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FRAGMENTOS PÓS-MODERNOS
Rio de Janeiro
2003
Faça o que faça, a vida é ficção, / E formada de contradições...
[William Blake]
Não pode haver mundo, nem haveria distinções se tudo fosse igual. Parece que as
diversidades constituem a harmonia na espécie humana.
[Qorpo-Santo]
Evoé, Vênus!
[Manuel Bandeira]
Make it new.
[Ezra Pound]
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
[Mario de Andrade]
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Um dos muitos modos de prefácio...
O leitor do qual espero alguma coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler
sem pressa. Não deve intrometer-se, nem trazer para a leitura a sua “formação”. Por
fim, não pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado, novas propostas de
escrita ou de leitura. Não prometo verdades teóricas, nem novo texto de estudo para
universitários, admiro muito mais a natureza cheia de força daqueles que estão prontos
para atravessar todo o caminho, desde as profundezas do empírico até as alturas dos
problemas culturais autênticos, e novamente, destas para as entranhas dos
regulamentos mais áridos, e dos programas didáticos arranjados. Mesmo satisfeito por
ter subido, ofegante, uma montanha bem alta e tendo recebido lá em cima a alegria da
vista mais livre, nunca poderei satisfazer os amigos de regulamentos neste trabalho.
Bem vejo chegar um tempo em que gente séria, a serviço de uma formação totalmente
renovada e purificada, trabalhando em conjunto, vão se tornar de novo os legisladores
da educação cotidiana – a que leva à referida formação. Provavelmente deverão
elaborar novos regulamentos e programas. Mas como está longe este tempo! E o que
não vai acontecer até lá! Talvez encontre-se entre ele e o presente a dissolução do
ensino universitário, ou pelo menos uma reformulação tão ampla das assim chamadas
universidades, que seus antigos regulamentos e programas parecerão, aos olhos da
posteridade, sobras do tempo das palafitas.
O trabalho se destina aos leitores calmos, a pessoas que ainda não estão
comprometidas com a pressa vertiginosa de nossa época rolante, e que ainda não
sentem um prazer idólatra quando se atiram sob suas rodas, portanto a gente que ainda
não se acostumou a estimar o valor de cada coisa segundo o ganho ou a perda de
tempo. Ou seja – a muito poucos. Esses, porém, “ainda tem tempo”, a eles é
permitido, sem que fiquem envergonhados, procurar a reunião dos momentos mais
frutíferos e mais fortes de seus dias, a fim de refletir sobre o futuro de nossa formação
acadêmica, eles podem até acreditar que chegam à noite de modo vantajoso e digno,
quer dizer: na meditatio generis futuri. Uma pessoa assim ainda não desaprendeu a
pensar enquanto lê, ainda compreende o segredo de ler nas entrelinhas, sim, ele
esbanja tanto, que ainda reflete sobre o que foi lido – talvez muito após ter largado o
livro. E, contudo, não para escrever uma resenha ou um novo livro, mas apenas assim,
para refletir! Esbanjador leviano! Você é o meu leitor, pois será calmo o suficiente para
seguir um longo caminho com o autor, cujas metas ele mesmo não pode ver, nas quais
deve acreditar honestamente, para que uma geração posterior, talvez distante, veja com
os olhos o que só tateamos às cegas e dirigidos apenas pelo instinto. Se o leitor, em
contrapartida, achar que só é necessário um pulo ligeiro, um ato bem-humorado, se
considerar que se alcança tudo o que é essencial com uma nova legislação decretada
3
pelo Estado, então devemos temer que ele não tenha chegado a entender nem o autor,
nem o problema propriamente dito.
Por fim, dirige-se ao leitor a terceira e mais importante exigência: a de que ele não se
intrometa de modo algum, à maneira do homem moderno, e não traga para a leitura a
sua “formação”, algo como uma medida, como se com isso possuísse um critério para
todas as coisas. Desejamos que ele seja suficientemente formado para pensar em sua
formação de modo restrito e até desdenhoso. Então lhe seria permitido abandonar-se
com total confiança à condução do escritor que, justamente, só ousa falar do não-saber
e do saber do não-saber. Antes de tudo, o leitor não quer recorrer a nada além de um
sentimento forte e agitado do que é específico em nossa barbárie presente, daquilo que
nos distingue, como bárbaros do século vinte e um, diante de outros bárbaros. Assim,
com este livro na mão, ele procura os que são movidos por um sentimento semelhante.
Deixem-se encontrar, solidários, em cuja existência eu acredito! Perdidos de si
mesmos, que sofrem, em si mesmos, a dor da corrupção de uma alma brasileira...
Contemplativos, cujos olhos são incapazes de escorregar de uma superfície para a
outra com uma espiada cheia de pressa... Altivos, que Aristóteles celebra por
atravessarem a vida hesitando e sem ação, a não ser que uma grande missão e uma
grande obra os reclame... A vocês faço meu apelo. Não se escondam, só desta vez, na
caverna de sua reclusão e de sua desconfiança... Pensem que este livro é destinado a
ser arauto... Se vocês mesmos aparecerem no campo de batalha, em sua própria
armadura, quem ainda cobiçará olhar para o arauto que os convocou?...
Friedrich Nietzschei
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A pós-modernidade – o livro parte dessa concepção – é um fato. É um
fenômeno da cultura, não uma idéia, uma vanguarda, com a qual pretendem,
progressistas, liberais, ou revolucionários, modificar o mundo da arte ou da política.
Como fenômeno, a pós-modernidade compreende um espaço – e espaço ampliado –
em que se desenvolve, ou se retrai, uma multiplicidade incomensurável de
possibilidades artísticas, culturais, sociais, etc., que buscam fixar moradia, cada qual a
seu próprio modo, em um contexto de fragmentação de todas as utopias, ideologias,
escolas, absolutos de todo gênero.
De Platão a Marx, passando por Hegel, e a popularidade atual de Nietzsche bem
o comprova, o pensamento unívoco, a retórica da totalidade, a pregação do sistema
filosófico como justificador das ações e criações humanas desabaram por terra. A
cultura desmantelou-se, fragmentou-se, não como de ordinário vem se concebendo,
por uma ação desconstrutivista subjetiva, que se animasse ou se movimentasse pela
determinação consciente de pensadores, de artistas, de homens de cultura enfim. Isto é
apenas um dos seus efeitos. A Tecnologia, que retira do humano o domínio do Sistema
Ordenador da sociedade do século que ora se inicia – mas que ao mesmo tempo
concede amplas possibilidades de realização de desejos – é ela a força motriz desse
fenômeno.
Daí que se instauram, na nova sociedade desse início de milênio, novas divisões
e conflitos de classes não tanto econômicas, ao menos nas medidas até aqui
verificadas, mas em volta à produção e distribuição de poder, que antecede a produção
e distribuição de riqueza. Tanto no que concerne à dicotomia Velha Ordem/Velha
Economia versus Nova Ordem/Nova Economia, como aos múltiplos fragmentários
conflitos que se sucedem em progressão geométrica na base piramidal da sociedade:
tribo, “eu”, “outro”, são categorias que – e mesmo por conta de reformulação de
identidades, individuais e sociais – estão aí a exibir conflitos ao interior dos
microcosmos de poder como nunca dantes se conheceu. Trava-se, aos subterrâneos da
sociedade pós-moderna, batalhas cotidianas que, se nem a todos é dado ser sujeito, a
elas todos nós de um modo ou de outro nos sujeitamos.
Por outro lado, o desdobramento do Poder Cultural em Poder Social e
Econômico é novidade da pós-modernidade, que rompe definitivamente com a simples
equação Poder Econômico = Poder Social. Fragmentada a Cultura – fragmentado está
o Poder. Organizada a Cultura a partir de uma Lógica Informacional, duas são as
fontes de poder: informação e capacidade de gerenciamento informacional: ou seja, o
poder – e assim a cultura – vai se medindo por gigabites...
Das concepções humanistas, metafísicas – que justificavam a ciência por ela
mesma, e que centralizavam no Humano o seu desenvolvimento, no mais das vezes em
função de perspectivas éticas – à substituição do elemento científico nuclear, o saber,
pela informação, aprofunda e expande a divisão de trabalho iniciada com a revolução
industrial, no século XVIII, alterando substancialmente o conceito de ciência e, com
isso, os seus elementos orbitais: ciência, na pós-modernidade, é informação-
fragmento, com valor de uso e, conseqüentemente, com valor de troca. De um saber
filosófico, metafísico, que elevava o humano aos mais nobres ideais, eis que a ciência
se transforma em mercadoria. Ao centro, a mãe de todas as ciências, a Informática,
dado que é esta que lida com a informação, ainda em seus primeiros albores. Nesse
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processo, a informação passa a criar uma linguagem própria (com uma concepção
lingüística a que se tem dado pouca atenção nesses seus primeiros vagidos), uma
metodologia a ela apropriada, e uma objetivação do pensamento – e da arte – de modo
a configurar o mundo, o humano e todas as suas ações e relações, como um sistema
computacional, em que tudo se faz traduzir por bits, uma moeda de troca
informacional, que exprime valor e substância útil. Ou seja, tudo se reduz, ou é
redutível, à linguagem de um sistema que opera à revelia do humano, e que, em nome
do indivíduo, em tudo a este reduz em humanidade.
A antiga divisão de trabalho, articulada às mais modernas concepções de sua
especialização – é conclusão até bastante natural – força uma fragmentação não apenas
do pensamento e da atividade artística (imaginário), mas da própria relação social. A
atividade acadêmica – é claro – segue os passos da sociedade do seu tempo. Morre o
antigo catedrático, o clínico-geral do Saber; pululam os mestres do pequeno
conhecimento, aceita-se a ignorância das causas se resultam bem sabidos os efeitos
parciais de um pequeno fragmento-causa sobre um dado espaço-fragmento do saber
informacional. A desconexão cultural entre os partícipes da atividade intelectual é
então conseqüência que de ordinário se impõe. Saber mais do que o seu espaço-
fragmento exige é avançar fronteiras bem demarcadas pela boa gestão dessa nova
mercadoria, caracterizada como bit-informação, expressão pós-moderna para uma
nova moeda de troca, e que se localiza no centro nuclear de todo o conjunto de itens
econômicos (consumo) que pressupõem valor de uso.
As informações, elevadas ao patamar superior da ciência, coroadas ao centro da
criação, manejadas segundo a racionalidade de um sistema avesso às inutilidades (e
que acabam, afinal, por negá-la em sua essência), transitam pelo sistema operacional
de um ciberespaço absolutamente livre de compromissos umas com as outras senão na
temporalidade e no dado espaço em que se fazem necessárias, no momento mesmo em
que são convocadas a exibirem seu valor de uso. Corta-se aqui de um texto, cola-se
acolá, em um outro – que jamais seriam supose to de se unirem umas, desunirem
outras – fragmentos que se encontram e se desencontram na exata medida de sua
utilização no efeito desejado. Se há um saber do sistema, este não pertence ao campo
das concepções humanas: que cada um saiba apenas o que lhe cabe, segundo a sua
especialização, é condição necessária à paz social, ao progresso, e à harmonia
informática. Contribua cada qual com seus fragmentos, e se fará feliz o mundo...
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O indivíduo humano, o “eu” pluralizado pelas múltiplas personas sociais que a
ampliação fragmentária de utilização tecnológica lhe põe ao alcance e disposição pela
Máquina/Sistema, acaba por desenvolver nesse “eu” antes unívoco, e singular em cada
qual, uma extraordinária capacidade de exercitar-se em tantas múltiplas personas, até
originariamente contraditórias, tornando o paradoxo um modo natural de estar no
mundo. Muito mais importante, a capacidade de ampliar em muitos modos o ver, o
crer e o saber, a realidade do mundo em que se insere. E daí, por conseguinte, a
capacidade de ampliar o imaginário, social e individual, em muitos modos de
imaginar.
Na pós-modernidade toda informação é útil – importa apenas utilizá-la a tempo
e espaço que não se lhe deixe perder a inalienável liberdade de associação e/ou de
desassociação, onde seu único requisito de existência a conduza: seu valor de uso.
Informação, bit computacional, fragmento, indivíduo são, na pós-modernidade,
parentes de uma mesma família: importa seu valor utilitário e sua liberdade de ir e vir,
de permanecer fragmento, indivíduo, informação, bit computacional: dependentes
apenas da necessidade, sempre passageira, em exprimir-se como valor de uso,
mercadoria, enfim.
Mas é evidente que esta é uma das faces da moeda: pois a ampliação do espaço
em que transitam, pela pluralização desses todos fragmentos, acabam por produzir –
por movimento motor posto em funcionamento – um afastamento progressivo dos seus
antigos centros, de tal modo que acaso e imaginário passam a ter um papel
extremamente relevante para a ampliação das possibilidades, de um lado, de satisfação
de desejos; de outro, de utilização de cada potencial informacional.
A vida social rompe – definitivamente, talvez – com a estática das relações
humanas, do “eu” com o “outro”, tanto quanto do “eu” com os “outros”, aos muitos
modos desse “eu”, como ainda do múltiplo “eu” com cada qual dos múltiplos “outros”.
A vida cultural, por conseguinte, não pode ser vista e vivida senão como processo,
como um fluir, como uma fruição. E a literatura, a arte em geral, se necessita manter-se
articulada à vida e à cultura, não o será senão como procedimento, como modo
processual/procedimental de ler, escrever e pensar o mundo.
Pois é justo através de procedimentos que a arte une e desune fragmentos no
desiderato de construção do in-construído, de criação do in-criado. Procedimento é
ação, não revelação do existente; procedimento é criação, construção do inexistente.
Ou seja, lá se foi o tempo de se revelar – fragmento a fragmento – o puzzle da
existência em qualquer nível: é a hora do mosaico tipo lego, em que a peça-fragmento
a que por necessidade se unirá outra peça-fragmento, via acaso, via imaginário, criam
a figura – em permanente devir – a que o antigo puzzle fazia estática, imutável, dotada
de generalidade e coerção social. É hora, pois, de a Literatura voltar-se à autêntica
liberdade de criar – e abandonar tanto a obrigação de criar (vanguarda) quanto o medo
de criar (tradição). A Poesia deve voltar ao comando das coisas.
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não lhe deram causa direta, pontuam, com indubitável intensidade, cada qual em seu
aspecto próprio, todo um percorrer de trilhas que desembocaram, como uma vasta rede
pluvial, no oceano da pós-modernidade.
Alguns fragmentos são em si, metodológicos; são – eles mesmos – velas de
navegação necessárias a singrar os mares da estética fragmentarista, aos ventos – ora
calmos, ora nervosos – da pós-modernidade. Cabe ao leitor içá-las, ou recolhê-las, ao
sabor das próprias ítacas, ao prazer das próprias penélopes.
A linguagem imagética, a confundir signo e símbolo – e que, por linguagem,
autoriza arriscar dizer das possibilidades futuras da lingüística em recuperar o espaço
que se vai lentamente perdendo à semiologia – vai se tornando elemento comum de
diálogo e de compreensão de um mundo antes feito só à mão dos conceitos verbais. O
livro, na aceitação da imagem como uma especificidade, em seus discursos cotidianos,
da pós-modernidade, como um elemento que se desdobra para além da antiga
simbologia, busca – e ao entremear a textualidade fragmentária com imagens comuns
ao discurso que se desenvolve a partir de uma recepção também fragmentária –
estabelecer modos plurais de recepção, que possam como lego/fragmentos –
lego/palavras e lego/imagens, lego/conceitos – construir, em decorrência específica a
esse procedimento, muitos modos de ler, qual seja, afinal, a base que se acredita de
cristalina compreensão do que seja esse fenômeno denominado pós-modernismo.
