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A at ividade fotográfica do pós-modernismo

Douglas Crimp

o artigo foi apresentado no colóquio "Performance et Multidisciplinarité"


patrocinado pela revista Parachute, em Montreal, em outubro de 1980, e
posteriormente publicado pelo revista October (n. 15, inverno (980). Em sua
abordagem da atividade fotogrófica do pós-modernismo, Douglas Crimp analisa a
ruptura da noçõo de original no trabalho de vórios artistas contemporâneos, entre
outros Sherie Levine, Cindy Sherman e Richard Prince, enfocando criticamente as
noções de presença, subjetividade e representaçõo. O autor sublinha igualmente o
recalque, pelo discurso modernista, do fotografia como agente de subversão do
julgamento de arte.

Pós-modernismo, fot ografia, presença.

E, no entanto, foi com esse conceito fetichista de arte, fundamentalmente antitécnico, que se
debateram os teóricos da fotografia durante quase 100 anos, naturalmente sem chegar a
qualquer resultado . Porque tentaram justificar a fotografia diante do mesmo tribunal que ela
havia derrubado.

Walter Benjamin, A pequena história da fotografia I

Que a fotografia tenha subvertido o julgamento Aproximadamente há dois anos, em um artigo


de arte é um fato que o discurso do intitulado "Pictures", no qual achei útil de início
modernismo achou necessário reprimir, e, empregar o termo pós-modernismo, tentei traçar
assim, parece que podemos com segurança um perfil do trabalho de um grupo de jovens
dizer do pós-modernismo que ele constitui artistas que estavam apenas começando a expor
precisamente o retorno do reprimido. O pós­
em Nova York 2 Esbocei a origem de suas
modernismo só pode ser entendido como uma
preocupações com o que foi pejorativamente
ruptura específica com o modernismo, com
rotulado de teatralidade da escultura minimal e
aquelas instituições que são sua pré-condição e
que dão forma a seu discurso. Essas instituições as extensões dessa posição teatral na arte dos
podem ser nomeadas da seguinte forma: anos 70. Naquela época, escrevi que o modo
primeiro, o museu; depois, a História da Arte; e, estético exemplar durante os anos 70 foi a
finalmente, num sentido mais complexo, porque performance, todos aqueles trabalhos que eram
o modernismo depende de sua presença e de constituídos numa situação específica e por uma
sua ausência, a fotografia. O pós-modernismo duração específica; trabalhos sobre os quais
refere-se à dispersão da arte, sua pluralidade, poderia ser dito literalmente que se tinha que
com o que eu certamente não quero dizer estar lá, isto é, trabalhos que assumiam a
pluralismo. Pluralismo é, como sabemos, aquela presença do espectador diante do trabalho
fantasia de que a arte é livre, livre de outros
enquanto ele acontecia, privilegiando, portanto,
discursos, instituições, livre, acima de tudo, de
o espectador e não o artista.
história. E essa fantasia de liberdade pode ser
mantida porque todo trabalho de arte é
sustentado para ser absolutamente único e Em minha tentativa de continuar a lógica do que
original. Contra esse pluralismo de originais, eu estava descrevendo, deparei-me
quero falar sobre a pluralidade de cópias. eventualmente com uma barreira. O que eu
queria explicar era como partir dessa condição

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ale R E V 1ST A D o PR o G RA M A D E PÓS· G R A D U A çÃo EM A RT E S V I SUA I S EBA • U FRJ • 2 oo4

de presença - o estar lá necessário para a espaço do espectador, mas que pareciam


