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Cursos Científico-Humanísticos

12º ano
Ano Letivo 2017/2018

FERNANDO PESSOA E HETERÓNIMOS

As individualidades na poesia

Alberto Caeiro
Há dois Caeiros, o poeta e o pensador. Os motivos fundamentais do poeta consistem na
variedade inumerável da Natureza, nos estados de semiconsciência, de panteísmo sensual, na
aceitação calma e gostosa do mundo como ele é.(…) Caeiro (…) vive de impressões, sobretudo
visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo original. (…) A flor amarela que vemos de
manhã, à tarde já é diversa; o seu próprio amarelo é diverso. “Nada torna, nada se repete, porque
tudo é real”. (…) Caeiro não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de
futuro, pois recordar é atraiçoar a Natureza (“A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela”) e o
futuro é o campo das conjeturas, das miragens. Ora, Caeiro é um poeta do real objetivo.
Logo no começo do “Poema dum Guardador de Rebanhos” se declara pastor por
metáfora (e aqui desponta o “poeta bucólico de espécie complicada” que Pessoa, segundo a carta
a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sá-Carneiro). De pastor tem o
deambulismo, o andar constantemente e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexaurível
variedade das coisas: “Minha alma é como um pastor,/ Conhece o vento e o sol / E anda pela mão
das Estações / A seguir e a olhar”. Anda a seguir, passivamente, com o espírito concentrado numa
atividade suprema: olhar. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz como os rios
e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo.(…) Às vezes o seu misticismo
naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar transformar-se num rebanho “Para andar
espalhado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo”. Ou então deita-se na
erva (…), e o seu corpo “pertence inteiramente ao exterior”, sente a frescura cheirosa da terra, só
ouve ruídos indistintos, ficou-lhe apenas “um resto de vida”.
Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução
primária, informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra. (…)
O certo, porém, é que é autor de poemas; e começa aqui o paradoxo da sua poesia. Às
palavras procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão. Daí, algumas vezes, a
simplicidade quase infantil do estilo, as séries paratáticas, a familiaridade de algumas expressões,
as imagens e comparações comezinhas, realistas, caseiras ou de ar livre. (…) Em Caeiro, o
pensador, o “raciocinador” suplanta o poeta. Por isso, apesar de Caeiro, ao falar de si próprio, e
Campos, ao evocar o mestre, quererem convencer-nos de que o pensamento de Caeiro é o
pensamento ingénuo de um poeta, o fruto verde de uma experiência instintiva, a poesia deste nos
deixa uma impressão totalmente contrária (…) Indubitavelmente, Caeiro é sobretudo inteligência.
Filosofa contra a filosofia. “Com filosofia não há árvores: há ideias apenas”. Aqui o feitiço volta-
se contra o feiticeiro: lendo Caeiro não vemos árvores, ouvimos expor uma doutrina, estamos no
domínio do axioma, do silogismo, e a coisa que serve de exemplo é indefinida: “Um dia de chuva
é tão belo como um dia de sol”; “Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente”. (…)
Caeiro declara: “Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; /
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. / Compreender isto com o pensamento
seria achá-las todas iguais”. Mas este olhar não é já intelectual, embora teoricamente liberto de
preconceitos comuns?
(…) Em suma: Caeiro vacila, não tem aquela inteireza de vidente e apóstolo, porta-voz de
uma doutrina de felicidade, que as “Notas” de Campos levam a crer. (…) Caeiro (…) é um
homem inseguro de si, em luta consigo mesmo. A sua lucidez (a inexorável lucidez de Pessoa)
não lhe permite uma felicidade completa. Ora quer parecer que não pensa, ora se censura por
querer perceber. (…) O verdadeiro Caeiro define-se por íntimas tensões, (…) é um civilizado que
procura libertar-se da carga, tornada insuportável, dos produtos de uma razão milenária;
representa-nos; tenta, como nós, fazer a lavagem ao cérebro tornada necessária: “O essencial é

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saber ver, / Saber ver sem estar a pensar […] Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma
vestida!) / Isso exige um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender…”. Pastor dos
seus pensamentos (ou de sensações pensadas, inventadas), Caeiro chega a opor-se, nostálgico, ao
pastor de ovelhas reais: “Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas, / Que felicidade
é essa que pareces ter _ a tua ou a minha?”.

Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho

“Caeiro é o mais impessoal. Segundo Pessoa, a obra de Caeiro é a que é porta-voz de


mais sinceridade, com o que Campos concorda, à sua maneira.
Tanto Caeiro como Campos usam o versilibrismo, uma linguagem com marcas
acentuadas da oralidade, com interrogações retóricas, cambiando o pensamento abstrato com a
realidade, a expressão concreta e abstrata, mais natural e simples em Caeiro, até mesmo,
aparentemente pobre. A Caeiro agrada o polissíndeto e busca elementos que facilitem o seu
sentido visualista, com uma linguagem muito pouco arquitetada. Ao Campos intelectual opõe-se
Caeiro, que rejeita o intelectualismo: “Mas quem me mandou a mim querer perceber?” (XXII).
Segundo ele, é preciso rejeitar o primado do pensamento, pois só assim se pode gozar a
felicidade. O binómio sentir/pensar não se deteta visivelmente em Caeiro. É que, para ele,
“Pensar é estar doente”. A ele basta-lhe sentir. Caeiro, o Descobridor da Natureza, goza-a com
prazer: “Quando num dia de calor/ Me sinto triste de gozá-lo tanto,/ E me deito ao comprido na
erva,/ E fecho os olhos quentes,/ Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,/ Sei a verdade e
sou feliz.”. O discípulo Campos, pelo contrário, nada sente em contacto com a Natureza: “Fui até
ao campo com grandes propósitos. / Mas lá encontrei só ervas e árvores, / E quando havia gente
era igual à outra.”
Tanto para Campos como para Caeiro, a sensação é tudo. Mas, enquanto o Mestre só vê a
“sensação das coisas tais como são”, Campos procura “a sensação das coisas conforme sentidas”
_ a sensibilidade é usada pela inteligência.
O bucólico Caeiro surge como consequência da leitura de Cesário Verde “até lhe arderem
os olhos”, com a sua objetividade, e Whitman, com o seu amor à Natureza: “Gozo os campos sem
reparar para eles/…/ Quando reparo, não gozo: vejo…”, rejeitando, assim, qualquer forma de
misticismo – “O meu misticismo é não querer saber. / É viver e não pensar nisso.”. Ele não sabe
“o que é a Natureza”: canta-a, porque, para saber o que é, tem de pensar e ele não adere a
qualquer forma de metafísica: “Há metafísica bastante em não pensar em nada/…/ O mistério das
coisas? Sei lá o que é o mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. /…/
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?”. Daí, considerar que é doentia a atitude de
quem pensa: “Mas porque me interrogo, senão porque estou doente? (Poemas Inconjuntos);
“Pensar é estar doente dos olhos”. Se o pensamento está em ação é para conotar sensação:” E os
meus pensamentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e
os pés / E com o nariz e a boca.” Os órgãos dos sentidos são os canalizadores de todas as
perceções e aos olhos reflui toda a capacidade de captação: “…a nossa única riqueza é ver”; “vi
como um danado”.
Caeiro, o poeta materialista, na sua visão naturista do mundo, sempre a rejeitar a
metafísica, assume uma atitude panteísta: “Não acredito em Deus porque nunca o vi.”. O seu
panteísmo afirma-se na crença de um Deus que é “as flores, e as árvores, e os montes e o Sol e o
luar”. Contudo, por vezes, há fugas em Caeiro: “…penso no que os homens pensam delas
[coisas]”, sobretudo nos Poemas Inconjuntos. De facto, aqui já não é o poeta optimista do
Guardador de Rebanhos, declarando, por isso, que fez aqueles poemas “estando doente”, ou seja,
aqui, a atitude de pensador sobrepõe-se à do poeta.