Não há, na convicção do autor, outra maneira de coletar elementos/fragmentos
teóricos para a construção de discursos – e quanto mais polifônicos melhor – que
tratem da pós-modernidade para muito além das meras posições contra/a favor/mais
ou menos com que muitos autores, mercê de um discurso unívoco, que parte do
princípio de que se fala o que se sabe, obrigam-se a falar de um fenômeno do qual
ainda muito pouco se sabe, como se sabido fosse.
Não pode ser outro o caminho retórico, e estético, não podem ser outros os
elementos de análise, não pode ser outra a atitude do que pretende examinar a pós-
modernidade: trazer à baila tudo o que com ela se relaciona, e deixar – pois é assim
mesmo o seu modo próprio de animar a sua fragmentária composição – que cada
necessidade de utilização dê o valor de uso que cada fragmento merecer; que cada
acaso acontecido aos imaginários de quem avança nos textos, imagens e entre-textos,
possa resultar em qualquer interessante e bela união entre os fragmentos desses legos,
que será sempre individual, de cada leitor, singular, e que mesmo jamais se repetirá em
outras leituras.
Como resulta compreensível do que se anotou quanto à natureza processual da
existência fragmentária, das uniões e desuniões entre fragmentos, toda essa
movimentação se dá por idas e vindas, tanto por linhas como por espirais, retas e
curvas, dribles e chutes a gol, defesas, enfim, em tantas formulações geométricas
quantas as possibilidades de uso os convidarem.
A investigação, pois, não poderia adotar outro procedimento: como realizar
uma narrativa só linear, na construção de uma teoria pré-concebida, quando o que se
busca é conhecer o desconhecido, quando se busca criar novos espaços teóricos para
um fenômeno que não resulta diretamente de uma idealização de vanguarda, mas de
toda uma pluralidade de concepções de ver o mundo, que ao longo dos séculos vêm
despontando aqui e ali, se acumulando ao longo de gerações, até a sua eclosão
barulhenta nesses inícios de milênio? Realizar a retórica da univocidade é evadir-se – e
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não importa quantos elementos descritivos se colecione, nem quanto de contestação se
acumule contra a prática da pós-modernidade – é arredar-se, como num jogo de quente
e frio, é gelar as possibilidades de conhecer, e fazer conhecer, um pouco mais disso
que a cada dia parece tornar-se ainda muito maior que nós todos.
Por ser um mosaico em lego, que se constrói ainda com o imaginário, a
transmitir uma linguagem sub/supra jacente ao texto, a provocar uma amplitude de
pensamento que livre das amarras de uma só textualização, muitos fragmentos pegarão
de surpresa o leitor. Mas o efeito, inclusive estético, que se busca, quando obtido,
certamente o recompensará. Por outro lado, uma linguagem subjetiva própria às
textualizações escolhidas (procedimental/e do imaginário), obriga cada fragmento a
aguardar sua vez de entrar em cena, não sendo de aceitar-se a imposição desse fato
como decorrência de opção obrigatória por apenas um dos muitos possíveis
casamentos lógicos de causa e efeito, quando o que se pretende é justo obter-se o
efeito (inclusive, mas não só, estético) que possibilite ao leitor criar os seus próprios
liames, dar a cada fragmento escolhido o valor de uso que ele mesmo lhe atribuir: pois
é este um dos modos preferenciais do sistema próprio à pós-modernidade que se
assiste, segundo a utilização informacional esboçada acima, e que se reflete – a olhos
vistos – na vida cotidiana de cada um de nós.
Dadas as claras concepções esboçadas no texto, espera-se resulte pacífico que
não move o autor qualquer pretensão de vanguarda teórica da literatura, da arte, ou da
cultura, pois que mero coletor de elementos, um servente em seu carrinho de mão, a
reunir tantos materiais quanto úteis aos que, por competência e talento que lhes sejam
próprios, estejam aptos à construção dos respectivos prédios teóricos.
Se algum mérito este livro pretende atribuir-se é o de valorização do espaço
poético como elemento de solução, ou, ao menos, de alívio, para as mazelas e tensões,
inclusive teóricas, que estão a nos deixar inseguros no dia-a-dia dessa pós-
modernidade que, com aspecto de moda passageira, vai a cada espasmo ocupando
maior espaço nas práticas e nas histórias das artes e das literaturas, das ciências e das
culturas, das nossas próprias vidas cotidianas. E, no entanto, sendo o humano um
animal poético – confissão de fé no seu ofício – o autor faz-se parceiro e amigo da
pós-modernidade em busca dos mistérios da sua poesia.
Sobre as concepções poéticas que o livro anuncia, ainda fragmentariamente,
têm a única finalidade de ajudar o leitor, e nisso se faz epistemologia, e epistemologia
única e necessária aos fenômenos intelectivos e sensíveis que possibilita – embora aqui
e ali se avance por soluções de efeito estético, tanto quanto a convidar o leitor à
parceria do texto silencioso – o acesso àquela parte do texto em que, e aqui se trata de
profunda convicção do autor, em verdade se encontrará A Poesia; pois que seja esse
texto teórico tal qual o texto poético: não o reduto, forma ou essência, do que seja a
poesia; mas a ela o seu convite.
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Poética, no que ela se identifica com a infinitude, poderá nos iluminar a vencer essas
novíssimas dificuldades.
Até pode ser que ao final de cada leitura, por cada leitor, os fragmentos se
deixem ordenar, classificar, que sempre o será aos modos fragmentários que os
motivou e que, sobretudo, lhes serviu de estrutura estético-literária. Afinal, a proposta
basilar do autor é – em essência e aparência, motivação e exercício – a apresentação de
uma estrutura textual, contextualizada e contextualizante, de natureza estético-literária.
FRAGMENTOS PÓS-MODERNOS
(uma poética da pós-modernidade)
I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.
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...pós-modernos, fragmentados e fragmentários...
...carnavalizados...
[René Magritte,1989]
Aos escuros dos entre luzes, há mais claridade. Aguardando que nossos modos de ver
se apercebam... Que toda luz é sempre um fragmento de luz...
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Há uma novíssima safra literária (romances, novelas, ensaios, hipertextos, poemas,
líricas & músicas, filmes, vídeo-clips, etc.) da Pós-Modernidade, ligada à Nova
Economia, vale dizer, à Nova Tecnologia, motor disso que chamam Globalização
(ainda em estado de globalizamento), que estão, por inclusão do elemento virtual, a
aproximar realidade e ficção, confundindo-as, desordenando as cartas desses dois
baralhos (e afinal parecem ainda tão idênticos os signos...)...
... Que está a provocar que não mais se identifique qual a origem da informação
transmitida à zona central do cérebro, se real se imaginária, qual dos lados deverá
processá-la... Sim, isso é um perigo...
Uma transação acelerada entre os dois gomos do cérebro pode significar, a uma, que
assim estamos ampliando o uso da nossa capacidade cerebral para além dos usuais 5%;
a duas, que – e isso seja como for ocorrerá – o humano está a transcender o humano...
A sociedade humana desses inícios do século XXI nos aponta para realidades
fragmentárias – o humano disperso em tantos outros humanos desiguais...
12
construção do humano e de tudo o que humanamente nos cerca... O espaço infinito em
que transitamos, espaço em permanente devir, é o espaço do humano...
iii
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unívoco (embora Sócrates) enterrou o sonho pré-socrático das várias perspectivas
(fragmentárias) do mundo...
Foi a compreensão da natureza ideológica das idéias que desvelou a farsa da reta razão
do mundo – razão humana, bem entendido – segundo a qual as civilizações e com elas
as organizações sociais possam refletir a Idéia, o Absoluto, em todo o seu esplendor,
como resultado das boas ações humanas, especialmente dos seus governantes: de que
nos bastaria traduzir materialmente os processos ideais de relações sociais para
chegarmos à sociedade perfeita...
Este fim da utopia, ou seja, a recusa das idéias e das teorias que ainda
se serviam de utopias para indicar determinadas possibilidades histórico-
sociais, podemos hoje concebê-lo, em termos bastante precisos, também como
fim da história; isto é, no sentido (e este é precisamente o tema sobre o qual os
convido a discutir) de que as novas possibilidades de uma sociedade humana e
de seu ambiente não podem mais ser imaginadas como prolongamento das
velhas, nem tampouco serem pensadas no mesmo continuum histórico (com o
qual, ao contrário, pressupõem uma ruptura)...v
Utopia é idéia absoluta e absolutista, e jamais construída por uma razão neutra: é um
elemento de limitação do pensamento e das ações humanas; de estagnação da
criatividade; de favorecimento daqueles que em seu nome determinam os rumos da
cultura, justificados por arbitrários “fundamentos” das organizações sociais...
14
que vai transformar o pensamento do mundo ocidental no sentido de liberação das
consciências para uma série de formulações ditas modernas, até às pós-modernas, que
só seriam possíveis com o desmantelamento do aparato ideológico, em todos os níveis,
que pesava sobre os indivíduos como sendo As Verdades Absolutas e Suas
Distorções... Em conseqüência, estavam soltas as peias dos Imaginários...
I don’t care
what they say
I won’t stay
In a world without love vi
15
Toda utopia, por seu racionalismo exacerbado, por dogmático e não crítico, de que
resulta jamais se colocar em dúvida, produz intolerância...
A ação política não deve ser revolucionária, não deve visar à reconstrução total da
sociedade, de resto imprevisível; deve resultar de paulatinas transformações de suas
partes...ix
16
[Capa: Equipe Hemus, 1976]
A compreensão dialética, desde Heráclito e Hegel, até Marx, ganha em Nietzsche sua
dimensão mais aperfeiçoada, verdadeiro coup de grâce nas idealizações utópicas: o
humano é um processo, um permanente caminhar para o além-do-humano...
À noção marxista de que vivemos a pré-história da humanidade Nietzsche contrapõe,
aperfeiçoando-a, a conclusão de que a cultura - como conseqüência dos que a fazem -
ainda é humana, demasiada humana... no mesmo sentido do que, talvez, dirá um
filósofo do futuro da cultura dos super-homens, que já estão a caminho: super-humana,
demasiado super-humana...
*
A ordem de desenvolvimento dos pensamentos, em que se funda a crítica de Popper,
desde os de Hegel aos de Marx, e que se inicia em Platão, o primeiro inimigo da
sociedade aberta popperiana, é justamente o sentido de uma ordenação dos modos de
ver e saber da comunidade humana, ordenação essa que se coloca a partir de uma
unidade lógica em direção a uma totalidade (ou integralidade)...
17
absolutamente livre e independente, na convicção de que os átomos também se movem
por contingência da vontade: linha de pensamento que Nietzsche retomará para
formular sua idéia primeira de fatalidade – a mesma necessidade de Demócrito
(superável pela pulsão – vontade de poder em Nietzsche/ princípio do prazer em
Freud) – que Marx absorveu...
*
No sentido de liberdade (relações necessidade/pulsão/vontade), e não apenas nesse,
o fragmentarismo da pós-modernidade vem a ser uma (ainda claudicante) retomada
dos modos pré-socráticos de saber e de viver o mundo: a possibilidade de apreensão,
diálogo e aceitação a partir dos muitos modos de ver, ler e saber a realidade do
mundo...
18
O Universo é, ao menos para nós humanos, a máxima expressão material pensável
d’O Verbo, ponto convergente do sagrado e do profano, fiéis, agnósticos, e ateus...
19
imagética), modo privilegiado de transmissão de experiências e conhecimentos,
tradição e tradução cultural...
20
xiii
Assim como o verbo humano não se esgotou nos sons e nas imagens primitivas,
também não se esgota na escrita conceitual: o verbo humano encontra-se em
permanente devir de linguagens...
*
Em Assim falou Zaratrusta – especialmente, pois que isso ocorre ao longo de toda a
obra de Nietzsche, a dicotomia arte-filosofia é neutralizada pelo projeto de fazer da
poesia o meio de apresentação de um pensamento filosófico não conceitual e não
demonstrativo... Um pensamento emancipado, portanto, da razão...
Assim falou Zaratrusta é um livro daquele e para aquele que, “onde
pode adivinhar, detesta inferir”, daquele e para aquele que pensa ter pouco
valor o que precisa ser provado, daquele e para aquele que admira a potência
do “grande estilo”: “a potência que não tem mais necessidade de prova, que
desdenha agradar, que dificilmente dá resposta, que não sente testemunhas por
perto, que vive sem se dar conta de que existe oposição a ela, que repousa em
si, fatalista, uma lei entre leis”...
Com sua forma poético-dramática, Zaratrusta é a realização do projeto
wagneriano, tal como Nietzsche o havia interpretado no primeiro período de
sua filosofia, ou, mais precisamente, aparece em continuidade com o que
Nietzsche dizia, em Richard Wagner em Bayreuth, sobre o modo como Wagner
lida com a música e o mito...
Tal como pensa Nietzsche nessa época, a missão singular de Wagner
teria sido reintroduzir o mito no mundo e libertar a música enfeitiçada, fazê-la
falar, através de sua força dramática...
O gênio poético de Wagner está no fato de ele pensar por
acontecimentos visíveis e sensíveis, e não por conceitos, isto é, em pensar por
mitos, que exprimem uma representação do mundo por uma série de fatos, de
atos...
Sentindo que o primeiro perigo, quando os heróis e deuses dos dramas
tivessem de se exprimir por palavras, era que essa linguagem verbal
despertasse o homem teórico, Wagner forçou a linguagem a voltar a seu estado
de origem, em que ela não pensa por conceitos, em que ela ainda é poesia,
imagem, sentimento...
21
Em Assim falou Zaratrusta, a forma poética de filosofar tem como ápice
o eterno retorno, pensamento trágico que só pode ser adequadamente
enunciado através do canto, da palavra poética...xiv
*
O Eterno Retorno, a mais alta fórmula de afirmação até hoje atingidaxv tem como
forma de expressão poética o ditirambo dionisíaco (greco-latino) em que a palavra,
apolínea, se deixa vencer, por embriaguez, pela música dionisíaca...
Em Assim falou Zaratrusta, Nietzsche – Ecce Homo! – busca ir ainda mais longe do
que permite o uso dos seus ditirambos dionisíacos: Nietzsche busca realizar em livro
tal qual Wagner o fazia em ópera... O ditirambo sinfônico!...
Daí porque a expressão: eu não creio em um Deus que não dança, refletindo uma
estratificação, uma formalização demasiada de Deus, que nos chega praticamente
incólume até os 60, quando o movimento hippie aproxima a divindade dialogando
com a fé a partir da idéia de paz e amor, na apologia da alegria de viver, da vida
em natureza, da autenticidade nas relações humanas...xviii
*
Matéria que ideologiza, matéria que engendra a sua própria superação, o humano
constrói sua cultura a partir de ficções que realiza, para si e para as suas relações
22
materiais de poder: com a natureza (interna e externa) e com os seus semelhantes
(natural e socialmente considerados)...
Porque o humano é ficcional assim se define, por construção literária, sua própria
identidade, tanto individual, quanto natural e cultural...
Porque o humano se define por construção literária, assim também se define, ainda
por construção ficcional, toda a cultura em que se insere, como sujeito e objeto dessa
mesma cultura...
*
Ainda por construção literária se formam os Estados: ficções que se institucionalizam
a partir de si mesmas. O Estado nada mais é, pois, e também, uma ficção, (como, aliás,
estabelecido pela Arte do Direito, a saber, uma ficção, no âmbito desta, jurídica)...