performance - para o tipo de presença que só é etéreas, ausentes. Tinham a estranha qualidade
possível por meio da ausência que sabemos ser de hologramas, muito vívidas e detalhadas,
a condição para a representação. Eu estava presentes e, ao mesmo tempo, fantasmagóricas,
escrevendo sobre trabalhos que se tinham ausentes. Goldstein e Longo, Junto com grande
ocupado, depois de quase um século de número de seus contemporâneos, são artistas
repressão, da questão da representação. cujo trabalho se aproxima da questão da
Apontei essa transição com um certa zombaria, representação por meio de modos fotográficos,
uma citação epígrafe suspensa entre duas seções particularmente todos aqueles aspectos da
do texto. A citação, tirada de um dos contos de fotografia que têm a ver com reproducão, com
fantâsmas de Henry James, era uma falsa cópias e cópias de cópias. A extraordinária
tautologia, que Jogava com o duplo, presença de seus trabalhos é afetada pela
efetivamente antitético, do significado da palavra ausência, pela distância intransponível do
presença: ''A presença diante dele era uma original, até mesmo da possibilidade de um
presença". original. Tal presença é o que atribuo a esse tipo
de atividade fotográfca que chamo pós­
o que acabei de chamar de zombaria talvez não modernismo.
fosse exatamente isso, mas, até certo ponto, a
alusão a algo realmente crucial sobre o trabalho Essa qualidade de presença pareceria ser o
descrito, que gostaria de elaborar agora, Para oposto do que Walter Benjamin tinha em mente
fazer isso, quero adicionar a terceira definição quando introduziu na linguagem crítica a noção
para a palavra presença. A essa noção de de aura. A aura tem algo a ver com a presença
presença que diz respeito a estar lá, estar em do original, com a autenticidade, com a
frente a, e a essa noção de presença que Henry existência única do trabalho de arte no lugar em
James usa em suas histórias de fantasmas - a que este por acaso esteja. É esse aspecto do
presença que é um fantasma e, portanto, trabalho que pode ser testado por uma análise
realmente uma ausência, a presença que nõo química ou pelo conhecimento especializado,
está lá - quero acrescentar a noção de presença aspecto que a disciplina da História da Arte, ao
como um tipo de adicional do fato de estar lá, menos em seu disfarce como Kunstwissenschatt,
um aspecto fantasmagórico da presença que é é capaz de aprovar ou desaprovar; aspecto,
seu excesso, seu suplemento. Essa noção de portanto, que tanto admite quanto bane o
presença é o que queremos dizer quando trabalho de arte do museu. Para o museu não
falamos, por exemplo, que Laurie Anderson é há negócio com falsos, cópias ou reproduções.
uma performer com presença. Queremos dizer A presença do artista no trabalho tem que ser
com isso não apenas que ela está lá, diante de detectada; é assim que o museu sabe que tem
nós, mas que ela está mais do que lá, que, em algo autêntico.
adição a estar lá, ela tem uma presença. E se
pensamos em Laurie Anderson dessa maneira Mas é essa própria autenticidade, Benjamin nos
pode parecer um pouco estranho, porque a diz, que é inevitavelmente depreciada pela
presença particular de Laurie Anderson efetua­ reprodução técnica, diminuída pela proliferação
se com o uso de tecnologia reprodutiva que de cópias. "O que qesaparecerá na era da
realmente a faz quase ausente, ou apenas lá, reprodução técnica é a aura do trabalho de
como o tipo de presença a que Henry James se arte", essa é a maneira como Benjamin coloca]
referia quando falou "a presença diante dele era É claro, porém, que aura não é um conceito
uma presença". mecânico, como empregado por Benjamin, mas
sim um conceito histórico. Não é algo que um
Foi precisamente esse tipo de presença que trabalho feito manualmente tem que um
atribuí às performances de Jack Goldstein, como trabalho feito mecanicamente não tenha. Do
Two Fencers, e à qual vou adicionar agora as ponto de vista de Benjamin, certas fotografias
performances de Robert Longo, como Surrender têm aura, enquanto mesmo uma pintura de
Ambas foram um pouco mais do que presenças, Rembrandt perde sua aura na era da
esquetes rPerformed tableaux] que estavam no reprodução técnica. O desaparecimento da

