Você está na página 1de 58

Jean Genet

O ATELIÊ DE
GIACOMETTI

Tradução: Célia Euvaldo


COSAC & NAIFY
Nota desta edição

Entre 1954 e 1958, Jean Genet manteve um convívio intenso com


Giacometti, frequentando com assiduidade seu ateliê, onde posou para
vários retratos. Como consequência dessa amizade e da admiração pela obra
um do outro, nasceu o texto deste livro, publicado originalmente em 1957,
na revista Lettres Nouvelles.
As fotografias de Ernst Scheidegger aqui reproduzidas foram tiradas, em
diferentes ocasiões, entre 1948 e 1959, quase todas no ateliê de Giacometti
em Paris. Apareceram pela primeira vez acompanhando o texto de Genet,
em 1963, na edição francesa de L’Arbalete.
Na capa, foto de Giacometti trabalhando no retrato do professor
Yanaihara. Nas páginas de abertura, retratos a lápis de Jean Genet,
realizados em 1954. As pinturas apresentadas são, na ordem em que
aparecem, Diego com camisa xadrez, Jean Genet, Retrato de Jean Genet e
Busto de Annette, de 1954-5.
A modelo que posa para Giacometti é sua mulher Annette.
O ateliê de Giacometti

tradução de Célia Euvaldo


Todo homem terá talvez sentido essa espécie de pesar, se não terror, ao
ver como o mundo e sua história se mostram enredados num inelutável
movimento que se amplia sempre mais e que parece modificar, para fins
cada vez mais grosseiros, apenas suas manifestações visíveis. Esse mundo
visível é o que é, e nossa ação sobre ele não poderá nunca transformá-lo em
outro. Sonhamos então, nostálgicos, com um universo em que o homem, em
vez de agir com tanta fúria sobre a aparência visível, se dedicasse a
desfazer-se dessa aparência, não somente recusando qualquer ação sobre
ela, mas desnudando-se o bastante para descobrir esse lugar secreto, dentro
de nós mesmos, a partir do qual seria possível uma aventura humana de
todo diferente. Mais precisamente moral, sem dúvida. Mas, afinal, é talvez
a essa condição inumana, a esse agenciamento inelutável, que devemos a
nostalgia de uma civilização que procuraria se aventurar fora do que é
mensurável. É a obra de Giacometti, creio, que torna nosso universo ainda
mais insuportável, pois parece que esse artista soube afastar o que
perturbava seu olhar para descobrir o que restará do homem quando as
máscaras forem retiradas. Mas a Giacometti talvez tivesse sido igualmente
necessária essa condição inumana a nós imposta, para que sua nostalgia se
tornasse tão grande a ponto de lhe dar força para lograr sua busca. Seja
como for, toda a sua obra me parece ser essa procura, visando não só o
homem, mas também não importa o que, o mais banal dos objetos. E
quando consegue despojar o objeto, ou o ser que escolheu, de suas máscaras
utilitárias, a imagem que nos dá é magnífica. Recompensa merecida, mas
previsível.

A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada
um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando
quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há,
portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o
miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida
secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine.

Quando bruscamente apareceu Osíris — pois o nicho é cavado rente à


parede — sob a luz verde, tive medo. Naturalmente, foram meus olhos os
primeiros informados? Não. Meus ombros, antes de tudo, e a nuca,
esmagada por uma mão, ou uma massa, que me obrigava a mergulhar nos
milênios egípcios e, mentalmente, a me curvar, e, mais até, a me encolher
diante dessa pequena estátua de olhar e sorriso severos. Tratava-se
realmente de um deus. O deus do inexorável. (Refiro-me, é claro, à estátua
de Osíris em pé, na cripta do Louvre.) Tive medo porque se tratava, sem
dúvida nenhuma, de um deus. Certas estátuas de Giacometti provocam em
mim uma emoção bem próxima desse terror, e um fascínio quase tão
grande.

Também provocam em mim um curioso sentimento: são familiares,


caminham na rua. Porém, estão no fundo dos tempos, na origem de tudo,
aproximam-se e recuam sem cessar, numa imobilidade soberana. Se meu
olhar tenta amansá-las, aproximar-se delas — mas sem furor, sem cólera
nem ira, simplesmente por causa de uma distância entre mim e elas que eu
não tinha notado, distância tão comprimida e reduzida a ponto de eu
acreditá-las muito próximas —, afastam-se a perder de vista: é que essa
distância súbito se desdobra. Para onde vão? Ainda que sua imagem
permaneça visível, onde estão? (Falo sobretudo das oito grandes estátuas
expostas neste verão em Veneza.)

Não compreendo bem o que em arte se chama um inovador. Uma obra


deveria ser compreendida pelas gerações futuras? Mas por quê? E o que
isso significaria? Que elas poderiam utilizá-la? Para quê? Não entendo. Mas
entendo bem melhor — ainda que muito obscuramente — que toda obra de
arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções deve, com uma
paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos de sua elaboração,
descer aos milênios, juntar-se, se possível, à noite imemorial povoada de
mortos que irão se reconhecer nessa obra.
Não, não, a obra de arte não se destina às novas gerações. Ela é ofertada
ao inumerável povo dos mortos. Que a aceitam. Ou a recusam. Mas esses
mortos de que falo nunca foram vivos. Ou então os esqueci. Foram vivos o
bastante para que os esqueçamos, já que sua vida tinha por função fazê-los
transpor essa tranquila margem de onde aguardam um sinal — vindo daqui
— e o reconhecem.
Ainda que presentes, onde estão essas figuras de Giacometti a que me
refiro, se não na morte? De onde escapam ao mínimo apelo de nossos olhos
para se aproximar de nós.

Converso com Giacometti:


EU: É preciso coração forte para ter uma de suas estátuas em casa.
ELE: Por quê?
Hesito em responder. Minha frase o fará zombar de mim.
EU: Uma de suas estátuas num quarto, e o quarto vira um templo.
Ele parece um pouco desconcertado.
ELE: E acha isso bom?
EU: Não sei. E você, acha bom?
Principalmente os ombros e o peito de duas delas têm a fragilidade de um
esqueleto que, quando tocado, logo se desmancha. A curva do ombro — a
ligação com o braço — é delicada... (desculpem-me, mas) é delicada de
força. Toco o ombro e fecho os olhos: não posso descrever a felicidade dos
meus dedos. Antes de tudo, tocam o bronze pela primeira vez. Em seguida,
algo forte os guia e os tranquiliza.