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Ricardo Reis
A ressonância moral da poesia de Reis, “pagão por caráter”, e na definição de Campos,
traduz-se num estilo denso e construído. (…) Como Caeiro, seu mestre, aconselha a aceitar
calmamente a ordem das coisas. Não queiramos “ mais vida/ Que a das árvores verdes”. Ambos
elogiam a vida campestre, indiferentes ao social, convencidos de que a sabedoria está em gozar a
vida pensando o menos possível. Mas Caeiro, pelo menos o Caeiro ideal, é o homem ingénuo,
aberto, expansivo, contente por natureza; o prazer vem ao seu encontro, prazer de ver e de sentir-
se existir; (…); o próprio estilo dos seus versos, descritivo ou discursivo, é quase prosa (…). Reis
não: é um homem de ressentimento e cálculo, um homem que se faz como faz laboriosamente o
estilo. (…) Reis experimenta a dor da nossa miséria estrutural, sofre com as ameaças inelutáveis e
permanentes do Fatum, da Velhice e da Morte. Vai à conquista do prazer relativo, sempre toldado
pela tristeza de saber que o é. O seu fito é iludir a dor construindo virilmente o próprio destino no
restrito âmbito de liberdade que lhe é dado. (…) Sentindo-se estrangeiro no mundo,
incomunicável, recolhe-se com orgulho ao castelo interior. “Façamos de nós mesmos o retiro /
Onde esconder-nos…”. Em teoria, Caeiro é inteligência primitiva genial, bebe na fonte pura da
sabedoria instintiva. Reis, um civilizado, “um pagão da decadência”, posterior ao cristianismo.
Austero e contido, com uma experiência de milénios atrás de si, cultiva a elegância de maneiras, a
beleza do artifício, a arquitetura estrita da ode.
Na poesia revela uma formação literária clássica. (…) Em Reis, a conceção dos deuses é
vária e incerta. Vivem perto de nós, “tranquilos e imediatos”, nos rios, nos campos, nos bosques”.
A sua presença confundir-se-á com a presença visível das coisas, de acordo com a lição de
Caeiro: “a Natureza é só uma superfície”? Ou moram no indefinido, plasmados em “matéria
longínqua e inactiva”? (…) Não confiemos de mais: “Não sejamos/ Inteiros numa fé talvez sem
causa”. Os deuses não revelam a verdade, nem talvez eles próprios a conheçam. Acima de nós e
dos deuses, Reis pressente uma força maior, uma entidade implacável a que todos obedecemos: o
Fado. (…) O Fado dita os passos da nossa breve carreira, ao fim da qual se encontra a Morte.
Mais pungente ainda que a ideia da Morte é a sensação de que a vida consiste numa série
de mortes sucessivas, de que o tempo é irreversível, não podemos parar um segundo sequer, tudo
passa connosco impelido pelo mesmo caudal: “Tanto quanto vivemos, vive a hora/ Em que
vivemos, igualmente morta/ Quando passa connosco/ Que passamos com ela.”. Assim angustiado
perante um Destino mudo que o arrasta na voragem, Reis procura na sabedoria dos antigos um
remédio para os seus males (…) e não hesita em confessar a Lídia que, de qualquer modo, prefere
o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece. Mas como habilmente fruir do
pouco que nos é dado _ o dia que passa?
O poeta deixa-se tentar pelo ópio da perfeita inconsciência. Considera o contentamento
dos que vivem distraídos, mas “o orgulho de ver sempre claro” fá-lo encarar o destino, lúcido e
solene: “Antes, sabendo, / Ser nada, que ignorando:/ Nada dentro de nada”. (…) Reis formula
uma filosofia de vida cuja orientação é, na verdade, epicurista. (…) Reis propõe-se e propõe-nos
um duro esforço de autodisciplina. O primeiro objetivo é a submissão voluntária a um destino
involuntário (…). O segundo objetivo é evitar as ciladas da Fortuna, depurando a alma de
instintos e paixões que nos prendam ao transitório, alienando a nossa vida. Com Epicuro
aprendeu Reis que a ataraxia é a primeira condição de felicidade. A ataraxia não implica ausência
de prazer mas indiferença perante todo o prazer que nos compromete, colocando-nos na
dependência dos outros ou das coisas.
Assim a felicidade consiste em gozar ao de leve os “instantes volúveis”, buscando “ o
mínimo de dor ou gozo”, colhendo as flores para logo as largar das mãos, (…) Tudo o mais é
inútil. “Não vale a pena/ Fazer um gesto”.
A poesia de Reis acusa a influência imediata de Horácio, o poeta que temperou com a
ética estóica a doutrina de Epicuro. (…) Moralistas ambos, tanto Reis como Horácio fundam a
sua filosofia prática na reflexão sobre o fluir do tempo, a inanidade dos bens terrenos, os enganos