Assim, por via de conseqüência lógica, as suas normas, normas jurídicas, por
derivarem de um Estado Ficção, pouco importando sua legitimidade, ou mesmo
legalidade, possuem natureza ficcional...
Daí que, para a sua correta hermenêutica, há sempre que considerar este aspecto, que é
da sua essência mesma, tanto na formulação de uma teoria geral quanto para sua
hermenêutica: como um modo de interpretação que se junta aos modos: literal,
gramatical, sistemático, teleológico e crítico, em autêntica interpretação ficcional –
interpretação literária – dos muitos modos do Direito...
23
impressão do acontecimento... A instância segunda, denominada geométrica,
pode ser definida como o procedimento de organização racional de uma
primitiva ordenação casuística, caótica, fenomenológica: tornar Geométrica a
representação, isto é, delinear os fenômenos e ordenar em série os
acontecimentos decisivos de uma experiência. É a classificação, a medida
necessária para que se possa repetir, ou representar, artificialmente o
fenômeno. Dão-se nomes, medem-se os fenômenos, define-se o sistema. É a
instância descritiva... Mas essa geometrização aparente, com o tempo, torna-
se insuficiente, sendo necessário, pois, procurar o porquê, no nível abstrato: o
pensamento científico é então levado para construções mais metafóricas
que reais... É a libertação do saber discursivo; o escape das fórmulas pela
necessidade de se ir além da linguagem para só então retornar a ela. O nível
abstrato – entre-lugar imaginário – é detectado naquilo que modifica a
geometrização, que já então se mostra insuficiente. A pergunta de Bachelard é
a sua própria tese:” por que não considerar a abstração como o objetivo do
espírito científico?”.
...Todo saber adquirido é saber prestes a ser superado. O único estado
plausível é o da transformação do conhecimento: ninguém pode arrogar-se o
espírito científico enquanto não estiver seguro, em qualquer momento da
vida do pensamento, de reconstruir todo o próprio saber... Para a
reconstrução desse saber – fotografia de uma geometrização momentânea –
importa estabelecer uma psicologia do aprendizado científico, que implica, em
última instância, analisar a base afetiva da necessidade do conhecimento:
devemos levar em conta interesses diferentes que, de certa forma,
constituem-lhe a base afetiva.
...O não querer desfazer-se do conhecimento conquistado, a resistência à
transformação e à abstração, é definido como “obstáculo epistemológico”,
instinto conservativo de base afetiva. A psicanálise dos motivos instintivos e
irracionais é o processo de purificação espiritual que permite atingir o real
objeto científico – a abstração:
24
...“quando o espírito se apresenta à cultura científica, nunca é
jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus preconceitos.
Aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é buscar uma
brusca mutação que contradiz o passado”...xx
*
O Cinema, ao comunicar por imagens, tenta criar uma outra linguagem, não
propriamente uma metalinguagem (senão como estágio primário de formação de sua
própria semântica, quem sabe uma sintaxe, quiçá uma gramática)...
Uma linguagem que busca ampliar, articulando linguagens com/para o visual,
pensado e comunicado, os horizontes de interpretação do mundo...
Tudo eleva a crer que o Verbo não esgotou, ainda, os seus mistérios...
Talvez não seja tão ousado (ou profano) dizer que a fragmentação, com suas muitas
linguagens (polifonia) é uma estratégia do Verbo e sua civilização...
*
Dada a necessidade de uma interpretação ficcional de todos os elementos da cultura,
temos que os discursos verbais correspondentes, não apenas a essa mesma
interpretação, como ainda à própria constituição do fenômeno cultural, forçoso
admitir, possuem, em sua natureza essencial discursiva, a qualidade de discurso
literário, ou seja, discurso apto à transmissão material, poética do pensamento,
tanto quanto à transmissão espiritual, poética do imaginário...
25
Quando se aponta a natureza ficcional da antropologia cultural, especialmente no que
respeita aos insuspeitos trabalhos de descrição etnográfica de uma dada cultura, de que
todas as descrições do tipo são meras interpretaçõesxxi, mais ou menos superficiais,
mais ou menos densas, está a se considerar o fato de que o intérprete realiza um
trabalho necessariamente ficcional/literário, e que, não por acaso, encontra na
imaginação o seu mais eficiente instrumento de aproximação com o real...
Literatura (estrito senso) e Antropologia, e pouco importa que cada qual à sua maneira,
discursos de interpretação do mundo, revelação ficcional do mundo humano já antes,
e pelo próprio humano, ficcionalmente constituído...
*
Não apenas todos os discursos possuem a mesma natureza ficcional, como também a
própria constituição da cultura pelos humanos que a integram, desde a sua origem, é
fruto de uma fabricatio humana, (interpretações ficcionais do mundo pelos nativos de
qualquer cultura)... mais ou menos superficiais, mais ou menos densas, de acordo com
o estágio de complexidade dessa cultura...
26
*
Cada interpretação cultural é sempre uma das possíveis interpretações ficcionais de
muitas interpretações anteriores, ainda ficcionais, do mundo; ficcionalmente
vivenciada por alguma dada comunidade humana, e a partir de ritos e signos
ficcionalmente instituídos, que possibilitam a sua singularização (aldeia ficcional) em
relação às demais, a saber, uma identidade humana (nacionalidade) também
ficcionalmente estabelecida...
Mesmo quando a arte é uma imitação (enquanto interpretação) da vida, a vida, tal
como os humanos a vivem, só é possível como uma imitação vivida, vívida,
discursiva, (e ainda enquanto interpretação) da arte (pré-verbal) de constituir ficções
sobre esta mesma vida...
27
*
Tudo é interpretação: tudo nasce como imaginação, tudo se realiza como
ficção; tudo é, pois, antes, Poesia, depois, Literaturas...
O cinema vem pouco a pouco se tornando o posto mais avançado de uma interpretação
literária da realidade humana – filmes que estão a desvelar, para um público cada vez
maior, as relações de poder a que se submetem os indivíduos em geral...
Filmes que apontam para novas reflexões a respeito da própria condição humana,
construindo novíssimas interpretações para conceitos tão ancestrais quanto, por
exemplo, o que seja alma, o que seja o corpo e seus sentidos, o que sejam o natural, o
real, o artificial, o imaginário, o que seja o humano, o que sejam o tempo e o que
seja o espaço...
Sob a alegoria fantástica de filmes como The Truman’s Show, Matrix, Being John
Malkovitch, The Thirteenth Floor, Artificial Inteligence, por exemplo, há toda uma
interpretação pós-moderna de mundo que, ao mesmo que contextualizá-los,
literaturizá-los segundo uma novíssima articulação de elementos tecnológicos e
existenciais da pós-modernidade, está a construir novos modos de ver, ler, crer e saber
o humano e seu mundo relacionados ao processo pós-moderno de fabricação de novos
fictos culturais, e que está a exprimir uma realidade pós-tecnológica divinizada, que
tenta responder às problematizações geradas pela inserção do humano em um mundo
de infinitas possibilidades tecnológicas, humanidade pouco a pouco submetida ao
28
deus Virtualis, senhor absoluto de um universo virtual, para muito além de todos os
big brothers que afligiam a modernidade...
Pois agora não se trata mais da simples inserção de máquinas primitivas num mundo
humano, até então apenas moderno... Mas da adaptação progressiva da mente
humana aos reclamos da perfeição virtual, num pós-racionalismo, num pós-
iluminismo, que faz o panoptikon de Benthamxxv, nos parecer jogo de amarelinha...
Filmes como Show de Truman, Clube da Luta, Quero Ser John Malkovich, 13o. Andar,
Magnólia e entre nós, Cronicamente Inviável, são filmes nitidamente pós-modernos,
no sentido de que apresentam a crítica, tanto temática quanto estética, de uma
sociedade humana organizada sob um olhar unívoco, e por isso totalizador, numa ótica
piramidal unitária do mundo, como ainda porque propõem, através de uma releitura da
condição humana, um modus de olhar que convida o humano a superar as misérias e os
conflitos que vem se acirrando nesses tempos pós-modernos...
29
*
Talvez até mesmo, e assim como o próprio deus nietzschiano esteja nietzschianamente
morto, o humano, também nietzschianamente considerado, já o esteja; e o que vemos
seja apenas o reflexo de estrelas que já cederam seu brilho ao caos...
30
Talvez, na pós-modernidade, black super-men já estejam a caminho, como na cena
final de Matrix, o filme...
xxvii
Matrix sugere que a ordem social até o advento da pós-modernidade, idade crítica da
idade anterior (e alguém já definiu a pós-modernidade como um conflito de gerações),
seja a mesma que a da sua ficção, criada como metáfora crítica aos sistemas sociais
unívocos, que mantêm os indivíduos escravizados aos seus interesses de auto-
alimentação... Nesse diapasão a queda da Matrix seria uma metáfora da festejada
desconstrução que muitos consideram a própria definição da pós-modernidade...
*
O escritor analítico observa o leitor, como ele é; a partir disso faz seu
cálculo e ajusta a máquina, para produzir nele o efeito correspondente. O
escritor sintético constrói e produz para si um leitor, como ele deveria ser, não
o pensa morto e inerte, mas vivo e reagente. Faz com que aquilo que inventou
lhe surja gradualmente ante os olhos, ou o seduz para que ele mesmo o invente.
31
Não quer produzir sobre o leitor nenhum efeito determinado, mas estabelece
com ele o sagrado relacionamento da mais íntima sinfilosofia ou simpoesia...xxix
*
Se com as palavras é que explicamos o mundo, e ainda com elas é que sabemos o que
se passa nesse mundo, jamais vencemos a distância que separa esse saber, por mais
completo e complexo que se faça, do simples ato de ver, ou seja, entre um
conhecimento científico, que se estabelece pelo conceito, e o conhecimento sensível,
desse mundo que se expõe, e se impõe, a todos nós, sem que dele possamos nem nos
alienar nem apreender em sua/nossa plenitude cognitiva...
xxx
O modo como vemos todas as coisas, e assim as pessoas, tanto no mundo da natureza
quanto no da sociedade, sempre guarda estreita relação seja com aquilo que pensamos
que sabemos, seja com aquilo que pensamos que acreditamos...
*
Se a Literatura busca revelar, desvelar, explicar, enfim, narrar e interpretar o mundo,
através das palavras, proporcionando-nos assim o progressivo conhecimento desse
mundo, o texto cinematográfico busca expandir essas narrativas e interpretações ao
lugar dos sentidos contidos nessas mesmas narrações e interpretações, demonstrando-
as sensivelmente. Assim fazendo o cinema busca, então, reduzir a distância entre
conhecimento conceitual e conhecimento factual...
O cinema não apenas transmite a realidade textual de que se origina, mas – e é o que
lhe proporciona estabelecer-se a si mesmo como um novo texto em igual original – o
cinema cria os seus próprios modos de narrar e interpretar o mundoxxxi.
32
Conseqüentemente, cria também seus próprios modos de ser visto, de ser lido,
correspondentes a esses modos próprios de narrativa e interpretação...
Os modos de ver tanto a vida quanto o filme, os modos de ler tanto o livro quanto o
filme, não escapam ao fato inarredável de que tudo o que vemos está ligado ao que
sabemos ou ao que acreditamos, ou seja, às nossas ciências ou às nossas crenças.
Portanto, esses modos de ler o filme possuem a sua especificidade decorrente de ser
uma narrativa correspondente a uma interpretação original do mundo, com sua pletora
de signos, seu modus faciendi específico, e a especificidade dos saberes e crenças de
cada um dos que o lêem, dos que o vêem...
Claro está que, se os modos de ver o mundo encontram-se em relação direta com os
saberes e os credos de cada qual, em igual medida encontram-se os seus diversos
modos de fazer o mundo, aos modos próprios de cada qual...
A imaginação sugere uma mediação entre o que sabemos que é e o que acreditamos
que seja, que possa ser ou vir a ser...
33
grau, aqui não importa, nossos próprios e pessoais modos de imaginar, de fantasiar, de
sonhar, que nos modifica inteiramente, de uns a outros, singularizando-nos (e aos
outros), em conseqüência das infinitas possibilidades de articulação desses
infinitos modos de ver o mundo...
Os muitos modos de ver o mundo, toda leitura, toda interpretação do mundo, ciências
e crenças, decorrem dos caracteres ideológicos adquiridos no embate sócio-cultural; a
imaginação, sendo infensa às diversas realidades do mundo, talvez seja justamente
aquela condição do humano que mais diretamente venha a refletir aquilo que
chamamos de livre arbítrio, que mais intrinsecamente venha a constituir-se em
exercício de todas as liberdades humanas, como origem primeira de toda a condição
de liberdade...
34
Só no terreno do imaginário é que nos reconhecemos
livres, que nos sabemos livres, que nos cremos
livres... Só no imaginário é que podemos transitar
inteiramente livres...
O saber se inicia pela Poesia, visto ser o modo poético do humano o que lida com a
matéria do imaginário, da intuição vital, lida com o pré e o meta verbal, com os
infinitos silenciosos, lida com os espaços vazios do conhecer...
*
A aventura poética, a exploração dos espaços vazios da realidade tem muito da
compreensão da relevância dos espaços vazios entre os átomosxxxii na formação da
matéria...
35
Uma diferença profunda, porém, separa os atomistas de todos os
filósofos gregos anteriores e posteriores. Que diferença é esta? Entre um
átomo e outro, há o vazio ou o vácuo, que é o não-ser como algo real,
existente. Assim, pela primeira vez, um grego, admitindo o vácuo, afirma que
o espaço é real sem ser corporal. Dessa maneira, será mais correto dizer que
para os atomistas a phýsis são os átomos e o vácuo. O pleno (o
átomo) e o vazio são os princípios constitutivos de todas as
coisas...xxxiii
*
Necessidade ou casualidade , o que importa mesmo é (mesmo antes que as
xxxiv
motivações) o fato de que a união dos átomos não elimina a ausência de matéria nos
entre textos da organização material...
Mas não serão os entre textos os próprios mentores da organização dos átomos?... Ou
seja, não se encontrarão exatamente neles o que chamamos de energia espiritual
criadora?
Se Deus está em todas as coisas observáveis, com muito mais razão não nos parece
estar naquelas infinitas imensidões não observáveis? Esta é a razão porque a fé não se
explica... Pois fé é poesia, é ler em uma linguagem meta-imaginária, que só se permite
revelar aos olhos de ler nos espaços invisíveis, inaudíveis, de quem se permite aceitar
os alfas e os ômegas da infinitude poética...
*
A intuição, chave primeira do portal da imaginação, nasce lá fora, nos espaços vazios,
vazios apenas porque não-observáveis, vazios apenas porque plenos de uma linguagem
imaterial, pré-verbal...
A intuição nasce do encontro da energia criadora, antes e para além de nós, com a
energia vital em nós... Aquela energia vital concentrada no âmago do que percebemos
como o mais profundo mistério da existência, o mistério da vida... E é nesses
encontros que residem tanto a matéria da poesia, quanto a poesia da matéria... Tanto
quanto o mistério de toda a poesia, que sempre está muito mais allá...
Não é senão pela capacidade, a saber, capacidade poética, de intuir, imaginar, fantasiar,
pela capacidade de lidar com os “espaços vazios” do imaterial, de exercer a liberdade
como potência criadora do universo, que se constrói, ou se reconstrói, o humano, a
natureza, as civilizações, a própria humanidade...
36
EXTREMO
Ultrapassei o teus limites, última
testemunha da noite, quintessência
dos nomes e das cores, desespero
dos espaços vazios incendiados
pelos longos janeiros que articulas
na penugem dos pêssegos.