Ele fala de modo áspero, parece escolher por gosto as entonações e as


palavras mais próximas da conversa cotidiana. Como um tanoeiro.
ELE: Você as viu em gesso... Lembra-se delas, em gesso?
EU: Sim.
ELE: Acha que perdem, em bronze?
EU: Não. De maneira nenhuma.
ELE: Acha que ganham?
Hesito aqui mais uma vez em proferir a frase que expressará melhor o
meu sentimento:
EU: Você vai zombar de mim de novo, mas a impressão que tenho é
curiosa. Não diria que elas ganham, e sim o bronze que ganhou. Pela
primeira vez em sua vida, o bronze acaba de ganhar. Suas mulheres são uma
vitória do bronze. Sobre ele próprio, talvez.
ELE: É assim que tinha de ser.

Ele sorri. E toda a pele enrugada de seu rosto se põe a rir. De um modo
engraçado. Os olhos riem, é óbvio, mas a testa também (ele inteiro tem a
cor cinzenta do ateliê). Por simpatia talvez ele tenha adotado a cor da
poeira. Seus dentes riem — afastados e igualmente cinzentos —, o ar passa
através deles.
Ele olha para uma das estátuas:
ELE: É um tanto destrambelhada, não?
Emprega com frequência essa palavra. Ele também é bastante
destrambelhado. Coça a cabeça cinzenta, desgrenhada. Foi Annette quem
cortou seus cabelos. Suspende as calças cinzentas que caíam sobre os
sapatos. Ria seis segundos antes, mas acaba de tocar uma estátua começada:
durante meio minuto, ele estará inteiro na passagem dos dedos pela massa
de argila. Não o interesso nem um pouco.

A propósito do bronze. Durante um jantar, um de seus amigos, decerto


por provocação — quem era? —, lhe diz:
— Francamente, será que um cérebro normalmente constituído poderia
viver numa cabeça tão achatada?
Giacometti sabia que um cérebro não pode viver num crânio de bronze,
mesmo que tivesse as medidas exatas do crânio do sr. René Coty. E já que a
cabeça será em bronze, e para que ela viva, e que o bronze viva, é preciso
então... Está claro, não está?
Giacometti insiste ainda: seu ideal seria a estatueta-fetiche de borracha
que se vende aos sul-americanos no saguão do Folies-Bergères.
ELE: Quando caminho pela rua e vejo ao longe uma puta vestida, só vejo
uma puta. Quando ela está no quarto, nua, na minha frente, vejo uma deusa.
EU: Para mim, uma mulher pelada é uma mulher pelada. Não me
impressiona nem um pouco. Sou incapaz de ver nela uma deusa. Mas as
suas estátuas, eu as vejo como você vê as putas peladas.
ELE: Acha que consigo mostrá-las como as vejo?

Esta tarde estamos no ateliê. Observo duas telas — duas cabeças — de


extraordinária acuidade, parecem mover-se, vir ao meu encontro, nunca
interrompendo essa marcha em minha direção, vindas de não sei que fundo
da tela que não para de emitir esse rosto penetrante.
ELE: Está começando, não?
Ele indaga meu rosto. Depois se tranquiliza.
ELE: Fiz estas pinturas a noite passada. De memória... Também fiz
desenhos (hesita)... mas não ficaram bons. Quer vê-los?
Devo ter respondido de uma maneira esquisita, pois a pergunta muito me
surpreendeu. Faz quatro anos que o encontro regularmente, e esta é a
primeira vez que ele se propõe a me mostrar uma de suas obras. Em
seguida, constata — espantando-se um pouco — que eu vejo e admiro.
Abre então uma pasta e retira seis desenhos, dos quais sobretudo quatro
são admiráveis. Um deles, que me tocou menos, representa um personagem
de tamanho bastante reduzido, situado na base de uma imensa folha branca.
ELE: Não estou muito satisfeito, mas foi a primeira vez que ousei fazer
isto.
Talvez ele queira dizer: “Valorizar uma superfície branca tão grande com
o auxílio de um personagem tão minúsculo”? Ou: “Mostrar que as
proporções de um personagem resistem à tentativa de esmagamento por
uma enorme superfície”? Ou...
O que quer que ele tenha tentado, sua reflexão me emociona, vinda de
um homem que nunca evita ousar. Esse pequeno personagem aí é uma de
suas vitórias. O que de tão ameaçador Giacometti teve que vencer?

Quando mais acima eu disse: “... para os mortos”, foi também para que
essa multidão inumerável veja enfim o que não pôde ver em vida, quando
se sustentava sobre seus próprios ossos. É preciso, portanto, uma arte —
não fluida, ao contrário, bastante dura — dotada do estranho poder de
penetrar esse domínio da morte, de exsudar talvez pelas paredes porosas do
reino das sombras. A injustiça — e nossa dor — seria demasiado grande se
apenas uma delas fosse privada do conhecimento de apenas um de nós, e
nossa vitória bastante pobre se nos trouxesse apenas uma glória futura. Ao
povo dos mortos, a obra de Giacometti comunica o conhecimento da
solidão de cada ser e de cada coisa, e essa solidão é nossa glória mais certa.

Não se aborda uma obra de arte — quem não sabe disso? — como a uma
pessoa, um ser vivo ou outro fenômeno natural. O poema, o quadro, a
estátua exigem ser examinados com um determinado número de qualidades.
Mas falemos do quadro.
Um rosto vivo não se entrega com tanta facilidade, no entanto não é
preciso muito esforço para descobrir seu significado. Creio — estou
arriscando —, creio que o importante é isolá-lo. Se meu olhar o destaca de
tudo o que o cerca, se meu olhar (minha atenção) impede que esse rosto se
confunda com o resto do mundo, evadindo-se em infinitas significações
cada vez mais vagas, fora de si mesmo, e se, ao contrário, obtenho a solidão
por meio da qual meu olhar o separa do mundo, é apenas seu significado
que afluirá e se acumulará nesse rosto — pessoa, ser ou fenômeno. Quero
dizer que se o conhecimento de um rosto pretende ser estético, deve recusar
ser histórico.
Para examinar um quadro, é necessário um esforço maior, uma operação
mais complexa. Foi realmente o pintor — ou o escultor — quem efetuou
por nós a operação acima descrita. É, portanto, a solidão da pessoa ou do
objeto representado que nos é restituída, e nós, que olhamos, para percebê-
la e sermos tocados por ela, devemos ter uma experiência não da
continuidade, mas da descontinuidade do espaço.
Cada objeto cria seu espaço infinito.
Se olho o quadro, como disse, percebo-o em sua solidão absoluta de
objeto como quadro. Mas não é isso que me preocupa. E sim o que a tela
deve representar. O que eu quero apreender em sua solidão é
simultaneamente essa imagem que está sobre a tela e o objeto real que ela
representa. Devo então primeiro tentar isolar em seu significado o quadro
como objeto (tela, moldura etc.), para que ele deixe de pertencer à imensa
família da pintura (mesmo que retorne mais tarde) e que a imagem sobre a
tela se ligue à minha experiência do espaço, ao meu conhecimento da
solidão dos objetos, dos seres ou dos acontecimentos, como descrevi acima.

