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O ATELIÊ DE
GIACOMETTI
A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada
um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando
quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há,
portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o
miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida
secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine.
Ele sorri. E toda a pele enrugada de seu rosto se põe a rir. De um modo
engraçado. Os olhos riem, é óbvio, mas a testa também (ele inteiro tem a
cor cinzenta do ateliê). Por simpatia talvez ele tenha adotado a cor da
poeira. Seus dentes riem — afastados e igualmente cinzentos —, o ar passa
através deles.
Ele olha para uma das estátuas:
ELE: É um tanto destrambelhada, não?
Emprega com frequência essa palavra. Ele também é bastante
destrambelhado. Coça a cabeça cinzenta, desgrenhada. Foi Annette quem
cortou seus cabelos. Suspende as calças cinzentas que caíam sobre os
sapatos. Ria seis segundos antes, mas acaba de tocar uma estátua começada:
durante meio minuto, ele estará inteiro na passagem dos dedos pela massa
de argila. Não o interesso nem um pouco.
Quando mais acima eu disse: “... para os mortos”, foi também para que
essa multidão inumerável veja enfim o que não pôde ver em vida, quando
se sustentava sobre seus próprios ossos. É preciso, portanto, uma arte —
não fluida, ao contrário, bastante dura — dotada do estranho poder de
penetrar esse domínio da morte, de exsudar talvez pelas paredes porosas do
reino das sombras. A injustiça — e nossa dor — seria demasiado grande se
apenas uma delas fosse privada do conhecimento de apenas um de nós, e
nossa vitória bastante pobre se nos trouxesse apenas uma glória futura. Ao
povo dos mortos, a obra de Giacometti comunica o conhecimento da
solidão de cada ser e de cada coisa, e essa solidão é nossa glória mais certa.
Não se aborda uma obra de arte — quem não sabe disso? — como a uma
pessoa, um ser vivo ou outro fenômeno natural. O poema, o quadro, a
estátua exigem ser examinados com um determinado número de qualidades.
Mas falemos do quadro.
Um rosto vivo não se entrega com tanta facilidade, no entanto não é
preciso muito esforço para descobrir seu significado. Creio — estou
arriscando —, creio que o importante é isolá-lo. Se meu olhar o destaca de
tudo o que o cerca, se meu olhar (minha atenção) impede que esse rosto se
confunda com o resto do mundo, evadindo-se em infinitas significações
cada vez mais vagas, fora de si mesmo, e se, ao contrário, obtenho a solidão
por meio da qual meu olhar o separa do mundo, é apenas seu significado
que afluirá e se acumulará nesse rosto — pessoa, ser ou fenômeno. Quero
dizer que se o conhecimento de um rosto pretende ser estético, deve recusar
ser histórico.
Para examinar um quadro, é necessário um esforço maior, uma operação
mais complexa. Foi realmente o pintor — ou o escultor — quem efetuou
por nós a operação acima descrita. É, portanto, a solidão da pessoa ou do
objeto representado que nos é restituída, e nós, que olhamos, para percebê-
la e sermos tocados por ela, devemos ter uma experiência não da
continuidade, mas da descontinuidade do espaço.
Cada objeto cria seu espaço infinito.
Se olho o quadro, como disse, percebo-o em sua solidão absoluta de
objeto como quadro. Mas não é isso que me preocupa. E sim o que a tela
deve representar. O que eu quero apreender em sua solidão é
simultaneamente essa imagem que está sobre a tela e o objeto real que ela
representa. Devo então primeiro tentar isolar em seu significado o quadro
como objeto (tela, moldura etc.), para que ele deixe de pertencer à imensa
família da pintura (mesmo que retorne mais tarde) e que a imagem sobre a
tela se ligue à minha experiência do espaço, ao meu conhecimento da
solidão dos objetos, dos seres ou dos acontecimentos, como descrevi acima.
Quem nunca ficou maravilhado com essa solidão, não conhecerá a beleza
da pintura. Se disser o contrário, mente.
Cada estátua, nitidamente, é diferente. Conheço apenas as estátuas de
mulheres para as quais Annette posou, e os bustos de Diego — e cada deusa
e esse deus —, aqui hesito: se na frente dessas mulheres tenho o sentimento
de estar diante de deusas — deusas e não a estátua de uma deusa —, o busto
de Diego jamais atinge essa grandeza, jamais até agora, ele recua —
retornando a uma velocidade terrível — para a distância de que falei. Ele
seria, antes, o busto de um sacerdote de um clero superior. Não deus. Mas
cada estátua tão diferente se liga sempre à mesma família altiva e sombria.
Familiar e muito próxima. Inacessível.