Sou límpido
e táctil como um vaso destilado
da vida, nesta margem, neste extremo
que busca o manancial inesgotável
e derradeiro.xxxv
É da intuição, não da razão, que nasce toda a nossa noção, pública ou particular, do
que seja a autêntica liberdade...
Liberdade, liberdade: cuja essência está na natureza, em toda a vida, que age, como
Bergsonxxxvi apontou, como potência psíquica criadora, não apenas em nós, mas em
todo um universo que existe em permanente processo de ser, sendo... Tão livre quanto
imprevisível...
*
A máxima aristotélica segundo a qual o homem é um animal político não diferencia
ainda o humano das demais espécies animais: mesmo um símio e um golfinho são
animais políticos... Afinal, a seu modo, que espécie não age e não se organiza e não se
situa como “polis”, o bando (tal qual tribo), politicamente? A polis humana avança
pelo exercício do imaginário para além de si mesma... A polis humana se constrói e as
suas maiores conquistas materiais pelo exercício da poesia...
É a visão poética do mundo, uma visão aberta do fenômeno humano tanto quanto da
sua cultura e da sua sociedade (por conseguinte, de sua arte e da sua ciência), que nos
proporcionou avançar por terrenos inexplorados até o século XX...
*
O pós-modernismo, e seu método privilegiado de exploração de possibilidades – o
fragmentarismo, resulta justamente de um reconhecimento das infinitas ordens de
37
idéias presentes nos entretextos e nos entre-tecidos sociais/culturais, ainda
inexplorados, ainda desconhecidos de um mundo que se impôs construtivista só a
partir dos tecidos e textos já postos na cultura (fosse para negá-los, fosse para afirmá-
los) em função de ideologias dominantes ou em processo para a dominação...
38
*
O fragmentarismo, que nos pré-socráticos pressupunha uma apreensão da realidade
(material, ética e estética) do mundo, por passos e por partes, dado o reconhecimento
da impossível apreensão in totum, esta que própria ao pensamento teológico (crença), é
o modo que proporciona estranhamentos, ou noções de vazio, que obrigam o
observador/leitor ao exercício ativo da razão/imaginação à maior apreensão da
realidade material, científica e, particularmente, artística.
*
É possível textualizar o não-textualizável... simplesmente convidando o
leitor/observador à leitura dos espaços vazios entre(inter)textos... É o que se obtém
quando se constrói uma disposição fragmentária de intertextos...
Numa etapa da civilização em que amiúde se flagra o fato de que tudo, mesmo em
nome de categorias platônicas ou aristotélicas, se reduz ao λογος sofista (ρετορικο
ς), o fragmentarismo retoma a noção de verdade na contra-face do discurso retilíneo,
no ponto de convergência entre o real e o ideal, entre discurso e materialidade, só
accessível pela via do imaginário, por suas possibilidades de apreender, a um só
tempo, a parte (o texto) e o todo (o inter-texto), a linha e a entrelinha, o múltiplo e o
unívoco possíveis...
39
*
No fragmentarismo idéia e realidade se conciliam no discurso, na constituição de uma
linguagem que as convida permanentemente ao diálogo, como um modo pós-
moderno de retomada do conceito de verdade...
xxxix
*
A julgar do que nos restou salvo da violência das univocidades ao longo dos primeiros
séculos da era cristã, talvez a primeira obra literária de natureza fragmentarista,
retomando a perspectiva da pluralidade, ironizando as verdades unívocas, mantendo-se
firme e fiel à visão pré-socrática do mundo, tenha sido os Diálogos dos Mortos, a
sátira menipéia de Lukiano de Samósata (séc. II d. C.; depois Luciano, pelos
romanos... xl)...
40
construir um texto em que a lógica do real ficcional (imaginação) se sobrepõe à lógica
do ficcional real (ideologia)...xli
xlii
41
...Não se pode deixar de conectar a sátira menopéia à cosmovisão carnavalesca na
literatura, nas propostas de Bakhtin quanto ao romance polifônico de Dostoievski xliv,
estendendo ambas, menipéia e carnavalização aos exercícios – arte e cultura – da pós-
modernidade...
42
A idéia de carnavalização, que Bakhtin apresentaria em seu livro Problemas da
Poética de Dostoiévski, já se exibia, também mercê da cultura brasileira, no poema
Bacanal, de Manuel Bandeira, que abre o seu livro Carnaval, exibindo o poder de
antecipação de conceitos teóricos da poesia brasileiraxlviii, o que levou Gilberto
Mendonça Teles a afirmar, peremptoriamente, ter sido Manuel Bandeira um
precursor dessa idéia de carnavalizaçãoxlix... De fato, em que pesem as considerações
de ordem puramente teórica de Bakhtin, os elementos do conceito já estavam bem
firmes na literatura brasileira da fase heróica do nosso modernismo, tal qual se
observa, por exemplo, nos losangos coloridos à arlequim da capa do livro Paulicea
Desvairada de Mario de Andrade... Note-se a correlação de idéias do desvairismo de
Mariol com o Bacanal de Bandeira...
li
BACANAL
Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
43
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!
*
O inter (ou entre, prefira-se) texto, o espaço vazio entre as textualidades aponta para a
existência do nada, tal qual o pressupunham alguns dos pré-socráticos, e, muito
especialmente, que é no espaço vazio que se encontra, à plenitude poética, a verdade
textual...
44
Um turbilhão de todos os tipos de formas separou-se do Todo...liv
45
46
lvii
*
O texto fragmentariamente realizado tem como corolário a possibilidade de
contemplar várias vozes textuais, tanto quanto vários olhos de leitura, abordando o
objeto de um ponto de vista prismático, obrigando-se, tanto autor quanto leitor, à
compreensão do fato de que nenhum texto pressupõe verdade unívoca, mas uma
47
pluralidade de verdades, algumas inaccessíveis, bem como atentos para o fato de que
há muitos modos de ver e ler o mesmo fato, o mesmo objeto, o mesmo fenômeno...
*
O método fragmentarista também é um modo de conhecimento do mundo tanto quanto
de cada indivíduo... Nesse sentido, é também um método de ensino e de
autodidatismo... Com certeza, o modo mais leve e mais prazeroso de o aluno
manifestar seus conhecimentos, e buscar outros, com a mesma naturalidade que tem ao
brincar…
48
Tome cada qual de um caderno e vá-se registrando o dia a dia de seus pensamentos,
das suas leituras, cada qual das idéias que ex-surgem das reflexões ou falas de cada
qual, e se terá, seis meses a um ano após, uma radiografia intelectual/sensitiva, e
mesmo emocional da individualidade, ponto de partida para uma reflexão aprofundada
a partir de si mesmo, para sua própria revisão de conceitos, para o desenvolvimento de
suas capacidades, e para a ultrapassagem de idéias que não lhe aproveitam, de
preconceitos e reações pavlovianas que lhe obstaculizam o aprendizado de si e do
mundo...
Que se exercite o método fragmentarista durante o ano letivo dos alunos, e que se
questione às provas finais não o que o aluno sabe sobre tal e qual ponto do programa,
mas que se dê a ele a oportunidade de mostrar, fragmentariamente o que sabe… Pois é
mais que óbvio que o interesse despertado sobre tais e quais aspectos disciplinares, e a
gratificação do seus esforços – em nada importa a medida – se articulará diretamente à
gratificação da sua individualidade…
*
A só aparente facilidade do texto fragmentado, a que aludem seguidamente os críticos
da pós-modernidade, resulta apenas da dificuldade desses mesmos críticos em lidarem
com as autênticas relações de semelhança... O discurso fragmentado busca realizar,
literária, estética, retórica e textualmente, a semelhança entre verbo e vida... O grau de
aparente veracidade do discurso unívoco nada mais é que fruto de uma reprodução de
relações artificiais de similitude que, sob a capa de absoluta correspondência
igualitária, em verdade oculta o permanente deslocar-se, vida e mundo, entre os muitos
modos de saber, ver, viver, verbalizar...
*
Se, de um lado, é bastante comum em nome da pós-modernidade (e do texto
fragmentário) a utilização fácil de conceitos, que transitam superficialmente por tudo
sem nenhuma contribuição efetiva, na crítica de um Giddenslviii, por exemplo, por
outro lado é nítida a ampliação de fronteiras teóricas, a ampliação do diálogo e,
sobretudo na abordagem empírica, a ampliação do divertimento que – basta ver o seu
aproveitamento pela mídia – tudo isso a que chamam pós-modernidade vem
causando…
Para a Literatura, a pós-modernidade – e et pour cause – o fragmentarismo,
alarga sobremaneira as fronteiras da sua soberania…
49
O fragmentarismo possibilita – e mesmo exige – uma atividade dialogal, de expansão
polifônica, entre concepções até antagônicas, muitas vezes constituindo alianças
paradoxais entre uma pluralidade de modos de ver e saber o mundo, que acaba por
proporcionar aos leitores um encontro com verdades teóricas, às vezes até comezinhas,
que só fragmentariamente podem se constituir...
Não há porque distinguir, para os mochos fins a que se propõem os céticos, entre a
superficialidade de práticas ditas pós-modernas e as todas superficialidades de antigas
práticas ditas modernas... É a mesma fenomenologia, que dispensa em ambas maiores
esclarecimentos...
*
Quando João Gilberto Noll afirmou, por exemplo, que não consegue deter-se a ver
um filme com muita historinha, está a discorrer sobre uma necessidade típica da
leitura pós-moderna: a presença de uma fragmentação que abra a percepção para além
do texto unívoco... Sem, no entanto, é claro, cair no conto do vigário de um
dinamismo superficial que ele considera típico de thrillers, do mero congestionamento
da ação, preferindo, pois, certos esboços que não levam a nada...
50
João Gilberto Noll sugere que se desconstrua a narrativa de histórias mais ou
menos contínuas para a composição de seqüências dispersas de cenas estáticas,
destinadas a induzir nos leitores um “êxtase”, pelo qual, mesmo por um pequeno
instante, exponha o fundo escuro” lx (prefiro chamá-lo chiaroscuro)...
*
São fundamentos da escrita fragmentária:
51
como num jogo de lego, em que o se dar às mãos das partes fragmentárias amplie as
correntes da percepção em direção ao desconhecido...
*
Os modos fragmentaristas de ler são também as únicas ferramentas do espírito a
compreender – ver, ler, saber, viver – a silenciosa narrativa mitológica, quando em
quase nada importa a exatidão lógica dos conceitos e formas, estes sempre meras
referências à generalização primeira dos mitos, para cuja adoração faz-se necessária a
compreensão individual singularizada (aproximação com o real e o imaginário
individual)...
*
Em muitos casos, e a atualidade do texto de Heródoto – que já por fragmentarista é
também fundadora da noção pós-moderna de Histórias – bem o comprova, só
fragmentariamente se constrói um texto que corresponde à necessidade de fazê-lo
acompanhar a pluralidade fática ou fenomenológica...
*
As principais críticas ao texto herodótico (fantasista e sem ordenação rigorosa de
tempo e espaço) são fruto de uma visão superada da arte e ciência históricas, na
medida em que a inclusão de fenômenos mitológicos em sua História nos proporciona
52
ler a um só tempo fato e fantasia, real e imaginário, tal qual se processava nas mentes
do seu tempo – nada mais próprio ao texto histórico...
Uma leitura mais literária dos diálogos socráticos, não apenas em Platão, mas em
Xenofonte, e muitos outros que adotaram o métodolxviii, nos leva à convicção de que
muito pouco tem o socratismo com o platonismo, aproximando-se muito mais
Sócrates do pré-socratismo do que do idealismo unívoco de Platão, que o platonismo
exaltou em detrimento da sua estéticalxix, ainda muito pouco conhecida... Ou seja, em
Platão o diálogo socrático é apenas método dialogal-polifônico (ética e estética) de
busca da verdade... Mas a verdade unívoca é que ele mesmo é apropriado de modo
absolutista (talvez animados com o absolutismo reacionário de A República) pelos
seguidores de Platão, orientados pelo conteúdo “educativo”lxx dos diálogos, e de tal
modo que acaba por negar a “revolução permanente” do espírito socrático... Bakhtin
segue ainda mais fundo na apreciação, liberta de oficialismos filosóficos, do
dialogismo socrático, especialmente mercê de sua percepção essencialmente literária
dos escritos de Platão, observando suas bases carnavalizantes em seus discursos sobre
a(s) verdade (s)...
53
palestras reais proferidas por Sócrates, anotações das palestras memorizadas,
organizadas numa breve narração...
Mas muito breve, o tratamento artístico livre da matéria quase liberta
totalmente o gênero das suas limitações históricas e memorialísticas e conserva
nele apenas o método propriamente socrático de revelação da verdade e a
forma exterior do diálogo registrado e organizado em narrativa...
É esse caráter criativo livre que observamos nos diálogos socráticos de
Platão... lxxi
54
Todo texto é, engenharia e arquitetura, de origem fragmentária... Fragmentos que se
aprisionam uns aos outros, que se disfarçam as diversidades em meio a uma retórica
linear sempre arbitrária, à moda sofística, à maneira das artes advocatícias...
*
Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não
apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o
contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do
dionisíaco...lxxv
*
No exercício do fragmentarismo também é preciso não perder de vista uma busca
renovada da (inexprimível) Totalidade (o Tao), para que a fragmentação seja bem
apreendida... E para que sempre se evite a imposição ideológica de uma retórica que
possa nos impor qualquer parte por quaisquer desses muitos todos tolos que rastejam
por aí...
*
A arte da interpretação se aproxima de uma atividade fisiológica não-
humana: a lenta e salutar digestão bovina, que o “homem moderno” teria
completamente desaprendido...
55
As concepções socráticas da natureza dialógica da verdade se
assentavam na base carnavalesco-popular do gênero do “diálogo socrático” e
determinavam-lhe a forma, mas nem de longe encontravam sempre expressão
no próprio conteúdo de alguns diálogos...lxxvii O conteúdo adquiria
freqüentemente caráter monológico, que contradizia a idéia formadora do
gênero... lxxviii
*
Curioso notar como tantos autores da atualidade venham, há tanta tinta e papel,
já agora a gigabits, combatendo a univocidade, o positivismo, a linearidade do
pensamento imperial, com discursos, retóricas e estéticas, próprios à Linguagem
Imperial...
Talvez porque a polis literária seja governada pela polis política...
*
Há, como em todas as épocas, novíssimos modo de fazer literatura no ar
polifônico da pós-modernidade: contar/cantar o mundo inside/outside of us...
Porque afinal estamos todos desconstruindo-nos em vez de simplesmente
contar/cantar o mundo inside/outside of us?...
*
Cabe observar que a cosmovisão carnavalesca também desconhece o
ponto conclusivo... É hostil a qualquer desfecho definitivo: aqui todo fim é
apenas um novo começo, as imagens carnavalescas renascem a cada instante...
lxxx
56
*
Se o pós-modernismo é filho do modernismo (que sofreu no passado as mesma espécie
de crítica temerária que hoje sofre o primeiro), herdeiro daquele individualismo
mundano exacerbado que então dividia a filosofia e a teologia alemãs dos finais do
século XIX, inícios do XX [o modernismo era cego para tudo o que não é o eu ou não
serve ao seu eulxxxi], como o novo que vai saindo de dentro do velho (ou o velho de
dentro do novo) como diz Gilberto de Mendonça Teles das experimentações de
Manuel Bandeira, feito por dentro da linguagem poéticalxxxii, isso não se faz aos
“pouquinhos, humildemente, quase a pedir licença, como Irene entrando no céu”lxxxiii,
mas a partir de uma nova ruptura, a desconstruçãolxxxiv, ao mesmo tempo em que se
espalha, numa autêntica explosão de vanguardas, pela cultura (saber) e pela sociedade
(viver), constituindo toda uma fenomenologia que lhe é própria e que, bem ao
contrário dos experimentalismos e vanguardas da modernidade, vem se processando
em um ritmo muito mais veloz do que tem podido absorver não só as teorias literárias,
mas as próprias obras de literatura... E que ocupa seus principais espaços, a
construção pós-moderna, nas artes imagéticas, cinema, televisão, clips
publicitários,etc., e nas ligadas à informática, os sites internet e a web-literatura...