Quem nunca ficou maravilhado com essa solidão, não conhecerá a beleza
da pintura. Se disser o contrário, mente.
Cada estátua, nitidamente, é diferente. Conheço apenas as estátuas de
mulheres para as quais Annette posou, e os bustos de Diego — e cada deusa
e esse deus —, aqui hesito: se na frente dessas mulheres tenho o sentimento
de estar diante de deusas — deusas e não a estátua de uma deusa —, o busto
de Diego jamais atinge essa grandeza, jamais até agora, ele recua —
retornando a uma velocidade terrível — para a distância de que falei. Ele
seria, antes, o busto de um sacerdote de um clero superior. Não deus. Mas
cada estátua tão diferente se liga sempre à mesma família altiva e sombria.
Familiar e muito próxima. Inacessível.

Giacometti, a quem leio este texto, me pergunta por que, a meu ver, essa
diferença de intensidade entre as estátuas de mulheres e os bustos de
Diego.
EU: Talvez (hesito muito em responder)... talvez porque, apesar de tudo,
a mulher lhe pareça naturalmente mais distante... ou então você queira
fazê-la recuar...
Involuntariamente, sem nada dizer, evoco a imagem da Mãe, num lugar
tão elevado, ou que sei eu?
ELE: É, talvez seja isso.
Continua a leitura — enquanto meu pensamento se desmancha —,
levanta a cabeça, ergue do nariz os óculos quebrados e sujos.
ELE: Talvez porque as estátuas de Annette mostrem o corpo inteiro, ao
passo que Diego é apenas um busto. Está cortado. Portanto, convencional.
E essa convenção o torna menos distante.
Sua explicação me parece justa.
EU: Tem razão. Isso o “socializa”.
Agora à noite, ao escrever esta nota, estou menos convencido do que me
disse, pois não sei como ele modelaria as pernas. Ou melhor, o resto do
corpo, já que numa escultura assim cada órgão ou membro a tal ponto o
prolongamento de todos os outros para formar o indivíduo indissolúvel, que
chega a perder seu próprio nome. “Este” braço impensável sem o corpo
que o continua e o significa em extremo (sendo o corpo o prolongamento do
braço), e, contudo, não conheço braço mais intensamente, mais
expressamente braço do que aquele.
Essa semelhança, parece-me, não se deve à “maneira” do autor. É que
cada figura tem a mesma origem, noturna sem dúvida, mas bem localizada
no mundo.
Onde?

Há cerca de quatro anos, eu estava no trem. Diante de mim, no


compartimento, estava sentado um velhinho horroroso. Sujo e
manifestamente mau, algumas de suas reflexões o provaram. Recusando
prosseguir uma conversa desagradável, tentei ler, mas involuntariamente
olhava para aquele velhinho: ele era muito feio. Seu olhar, como se diz,
cruzou com o meu e, se foi breve ou demorado, já não sei, mas conheci de
súbito a dolorosa — sim, a dolorosa sensação de que qualquer homem
“valia” exatamente — desculpem, mas é “exatamente” que eu quero
ressaltar — o mesmo que qualquer outro. “Qualquer um”, pensei, “pode ser
amado apesar de sua feiura, imbecilidade e malvadez.”
Um olhar, demorado ou rápido, que tinha sido surpreendido no meu e que
me fazia percebê-lo. E o que possibilitava um homem ser amado apesar de
sua feiura ou malvadez, permitia precisamente amar a feiura ou a malvadez.
Não nos equivoquemos: não se tratava de uma bondade vinda de mim, mas
de um reconhecimento. O olhar de Giacometti viu isso há muito tempo, e o
restitui a nós. Digo o que sinto: o parentesco manifestado por suas figuras
me parece ser esse ponto precioso em que o ser humano seria devolvido ao
que tem de mais irredutível: a solidão de ser exatamente igual a qualquer
outro.
Se — as figuras de Giacometti sendo incorruptíveis — o acidente for
extinto, o que resta então?

O cachorro em bronze de Giacometti é admirável. Era ainda mais bonito


quando sua estranha matéria, gesso misturado com barbante ou estopa,
desfiava. A curva da pata dianteira, sem articulação marcada e, contudo,
sensível, é tão bela que por si só define o passo suave do cão. Pois ele vaga,
farejando, com o focinho comprido rente ao chão. É magro.
Tinha me esquecido do admirável gato: em gesso, do focinho à ponta da
cauda, quase horizontal e capaz de passar pelo buraco de um camundongo.
Sua horizontalidade rígida reproduz perfeitamente a forma do gato, mesmo
quando está enrodilhado.
Como eu me espante que haja um animal — é o único entre suas figuras:
ELE: Sou eu. Um dia me vi na rua assim. Um cão.
Se o cachorro foi escolhido como signo de miséria e solidão, na verdade
é desenhado como uma rubrica harmoniosa, a curva da espinha
respondendo à curva da pata, rubrica que é também o louvor supremo à
solidão.

Essa região secreta, essa solidão onde os seres — e as coisas — se


refugiam, é que dá tanta beleza à rua: por exemplo, estou sentado no
ônibus, só me resta olhar para fora. O ônibus se precipita pela rua em
declive. Sigo bem rápido para não ter a possibilidade de me demorar num
rosto ou num gesto, a velocidade exige de meu olhar uma velocidade
correspondente, pois não há nem um só rosto, nem um só corpo, nem uma
só atitude preparados para mim: estão nus. Registro: um homem muito
grande, muito magro, encurvado, peito cavado, óculos, o nariz comprido;
uma dona de casa gorda que caminha lentamente, pesadamente, tristemente;
um velho que não é um velho bonito, uma árvore solitária, ao lado de uma
árvore solitária, ao lado de outra...; um empregado, outro, uma multidão de
empregados, uma cidade povoada de empregados encurvados, todos
reunidos no detalhe que meu olhar registra: uma ruga na boca, ombros
caídos... cada uma de suas atitudes, em razão talvez da velocidade dos meus
olhos e do veículo, é esboçada tão depressa, tão rapidamente apreendida em
seu arabesco, que cada ser me é revelado no que tem de mais novo, de mais
insubstituível — e é sempre uma ferida —, graças à solidão onde essa
ferida os coloca e que eles mal conhecem, mas para onde todo o seu ser
aflui. Atravesso, assim, uma cidade desenhada por Rembrandt, onde cada
um e cada coisa são apreendidos numa verdade que se distancia muito da
beleza plástica. A cidade — feita de solidão — seria admirável de vida, não
fosse meu ônibus cruzar com um casal de namorados atravessando uma
praça: eles se seguram pela cintura e a moça inventou esse gesto
encantador, pôr e tirar sua mãozinha do bolso de trás do blue-jeans do
rapaz, gesto gracioso e afetado que vulgariza uma página inteira de obras-
primas.
A solidão, como a entendo, não significa condição miserável, mas realeza
secreta, nem incomunicabilidade profunda, mas conhecimento mais ou
menos obscuro de uma singularidade inatacável.