Giacometti, a quem leio este texto, me pergunta por que, a meu ver, essa
diferença de intensidade entre as estátuas de mulheres e os bustos de
Diego.
EU: Talvez (hesito muito em responder)... talvez porque, apesar de tudo,
a mulher lhe pareça naturalmente mais distante... ou então você queira
fazê-la recuar...
Involuntariamente, sem nada dizer, evoco a imagem da Mãe, num lugar
tão elevado, ou que sei eu?
ELE: É, talvez seja isso.
Continua a leitura — enquanto meu pensamento se desmancha —,
levanta a cabeça, ergue do nariz os óculos quebrados e sujos.
ELE: Talvez porque as estátuas de Annette mostrem o corpo inteiro, ao
passo que Diego é apenas um busto. Está cortado. Portanto, convencional.
E essa convenção o torna menos distante.
Sua explicação me parece justa.
EU: Tem razão. Isso o “socializa”.
Agora à noite, ao escrever esta nota, estou menos convencido do que me
disse, pois não sei como ele modelaria as pernas. Ou melhor, o resto do
corpo, já que numa escultura assim cada órgão ou membro a tal ponto o
prolongamento de todos os outros para formar o indivíduo indissolúvel, que
chega a perder seu próprio nome. “Este” braço impensável sem o corpo
que o continua e o significa em extremo (sendo o corpo o prolongamento do
braço), e, contudo, não conheço braço mais intensamente, mais
expressamente braço do que aquele.
Essa semelhança, parece-me, não se deve à “maneira” do autor. É que
cada figura tem a mesma origem, noturna sem dúvida, mas bem localizada
no mundo.
Onde?
Não posso evitar tocar as estátuas: desvio os olhos, e minha mão continua
sozinha suas descobertas: pescoço, cabeça, nuca, ombros... Sensações
afluem às pontas dos meus dedos. Nenhuma se repete, assim minha mão
percorre uma paisagem extremamente variada e viva.
FREDERICO II (creio, ouvindo, creio: A flauta mágica) a Mozart:
Quantas notas, quantas notas!
MOZART : — Senhor, não há uma única que seja supérflua.
Meus dedos refazem o percurso dos de Giacometti, mas enquanto os dele
buscavam apoio no gesso úmido ou no barro, os meus repõem seus passos
com segurança nos dele. E — por fim! — minha mão vive, minha mão vê.
Saímos para beber alguma coisa. Ele toma café. Para a fim de melhor
registrar a beleza aguda da rua de Alésia, beleza tão leve graças às acácias,
cuja folhagem pontiaguda, acerada, transparente pelo sol, mais amarela que
verde, parece derramar pó de ouro sobre a rua.
ELE: Que bonito, que bonito...
Recomeça a caminhar, mancando. Conta que ficou muito contente ao
saber que a operação — depois de um acidente — o deixaria manco. Por
isso, vou arriscar o seguinte: suas estátuas me dão a sensação de se
refugiarem, em última instância, não sei em que enfermidade secreta que
lhes proporciona a solidão.
Suas telas. Visto no ateliê (um tanto escuro. Giacometti respeita a tal
ponto todas as matérias que se zangaria se Annette acabasse com a poeira
das vidraças), pois não posso tomar muita distância, o retrato surge de início
como um entrelaçamento de linhas curvas, vírgulas, círculos fechados
atravessados por uma secante, linhas em rosa, cinza ou preto — um
estranho verde aí também se agrega —, entrelaçamento muito delicado que
ele estava fazendo, onde sem dúvida se perdia. Mas tenho a ideia de levar o
quadro para o pátio: o resultado é espantoso. À medida que me afasto
(chegarei a abrir a porta do pátio, a sair na rua, recuando vinte ou vinte e
cinco metros), o rosto surge em todo o seu modelado, impõe-se — segundo
o fenômeno já descrito e próprio às figuras de Giacometti —, vem ao meu
encontro, funde-se em mim e se precipita de volta na tela de onde partira,
com uma presença, uma realidade e um relevo terríveis.
Disse “seu modelado”, mas trata-se de outra coisa. Pois creio que ele
nunca se preocupou com tons, nem com sombras, nem com valores
convencionais. E consegue uma rede linear feita apenas de desenhos dentro
do desenho. Porém — e então não compreendo mais —, sem nunca buscar
o relevo por meio de sombras ou tons, nem por meio de qualquer
convenção pictórica, obtém o mais extraordinário dos relevos. “Relevo”? Se
observo melhor a tela, essa não é a palavra mais adequada. Trata-se antes de
uma dureza inquebrável que a figura obteve. Ela teria um peso molecular
extremamente grande. Não se pôs a viver à maneira de certas figuras que
dizemos vivas porque são apreendidas num momento preciso de seus
movimentos, porque são marcadas por um acidente que só pertence à sua
história; é quase o contrário: os rostos pintados por Giacometti parecem ter
reunido tamanha vida que já não lhes resta nenhum segundo a viver,
nenhum gesto a fazer, e (não que tenham acabado de morrer) conhecem
enfim a morte, pois um excesso de vida ali está acumulado. Visto a vinte
metros, cada retrato é uma pequena massa de vida, dura como um cascalho,
cheia como um ovo, que poderia alimentar sem esforço cem outros retratos.