São, talvez, por múltiplos, por polifônicos, como mil polvos de mil braços, algo assim
como muitos novos renascendo de uns poucos velhos heróicos...
As vanguardas modernistas buscavam a ruptura como instante (horizontalização
periódica da cultura), a retomar a caminhada a partir do novo elemento conquistado...
Na pós-modernidade, a ruptura, como desconstruçaão é o cotidiano, é o procedimento
polifônico de um processo que não se resolve jamais, na grande explosão da vida
unívoca que deixou tudo aos fragmentos da pluralidade... Na pós-modernidade,
primeiro como uma super-horizontalização permanente da cultura, nivelação (por
cima e/ou por baixo) de todas as possibilidades sociais, intelectuais e artísticas, aos
mesmos patamares, cada fragmento busca a ampliação e a sobrevivência, em que
57
qualquer totalidade é sempre aliança temporária, nunca um permanente estado
unitário... Por segundo, como conseqüência da primeira fase, a pluralidade como
tônica segue desconstruindo horizontalizações e verticalizações, para que cedam
espaço a direções estelares...
Na pós-modernidade a tribo/polis/estado da Grécia pré-alexandrina substitui-se ao
estado-império da Roma Imperial... A Cidade-Estado da Grécia clássica se justificava
a partir do indivíduo, da cidadania grega; bem ao contrário, no Império Romano a
cidadania só se justificava a partir do Estado... Daí que, numa era a plenitude, o
desenvolvimento do homem grego (a Paidéia), a essência da cidade grega; noutra,
Roma, era o Império, o Estado Romano, o que importava construir e desenvolver...
*
Meu partido, é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas...
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito, eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo (Mudar o mundo)
Freqüenta agora as festas do grand monde
*
A pós-modernidade, a partir de uma consciência plural e fragmentária do mundo,
amplia desmesuradamente as possibilidades do Mercado, com uma ampliação do
Consumo como nunca antes vista, na medida em que as partes-fragmentos (tribos,
indivíduos) exigem itens de consumo próprio, e muito especialmente na medida em
que as possibilidades combinatórias inter-fragmentos (tribos/indivíduos) multiplicam o
“self” em tantos outros em um mesmo consumidor, e a “trieb” (pulsão, vontade de
poder) em vontade de consumir...
58
*
– Ao fim de todas as coisas! (Max levanta o copo e bebe). Sabem como sei que
é o fim do mundo? Porque tudo já foi feito. Todo tipo de música, todos os
governos... Todos os cortes de cabelo, todos os sabores de chiclete... Todo tipo
de cereal... Sabem como é?... Comno vamos sobreviver outros mil anos?
Estou dizendo... Acabou-se... Esgotamos tudo...lxxxvi
*
Trava-se nos céus da pós-modernidade um novo combate ideológico representado pelo
embate entre o que se usa chamar de Nova Economia e o ancién regime da economia
capitalista, esta desenvolvendo em direção à concentração, aquela – como um remédio
eficaz ao que Marx chamou de carregar em si as sementes da própria destruição – para
a pluralização econômica e, por conseguinte social e política... É claro que a arte
literária não pode permanecer imune aos reflexos desses embates pós-modernos... Por
isso que as concepções teóricas e estéticas acabam por se constituírem como expressão
da antiga ou da nova sociedade ocidental...
Et por cause, mas, é claro, não só por issolxxxviii, seja a pós-modernidade, seja o
fragmentarismo, são conceitos que, fenômenos do pensamento e da cultura, ainda
carecem de reconhecimento pela cultura institucional... lxxxix
59
Et por cause, ainda, os principais textos existentes a respeito da pós-modernidade,
ignorando seus aspectos Literários (lato senso), se apegam ao modernismo, ou ao
marxismo, em estranhíssimas alianças canônicas (se não fossem essas alianças parte
do fenômeno que ignoram), para combater o pós-modernismoxc, buscando negar-lhe o
sentido, a fenomenologia, de fase autônoma da cultura, quando não lhe adjetivam de
contrafação, dando-lhe, até mesmo, contornos de contravenção. Ou seja, a um tempo
confrontação e contrafação, esquecendo-se que o que confronta é sempre contrafação
para o confrontado... Aliás, tal qual se fez contra o modernismo em seus primórdios
(o que, para os fins do presente texto, é o mais significativo)...
60
moderno de pressupostos, experiências e proposições de um período
precedente.xciii
*
O que se percebe, de um modo geral, entre os autores favoráveis à pós-modernidade
que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos, a pós-modernidade é vista o mais
das vezes como um fenômeno estético especialmente delimitado, próprio aos espaços
da arquitetura, das artes plásticas, da publicidade, ponta de lança da sociedade de
consumo, fenômeno de uma sociedade capitalista da fase pós-industrial...
Muito pouco ou nada se fez em teoria literária aplicável à pós-modernidade que não se
resuma ao conceito de desconstrução...
A teoria literária há que trazer a si os resultados, tanto empíricos quanto teóricos, das
práticas interdisciplinares: por exemplo, encontramo-nos numa época em que os
gêneros perdem ou confundem as suas fronteiras...xcvi, uma característica própria à pós-
modernidade, que segue a quebra do discurso unívoco para dar lugar à coexistência
teórica entre os muitos modos de saber...
*
...A mim mesmo eu canto e celebro
E ao que eu celebro e canto
Venham também vocês celebrar cantar
61
*
...O diálogo de Platão representa, segundo Aristóteles, um novo gênero
artístico, uma manifestação intermédia entre a poesia e a prosa. É fora de
dúvida que isto se refere em primeiro lugar à forma, que é a de um drama
espiritual em linguagem livre. Mas, segundo a opinião de Aristóteles sobre as
liberdades que Platão se permite na maneira de tratar o Sócrates histórico,
devemos supor que era também no tocante ao conteúdo que Aristóteles
considerava o diálogo platônico uma mescla de poesia e prosa, de ficção e
realidade...xcix
*
A Globalização é o processo – jamais de desfragmentação – de harmonia
fragmentário-planetária, em que a extrema pluralidade humana não será apequenada
com as retóricas da similitude…
Se buscarmos, humanos, nas palavras de Jesus, sermos perfeitos como nosso Pai...
Decerto haveremos de manter nossa presença, vivificando-a, em cada qual dos nossos
fragmentos...
O ‘globalizamento’ atual nada mais ainda é que a manipulação dos nossos todos
fragmentos sociais, nossos seres fragmentários, uma ‘desfragmentação’ segundo os
hard(and soft)wares dos donos, ou dos que se apoderaram dos computadores...
62
A Literatura encontra, no Hipertexto, como Web-Literatura, uma possibilidade de
ampliação da arte literária tanto no sentido da apreensão das possibilidades de
imaginário (provocando uma comunicação mais larga entre imaginários), quanto na
utilização dialogal entre textos de linguagem transparente (comunicação objetiva) com
textos de linguagem densa ou opaca (comunicação subjetiva; ou literária), na
diferenciação clássicacii, entre arte e ciência, entre signos de distintas procedências
culturais, inclusive suas respectivas linguagens idiomáticas...
www.pw.org/mag/wittig.htm
*
Quanto mais se mostra o fragmento, mas a totalidade
ganha em apreensão...
*
As aspas, o ponto de exclamação, a palavra informal no ambiente
formal, a rapidez com que cada palavra pode ser lida, o tamanho da palavra e
63
os espaços adjacentes... ...não fosse pela literatura eletrônica, esses detalhes
poderiam me iludir...civ
A literatura eletrônica tem proporcionado a muitos de nós avançar na
abordagem da materialidade do ato de escrever...
*
A webliteratura, como havia de ser natural, acaba provocando uma revisão de
conceitos teóricos que não deixam de abranger toda a Literatura, e não apenas no que
diz respeito à criação desse novo gênero literário...
...A retomada de uma idéia de Marcel Duchamps quanto à ação do acaso no processo
de criação artística é um dos aspectos dessa contribuição, aliás bem ao sabor da pós-
modernidade...
A idéia de vanguarda também se modifica: não se busca mais novos sentidos, temas,
nem mesmo técnicas: são os procedimentos que se busca explorar na busca do novo...
Pois, compreendida a vida como um processo, qual procedimento artístico se fará
correspondente às novas e sucessivas etapas da cultura, se tanto as atuais, as que
aguardam serem vencidas?...
64
siglo XX no son los que hicieron obra, sino los que inventaron
procedimientos para que las obras se hicieran solas, o no se hicieran. ¿Para
qué necesitamos obras? ¿Quién quiere otra novela, otro cuadro, otra
sinfonía?... ¡...como si no hubiera bastantes ya!cvi
*
O controle da máquina, da tecnologia que possibilita e vai ampliando infinitamente as
possibilidades plurais da sociedade, especialmente sua mais recente expressão literária,
o hipertexto, ainda se encontra em mãos de uma Velha Economia, que controla os bens
primários de produção, o que resulta em um controle severo da intertextualização, a
saber, das possibilidades de que o hipertexto, e a literatura web , possam transitar
livres, dos produtores de texto aos seus tantos possíveis consumidores...
*
A literatura imagética, o cinema, especialmente, em nada prejudica a literatura escrita
na medida em que, e até por ser dela consumidor, co-produtor e divulgador, realidade
ficcional (filme) e sua absorção e transmissão conceitual (escrita) são e sempre serão
interdependentes, como atividades mentais que se complementam...
Junte-se uma série de cartazes, sem qualquer texto, e as disponha à visão (leitura) do
outro, que certamente esse outro terá a oportunidade de saber (ler), seja no nível da
65
simples comunicação, seja no nível da experiência artística, o que se está a dizer
(texto)...
*
A “leitura virtual” formatada pelo texto eletrônico é indiciada pelos
elementos de sua organização. No texto eletrônico, a abundância de
informação e a quantidade de conexões possíveis propicia uma atitude de
leitura fragmentária; o leitor faz “zappings”, ou seja, pula de um texto para
outro lendo aos pedaços. A leitura no monitor não é linear, pois o texto é
organizado para que a informação seja encontrada de maneira funcional, de
tal forma que só se leia aquilo que é buscado. Por isso, esta prática de leitura é
baseada na atenção flutuante ou no interesse potencial em relação à
informação; o leitor/navegador recolhe fragmentos de informação (daí o uso
do verbo inglês browse, para designar o processo de quem lê o hipertexto.
Prática de leitura semelhante é desempenhada pelo espectador de televisão,
que com o controle remoto “zapeia” de um canal a outro...cix
66
Mas uma imagem só vale mais que mil palavras quando essas palavras nada
significam ou quando possui tessitura poética suficiente à produção do poema ainda
irrealizado... Pois é a palavra, consciente ou inconscientemente mentalizada, que
nos proporciona comunicar o vínculo poético entre nós e a realidade observada
ou imaginada...
cxi
67
O estilo bom em si é pura loucura, puro “idealismo”, como o
“belo em si”, o “bom em si”, a “coisa em si...”cxii
*
Pré-socratismo, fragmentarismo, pós-modernismo, hipertexto, são elos da mesma
corrente estética que se vai constituindo em gigantesco renascimento artístico do
ocidente... Os muitos modos do humano contemplar e criar obras de arte... A
liberação das energias criativas do humano, aprisionadas em retóricas unívocas, talvez
resultantes das respectivas etapas da civilização, estas que vinham impedindo o livre
trânsito multiplicador do ser poético em nós...
*
Se o poeta não busca a Eternidade, a Totalidade Incompletável... Que poeta é ?... E se
não busca, fragmento a fragmento, expandir a sua poesia para além da Totalidade pré-
concebida, que poesia terá?...
*
I’ve nothing to say and I’m saying it… cxiii
*
O poeta é um canário preso às grades-versos de uma gaiola-
poema: só o verbo, som e imagem, do seu canto é livre-poesia...
*
A existência se passa em um rolo de imagens que se desdobra
continuamente, imagens capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos
outros sentidos, imagens cujo significado (ou suposição de significado) varia
constantemente, constituindo uma linguagem feita de imagens traduzidas em
68
palavras e de palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos
abarcar e compreender nossa própria existência...
*
O que agora está provado, foi outrora somente imaginado... cxvi
69
Como saber se cada pássaro que cruza os caminhos do ar não é um imenso mundo
de prazer, vedado por nossos cinco sentidos?... cxvii
*
Se a natureza e os frutos do acaso são passíveis de interpretação, de
tradução em palavras comuns, no vocabulário absolutamente artificial que
construímos a partir de vários sons e rabiscos, então talvez esses sons e
rabiscos permitam, em troca, a construção de um acaso ecoado e de uma
natureza espelhada, um mundo paralelo de palavras e imagens mediante o qual
podemos reconhecer a experiência do mundo que chamamos real...cxix
A imagem é finitude, a palavra é infinita... Mas uma não vive sem a outra... No
fragmentarismo, a aproximação textual com cada objeto é também uma maior
aproximação com a sua imagem e com as palavras que lhe somam significações...
70
A estética fragmentarista é, portanto, a arte de retomar o mistério ainda contido no
objeto, que remonta às origens de sua criação, e que aponta para as suas infinitas
possibilidades ainda inexploradas...
Toda boa história é, está claro, uma imagem e uma idéia, e quanto
mais elas estiverem entremeadas melhor terá sido a solução do
problema... cxxiv
O fragmentarismo resgata o silêncio presente nas relações dos objetos entre si, como
espaço intertextual, ao tempo em que deixa-os “falarem” por si mesmos, sem que uma
articulação imposta por uma consciência imperial emudeça suas próprias vozes...
Não era necessariamente como uma tentativa de não comunicarcxxvi que Stéphane
Mallarmé apresenta “em desespero”, a página em branco, que Eugène Ionesco
decreta em suas peças que “o mundo impede que o silêncio fale”, que Beckett põe em
cena um ato sem palavras, que John Cage compõe uma música chamada “silêncio” e
que Pollock “pendura na parede de um museu uma tela coberta de espirros mudos...”
Eram tentativas de comunicar, mas exatamente no silêncio das coisas, a morada
poética do objeto de arte...
*
En la época inmediatamente posterior a Bach se compuso
ocasionalmente usando el azar, con dados... lo hicieron Mozart, Haydn, Carl
Phillip, Emmanuel Bach, entre otros...
El ingreso de la personalidad del artista, de su sensibilidad y las
complicaciones políticas del yo...tarda un siglo en agotarse....
El gran mecánico Schöemberg le da una vuelta de tuerca a la
profesionalización del músico, preparando la entrada de un nuevo tipo de
artista: el músico que no es músico, el pintor que no es pintor, el escritor que
no es escritor...
71
Ya en 1913 Marcel Duchamp había hecho un experimento en el mismo
sentido, de determinar las notas por azar, pero sin ejecutarlo; consideraba la
realización "muy inútil"...
¿para qué hacer la obra, una vez que ya se sabe cómo hacerla?...