Não posso evitar tocar as estátuas: desvio os olhos, e minha mão continua
sozinha suas descobertas: pescoço, cabeça, nuca, ombros... Sensações
afluem às pontas dos meus dedos. Nenhuma se repete, assim minha mão
percorre uma paisagem extremamente variada e viva.
FREDERICO II (creio, ouvindo, creio: A flauta mágica) a Mozart:
Quantas notas, quantas notas!
MOZART : — Senhor, não há uma única que seja supérflua.
Meus dedos refazem o percurso dos de Giacometti, mas enquanto os dele
buscavam apoio no gesso úmido ou no barro, os meus repõem seus passos
com segurança nos dele. E — por fim! — minha mão vive, minha mão vê.

Penso que a beleza — das esculturas de Giacometti — está no incessante


e ininterrupto vaivém da distância mais extrema à mais próxima
familiaridade: esse vaivém é interminável, e é por isso que se pode dizer
que elas estão em movimento.

Saímos para beber alguma coisa. Ele toma café. Para a fim de melhor
registrar a beleza aguda da rua de Alésia, beleza tão leve graças às acácias,
cuja folhagem pontiaguda, acerada, transparente pelo sol, mais amarela que
verde, parece derramar pó de ouro sobre a rua.
ELE: Que bonito, que bonito...
Recomeça a caminhar, mancando. Conta que ficou muito contente ao
saber que a operação — depois de um acidente — o deixaria manco. Por
isso, vou arriscar o seguinte: suas estátuas me dão a sensação de se
refugiarem, em última instância, não sei em que enfermidade secreta que
lhes proporciona a solidão.

Giacometti e eu — e certamente alguns parisienses — sabemos que


existe em Paris, onde está estabelecida, uma pessoa de grande elegância,
fina, altiva, aprumada, singular e cinzenta — de um cinza muito suave: é a
rua Oberkampf que, desenvolta, muda de nome, chamando-se mais acima
rua de Ménilmontant. Bela como uma agulha, eleva-se aos céus. Se
decidirmos percorrê-la de carro a partir do bulevar Voltaire, à medida que
subimos, ela se abre, mas de uma forma curiosa: em vez de se afastar, as
casas se aproximam, oferecendo fachadas e empenas bastante simples, de
grande banalidade que, no entanto, verdadeiramente transfiguradas pela
personalidade dessa rua, tingem-se de uma espécie de bondade familiar e
distante. Ali instalaram não faz muito tempo pequenos discos imbecis
azuis-escuros, atravessados por uma barra vermelha, para indicar que é
proibido estacionar automóveis. Perdida, ela? Ficou mais bela ainda. Nada
— mas nada! — poderá desfigurá-la.
O que aconteceu? De onde ela tirou doçura tão nobre? Como pode ser ao
mesmo tempo tão terna e tão distante, e por que nos impõe tanto respeito?
Giacometti que me perdoe, mas essa rua quase ereta só pode ser uma de
suas grandes estátuas, inquieta, palpitante e serena.
E ainda não chegou aos pés das estátuas...
Aqui, uma palavra: com exceção de seus homens andando, todas as
estátuas de Giacometti têm os pés como que presos num único bloco
inclinado, bastante volumoso, mais parecendo um pedestal. Saído daí, o
corpo sustenta muito longe, bem no alto, uma cabeça minúscula. Essa
enorme — em proporção à cabeça — massa de gesso ou bronze poderia nos
levar a imaginar que os pés carregam toda a materialidade de que a cabeça
se desfaz... mas não; desses pés maciços à cabeça ocorre uma troca
ininterrupta. Essas mulheres não se apartam da lama pesada: no crepúsculo,
descerão deslizando por uma encosta mergulhada na sombra.

Suas estátuas parecem pertencer a uma era defunta, descobertas depois


que o tempo e a noite — que as trabalharam com inteligência — as
corroeram para lhes dar esse ar, ao mesmo tempo doce e duro, de
eternidade que passa. Ou, melhor ainda, saíram do forno, resíduos de um
cozimento terrível: apagadas as chamas, isso é o que restaria.
Mas que chamas!
Giacometti conta que certa vez teve a ideia de modelar uma estátua e
enterrá-la. (Penso imediatamente: “Que a terra lhe seja leve”.) Não para que
a descubram, ou só muito mais tarde, quando ele próprio e até a lembrança
de seu nome tiverem desaparecido.
Enterrá-la seria propô-la aos mortos?

Sobre a solidão dos objetos.


ELE: Um dia, no meu quarto, ao olhar para uma toalha sobre a cadeira,
tive a nítida impressão de que não apenas cada objeto estava só, como tinha
um peso — ou melhor, uma ausência de peso — que o impedia de pesar
sobre o outro. A toalha estava só, tão só que eu tive a sensação de poder
retirar a cadeira sem que a toalha se movesse. Ela possuía seu próprio lugar,
seu próprio peso, e até seu próprio silêncio. O mundo era leve, leve...
Se ele tivesse que oferecer um presente a alguém que estima ou ama,
talvez lhe enviasse, certo de honrá-lo, uma lasca encaracolada de madeira
ou um pedaço de casca de bétula apanhados no marceneiro.