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aura, a dissociação de trabalho e estrutura da em pintura: significa olhar não para a mão do
trad ição, é um resultado inevitóvel da artista, mas para a incontrolada e incontrolável
reprodução técnica. Isso é algo que todos nós intrusão da realidade, a qualidade absolutamente
experimentamos. Sabemos, por exemplo, da única e até mesmo mágica, não do artista, mas
impossibilidade de experimentar a aura de uma de seu assunto . E é, talvez, por ISSO que lhe
pintura como a Mono Liso, mesmo estando pareceu tão pouco judicioso que os fotógrafos
diante dela no Louvre. Essa aura tem sido ten ham começado, depois da comercialização
profundamente depreciada pelas mil vezes que do meio, a simular a aura perdida pela aplicação
temos visto sua reprodução, e nenhum nível de de técnicas imitativas daquelas da pintura. Seu
concentração irá restaurar sua unicidade para exemplo foi o processo da goma bicromatada
nós. usada em fotografias pictorialistas.

Parecerá, então , que, se esse desaparecimento Embora possa parecer a princípio que Benjamin
da aura é um fato Inevitável do nosso tempo, lamentasse a perda da aura, a verdade é, de
então igualmente inevitáveis são todos os fato, o contrário. "O significado social da
projetos de recuperá-I a, de fingir que o original reprodução, particul armente em sua forma mais
e o único são ainda possíveis e desejados. E isso positiva, é inconcebível", escreveu Benjamin,
é em nenhum lugar mais aparente do que no "sem o aspecto destrutivo, catáliico, sua
campo da fotografia, a própria culpada da liquidação dos valores tradicionais da herança
reprodução técnica. cultural" ? Esta era para ele a grandeza de Atget:
"Ele iniciou a liberação do objeto de sua aura, o
Benjamin conferia uma presença ou aura apenas que é a mais incontestável realização da nova
a um número limitado de fotografias - as da escola de fotografia" 8 ''A coisa mais marcante
chamada fase primitiva, o período anterior à sobre as imagens [de Atget] ... é seu vazio."9
comerciali zação da fotografia, depois da década
de 1850. Afirmou, por exemplo, que as pessoas Essa operação de esvaziamento, a exaustão da
nessas primeiras fotografias tinham "uma aura aura, a contestação da unicidade da obra de arte
em tomo delas, um meio que atravessado por têm sido aceleradas e intensificadas na arte das
seu o lhar lhes dava uma sensação de plenitude e últimas duas décadas. Da multiplicação das
segurança" 4 Essa aura parecia ser, para imagens fotográficas em serigrafia nos trabalhos
Benjamin , o produto de duas coisas: o longo de Rauschenberg e W arhol à fabricação
tem po de exposição , durante o qual o assunto industrial das estruturas repetitivas dos escultores
transformava-se , tal como era, em imagens: e a minimalistas, tudo na prática artística radical
única, não mediada, relação entre o fotógrafo, parece conspirar para a liquidação dos valores
que era "um técnico da nova escola" , e seu culturais tradicionais aos quais Benjamin se
modelo, que era "um membro de uma classe referia. E, porque o museu é essa instituição que
ascendente, dotado de uma aura que se foi fundada unicamente sobre esses valores, e
refugiava até nas dobras de sua sobrecasaca o u cUJo trabalho é o de sustentar esses valo res, ele
da gravata lovolliere". S A aura nessas
fotografias, então, não se encontra na
presença do fotógrafo na fotografia, da .
maneira como a aura de uma pintura é
determinada pela presença da
inconfundível mão do pintor em seu
quadro. Ao contrário, trata-se da
presença do assunto, do que é
fotografado, "a pequena centelha do
acaso, do aqui e agora, com a qual a
realidade chamuscou a imagem" 6 Para
Benjamin, então, a especialização em
fotografia é uma atividade
diametralmente oposta à especialização