John Cage ... (um músico norte americano cuya obra es uma mina
inesgotable de procedimientos...) ...justifica el uso del azar diciendo que "así es
posible una composición musical cuya continuidad está libre del gusto y la
memoria individuales, y también de la bibliografía y las 'tradiciones' del
arte"....(...lo que llama "bibliografía" y "tradiciones del arte" no es sino el
modo canónico de hacer arte, que se actualiza con lo que llama "el gusto y la
memoria individuales"...)
72
El arte que no usa un procedimiento, hoy día, no es arte de verdad. Porque
lo que distingue al arte auténtico del mero uso de un lenguaje es esa
radicalidad...cxxx
cxxxi
73
*
Os Cantos inferem a interpenetração de estruturas, a interpenetração de
temas e motivos. O básico: a dialética entre os métodos de montagem ou
princípios do ideograma com a idéia de metamorfose (Ovídio). Por isso, nos
mesmos Cantos, passa-se muitas vezes, como de flash a flash, de um tema,
assunto, mote ou alusão para outro, heterogêneo, rompendo-se assim com os
cânones tradicionais da linearidade. Na estrutura referencial dominante,
interpolam-se também a Odisséia e a Divina Comédia, além da mitologia
grega, Virgílio e trechos da história da China, dos Estados Unidos e da Itália.
cxxxiii
74
cxxxv
Pode-se caracterizar outra coisa que indivíduos?... Não há indivíduos que contêm em
si sistemas inteiros de indivíduos?... cxxxvi
75
Linguagem
Falão-se os montes Falão-se os galos Falão-se as redes
Falão-se as fontes Falão-se os lagos Falão-se as...sedes
Falão-se as feras Falão-se as cassas Falão-se os bixos
Falão-se as pedras! Falão-se as massas! Falão-se os nixos!
- Todos se falão! - Todos se falão! - Todos se falão!
Relação naturalcxl
Relações naturais de acordo a natureza das coisas, e não relações sociais absurdas, que
as violentavam, eram essas as primeiras reflexões de Qorpo-Santo.... Mas isso não
quer dizer, absolutamente, que tudo se resumia a um retorno à natureza rousseauniana,
a apologia do bom selvagem... Ao contrário, Qorpo-Santo tinha exata noção da força
caótica da natureza em relação ao humano, como, aliás, o final do poema Relação
76
Natural bem o sugere e a peça As Relações Naturaiscxlii deixará muito mais claro
adiante...
Não era a arbitrária substituição das relações naturais por relações sociais, só
aparentemente racionais (teoria ficcional da cultura), pois que as percebia, estas,
igualmente caóticas, tão absurdas quanto, em sua constituição e exercício (conforme
ele mesmo sentia à própria pele, especialmente pela experiência kafkiana em tentar
provar, perante a justiça, a sua sanidade mental, peticionando e submetendo-se a
exames médicos, até mesmo em lugares tão distantes da antiga Porto Alegre, como o
Rio de Janeiro, publicando sua saga judiciária em sua Ensiqlopèdia...
FÉcxliv
77
Para Qorpo-Santo, a realidade moral é pura ficção, circo, absurdo, pantomina,
irrealidade, imaginação, teatro de variedades... São ação e discurso desconexos, não
apenas “fora” das relações naturais, mas mesmo absurdamente “contra” as relações
naturais... Estas, no entanto, seguem fazendo o seu trabalho... As pessoas assim
colocadas são, pois, meras marionetes de “espíritos” (uma explicação literária do
absurdo) que agem nas mentes dos indivíduos, provocando-os o agir e o falar de
acordo com as suas – “espirituais” – vontades... Por isso, hoje são umas; amanhã,
outras... Ora um general fala como criança, ora uma criança fala como um general...
78
perante seus olhos literários... A vergastar a sua carne (qorpo) e a sua consciência
(santo), “literaturizadas”... Por isso que, na só aparente simplicidade do seu poema
CENSURA, mantendo o clima de absurda comicidade, a personagem Qorpo-Santo
declara à praça dos apressados censores que a sua obra, absurda, é tal qual (fiel retrato)
a absurda realidade humana...
79
nem mera opção formalista maniqueísta de bem/mal... Porque ambos eram absurdos, o
teatro de Qorpo-Santo é a exibição absurda do absurdo da comédia humana, a
representação dramática dessa absurdidade, desnudando tanto a pretensão realista de
aproximação com o real, realismo de época, como a própria comédia de costumes, ao
lhe inserir (contrapor) o componente da ridícula (novamente absurda) aparente
cientificidade do discurso de moral positivista que, no final das contas, é o que acaba
prevalecendo no espírito dos espectadores dessas comédias...
Qorpo-Santo negava gregos e troianos, no teatro assim na vida, inclusive porque nisto
reside o fato (conseqüência, não causa, de sua literatura) de pilhar-se um
“desempatotado”, tal qual já se disse, alhures, de um Cruz e Souza, por exemplo...
O real humano, drama ou comédia, é, para Qorpo-Santo, falso, caótico, absurdo...
Mais dado ao regresso que ao progresso, como proclama o absurdo criado de Mateus e
Mateusa... O absurdo ganha, portanto, voz... Não como um elemento do sensato, mas
como um diálogo do absurdo com o absurdo... Pois se tudo se mostra absurdo, que
linguagem, que retórica, senão as do absurdo, farão com que o seu texto ganhe
consistência literária, na medida que parceiro da absurdidade em que se envolvem
todas as relações humanas?
Tudo em Qorpo-Santo parece fugir à reta razão quando se trata de estabelecer um fio
condutor linear de seus pensamentos: quando já vamos acreditando haver decifrado
seus códigos de escritura e representação, quando aprisionamos uma linha de idéias na
esperança de haver desvendado o seu sistema estético, eis que outra ordem possível de
conclusões surge, como se do nada, fazendo desabar, como num passe de mágica, todo
o edifício arduamente construído... Isto é que é o seu fragmentarismo.
80
cxlviii
Fosse o observador da realidade, natural e social, que o rodeava, fosse o artista, Qorpo-
Santo adotava o método fragmentarista (mais uma absurdidade reveladora), daí a sua
81
Ensiqlopèdia, à melhor estirpe pré-socrática, e mesmo socrática, ultrapassando, por
todas absurdas em sua univocidade, as dialéticas propostas pelo ordenamento unitário
e absolutista do mundo das idéias, tanto quanto da natureza e da sociedade, que
fizeram das dogmáticas de Platão, Hegel e Marx os mais poderosos inimigos da
sociedade aberta...
O título sob o qual Qorpo-Santo reúne a sua obra, Ensiqlopèdia sugere uma leitura dos
enciclopedistas franceses, no que tinham de libertário, e de disposição da cultura
como enumeração de fragmentos, todos igualmente relevantes, cuja importância se
atribui de uma perspectiva da necessidade do conhecimento, para a qual deve
contribuir o leitor, idéias centrais de qualquer boa enciclopédia... O epíteto que se lhe
segue, Ou Seis Mezes De Huma Enfermidade!, mote a um só tempo irônico e
sarcástico, segue a insistente linha da absurdidade literária, pois, numa só aparente
concordância com sua fama de doente mental, está a demonstrar, pelo seu conteúdo,
qual era a sua doença: era o modo de Qorpo-Santo declarar, e o confessar, que, durante
seis meses (e fora muito modesto nisso) sofrera da aguda febre literária, a que acomete
os que se entregam tão radicalmente, corpo e alma, ao seu fazer literário, e de dizer:
Eis a doença!... A uma totalidade formal e materialmente disposta em Unidade, como
seria, por exemplo, o livro em formato tradicional, reunindo os temas em seu contexto
próprio, com destaque individualizado, Qorpo-Santo preferiu a miscelânea jornalística,
o almanaque, o magazine, a enciclopédia mundana, em que a totalidade de sua obra
82
literária se esparrama fragmentariamente em meio a toda uma série de preocupações
não propriamente estéticas...
Ao enumerar os seus volumes, se os denomina de livros (de 1 a 9), e anote-se que
possuem todos os mesmos frontispícios, é para fazer ver que o seu trabalho se
qualifica como literatura... Na forma própria ao livro que inventa: livro de conteúdo
fragmentário, e fragmentado, a tratar de uma realidade fragmentária, e fragmentada...
Por isso é que nem o moralismo (ou teatro realista) de suas personagens, nem as
relações naturais (comédia de costumes) podem representar, em termos absolutos, o
mal e/ou o bem: ambos os caminhos levam a humanidade aos sítios do absurdo
exatamente quando tomados aos modos absolutistas... Em ambas, o caos...
Para demonstrar essa absurdidade, esse caos, esse mundo aos pedaços, nada mais
apropriado que uma estética radical da absurdidade...
83
Se a Ensiqlopèdia é construída como uma colcha de retalhos, algo assim como as
atuais agendas dos adolescentes pós-modernos (que são a um só tempo agendas,
diários, álbuns de figurinhas, enfim, registro de tudo o quanto lhes faça a cabeça), é
porque Qorpo-Santo percebe que o tudo que se passa no mundo compondo a vida
humana, possui igual relevo, igual força motriz, sendo descabida a hierarquização dos
elementos vitais, assim do humano quanto da natureza e da sociedade...
Para Qorpo-Santo, como para a pluralidade pós-moderna, um poema é tão importante
quanto uma receita culinária...
Uma petição judicial é tão significativo quanto um rol de cuidados com a saúde...
Uma peça teatral guarda as mesmas proporções que um código de conduta para os
jornalistas...
Assuntos que se dispõem, fragmentariamente, sem hierarquia gráfica, pelos seus vários
livros... Que, afinal, visto como Literatura (lato senso), como poética, todo fato é fato
literário, tudo é poesia...
*
Na pós-modernidade, tanto quanto já o fazia Qorpo-Santo, o mundo, a vida, a
natureza, o humano, a própria sociedade, são percebidos e compreendidos em sua
especificidade fragmentária, sem hierarquização...
...O Todo, Deus, mediado, em Qorpo-Santo, pelos Reis do Universo, aloca em tudo e
em todos, os espíritos, as energias vitais... Estes sopram como os ventos através dos
humanos, fazendo-os serem, hoje, uns, e amanhã, outros, à semelhança da teoria dos
átomos desordenados de Demócrito e Epicuro: Qorpo-Santo não explica se ao inteiro
acaso...
84
Todos somos fragmentos em movimento, movimentos ao acaso, constituindo-nos por
um processo permanente de união e desunião com os demais fragmentos... Por isso,
todos somos iguais... For every atom belonging to me as good belongs to you...cl
Átomos, conjuntos mutáveis de átomos, a nos esbarrar, fundir, desgarrar, num ir e vir
incessante de espíritos, mesmo que alguns tenham se feito carne...
O que se constitui em inexorável impossibilidade de agir conforme qualquer
ordenamento absolutista, sem que isso nos condene eternamente ao sofrimento, ao
desprazer, às relações absurdas e injustas...
85
A história de Quero Ser John Malkovich (nome do conhecido ator que o interpreta,
alusão pós-moderna à idéia de representação, de interessantes significados), pode ser
vista como uma explicitação, uma demonstração fenomenológica das idéias de Qorpo-
Santo, em sua peça: Hoje Sou Um; Amanhã, Outro... Até a metáfora principal do
filme, o títere,corresponde exatamente ao objeto da fala da personagem de Qorpo-
Santo, o Ministro, que fala como conselheiro do Rei... Qorpo-Santo ataca dois
aspectos: as pessoas como títeres de espíritos, e o fato de que os pensamentos não são
propriamente pensamentos pessoais, como reflexo da mente individual (ideologia)...
Será que Lester e Qorpo-Santo seriam consciências ocupadas por esses tais Reis do
Universo, de que nos fala a peça Hoje Sou Um; Amanhã. Outro...? Algo assim, como
uma forma democrática e pluralista de coabitação tanto espiritual quanto natural...
86
Quero Ser John Malkovich, e 13º Andar (habitação sucessiva de personagens, do real
ao virtual) são alegorias típicas de uma era pós-moderna: Qorpo-Santo anunciara-lhes
já em 1866... Que bem exemplificam o caráter profundo e extenso da obra de arte, que
há de sempre ser lida, assim a literatura (estrito senso) quanto o cinema, aos seus
muitos modos de ler e saber...
*
Bob Dylon previu algumas fragmentações de pensamento, de imagens e
da própria sociedade...
cliv
Bob Dylan não mistura apenas álbum a álbum ou canção a canção, com
ele é verso a verso; você passa para um mundo diferente em cada verso
seguinte... clv
Ele fazia um quadro do que acontecia à sua volta. Para mim ele é o
Picasso do Rock’n’Roll... clvi
*
Há um tempo para desconstruir... E há um tempo para selecionar, dentre os materiais
da desconstrução, o que servirá a novas construções... Na pós-modernidade, todos os
materiais (fragmentos) se aproveitam...
*
87
clvii
Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque
foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas
do escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,
escritor – o prazer do meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que eu
o procure (que eu “drague”), sem saber onde ele está. Um espaço de fruição
fica então criado. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço:
88
a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute:
que os dados não estejam lançados, que haja um jogo...clviii
*
O fragmentarismo, formulação estética capaz de acolher os muitos modos de ver e
saber o mundo, sempre esteve presente no pensamento desde que, seguramente, foi o
modo inicial do humano compor o seu discurso da realidade e do seu pensamento, do
seu sentimento de perplexidade e de desejo de conhecimento... Agora, na pós-
modernidade, faze-se revival, eclode como necessário ao atual estágio da civilização...
89
seja ideológico, seja autoritário pura e simplesmente, peca ainda pelo simples fato de
que, dada limitação do humano em interpretar, mesmo em interpretar-se, toda
interpretação sempre será de veracidade duvidosa, seja ela unitária, seja múltipla. Ou
não haveria O Mistério...
Em matéria de arte, toda ela, que – et pour cause – podemos denominar, lato sensu, A
Poética, toda interpretação linear e unívoca será sua negação, a negação do Mistério
que necessariamente encerra, que necessariamente faz de uma obra de arte o que ela
é...A sua Poesia...
90
Se a Poesia é o que faz de uma obra uma obra de arte, já que é ela que se assemelha ao
Mistério, toda interpretação é fazer retornar, por negação do misterioso, do poético,
uma obra de arte, ao seu elemento puramente material...
O fato artístico, fato poético, todo ele, é jamais interpretável senão pelo que se contém
na obra... Pela sua capacidade – objeto de arte – de nos remeter diretamente ao terreno
do Mistério, sem que para isso tenhamos que ser intermediados seja pelo racional, seja
pelo irracional, seja pelo pensamento exato, seja pelo pensamento delirante ou
absurdo... ...Algo assim como estar diante de um simples cálice... Um santo graal
O acesso ao Mistério se dá segundo cada qual dos povos que os criaram (significantes)
e os percebem (significados)clx... Freedom não é o mesmo que Liberdade... Love
nunca será o mesmo que L’amour... Saudade é verso de uma estrofe só...
91
mesma e não se reproduz, assim como o pensamento, cuja continuidade, por
esse motivo, jamais é assegurada).clxi
92
A semelhança – tal como é usada na linguagem cotidiana – é
atribuída às coisas que possuem ou não natureza comum. Diz-se:
‘parecidos como duas gotas d’água’, e diz-se, com a mesma facilidade,
que o falso se parece com o autêntico. Esta pretensa semelhança
consiste em relações de similitude, distinguidas pelo pensamento que
examina, avalia e compara. Tais atos do pensamento se efetuam com
uma consciência que não vai além das similitudes possíveis: a essa
consciência, as coisas revelam apenas seu caráter de similitude.