Suas telas. Visto no ateliê (um tanto escuro. Giacometti respeita a tal
ponto todas as matérias que se zangaria se Annette acabasse com a poeira
das vidraças), pois não posso tomar muita distância, o retrato surge de início
como um entrelaçamento de linhas curvas, vírgulas, círculos fechados
atravessados por uma secante, linhas em rosa, cinza ou preto — um
estranho verde aí também se agrega —, entrelaçamento muito delicado que
ele estava fazendo, onde sem dúvida se perdia. Mas tenho a ideia de levar o
quadro para o pátio: o resultado é espantoso. À medida que me afasto
(chegarei a abrir a porta do pátio, a sair na rua, recuando vinte ou vinte e
cinco metros), o rosto surge em todo o seu modelado, impõe-se — segundo
o fenômeno já descrito e próprio às figuras de Giacometti —, vem ao meu
encontro, funde-se em mim e se precipita de volta na tela de onde partira,
com uma presença, uma realidade e um relevo terríveis.
Disse “seu modelado”, mas trata-se de outra coisa. Pois creio que ele
nunca se preocupou com tons, nem com sombras, nem com valores
convencionais. E consegue uma rede linear feita apenas de desenhos dentro
do desenho. Porém — e então não compreendo mais —, sem nunca buscar
o relevo por meio de sombras ou tons, nem por meio de qualquer
convenção pictórica, obtém o mais extraordinário dos relevos. “Relevo”? Se
observo melhor a tela, essa não é a palavra mais adequada. Trata-se antes de
uma dureza inquebrável que a figura obteve. Ela teria um peso molecular
extremamente grande. Não se pôs a viver à maneira de certas figuras que
dizemos vivas porque são apreendidas num momento preciso de seus
movimentos, porque são marcadas por um acidente que só pertence à sua
história; é quase o contrário: os rostos pintados por Giacometti parecem ter
reunido tamanha vida que já não lhes resta nenhum segundo a viver,
nenhum gesto a fazer, e (não que tenham acabado de morrer) conhecem
enfim a morte, pois um excesso de vida ali está acumulado. Visto a vinte
metros, cada retrato é uma pequena massa de vida, dura como um cascalho,
cheia como um ovo, que poderia alimentar sem esforço cem outros retratos.

Como ele pinta: recusa estabelecer uma diferença de “nível” — ou de


plano — entre as diversas partes do rosto. A mesma linha, ou conjunto de
linhas, pode servir para a face, o olho e a sobrancelha. Para ele, os olhos
não são azuis, as faces rosadas, a sobrancelha negra e curva: uma linha
contínua constitui a face, o olho e a sobrancelha. Não existe sombra do
nariz sobre a face, ou melhor, se existir, essa sombra deve ser tratada como
parte do rosto, com os mesmos traços, curvas, todos igualmente válidos.

Em meio a velhas garrafas de solvente, sua paleta dos últimos dias: uma
poça de lama de vários tons de cinza.

Essa capacidade de isolar um objeto e de fazer afluir nele suas


significações próprias, únicas, só é possível pela abolição histórica daquele
que olha. É preciso que ele faça um esforço excepcional para se livrar da
história, sem se tornar uma espécie de eterno presente, mas, antes, uma
corrida vertiginosa e ininterrupta do passado para o futuro, uma oscilação
de um extremo ao outro, sem repouso.
Se olho para o armário a fim de saber afinal o que ele é, elimino tudo o
que ele não é. E o esforço realizado me transforma num ser curioso: esse
ser, esse observador, deixa de estar presente, e até de ser observador
presente: recua incessantemente a um passado e a um futuro indefinido.
Ausenta-se dali para que o armário permaneça, e para que entre o armário e
ele se extingam todos os laços afetivos ou utilitários.
(Setembro de 57) A mais bela estátua de Giacometti — falo de três anos
atrás — eu a descobri sob a mesa, abaixando-me para apanhar uma ponta de
cigarro. Estava no meio da poeira, ele a escondia, o pé de um visitante
desajeitado poderia destruí-la...
ELE: Se ela for realmente forte, ela se mostrará, mesmo que eu a
esconda.

ELE: Que bonito!... que bonito!...


Ainda que involuntariamente, manteve algo do sotaque dos Grisões...
Que bonito! Os olhos se arregalam, o sorriso é amável; referia-se à poeira
que cobria todas as velhas garrafas de solvente amontoadas numa mesa do
ateliê.

O chão do quarto dele e de Annette é coberto de graciosos ladrilhos


vermelhos. Antes, era de terra batida. Chovia no quarto. Foi com o coração
partido que se resignou aos ladrilhos. São bonitos, mas simples. Conta que
nunca terá outra casa a não ser esse ateliê e o quarto. Gostaria que, se
possível, fossem ainda mais modestos.
Almoçando um dia com Sartre, repito-lhe minha formulação a respeito
das estátuas: “Foi o bronze que ganhou”.
“Isso é o que poderia lhe dar o maior prazer”, diz Sartre. “Seu sonho
seria desaparecer completamente atrás da obra. Ficaria ainda mais feliz se
fosse o bronze que, por si mesmo, se manifestasse.”

Para me familiarizar melhor com uma obra de arte, costumo usar um


truque: entro, artificialmente, em estado de ingenuidade, falo dela — e
também falo com ela, no tom mais cotidiano, até um pouco imbecilizado.
Primeiro me aproximo. Estou me referindo a obras nobres — e esforço-me
por me fazer mais ingênuo e desajeitado do que sou. Tento assim livrar-me
da timidez.
“Que engraçado... é vermelho... vermelho aqui... e aqui o azul... e a
pintura parece lama...”
A obra perde um pouco da solenidade. Por meio de um reconhecimento
familiar, aproximo-me lentamente de seu segredo... Com a obra de
Giacometti não há nada a ser feito. Já se encontra longe demais. Impossível
fingir uma imbecilidade gentil. Severa, ela ordena que eu vá até o ponto
solitário de onde deve ser observada.
Seus desenhos. Só desenha com pena ou lápis duro — o papel muitas
vezes é furado, rasgado. As curvas são duras, sem fraqueza, nem suavidade.
Para ele, é como se uma linha fosse um homem: trata-a de igual para igual.
As linhas quebradas são pontiagudas e dão ao desenho — graças também à
matéria granítica, e paradoxalmente baça, do lápis — uma aparência
cintilante. Diamantes. Diamantes, mais ainda por causa do modo de utilizar
os brancos. Nas paisagens, por exemplo: a página inteira é que seria um
diamante com um dos lados visível em virtude das linhas quebradas e sutis,
ao passo que a face onde a luz incidiria — mais exatamente de onde seria
devolvida não permitiria ver nada além do branco. Isso produz joias
extraordinárias — pensa-se nas aquarelas de Cézanne; graças aos brancos,
onde um desenho invisível está subentendido, tem-se a sensação tão forte
do espaço que se torna quase possível percorrê-lo. (Eu pensava, sobretudo,
nos interiores com o lustre, e nas palmeiras, mas depois ele fez uma série de
quatro desenhos representando uma mesa numa sala abobadada que deixam
os outros muito atrás.) Joias extraordinariamente cinzeladas. E é o branco
— a página branca — que Giacometti teria cinzelado.

A propósito dos quatro grandes desenhos da mesa.


Em certas telas (Monet, Bonnard...) o ar circula. Nos desenhos de que
falo, como dizer... o espaço é que circula. A luz também. Sem nenhuma das
oposições de valores convencionais — sombra-luz —, a luz irradia e alguns
traços a esculpem.

