados lenços. Amontoada gente.
Entre o sonho e o real

Aqui, alerta! Grita o mau soldado; Se o meu crime não fosse só de amores,
e o outro alerta estou! Lhe diz gritando. a ver-me delinquente, réu da morte,
acordo com a bulha... Então conheço não sonhara, Marília, só contigo
que estava aqui sonhando. sonhara de outra sorte.
Vocabulário
Morfeu: deus grego do sonho, que possui a capacidade de assumir qualquer forma humana.
Razão, tragédia e equilíbrio
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Se o vasto mar se encapela, Quem não tem uma beleza,
e na rocha em flor rebenta, em que ponha o seu cuidado,
grossa nau, que não tem leme, se o céu se cobre de nuvens,
em vão sustentar-se intenta; e se assopra o vento irado,
até que naufraga e corre não tem forças que resistam
à discrição da tormenta. ao impulso do seu fado.
Razão, tragédia e equilíbrio
Nesta sombria masmorra, Parece que vejo a honra,
aonde, Marília, vivo, Marília, toda enlutada;
encosto a mão no rosto, a face de um pai, rugosa,
fico às vezes pensativo. num mar de pranto banhada;
Ah! Que imagens tão funestas os amigos macilentos,
me finge o pesar ativo! e a família consternada.
Razão, tragédia e equilíbrio

Quero voltar os meus olhos Um frio suor me cobre,


para outro diverso lado: lassam-se os membros, suspiro;
vejo nua grande praça busco alívio às minhas ânsias,
um teatro levantado; não descubro, deliro.
vejo as cruzes, vejo os potros. já, meu bem, já me parece,
vejo o alfanje afiado. que nas mãos da morte expiro.
Razão, tragédia e equilíbrio

Vem-me então ao pensamento Qual, Marília, a estrela-d’alva,


a tua testa nevada, que a negra noite afugenta;
os teus meigos, vivos olhos, qual o sol, a névoa espalha,
a tua face rosada, apenas a terra aquenta;
os teus dentes cristalinos, ou qual íris, que o céu limpa,
a tua boca engraçada. quando se vê na tormenta.
Razão, tragédia e equilíbrio

Assim, Marília, desterro Restauro as forças perdidas,


triste ilusão e demência; sobe a viva cor do rosto,
faz de novo o seu ofício gira o sangue pela veia
a razão e a prudência; e bate o pulso, composto.
e firmo esperanças doces Vê, Marília, o quanto pode
sobre a cândida inocência. contra os meus males teu rosto!
Sobre Marília de Dirceu
Em Gonzaga, é interessante o contraste entre as preocupações mitológicas com que
celebra a mulher e o senso da realidade com a que a integra no panorama da vida. Mais
de uma lira é voltada à tarefa quase didática de mostrar à bem amada a naturalidade do
amor, mostrando-lhe a ordenação das coisas naturais. E, por outro lado, valorizar a
noção civil da vida social, salientando a nobreza das artes da paz, o falso heroísmo da
violência, a ordem serena da razão. Em alguns de seus melhores poemas, a beleza
aparece como contemplação singela da regularidade das coisas.
(CANDIDO, 2000, p. 117)
Sobre Marília de Dirceu
É que o próprio sentimento da pessoa aparece, nele, exaltado e altivo. [...] Fala com
naturalidade e abundância (sem o ar de indiscrição que caracterizaria mais tarde os
românticos) da sua inteligência, posição social, prestígio, habilidades. Preocupa-se com
a aparência física e a erosão da idade; com o conforto, futuro, planos, glória. Talvez a
circunstância de namorar uma adolescente rica (ele, pobre e quarentão) tenha
exacerbado esta tendência, que seria além do exibicionismo compreensível de homem
apaixonado. Entretanto, é mais provável que a descoberta do amor e da poesia o tenham
levado a descobrir a si próprio e comunicar o achado.
(CANDIDO, 2000, p. 117)
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 50 ed. São Paulo: Cultrix, 2015.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9 ed. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia, 2000. v.1.
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu & Cartas chilenas. Apresentação, seleção, organização e
comentários de Duda Machado. 10 ed. São Paulo: Ática, 2012. (Bom Livro)

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