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a/e REVIS T A DO PROGR AMA DE POS - GRADUAÇAO EM ARTES V I SUA I S EBA o UfRJ' 200 4

tem enfrentado uma crise de proporções arte de sua "aura" única. É, de fato, a
conside ráveis. Um sintoma dessa crise é a acentuação dessa aura, por vórios meios, que
maneira com que nossos museus, um após o a pintura agora autoconsciente pretende ­
outro, por volta dos anos 70, abdicaram da tonto enfatizando o gesto do artista quanto
responsabilidade com a prática artística criando imagens vision6rias altomente
contemporânea e se voltaram com nostalgia individuais, que não podem ser confundidas
para a arte que havia sido previamente re legada nem com a própria realidade, nem com
a suas re servas técnicas. Uma História da Arte nenhuma outra". 10
revisionista logo começou a ser justificada por
"revelações" de méritos de artistas acadêmicos e Que esse tipo de pintura considere tão
figuras menores de t odos os tipos . claramente a reprodução técnica como um
inimigo é sintomático da profunda ameaça às
Por volta de meados da década de 1970 idéias herdadas (as únicas idéi.as conhecidas por
apareceu outro sintoma - e mais sério - da essa pintura) colocada pela atividade fotográfica
crise do museu, o qual eu já havia mencionado: do pós-modernismo. Mas, nesse caso, isso é
as várias tentativas de recuperar o aurático. Essas sintomático também de uma mais limitada e
tentativas manifestaram-se em dois fenômenos intema ameaça: a que se colocou para a pintura
contraditórios: a ressurgência da pintura quando de repente a própria fotografia adquiriu
expressionista e o triunfo da fotografia como aura. Agora não é apenas uma questão de
arte. O museu tinha abraçado ambos os ideologia, agora é uma competição real pela
fenômenos com igual entusiasmo, para não aq uisição de verba e pelo espaço de parede do
dizer voracidade. museu.

Pouco, acho, precisa ser dito sobre a volta da Mas como é que, de repente, a fotografia se viu
pintura como expressão pessoal. Nós a vemos conferida de uma aura? Como a plenitude das
em todos os lugares para onde nos viramos. O cópias foi reduzida à escassez dos originais? E
mercado está entupido dessa pintura. Chega­ como nós conhecemos o autêntico de sua
nos sob todo tipo de disfarce, pintura de reprodução? I I
padrões, new image painting, neoconstrutivismo,
neo-expressionismo: é pluralista com certeza. Entra o especialista. Mas não o especialista em
Mas dentro desse individualismo, essa pintura é fotografia do tipo de Walter Benjamin ou, mais
profundamente conformista em um ponto: seu próximo de nós, Rol and Barthes. Nem "a
desprezo pela fotografia. Escrevendo um texto centelha do acaso" de Benjamin, nem o
tipo manifesto para o catálogo de sua Arnerican "significado terceiro" de Barthes iriam garantir o
Painting: The Eighties - essa exposição oracular lugar da fotografia no museu. O especialista
acontecida no outono de I 979 para demonstrar necessário para esse trabalho é o historiador de
a ressurreição miraculosa da pintura - Barbara arte à moda antiga, com suas análises químicas
Rose nos disse: e, mais importante, sua análise estilística.
Autenticar a fotografia requer todo o maquinário
Os pintores sérios dos 80 formam um grupo da História da Arte e da museologia, com
extremamente heterogêneo - alguns algumas adições, e mais do que algu ns truques
abstraoos, alguns representocionais. Como são de prestidigitação. Para começar, há, é claro, a
unidos por um número suficiente de questões incontestável raridade da idade, a cópia de boa
criticas, é poss(veJ isol6-los como um grupo. safra. Certas técnicas , tipos de papéis e químicas
São, em primeiro lugar, dedicados a preservar ficaram fora de uso, e então a idade da cópia
a pintura como uma arte transcendente e pode ser facilmente estabelecida. Mas esse tipo
universal em oposição a uma significância de raridade certificada não é o que me interessa,
local e do momento. Sua estética, que nem seu parale lo na prática fotográfica
sintetizo qualidades t6teis e as qualidades contemporânea, a edição limitada. O que me
óticas, define-se em oposição consciente à interessa é a subjetivação da fotografia, as
fotografia e a todas as formas de reprodução maneiras pelas quais o especialista da "centelha
técnica que procuram privar o trabalho de do acaso" da fotografia é convertido em um