Em meio a velhas garrafas de solvente, sua paleta dos últimos dias: uma
poça de lama de vários tons de cinza.
Poso. Ele desenha com precisão — sem dispor com arte — o forno e a
chaminé que estão atrás de mim. Sabe que deve ser exato, fiel à realidade
dos objetos.
ELE: É preciso fazer exatamente o que está diante de nós.
Digo que sim. Em seguida, após um momento de silêncio:
ELE: E, além disso, é preciso também fazer um quadro.
Lamenta o desaparecimento dos bordéis. Penso que tiveram — e a
lembrança deles ainda tem — um lugar primordial em sua vida para que
não se fale disso. Creio que os frequentava quase como adorador. Ia lá para
ajoelhar-se diante de uma divindade implacável e longínqua. Entre cada
prostituta nua e ele havia talvez a mesma distancia que cada uma de suas
estátuas sempre estabelece conosco. Cada estátua parece recuar a — ou vir
de — uma noite tão distante e espessa que se confunde com a morte: assim,
cada prostituta deve mergulhar numa noite misteriosa onde é soberana. E
ele, abandonado numa margem, de onde a vê incessantemente diminuir e
aumentar.
Arrisco mais: não é no bordel que a mulher poderia se orgulhar de uma
ferida que nunca mais a libertará da solidão, e não é o bordel que a livrará
de todo atributo utilitário, conferindo-lhe assim uma espécie de pureza?
Muitas de suas estátuas grandes são douradas.
Quando se soube que Giacometti estava fazendo meu retrato (eu teria o
rosto mais para o redondo e gordo), disseram-me: “Ele vai fazer sua cabeça
como a lâmina de uma faca”. O busto em argila ainda não está pronto, mas
creio saber por que ele utilizou, para os diferentes quadros, linhas que
parecem fugir partindo da linha mediana do rosto — nariz, boca, queixo —
em direção às orelhas e, se possível, até a nuca. Acho que é porque um
rosto oferece toda a força de seu significado quando está de frente, e tudo
deve partir desse centro para ir alimentar, fortificar o que está atrás,
escondido. Dói-me dizê-lo tão mal, mas tenho a impressão — como quando
se puxam os cabelos para trás da testa e das têmporas — que o pintor puxa
para trás (atrás da tela) o significado do rosto.
Deve existir uma ligação entre essas figuras severas e solitárias e o gosto
de Giacometti pelas prostitutas. Graças a Deus nem tudo é explicável e não
vejo claramente a ligação, mas pressinto-a. Um dia ele me disse:
ELE: O que me agrada nas putas é que não servem para nada. Estão ali. E
só.
Não creio — talvez esteja enganado — que ele tenha chegado a pintar
nem mesmo uma delas. Se o fizesse, se encontraria diante de um ser com
uma solidão à qual se acrescenta outra, proveniente do desespero, ou do
vazio.
Escrevo que uma espécie de amizade irradia dos objetos e que eles nos
dirigem um pensamento amigável... Falar assim é um pouco grosseiro. De
Vermeer, talvez fosse verdade. Giacometti é outra coisa: não é porque se fez
“mais humano” — pois utilizável e constantemente utilizado pelo homem
— que o objeto pintado por Giacometti nos emociona e tranquiliza, não é
porque o melhor, mais doce e mais sensível da presença humana o revestiu,
mas porque é “o objeto” em todo o seu ingênuo frescor de objeto. Ele, e
nada mais. Ele em sua total solidão.
Expressei-me muito mal, não? Tentemos de outro modo: penso que para
abordar os objetos, o olho e em seguida o lápis de Giacometti se despojam
de toda premeditação servil. Sob o pretexto de enobrecer — ou aviltar,
segundo a moda atual —, ele (Giacometti) recusa depositar sobre o objeto a
mínima aparência — mesmo que delicada, cruel ou tensa — humana.
Genet, Jean
O ateliê de Giacometti / Jean Genet
São Paulo: Cosac & Naify Edições
Tradução de: Célia Euvaldo
Titulo original: L’atelier d’Alberto Giacometti
ISBN: 85-86374-71-7
1. Crítica das Belas-Artes. Apreciação crítica das Belas-Artes 2. Jean Genet
CDD 701.18