A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento:
o de parecer. O pensamento parece tornar-se aquilo que o mundo lhe
oferece e restituir aquilo que lhe é oferecido, ao mistério no qual não
haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento. A
inspiração é o acontecimento onde surge a semelhança.
A arte de pintar – não concebida como mistificação mais ou
menos inocente – não seria capaz de enunciar idéias nem exprimir
sentimentos: a imagem de um rosto que chora não exprime a tristeza,
do mesmo modo que não enuncia uma idéia de tristeza, pois idéias e
sentimentos não possuem nenhuma forma visível.
A arte de pintar – que merece verdadeiramente se chamar arte
da semelhança – permite descrever, pela pintura, um pensamento
suscetível de se tornar visível. Este pensamento compreende
exclusivamente as figuras que o mundo oferece aos nossos olhos:
pessoas, cortinas, armas, astros, sólidos, inscrições, etc. A semelhança
reúne espontaneamente essas figuras numa ordem que evoca
diretamente o mistério. A descrição de um tal pensamento não suporta
a originalidade. A originalidade ou a fantasia só trariam fraqueza e
miséria. A precisão e o encanto de uma imagem da semelhança
dependem da semelhança e não de um modo fantasioso de descrever.
‘O como pintar’ a descrição da semelhança deve se limitar
unicamente em dispor as tintas sobre uma superfície, de tal modo que
o aspecto efetivo delas se distancie e deixe aparecer uma imagem da
semelhança.
Uma imagem da semelhança mostra tudo o que ela é, quer dizer,
uma reunião de figuras onde nada é subentendido. Querer interpretar
– a fim de exercer não sei que falaciosa liberdade – é desconhecer uma
imagem inspirada substituindo-lhe uma interpretação gratuita que
pode, por sua vez, ser o objeto de uma série sem fim de interpretações
supérfluas.
Uma imagem não deve ser confundida com um aspecto do
mundo nem com alguma coisa de tangível. A imagem de um pão com
geléia não é alguma coisa de comestível e, inversamente, tomar um
pão com geléia e expô-lo num salão de pintura não muda em nada seu
aspecto efetivo, que seria tolo acreditar capaz de deixar aparecer a
descrição de um pensamento qualquer. A mesma coisa acontece, diga-
93
se de passagem, com as tintas dispostas, por vezes atiradas, sobre uma
tela por prazer ou por uma utilidade particular.
A inspiração oferece ao pintor aquilo que é preciso pintar: a
semelhança que é um pensamento suscetível de tornar-se visível pela
pintura – por exemplo, um pensamento cujos termos são um pão com
geléia e a inscrição ‘isto não é um pão com geléia’ ou ainda, um
pensamento constituído por uma paisagem noturna sob um céu
ensolarado. ‘De direito’ tais imagens evocam o mistério, enquanto, ‘de
fato’ somente, o mistério seria evocado pela imagem de um pão com
geléia solitária ou pela imagem de uma paisagem noturna sob um céu
estrelado.
Entretanto, todas as imagens que contradizem o ‘senso comum’
não evocam , necessariamente, ‘de direito’ o mistério. A contradição
pode derivar apenas de um modo de pensar cuja vitalidade depende de
uma possibilidade de contradizer. A inspiração não depende de uma
boa ou má vontade. A semelhança é um pensamento inspirado que não
se preocupa de se harmonizar com um modo de pensar ingênuo ou
erudito. Ela se opõe necessariamente tanto à razão quanto ao absurdo.
É com palavras que os títulos são dados às imagens. Mas essas
palavras deixam de permanecer familiares ou estranhas quando
nomeiam convenientemente as imagens da semelhança. É preciso
inspiração para dizê-las e ouvi-las...clxiii
clxiv
94
Das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e
sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em
consideração como metal, não mais como moedas...clxv
95
...e especialmente suas implicações no terreno de formação ideológica do discurso
unívoco...
A maior parte das coisas boas no cinema acontece por acidente... clxviii
Tanto na vida material quanto nas artes todas, o fragmentarismo larga sua função
apenas metodológica para constituir-se em prática social e artística...
Hoje, mais que nunca, em todas as histórias das humanidades ocidentais, desde os pré-
socráticos, fervilham, ao mesmo nível das relevâncias, seja a que título for, os muitos
modos de ver e de ler o mundo, muito especialmente as escritas todas, as que o
humano inscreve de múltiplas formas em sua própria humanidade...
Os fragmentos que nos chegam através dos sonhos, das emoções, do imaginário, são,
em princípio, fragmentos natos... A razão muitas vezes nos convida à fragmentação no
sentido da análise, da ampliação do conhecimento das partes, da decomposição de uma
dada totalidade... São fragmentos que se tornam tais...
96
clxix
clxx
Nos sistemas unívocos, tal como ocorre nos computadores, objetos e fatos e idéias são
arquivos que fragmentam o programa inicial na medida mesmo em que são
regularmente utilizados... As periódicas operações de desfragmentação, que tornam à
97
integralidade do sistema, são apenas momentos de inanição, de estática... Pois tão logo
se retorne à dinâmica da ação, assim se vão outra vez fragmentando, soltando-se do
sistema, objetos e fatos e idéias...
clxxi
98
mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade. (Citado
por Junqueira, 2000, p. 111).
O passado está vivo, contido no presente e o envolvendo também. Os
antepassados, através de suas formas estéticas consagradas, escoram as ruínas
emocionais do poeta, e povoam o mundo da perpétua solidão e negritude.
Talvez possamos dizer que no processo de criação do poema, tochas se
acendem convocando à luz da linguagem os ancestrais do poeta com os quais
ele se identifica. Os mortos emergem das profundezas tumulares do
inconsciente do artista e iluminam a vida e dão forma e consistência ao poema.
As palavras se movem, a música se move (...). As palavras após a fala
alcançam o silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma.
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura.
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiveram lá
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora.
A quase totalidade da poesia de Eliot caracteriza-se pela experiência da
fragmentação, da multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do
desenvolvimento assimétrico das partes isoladas (Junqueira, op.cit., p.111).
Essas partes podem se reunir numa espécie de todo, contidas e enfeixadas no
organismo poemático maior. Eliot escreve que essa é uma das maneiras pelas
quais a sua mente parece operar, do ponto de vista poético, ou seja, realizando
fragmentos poéticos em separado, e depois estudando a possibilidade de fundi-
los num conjunto, fazendo uma espécie de todo...clxxii
*
Todo texto filosófico é, por primeiro, prosa poética. Demócrito Heráclito, Platão,
Hegel, Rousseau, Thoreau, Marx, Sartre, Nietzsche, Freud, Jung, Reich, Marcuse,
enfim, o que primeiro assombra em seus textos é a poética presente em suas
entrelinhas... Portanto, e por primeiro, a filosofia é um fato poético; por segundo, a
poesia é também o modo de conhecimento do mundo... A poesia é o sopro divino no
barro de todas as epistemologias...
O fragmentarismo esconde, por detrás das suas aparentes “facilidades”, o fato de ser
pensamento, com as dificuldades inerentes ao pensar; e sentimento, com as
dificuldades inerentes ao sentir... Razão e Emoção aliadas no exercício poético de
galgar a infinitude...
99
O século vinte encontrou diante de si, herdado do século que o precedeu,
um problema fundamental – o da conciliação da Ordem, que é intelectual e
impessoal, com as aquisições emotivas e imaginativas dos tempos recentes.
É impossível resolver este problema, como querem os integralistas
franceses, pela supressão de um dos seus termos. É igualmente impossível
resolve-lo aceitando a predominância da emoção sobre a razão, porque, aceite
esta predominância, desaparece a ordem, e o problema está por resolver.
Evidentemente que há só uma solução: o levar a personalidade do artista ao
abstrato, para que contenha em si mesma a disciplina e a ordem. Assim a
ordem será subjetiva e não objetiva.
Tornar a imaginação abstrata, tornar a emoção abstrata, é o
caminho.clxxiii
clxxiv
No texto unívoco, o leitor escapa (e assim o autor) de ter que percorrer toda a linha de
raciocínio a chegar à conclusão, ao fim do texto... Tal qual nas novelas de horário
nobre, a perda de uma parte, por preguiça ou incompreensão, não acarreta a perda do
texto, ou da proposta, ou da conclusão, do fim, pois logo que se o retoma, o que
importa mesmo é o final feliz...
100
clxxv
101
clxxvi
Há uma nova pergunta no ar, nesses inícios do século XXI: somos tantas personas que,
afinal, quais mesmo somos nós? Desde já algo parece indubitável: somos estados
fragmentários de consciências...
*
Desmaterializado pelo movimento facetado, o espaço cubista não é em
verdade tanto um espaço espiritualizado como um espaço intelectualizado, na
tônica racional de áreas sistemática e logicamente superpostas. Naturalmente,
isso não lhe tira o caráter emocional. Embora na fase analítica as obras
cubistas já tenham perdido os traços mais violentos da influência africana,
permanecem no ritmo geral os abruptos contrastes e a fragmentação.
Conseqüentemente, o teor expressivo dessas obras é inquieto e conflitante...
Na obra de Jackson Pollock (1912-1956), pintor americano da chamada
‘arte informal’ (action painting), as características de inquietação e de conflito
são aprofundadas e acompanhadas ainda de uma maior desmaterialização.
Em lugar de qualificações intelectuais ressalta o caráter emocional da obra;
ela é intensamente carregada de emoção. Não há nela qualquer referência
nem a figuras humanas nem a objetos nem a paisagens. Tampouco se
identificam sequer superfícies ou volumes. Falta, portanto, qualquer dado
físico que possua extensão, peso ou densidade. Os elementos que constituem as
configurações de espaço de Pollock são unicamente linhas. Segmentos lineares.
Segmentos retorcidos. Às vezes esses segmentos se acompanham, às vezes se
superpõem, se retomam, se entrelaçam, inflam, afinam, e subitamente cessam.
Tudo isso acontece de modo veloz, descontínuo, explosivo, sem uma pausa e
sem crescimento rítmico. A agitação visual parece quase romper os limites do
quadro. Temos uma imagem que se assemelharia à trajetória de fragmentos
102
movidos e acelerados no espaço, quais incontáveis estrelas cadentes que
cruzassem um espaço a um só tempo...clxxvii
Erram quando afirmam que o pós-modernismo, com a máxima de que a cultura está
aos pedaços, é só uma bobagem... O pós-modernismo está vinculado ao ajuste
globalizante do mundo, com a horizontalização dos povos, com a correção política,
com a democratização terra-a-terra das diversas expressões regionais... O
desconstrutivismo pós-modernista tem, como toda exaltação de vanguarda artística,
afinal se adequado às propostas mais gerais da sociedade, balizada pelo mercado e, por
isso, fugindo às propostas teóricas originais, configurando apenas momento-
fragmento(s) fenomenológico(s) da(s) pós-modernidade(s)...
Mas que ninguém se iluda: trabalhamos todos para alimentar a Máquina que, aos
enquantos ainda chamamos Humanidade...
Desconstruimos, fragmentamos, singularizamos, particularizamos, individualizamos,
mas...
De tempos em tempos A Máquina se clicka a janela de desfragmentação...
Quem sabe para nós, brasileiros, uma boa marretada poética na cultura luso-colonial-
brasileira, e/ou demais luso-colonial-estrangeiras, ou talvez melhor dizendo, nos
arremedos de cultura brasileira e estrangeiras – todas estas muito bem postas, obrigado
– fazendo-as aos pedaços, aos pedaços pós-modernos, até que nos seria muito útil...
Por outro lado, esse negócio de que está tudo aos pedaços na arte e na cultura do
primeiro mundo nos põe todos de volta ao mesmo barco... Enfim, para nós,
brasileiros, qualquer perspectiva pós-moderna será, no âmbito da arte&cultura, sempre
atraente...
103
clxxviii
Coleciono fragmentos por saber que a minha mente é fragmentária, que só apreendo
uma realidade fragmentada... O pós-modernismo é um fragmentarismo... É a modesta
aceitação da nossa vocação artística e cultural, a plena aceitação da impossibilidade de
se construir um modelo único, integral, que apreenda, enfim, toda a gama de
experiências e percepções, fazendo justiça a todas... Por isso mesmo ando a colecionar
meus fragmentos, sem nenhuma organicidade, depositando-os, um a um, só conforme
vão sendo colhidos à medida que reflito sobre os objetos... Portanto, o primeiro não é
o primeiro, o segundo não é o segundo, nem o terceiro será o terceiro... Confesso que
nada sei dos inícios, que nada sei dos meios, que nada sei dos finais... Isso é da
essência do fragmentarismo, cuja origem remonta à visão de Demócrito quanto aos
átomos...clxxix
104
O Tempo segue o Espaço. Tempo é fragmento. O Ontem, o Hoje, o Amanhã, não são
absolutos nem relativos... São fragmentos que se medem à medida de cada ser
humano... Na diversidade do nosso ser fragmentário, cada qual dos nossos fragmentos
vive o tempo segundo sua própria contagem... Portanto, para alguns dos nossos
fragmentos ainda é ontem; para outros, só o hoje tem existência real; e há aqueles que
já vivem o amanhã... Exercer, cada ser humano, o seu próprio tempo particular
fragmentário é libertar-se das coleiras dos proprietários do Tempo Absoluto, é viver
sem violentar seu tempo particular, sem agredir seu corpo-espaço fragmentário...
*
– Mas nenhuma arte soube exprimir tudo o que temos de sexy quanto
nossa música. A música popular do Brasil é a voz instintiva do nosso desejo.
Nossos autores mais representativos – Roberto Silva, Assis Valente, Jorge
Benjor, Tim Maia – se distribuem por nossa história como vetores espalhados
pela coreografia de um corpo no cio. Nossos grandes estilistas – Cyro
Monteiro, Lulu Santos, Carmem Miranda, Nação Zumbi, Orlando Silva,
Racionais MC’s – são vozes da nossa carne. E nossos maiores inventores –
Villa-Lobos, Antonio Carlos Jobim, Dorival Caymmi, Ary Barroso e João
Gilberto – parecem ter inventado não só nossa música e nosso ritmo, mas
nossa sensibilidade e nosso corpo. A alma é um luxo posterior.
Pode ser que essa prioridade simbólica da música entre nós seja mesmo
resultado histórico da interação ritual entre a religião, o trabalho e a festa – ou
simplesmente a forma mais feliz de uma arte que soube como nenhuma outra
acompanhar os movimentos de nossos músculos ao caminhar. Nossa música
aderiu a nosso corpo como um bronzeador.
105
Sempre preocupado com as relações entre a cultura e o corpo, Nietzsche
escreveu, sem saber, boa parte de sua obra eleogiando o Brasil enquanto
pensava estar comentando Bizet: o Brasil foi o único país do mundo a
incorporar e irradiar com uma vitalidade sempre renovada todas as lições do
que Euclides da Cunha descreveu como “a linha fulgurante do trópico” – e
essa lição nos veio embalada pela música. Toda nossa antropologia, por isso,
deveria começar com um atabaque e terminar com um banquinho e um
violão.clxxx
clxxxi
*
Copacabana. Milhares de corpos em toda parte. Na realidade, um único
corpo, imensa massa de carne ramificada, todos os sexos confundidos. Um
único pólipo humano expandido, impudico, um único organismo onde todos
têm a mesma cumplicidade dos espermatozóides no fluxo seminal...
106
De algum modo, a indiferenciação da cidade e da praia leva a cena
primitiva diretamente à praça pública. O ato sexual é permanente, mas não no
sentido do erotismo nórdico: ele está na promiscuidade epidérmica, na
confusão dos corpos, dos lábios, das bundas, das ancas – um único ser fractal
disseminado sob a membrana do sol...