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especialista do estilo fotográfico. Porque agora, original não pode ser localizado, é sempre
parece, finalmente podemos detectar a mão do diferido; mesmo o eu que pode ter gerado um
fotógrafo, exceto, é claro, pelo fato de que essa original é demonstrado ser ele próprio cópia.
é seu olho, sua visão única. (Embora possa
também ser sua mão: basta escutarmos os Num gesto característico, Sherrie Levine
adeptos da subjetividade fotográfica descreverem começa uma declaração sobre seu trabalho com
o ritual místico desempenhado pelos fotógrafos uma anedota que é muito familiar:
em seus laboratórios).
Como a porta estava apenas meio fechada,
Dou-me conta, naturalmente, de que ao tive uma visão confUsa de minha mãe com
levantar a questão da subjetividade estou meu pai na cama, um em cima do outro.
revivendo o principal debate na história da Mortificada, machucada, chocada de horror,
estética da fotografia, o que diz respeito à prova tive a detestóvel sensação de ter-me colocado
direta e à prova manipulada, ou às numerosas cega e completamente em mãos indignas.
variações sobre esse tema. Mas o faço aqui para Instintivamente e sem esforço, me dividi, por
poder enfatizar que a recuperação da aura para assim dizer, em duas pessoas, sendo que
a fotografia subsumiria de fato sob a bandeira da uma, a real, a genuína, continuou por conta
subjetividade todo a fotografia, a fotografia cuja própria, enquanto a outra, uma bem-sucedida
fonte é o espiríto humano e aquela cuja fonte é imitação da primeira, foi delegada a ter
o mundo em nossa volta, as ficções as mais relações com o mundo. Meu primeiro eu
completamente manipuladas e as transcrições continua a distância, impassivo, irônico e
mais fiéis do real, de composição e observador. 12
documentário, os espelhos e as janelas, Comera
Work em seu início, Ufe em seus belos dias. Mas Não apenas reconhecemos isso como a
esses são apenas os termos de estilo e modo da descrição de algo que já conhecíamos - a cena
concordância do espectro da fotografia-como­ primária -, mas nosso reconhecimento pode
arte. A restauração da aura, o conseqüente estender-se mais além, ao romance de Moravia
colecionar e exibir não param por aí. É do qual a descrição foi retirada. Porque o relato
estendido à carte-de-visite, ao encarte de moda, autobiográfico de Levine é uma mera junção de
à foto publicitária, ao instantâneo anônimo ou ao citações surrupiadas - e se considerarmos isso
polaróide. Na origem de cada um há um Artista, uma maneira estranha de escrever sobre o
e, portanto, cada um pode achar seu lugar no método de trabalho de alguém, talvez então
espectro da subjetividade. Tem sido lugar­ devêssemos nos voltar para o trabalho que ela
comum da História da Arte afirmar que o descreve.
realismo e o expressionismo são meras
questões de níveis, isto é, questões de estilo. Em uma exposição recente, Levine mostrou seis
fotografias de um jovem nu. Elas foram
A atividade fotográfica do pós-modernismo simplesmente refotografadas da famosa série de
opera, como podemos esperar, em Edward Weston sobre seu filho pequeno Neil,
cumplicidade com esses modos de fotografia­ disponíveis para Levine como pôster publicado
como-arte, mas só o faz visando subvertê-los e pela Witkin Gallery. De acordo com a lei do
excedê-los. E o faz precisamente em relação à direito autoral, as imagens pertencem a Weston
aura, embora não para recuperá-Ia, mas para ou, agora, ao espólio Weston. Penso,
deslocá-Ia, para mostrar que é agora também entretanto, que, para ser justo, podemos dá-Ias
apenas um aspecto da cópia, e não do original. igualmente a Praxíteles, já que, se é a imagem
Um grupo de Jovens artistas trabalhando com que pode ser possuída, então essas certamente
fotografia tem endereçado as pretensões da pertencem à escultura clássica, o que as
fotografia à originalidade, mostrando a ficção colocaria em domínio público. Levine disse que,
dessas pretensões e mostrando a fotografia quando mostrou suas fotografias para um amigo,
sempre como uma representação, um sempre­ ele comentou que elas apenas o faziam querer
já-visto. Suas imagens são furtadas, confiscadas, ver as originais. "É claro", ela respondeu, "e as
apropriadas, roubadas. Em seus trabalhos, o originais fazem você querer ver aquele menino