Os apuros de Giacometti com um rosto japonês. O professor japonês


Yanaihara, de quem fazia o retrato, teve de atrasar dois meses a partida
porque Giacometti nunca estava satisfeito com o quadro e o recomeçava
todos os dias. O professor voltou ao Japão sem seu retrato. Esse rosto sem
asperezas, mas grave e doce, devia desafiar o seu gênio. Os quadros que
subsistiram são admiráveis de intensidade: algumas linhas cinzentas, quase
brancas, sobre fundo cinza quase preto. E o mesmo acúmulo de vida de que
falei. Não há como conter aí nem um grão de vida a mais. Estão no ponto
extremo onde a vida se assemelha à matéria inanimada. Rostos aspirados.

Poso. Ele desenha com precisão — sem dispor com arte — o forno e a
chaminé que estão atrás de mim. Sabe que deve ser exato, fiel à realidade
dos objetos.
ELE: É preciso fazer exatamente o que está diante de nós.
Digo que sim. Em seguida, após um momento de silêncio:
ELE: E, além disso, é preciso também fazer um quadro.
Lamenta o desaparecimento dos bordéis. Penso que tiveram — e a
lembrança deles ainda tem — um lugar primordial em sua vida para que
não se fale disso. Creio que os frequentava quase como adorador. Ia lá para
ajoelhar-se diante de uma divindade implacável e longínqua. Entre cada
prostituta nua e ele havia talvez a mesma distancia que cada uma de suas
estátuas sempre estabelece conosco. Cada estátua parece recuar a — ou vir
de — uma noite tão distante e espessa que se confunde com a morte: assim,
cada prostituta deve mergulhar numa noite misteriosa onde é soberana. E
ele, abandonado numa margem, de onde a vê incessantemente diminuir e
aumentar.
Arrisco mais: não é no bordel que a mulher poderia se orgulhar de uma
ferida que nunca mais a libertará da solidão, e não é o bordel que a livrará
de todo atributo utilitário, conferindo-lhe assim uma espécie de pureza?
Muitas de suas estátuas grandes são douradas.

Durante o período em que lutou com o rosto de Yanaihara (podemos


supor esse rosto se oferecendo e recusando que sua semelhança passe para a
tela, como a defender sua identidade única), assisti ao emocionante
espetáculo de um homem que jamais se enganava, mas se perdia todo o
tempo. Mergulhava cada vez mais longe, em regiões impossíveis e sem
saída. De lá retornou estes dias. Sua obra ainda mantém o assombro e
deslumbramento com isso. (Os quatro grandes desenhos da mesa sucedem
imediatamente a esse período.) Sartre me diz:
SARTRE: Estive com ele na época do japonês, a coisa não andava.
EU: Ele sempre diz isso. Nunca está satisfeito.
SARTRE: Naquela época, ele estava realmente desesperado.

A propósito dos desenhos, escrevi: “Objetos infinitamente preciosos...”.


Eu queria dizer também que os brancos dão à página um valor oriental —
ou de fogo; os traços não são utilizados como valor significativo, mas
unicamente para dar significado ao branco. Estão ali apenas para dar forma
e solidez ao branco. Observe-se bem: não é o traço que é elegante, mas o
espaço branco contido por ele. Não é o traço que é cheio, e sim o branco.
E por que então?
Talvez porque, além da palmeira ou do lustre — e do espaço específico
onde se inscrevem — que Giacometti pretende nos restituir, ele procure dar
realidade sensível ao que era apenas ausência — ou, se se quiser,
uniformidade indeterminada —, isto é, o branco, e mesmo, com mais
profundidade, a folha de papel. Como se, uma vez mais, sua missão fosse
enobrecer uma folha de papel branco que, sem seus traços, nunca teria
existido.
Estou enganado? Pode ser.
No entanto, quando a folha branca está afixada diante dele, tenho a
impressão exata de que ele tem tanto respeito e circunspecção diante do
mistério da folha como diante do objeto que vai desenhar ali.
(Eu já tinha observado que seus desenhos evocavam a disposição
tipográfica: “Lance de dados”.)
Qualquer obra do escultor e do desenhista poderia se intitular: “O objeto
invisível”.

As estátuas não somente vêm em sua direção como se estivessem muito


distantes, do fundo de um horizonte extremamente recuado, mas também,
onde quer que você se encontre em relação a elas, procuram fazer com que
você fique num nível inferior quando as olha. Elas estão, bem no fundo de
um horizonte recuado, sobre uma eminência, e você aos pés da elevação.
Elas vêm, apressadas para encontrá-lo, e ultrapassá-lo.

Retorno uma vez mais às mulheres, agora em bronze (geralmente


dourado e patinado): o espaço vibra em torno delas. Nada mais está em
repouso. Talvez porque cada ângulo (feito com o polegar de Giacometti
quando trabalhava a argila), curva, saliência, crista ou ponta arranhada do
metal não estejam eles próprios em repouso. Cada um deles continua a
emitir a sensibilidade que os criou. Nenhuma ponta ou aresta que recorta e
rasga o espaço está morta.

No entanto, as costas dessas mulheres são talvez mais humanas que o


rosto delas. A nuca, os ombros, a reentrância dos rins, as nádegas, parecem
ter sido modelados mais “amorosamente” que o rosto. Visto de três quartos,
esse vaivém da mulher à deusa é talvez o que há de mais perturbador. A
emoção é algumas vezes insuportável.
Pois eu não conseguiria deixar de retornar a esse povo de sentinelas
douradas — e algumas vezes pintadas — que, erguidas, imóveis, velam.
Ao lado delas, como as estátuas de Rodin ou de Maillol estão prestes a
arrotar e em seguida dormir!

As estátuas (as mulheres) de Giacometti velam um morto.

O homem caminha, filiforme. Com o pé dobrado. Não parará nunca. E


anda realmente sobre a terra, quero dizer, sobre uma esfera.

Quando se soube que Giacometti estava fazendo meu retrato (eu teria o
rosto mais para o redondo e gordo), disseram-me: “Ele vai fazer sua cabeça
como a lâmina de uma faca”. O busto em argila ainda não está pronto, mas
creio saber por que ele utilizou, para os diferentes quadros, linhas que
parecem fugir partindo da linha mediana do rosto — nariz, boca, queixo —
em direção às orelhas e, se possível, até a nuca. Acho que é porque um
rosto oferece toda a força de seu significado quando está de frente, e tudo
deve partir desse centro para ir alimentar, fortificar o que está atrás,
escondido. Dói-me dizê-lo tão mal, mas tenho a impressão — como quando
se puxam os cabelos para trás da testa e das têmporas — que o pintor puxa
para trás (atrás da tela) o significado do rosto.

Os bustos de Diego podem ser vistos de todos os lados: três quartos,


perfil, costas..., mas devem ser vistos de frente. O significado do rosto —
sua semelhança profunda —, em vez de se acumular sobre a face, foge,
mergulha no infinito, num lugar jamais alcançado, atrás do busto.
(É natural que eu tente sobretudo determinar uma emoção, descrevê-la, e
não explicar a técnica do artista.)