Esse hiper-organismo humano faz pensar no outro imenso indivíduo
orgânico, o maior do mundo, no Canadá, feito de 45.000 álamos, na confusão
de suas raízes, todos participando do mesmo caminho telúrico – a floresta
constituindo um único ser vegetal. Os corpos brasileiros constituem do mesmo
modo uma espécie de ser único, vivos da mesma vida, penetrados pelos mesmos
fluidos, vibrando pelas mesmas paixões. Que estatuto social ou político pode
haver para um ser dessa ordem? clxxxiii
Em compensação...
O Brasil: será o melhor protótipo da cultura Lego que se anuncia como
universal... Amontoado de fragmentos de civilizações que poderão ser reunidos
ao bel-prazer de cada um...
Situado dessa forma na vanguarda das tendências mundiais da cultura,
vai-se tornar um dos faróis da criação artística planetária... Será de bom-tom
visitá-lo em busca de inspiração...
107
Vai-se falar do “Brasil-mundo” como uma corrente estética, um sistema
de valores, um modelo social feito de barbárie assumida, prazer e regozijo
ilimitados, mestiçagem sofisticada e violência crua...clxxxv
O Brasil tem tudo para vir a ser a futura Matriz do Mundo Pós-
Moderno... clxxxvii
108
cxc
cxci
Pluralismo... Multiplicidade... Raças, cores, credos, sexos, etc...são, por princípio, tão
bons quanto legítimos... O pós-modernismo abre as compotas das represas ideológicas
para que as águas puras das nossas possibilidades fragmentárias corram soltas... E
livremente se encontrem... Se desencontrem... Se reencontrem...
109
Toda utopia pressupõe o puzzle pré-concebido, em que os humanos se espremem nas
limitadas paredes das masmorras ideológicas... Juntarmos e desjuntarmos e
rejuntarmos os nossos fragmentos em legos... Eis o que é avançar a inteligência
humana para além das estrelas...
110
O pós-modernismo coloca, pela primeira vez nas histórias das humanidades, para além
dos pré-socráticos, para mais além das concepções anarquistas, e para além das
concepções de vanguarda, as possibilidades sociais de realização dos imaginários
individuais sem que disso resulte nem a segregação, nem a dominação, nem o
conflito... É um antimodelo que incorpora modelos fragmentados... Por isso, por
essa libertação dos imaginários, o pós-modernismo vai ampliando as capacidades
humanas, tanto as advindas da natureza quanto as já desenvolvidas pela cultura... As
possibilidades científicas e artísticas decorrentes são ainda inimagináveis...
cxcii
111
nossa Semana de 22 – até o existencialismo de pós-guerra (Sartre e Camus), acirrando-
se na geração beat americana, e no movimento hippie, para afinal eclodir pelos idos da
década de 1980, em todas as artes... Indisciplinado, fragmentado, múltiplo, veloz e
incendiado como um ninho de vespas em erupção...
112
Falando sobre o fragmentarismo, enquanto método de criação literária, Affonso
Romano de Sant’Anna narra que Machado de Assis mereceu severa crítica de
Guimarães Rosa, segundo o qual o autor de Dom Casmurro utilizava o método como
“facilidade”, pensamento ainda hoje muito comum entre autores que se aferram à
univocidade de discurso em que, afinal, foram formados –
Adquiri certeza quase absoluta, de que ele, antes mesmo de
compor seus livros, ia anotando: pensamentos, frases, etc. em livro ou
em cadernos especiais, espécie de surrão ou alforje, de onde sacava,
aos punhados, ou pinçava, um a um, os elementos de reserva que
houvessem resistido ao tempo conservando-se bem.
Ao que Affonso Romano de Sant’Anna, como bom poeta, aduziu, entre parênteses:
Processo aliás muito louvável. Tanto quanto o hábito de compulsar dicionários (outra
técnica fragmentarista, adotada por Mallarmé, aduzo eu) visível em Machado de
Assis... Diz Affonso em sua defesa da técnica fragmentarista machadiana:
Quanto à observação de que Machado tinha um “surrão ou alforje”, onde ia
jogando frases e anotações que usava posteriormente, é relevante mostrar que este foi
também o método usado por Rosa, conforme as fichas que deixou, onde anotações já
feitas sobre flora e fauna eram posteriormente encaixadas na narrativa em
construção. Este é um recurso comum nos escritores. Vão jogando em pastas
anotações aleatórias ou sistemáticas que, de repente, recobram vida...
Ignácio de Loyola, por exemplo, confessou que este foi o processo que usou
para a narrativa fragmentada de seu conhecido “Zero”... cxciv
113
Já o mérito maior de Inácio Loyola Brandão – por isso mesmo, e até onde se sabe, o
autor brasileiro, dentre nossos escritores mais consagrados pelo público e pela crítica,
que inaugura a pós-modernidade brasileira no romance – adotou o fragmentarismo
como método e como estética, mantendo a estrutura fragmentária do material
coletado, independentemente de ter lançado mão ou não daquela técnica tradicional
entre os autores de todos os tempos... Por isso Zero, seu belo romance, também um
livro que consagrado por crítica e público como uma das jóias da literatura brasileira,
especialmente pela sua estrutura épica, há obrigatoriamente de ser reconhecido como o
primeiro (estranhamente ainda o único a vir à luz, pela imprensa especializada em
canonizações) grande romance da pós-modernidade literária no Brasil...
Registre-se – entretanto – que Zero é, afora o mérito de ser o primeiro livro brasileiro
inteiramente, radicalmente concebido numa estética pós-modernista, em que o
fragmentarismo se impôs desde a sua concepção, um livro que ainda ensaia os
primeiros passos à criação de uma reconhecida literatura brasileira pós-moderna...
Afinal, percebe-se claramente em Zero uma forte retórica unívoca, guiada por um
autor experimentado em unificar (como em seus melhores escritos) todo o material
disponível em uma só direção, tanto ética quanto em estética...
Deliciosa, note-se, a expressão de Affonso em seu texto: Inácio Loyola confessou...
O pós-modernismo e seus métodos, infelizmente, têm sido vistos como um balbuciar
literário, nas raias da facilidade literária, em que os territórios demarcados da
Literatura restam miscigenados, de traços fronteiriços despistados... Pouco a pouco a
crítica especializada começa a investigar sua fenomenologia, e a adivinhar-lhe as
possibilidades...
Os americanos, dizem, vão a Disneylândia para sentir que fora dali sua
vida é real. O pós-modernismo está ancorado aqui: na insustentável leveza de
não crer nem na realidade nem na ficção. Nesse desvão descrente passeiam os
simulacros ofertados pelos mass media, os modelos computacionais, a
tecnociência – nova ordem na qual a simulação do romance pela sua
destruição ainda é subversiva porque invoca clownescamente, se não verdades,
ao menos possibilidades atravessadas pelo absurdo, o que é sempre
inquietante. Não é outro o motivo da generosa acolhida que essa literatura teve
entre os jovens...cxcv
114
Mas de um modo geral, o pós-modernismo ainda é considerado mero
experimentalismo (se realizado por escritores canonizados), quando não como um
convite ao absurdo, como dizem seus críticos mais conservadores (quando exercido
por autores que não freqüentam a boa e velha ordem literária, naturalmente), ávidos
por defender a boa e velha literatura, aos mesmos tons de superficialidade e
arrogância reacionárias, à esquerda e à direita, infelizmente tão comuns numa cultura
ainda por se libertar de um modo ainda binário, maniqueísta, colonizado, estratificado,
de ver o mundo, com as lentes unívocas das esferas de poder das ideologias “literárias”
dominantes...
115
passando pelo Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, até as
Poesias reunidas O. Andrade (título que parodia certa sigla de Indústrias
Reunidas...), o layout tipográfico das coletâneas oswaldianas sempre tivesse
tido grande importância. Para isso contribuíram os desenhos de Tarsila e do
próprio autor e os “achados” que são as capas: a do Pau-brasil uma bandeira
brasileira com a divisa mudada para Pau-Brasil; a do Primeiro caderno, uma
capa de caderno de curso primário, com florões inscritos dos nomes dos
Estados brasileiros e outras garatujas infantis. As ilustrações de Oswald para
este segundo livro ligam-se intimamente a seu contexto, e é uma pena que,
numa edição de tiragem comercial como a presente, não se possa reproduzir
integralmente o plano original dessa obra.
O livro de poemas de Oswald participa da natureza do livro de imagens,
do álbum de figuras, dos quadrinhos dos comics. Sua atualidade neste
particular é espantosa. Ainda há pouco, o crítico inglês John Willett, do corpo
redatorial de The Tmes Literary Supplement, fazendo um balanço das relações
entre artes visuais(pintura gráfica) e literatura, salientava:
...parece que estamos no limiar de uma revolução no que respeita à maneira
pela qual exprimimos nossos pensamentos; estamos nos libertando das
“limitações da prosa linear” e começando a aprender “como manipular a
informação e a própria linguagem através de técnicas absolutamente novas”;
estamos fadados a “desenvolver um modo menos restrito de escrever livros e
transmitir informações e nele o uso de símbolos e o layout bidimensional na
página deverão desempenhar um papel importante”; “a nova acuidade pública
para a imagética visual, que a televisão estimulou, significa que uma
combinação de palavras e ilustrações é hoje congenial para o leitor”; “que
aspecto irá ter o livro parcialmente diagramático do futuro, com sua linguagem
condensada e sua exata colocação de palavras e proposições na página?”
Para chegar a estas considerações, Willett passara em revista as tendências da
atual literatura de vanguarda, incluindo, ademais, um retrospecto das fontes
históricas do fenômeno, tais como, de um lado, os exemplos de poetas-pintores
(Maiakovski) e pintores-poetas (Klee), e, de outro, a tradição vitoriana de
livros ilustrados (as estórias de Alice de Lewis Carroll), onde “o livro tornou-
se impensável sem suas figuras”, isto sem esquecer as remotas origens da
escrita pictográfica....
Ao invés de embalar o leitor na cadeia de soluções previstas e de
inebria-lo nos estereótipos de uma sensibilidade de reações já codificadas, esta
poesia, em tomadas e cortes rápidos, quebra a morosa expectativa desse leitor,
força-o a participar do processo criativo...
A técnica de montagem -, este recurso que Oswald hauriu nos seus
contatos com as artes plásticas e o cinema...
De apelo ao nível de compreensão crítica do leitor, que está implícito no
procedimento básico da sintaxe oswaldiana...
É o efeito que se encontra também nos poemas lacônicos da fase madura
de Bertolt Brecht, a fase que começa em 1939 com os poemas escritos no exílio
(em basic German, segundo o próprio Brecht):
116
Hollywood
*
É sempre necessário compreender que o pós-modernismo não se esgota na exploração
do imaginário, no manuseio do absurdo e do delírio, pois que apenas o torna possível
na medida em que liberta o artista do discurso estético unívoco e linear, e sempre
positivista (no que este tem de restrição às demais possibilidades discursivas), para
inseri-lo de volta ao mundo das percepções fragmentárias...
A livre articulação das várias vozes da cultura tem por escopo principal respeitar a
polifonia a partir do seu articulador textual, em que cada qual das vozes dialógicas se
apresenta em igual nível de importância – dado que são muitos os modos de ver os
temas, os que são objeto de apresentação teórica fragmentária – apenas destacados em
função das articulações estético-textuais e da relevância que possam ter, aqui e ali,
para as proposições teóricas do texto...
117
Capa: Federico Spitale, 1968
A polifonia, para ser bem absorvida, deve escapar às marcas hierárquicas e canônicas
que levem o leitor a antecipar o eventual valor do texto em função do autor citado –
em prejuízo de uma livre leitura e, portanto, valoração particular, personalíssima –
fazendo cair por terra a aceitação de uma estética polifônica (daí a remessa das notas
de citação para o final do trabalho)...
*
Para a retórica unívoca, o imaginário do “outro”, o imaginário da pluralidade, é sempre
e apenas delírio... Absurdidades... De nenhum valor de troca, seja científica, seja, por
conseguinte desse pensamento hierarquizante, estética...
118
O pós-modernismo não é uma idéia de vanguarda, não é um modo pré-estabelecido
como ideal estético, ao contrário, o pós-modernismo é a naturalidade de todas as
vanguardas, é a eliminação mesma da própria idéia de vanguarda e também de
experimentação artística: o pós-modernismo é apenas um fato – e fato sempre, desde
sempre, pulsante no interior da cultura – cujas origens remonta à uma visão
fragmentária do mundo e ao estar no mundo munido desses fragmentos...
...Aceitando-se ser fragmentário, o humano aceita-se, enfim, viver
fragmentariamente...
Ou seja, o reconhecimento de que há muitos modos de viver, ver e ler o mundo... Seja
em si, seja no outro...
Muitos modos de ver, de crer, de saber, de imaginar... Eis o que são as novas
tentativas pós-modernas de libertação do humano dos modelos utópicos imaginados os
quais, por definição, não se transferem aos demais imaginários, e só se exercitam
como irrealidade...cxcix
119
A essência de um doce prazer nunca pode ser aviltada... cci
Na Grécia Clássica, o prazer, o desejo, eram atributos naturais do indivíduo, para cujo
gozo deviam se adestrar, educarem-se, como parte da paidéia (a educação do homem
grego), como parte indissociável da arete (excelência física e moral)ccii e em nome dos
princípios universais que amparam o direito do indivíduo de gozar a vida,
independentemente das razões da polis, como em Arquíloco: Se nos afligirmos com a
maledicência do povo, não desfrutamos o prazer da vida...cciii Ou em Mimnermo:
Sem a loira Afrodite não há vida nem przer! Preferia estar morto – se tivesse de não
gozar dela mais...cciv
A palavra triebccvi, do alemão: vontade, com a qual Nietzsche construiu a sua tese do
humano como vontade de poder funcionava, especialmente em meio à juventude,
como similar para tesão... Em verdade, a expressão vontade de poder foi criada com
essa conotação de tesão pelo poder... É muito provável que Nietzsche a escolheu ainda
com essa conotação erótica...
120
Freud, do círculo pessoal de Nietzsche, desenvolveu toda a sua teoria da sexualidade,
sua concepção de libido e da sexualidade como fator determinante do comportamento
humano, a partir de uma feliz compreensão da trieb nietzscheana...
O que se faz por amor sempre acontece além do bem e do mal... ccix
A satisfação nos protege até mesmo de resfriados. Uma mulher que se sabe bem
vestida se resfria alguma vez?... ccx
O entendimento humano muito deve às paixões... É pela sua atividade que nossa
razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos usufruir... E é
impossível conceber porque aquele que não tem desejos ou temores dar-se-ia ao
trabalho de raciocinar... ccxi
Segundo o evangelista João, lembra Paulo Coelhoccxii, o primeiro dos milagres de Jesus
foi a transformação da água em vinho para a alegria – e a dança de Eros – dos
convivas de uma festa de casamento... Portanto, eu também não creio, com/sem
Nietzsche, em um Deus que não dança...ccxiii
121
O pós-modernismo é um fato, um fenômeno de uma civilização em forte expansão
pluridimensional: adotá-lo, ou criticá-lo, como modelo teórico unívoco é alhear-se do
seu estudo, que só pode seguir-lhe as múltiplas direções...
Eis dois outros elementos fundamentais aos estudos da literatura, da arte pós-moderna:
prisma e paradoxo... Que se juntam ao fragmentarismo e à libertação do desejo... Ao
imaginário e à conscientização do inconsciente...
ccxvii
122
O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma
imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações
especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma
coisa vaga, desconhecida ou oculta p