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a/e RE V IS TA DO PRO G R AMA DE P Ú S - G R AD U AÇA O EM A RTE S V ISU A I S E GA o UFRJ o 2004

pequeno, mas, quando você vê o menino, a criando ficções por intermédio da aparência de
arte se foi " . O desejo suscitado por essa realidade contínua na qual foi teCida uma
representação não se limita ao pequeno dimensão narrativa. As fotografias de Cindy
menino, não é de maneira alguma satisfeito por Sherman funcionam nesse espedro, mas
ele. O desejo de representação só existe na
medida em que nunca é preenchido, na
medida em que o original é sempre diferido.
É somente na ausência do original que a
representação pode dar-se. E a
representação se dá porque sempre já está
no mundo como representação. Foi, é claro, .. -­
o próprio Weston quem disse que "uma
fotografia tem que ser visualizada por inteiro
antes de se fazer a tomada". Levine levou o
mestre ao pé da letra e, fazendo-o , tem
mostrado o que ele realmente quis dizer. O
o priori que Weston tinha em mente não
estava de todo em seu espírito; estava no
mundo, e Weston apenas o copiou.

Esse fenômeno talvez seja ainda mais crucial


nessas séries de Levine, em que essa
imagem o priori não é tão obviamente
confiscada da cultura de elite - pela qual eu
entendo ao mesmo tempo Weston e
Praxíteles - , mas do próprio mundo, no qual
.
-'
a natureza se coloca como antítese da
representação. Dessa maneira, as imagens
que Levine recortou de livros de fotografias
de Andreas Feininger e Elliot Porter mostram
cenas da natureza extremamente familiares.
Elas sugerem que a descrição de Roland Barthes unicamente para poder expor uma dimensão
do tempo da fotografia como o "isso foi" seja não desejada dessa fiCção, pois a ficção que
interpretada de uma nova maneira. A presença Sherman revela é a ficção do eu. Suas fotografias
que tais fotografias têm sobre nós é a presença mostram que as supostas autonomia e unidade
do déjà vu, a natureza como já tendo sido vista, do eu, a partir das quais os outros "realizadores"
natureza como representação. criarão suas ficçõe s, são em si nada mais do que
uma série de representações descontínuas,
Se as fotografias de Levine ocupam um lugar cópias e falsificações.
nesse espedro da fotografia-como-arte, seria
como o mais distante da fotografia direta - não As fotografias de Sherman são t odas auto­
só porque as fotografias das quais ela se apropria retratos em que ela aparece disfarçada, atuando
operam desse modo, mas porque ela não em um drama cujos detalhes são suprimidos.
manipula suas fotografias de nenhuma forma: ela Essa ambigüidade da narração é paralela à
só (e literalmente) tira fotografias. No outro ambigüidade do eu ao mesmo tempo ator na
extremo desse espedro está a fotografia que é narração e seu criador. Pois, embora Sherman
composta com afetação, manipulada, seja literalmente outocriodo [self-creote]13 nesses
ficcionalizada, chamada de composição, trabalhos, ela é criada na imagem já conhecida
categoria na qual encontramos fotógrafos­ dos estereótipos femininos; seu eu é então
autores tais como Duane Michals eLes Krims. A entendido como contingente às possibilidades
estratégia desse gênero é utilizar a aparente providas pela cultura da qual Sherman participa
veracidade da fotografia contra si mesma, e não por algum impulso interno. Nisso, suas