Uma reflexão de Giacometti, frequentemente repetida:


— É preciso valorizar...
Acho que ele nunca olhou uma vez, uma única vez em sua vida, um ser
ou uma coisa com desprezo. Cada um deve lhe aparecer em sua mais
preciosa solidão.
ELE: Jamais conseguirei pôr num retrato toda a força que há numa
cabeça. Só o fato de viver já exige tanta vontade e tanta energia...
Diante de suas estátuas, um outro sentimento: são todas pessoas muito
belas, contudo me parece que sua tristeza e solidão são comparáveis à
tristeza e solidão de um homem disforme que, subitamente nu, veria
exposta sua deformidade, ao mesmo tempo oferecida ao mundo para indicar
sua solidão e sua glória. Inalteráveis.
Alguns personagens de Jouhandeau têm esta majestade nua: Prudence
Hautechaume.
Alegria dos meus dedos bastante conhecida e sempre renovada quando os
passeio — com os olhos fechados — sobre uma estátua.
“Qualquer estátua de bronze”, penso, “dá aos dedos certamente a mesma
felicidade.”
Tento recomeçar essa experiência em casa de amigos que possuem duas
estatuetas, cópias exatas de Donatello: o bronze não mais responde, mudo,
morto.
Giacometti ou o escultor para cegos.
Mas, há dez anos, eu já tinha conhecido o mesmo prazer quando minha
mão — os dedos e a palma — percorria suas luminárias. De fato são as
mãos, e não os olhos de Giacometti, que fabricam seus objetos, suas
figuras. Ele não os sonha, sente-os.

Ele se apaixona por seus modelos. Amou o japonês.


Sua preocupação com o tratamento da página parece corresponder ao
sentimento que eu indicava acima: enobrecer a folha de papel ou a tela.

No café. Enquanto Giacometti lê, um árabe miserável, quase cego, causa


escândalo ao chamar um cliente de enrabado, depois outro... Um cliente
insultado olha fixamente para o cego, com maldade, move os maxilares
como se mastigasse a raiva. O árabe é magro, levemente idiota. Choca-se
contra uma muralha invisível, mas sólida. Não compreende nada do mundo
onde é cego, fraco e idiota, blasfema-o em uma ou outra de suas
manifestações.
— Se você não tivesse a bengala branca! — berra o francês que o árabe
chamou de enrabado...
Admiro secretamente o fato de uma bengala branca tornar esse cego mais
sagrado que um rei, mais forte que o mais atlético abatedor de gado.
Ofereço um cigarro ao árabe. Seus dedos o procuram, encontrando-o ao
acaso. É baixo, magro e sujo, está também um pouco bêbado, gagueja e
baba. A barba é rala e malfeita. Dentro de suas calças não se supõem
pernas. Mal se aguenta em pé. Traz uma aliança no dedo. Digo algumas
palavras em sua língua:
— Você é casado?
Giacometti continua a leitura e não ouso incomodá-lo. Minha atitude com
o árabe talvez o irrite.
— Não... Não tenho mulher.
Ao mesmo tempo, o árabe faz com a mão um movimento de vaivém para
dar a entender que se masturba.
— Não... não tenho mulher... tenho a minha mão... e então com a mão...
não, não há nada, nada, só a toalha... ou os lençóis...
Seus olhos brancos, descoloridos, sem expressão, movem-se sem cessar.
— ... e serei castigado... o bom deus vai me punir... você não imagina
tudo o que fiz...
Giacometti terminou a leitura, tira os óculos quebrados, guarda-os no
bolso, e saímos. Eu queria comentar o incidente, mas o que ele responderia,
e eu, o que diria? Sei que sabe tanto quanto eu que esse miserável conserva,
sustenta — com raiva e fúria — esse ponto que o torna idêntico a todos e
mais precioso que o resto do mundo: o que subsiste quando se recua para
dentro de si mesmo, o mais longe possível, como quando o mar se retira
abandonando a praia.
Citei esse ocorrido porque me parece que as estátuas de Giacometti se
retiraram — abandonando a praia — para esse lugar secreto, que é
impossível descrever ou determinar, mas que torna cada homem, quando lá
se entrincheira, mais precioso que o resto do mundo.
Muito antes desse acontecimento, Giacometti me contara seus amores
por uma velha mendiga, encantadora e esfarrapada, suja provavelmente, e
também que, quando ela o entretinha, ele podia ver os quistos salientes em
sua cabeça quase calva.
ELE: Eu gostava muito dela, sabe. Quando ficava dois ou três dias sem
aparecer, eu saía na rua para ver se ela vinha... Ela valia por todas as belas
mulheres, não?
EU: Devia ter se casado com ela e apresentá-la como sra. Giacometti.
Olha para mim, sorri levemente:
ELE: Você acha? Se tivesse feito isso seria um sujeito esquisito, não?
EU: Sim.

Deve existir uma ligação entre essas figuras severas e solitárias e o gosto
de Giacometti pelas prostitutas. Graças a Deus nem tudo é explicável e não
vejo claramente a ligação, mas pressinto-a. Um dia ele me disse:
ELE: O que me agrada nas putas é que não servem para nada. Estão ali. E
só.
Não creio — talvez esteja enganado — que ele tenha chegado a pintar
nem mesmo uma delas. Se o fizesse, se encontraria diante de um ser com
uma solidão à qual se acrescenta outra, proveniente do desespero, ou do
vazio.

Estranhos pés ou pedestais! Volto a esse assunto. Pode-se perceber (à


primeira vista, em todo caso) que aqui, tanto quanto a uma exigência da
estatuária e de suas leis (conhecimento e restituição do espaço), Giacometti
— e que ele me perdoe! — observa um ritual íntimo segundo o qual dará à
estátua uma base autoritária, terrena, feudal. A ação dessa base sobre nós é
mágica... (poderão dizer que a figura inteira é mágica, sim, mas a
inquietação, o feitiço que vêm desse fabuloso pé deformado não são da
mesma ordem que o resto. Francamente, acredito haver aqui uma ruptura no
ofício de Giacometti: admirável nas duas maneiras, mas contraditório. Com
a cabeça, ombros, braços, quadris, ilumina-nos. Com os pés, encanta-nos.)

Se pudesse, Giacometti se reduziria a pó, a poeira, e como seria feliz!


— E as “putas”?
A poeira dificilmente pode ganhar, conquistar o coração das “putas”.
Talvez ele se aninhasse nas dobras de suas peles para que elas ganhassem
um pouco de sujeira.

Visto que Giacometti me oferece escolher — após uma hesitação que só


cessaria com a morte de um de nós —, decido-me por uma pequena cabeça
minha (aqui, um parêntese: essa cabeça de fato é muito pequena). Sozinha
na tela, não mede mais do que sete centímetros de altura por três e meio ou
quatro de largura, no entanto tem a força, o peso e as dimensões da minha
cabeça real. Quando tiro o quadro do ateliê para olhá-lo, fico incomodado,
pois sei que estou tanto na tela como na frente dela, olhando-a — decido-
me então por essa cabecinha (cheia de vida, e tão pesada que parece uma
bala de chumbo durante a trajetória).
ELE: Bom, ofereço-lhe esta pintura. (Olha para mim.) Sem brincadeira.
Ela é sua. (Olha para a tela e diz com mais vigor, como se arrancasse uma
unha:) Ela é sua. Pode levá-la... Mas mais tarde... Falta acrescentar um
pedaço de tela por cima.
Ao mostrar-me agora essa correção, vejo que de fato ela se impunha, mas
tanto pela própria tela, que diminui a cabeça, como pela cabeça, que adquire
assim todo o seu peso.
Estou sentado, reto, imóvel, rígido (basta mexer-me para que ele me
reconduza à ordem, ao silêncio e ao repouso), numa cadeira de cozinha
bastante desconfortável.
ELE (olhando-me com ar maravilhado): Como você é bonito!
Dá duas ou três pinceladas na tela sem, aparentemente, deixar de me
penetrar com os olhos. Murmura outra vez como que para si mesmo:
“Como você é bonito”. Em seguida acrescenta a constatação que o
maravilha ainda mais: “Como todo mundo, hein? Nem mais, nem menos”.

ELE: Quando saio por aí, nunca penso no trabalho.


Talvez seja verdade, mas logo que entra no ateliê, começa a trabalhar. De
modo curioso, aliás. Fica ao mesmo tempo concentrado na realização da
estátua — portanto fora daqui, fora de qualquer aproximação — e presente.
O tempo todo a modelar.
Como as estátuas recentes são muito altas — em argila marrom —,
quando ele está de pé diante delas, seus dedos sobem e descem como os de
um jardineiro podando ou enxertando uma roseira trepadeira. Os dedos
brincam ao longo da estátua. E é todo o ateliê que vibra e vive. Tenho a
curiosa impressão de que, se ele ali está, sem que as toque, as estátuas
antigas, já terminadas, alteram-se e transformam-se porque ele trabalha
numa de suas irmãs. Aliás, esse ateliê, ao rés do chão, vai desabar de um
momento para outro. É de madeira carcomida e poeira cinza, as estátuas são
de gesso, deixando à mostra a corda, estopa ou um pedaço de arame; as
telas, pintadas de cinza, perderam há muito tempo a tranquilidade que
tinham na loja, tudo está sujo e abandonado, tudo é precário e está prestes a
desmoronar, tudo tende a se dissolver, tudo flutua: ou tudo isto está como
que capturado numa realidade absoluta. Só quando deixo o ateliê, quando
estou na rua, é que percebo que nada mais à minha volta é verdadeiro. Será
que o digo? Nesse ateliê, um homem morre lentamente, consome-se, e sob
nossos olhos se metamorfoseia em deusas.

Giacometti não trabalha para seus contemporâneos, nem para as gerações


futuras: faz estátuas que arrebatam enfim os mortos.

Já o disse? Todo objeto desenhado ou pintado por Giacometti nos propõe,


nos dirige o pensamento mais amigável e afetuoso. Nunca surge numa
forma desconcertante e monstruosa! Ao contrário, traz de muito longe uma
espécie de amizade e paz que tranquilizam. Ou, se estas inquietam, é porque
são extremamente puras e raras. Estar de acordo com tais objetos (maçã,
garrafa, lustre, mesa, palmeira) exige a recusa de quaisquer compromissos.

Escrevo que uma espécie de amizade irradia dos objetos e que eles nos
dirigem um pensamento amigável... Falar assim é um pouco grosseiro. De
Vermeer, talvez fosse verdade. Giacometti é outra coisa: não é porque se fez
“mais humano” — pois utilizável e constantemente utilizado pelo homem
— que o objeto pintado por Giacometti nos emociona e tranquiliza, não é
porque o melhor, mais doce e mais sensível da presença humana o revestiu,
mas porque é “o objeto” em todo o seu ingênuo frescor de objeto. Ele, e
nada mais. Ele em sua total solidão.
Expressei-me muito mal, não? Tentemos de outro modo: penso que para
abordar os objetos, o olho e em seguida o lápis de Giacometti se despojam
de toda premeditação servil. Sob o pretexto de enobrecer — ou aviltar,
segundo a moda atual —, ele (Giacometti) recusa depositar sobre o objeto a
mínima aparência — mesmo que delicada, cruel ou tensa — humana.

Diante de um lustre, diz:


“É um lustre, é Ele”. E nada mais.
E essa súbita constatação ilumina o pintor. O lustre. No papel ele existirá,
na mais ingênua nudez.
Que respeito pelos objetos. Cada um tem sua própria beleza porque é
“único”, nele há o insubstituível.
A arte de Giacometti não é, portanto, uma arte social por ele estabelecer
entre os objetos um laço social — o homem e suas secreções —, será antes
uma arte de mendigos superiores, a tal ponto puros que apenas o
reconhecimento da solidão de cada ser e cada objeto os uniria. “Estou só”,
parece nos dizer o objeto, “capturado numa necessidade contra a qual você
nada pode. Se sou apenas o que sou, sou indestrutível. Sendo o que sou e
sem reservas, minha solidão conhece a sua.”
L’atelier d’Alberto Giacometti — © Éditions Gallimard, 1979
O ateliê de Giacometti — © Cosac & Naify Edições, 2000

Todos direitos reservados

Fotografias © Ernst Scheidegger


Capa e projeto gráfico: Fábio Miguez
Preparação: Márcia Copola
Revisão: Heitor Ferraz

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro;


(Fundação Biblioteca Nacional)

Genet, Jean
O ateliê de Giacometti / Jean Genet
São Paulo: Cosac & Naify Edições
Tradução de: Célia Euvaldo
Titulo original: L’atelier d’Alberto Giacometti
ISBN: 85-86374-71-7
1. Crítica das Belas-Artes. Apreciação crítica das Belas-Artes 2. Jean Genet
CDD 701.18

COSAC & NAIFY EDIÇÕES


Rua General Jardim, 770 — 2º andar
01223-010 São Paulo — SP
Tel: (0_11) 255-8808
Fax: (0_11) 255-3361
e-mail: info@cosacnaify.com.br
www.cosacnaify.com.br

Você também pode gostar