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fotografias revertem os termos de arte e da Notas
autobiografia, Usam arte não para revelar o
I Walter Benjamim, 'A pequena história da Fotografia ", citado a
verdadeiro eu do artista, mas para mostrar o eu . partir da tr. br de Sérgio Paulo Rouanet, in: Walter
como uma construção imaginária, Não existe a Benjamim, Obros Escolhidos. Magia e técnico, arte e
verdadeira Cindy Sherman nessas fotografias, político, São Paulo: Brasiliense, 1987: 92, Todas as
citações deste texto são feitils a partir dessa tradução.
existem apenas as aparências que ela assume, E (N RT)
ela não cria essas aparências, mas simplesmente
as escolhe do jeito que qualquer um de nós o 2 Douglas Crrmp, "Pdures", Octcber n.8, p,irrovera 1979: 75-88,
faz, A pose da autoria é dispensada não só pelos
J Wal ter Benjamin, 'A obra de arte na era de sua
meios técnicos de produção de imagens, mas reprodutibllidade técn ica", in op, Clt.: 165- 196,
pela obliteração de qualquer continuidade de
qualquer personagem essencial ou mesmo rosto < Water Benjamin , "A peque0a histórra da Fotografia",op. cit. : 98.

reconhecível nas cenas descritas, S Idem Ibidem : 99,

o aspecto de nossa cultura que é "Idem ibidem: 94,


profundamente manipulador dos papéis que
7 Wa~er Benjamin, 'A obra de arte na era de sua
representamos é, evidentemente, a publicidade reprodutlbilidade técnica", op. cit.
de massa, cuja estratégia é disfarçar a fotografia
de composição em fotografia documentária, 8 Walter Benjamin, '" pequena histó,1a da fotografia", op, cir.: 100.
Richard Prince rouba as mais francas e banais
9 Idem ibidem: 10 1.
dessas imagens, que se inscrevem como um
tipo de choque no contexto da fotografla-como­ 10 Barbara Rose, Americon Painting: The Elghties, Bulfalo,
arte, No final, porém, sua familiaridade brutal dá Thoren-Sidney Press, 1979,

lugar à estranheza, como se uma dimensão de


!I A urgência dessas queslões evidenCiou-se IniCialmente para
ficção não desejada e não pretendida as mim lendo o editorial preparado por Annette Michelson
reinvadisse, Isolando, aumentando e justapondo para o número 5 de OClOber, edição especial sobre
fotografia (verão 1978: 3-5),
fragmentos de imagens comerciais, Prince
aponta para a invasão desses fantasmas de ficção 12 Sherrie Levlne, declaração Inéditil, 1980.
nessas imagens, Focando diretamente no bem
de consumo como fetiche, e usando com 13 Há na expressão self-creoted um duplo sentido da palavra
se/r JOgo sobre a criação do eu e outo-crioçao, (NRT)
maestria a ferramenta do fetichismo do bem de
consumo, as fotografias refotografadas de Prince
adquirem uma dimensão hitchcokiana : o bem
de consumo torna-se um Indício, Adquire,
pode-se dizer, uma aura, só que agora é uma
função não de presença, mas de ausência,
separada de uma origem, de um gerador, da
autenticidade, Em nosso tempo, a aura tem-se
tornado somente uma presença, quer dizer, um
fantasma ,

Dcugla> Cntnp é doc!o," pela Ci!y Un,versl!y of New York desde 1994,
professor de HlStótia da Arte e ~t udos Cufturais e VISuaIS, critico de
arte, colat~:>radof/edit o r da revior;t.;l CXtaber. Conhecido corno leórico do
pós -modcmtsmo nas artes vl'Suaís, d~ ntre suas pubr<aç6es destaca-se 00
lhe MLiSeum 's Ruins. Mrf Pres), 1993.
Tradução: Claudia Tavares
Revisão técnica: Glória Ferreira

l TEM A TIC A ' D OUGLAI CR I MP 133

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