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da Fortuna e da Morte. A imitação parece em desacordo com o frouxo erotismo de Reis quando
este dirige apelos a mulheres fictícias, cujos nomes foram colhidos no próprio Horácio (Lídia,
Neera, Cloe…), para corresponderem ao seu desejo amoroso, aquecidas pela ideia de que a
juventude passa e a morte ronda. Igualmente horaciana a conceção da grandeza do poeta,
inteiramente consagrado à obra. Mas estas aproximações a Horácio, não invalidam a
originalidade de Reis, quando o integramos na obra de Pessoa. Horácio pôs na poesia muita da
sua humana experiência: bebeu o vinho que cantou, teve amores com as mulheres a quem se
dirigiu, o campo é para ele efetivamente o seu domínio, invocou deuses em que ainda se
acreditava. Em Reis, poeta derivado, tudo isso é divertimento estético ou figuração simbólica.
“Prefiro rosas, meu amor, à pátria…”. Este verso pinta o egoísmo epicurista de Reis, um
contemplativo extremamente pobre de calor afetivo, sem amizades que transpareçam na poesia,
sem capacidade para o amor autêntico.

Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho

Ricardo Reis aparece também em 1914. Acusa mais sinceridade, rejeita mistificações, é
poeta mais formalista, com mais laboração artística, com poesia mais pura na forma e nas
imagens. A sua linguagem concisa, com um vocabulário erudito e denso de sentido, é, por vezes,
difícil, hermética. O seu vocabulário é culto, alatinado, a lembrar o barroco, a traduzir um
fechamento psicológico escondido: frui, estígio, óbulo, … . A presença do arcaísmo afirma-se,
quer quanto à forma: “Conquanto em nós é nosso a refusemos”(recusemos), quer na recriação de
valores para os vocábulos já existentes, com base na etimologia: “Teu íntimo destino
involuntário” (o superlativo íntimo a significar o interior). À maneira latina, é frequente a
antecipação do adjectivo ao substantivo; o hipérbato, ou escurece o sentido, dificultando-o, ou
está ao serviço da arte do verso.

Álvaro de Campos
Poeta sensacionista e por vezes escandaloso, Campos é o primeiro a retratar-se e a referir
circunstâncias biográficas. (…).
Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva.
Tem três fases: a do “Opiário”, poema com a data fictícia de 3-1914; a do futurismo
whitmaniano, exuberantemente documentado na “Ode Triunfal” e outros; enfim, uma terceira
fase a que chamarei pessoal por estar liberta de influências nítidas.
Campos é o primeiro a reconhecer uma evolução: “Fui em tempos poeta decadente; hoje
creio que estou decadente, e já o não sou”. O “Opiário”, com efeito, é um poema decadente.
Pessoa escreveu-o de propósito para o nº 1 do Orpheu em fevereiro ou março de 1915 e datou-o
de março de 1913 para documentar, mistificando, uma primeira fase de Campos, ainda “em
botão”. Campos tê-lo-ia concebido no decurso de uma viagem ao Oriente. Dedicado “ao Senhor
Mário de Sá-Carneiro”, imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado da
civilização, a embriaguez do ópio e dos sonhos de um Oriente que não há, o horror à vida, o
realismo satírico de certas notações, até ao vocabulário entre precioso e vulgar, às imagens, aos
símbolos, ao estilo confessional brusco, animado e divagativo, ao ritmo de decassílabos
agrupados em quadras. Era o que Pessoa pretendia, ao mesmo tempo que deixava transparecer
aqui ou ali a personalidade latente de Campos: a fome de um mundo de sensações novas. (…)
Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta _ o da segunda fase _ com a
sua vitalidade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura
decadente. Em França e na Itália, Marinetti divulgara, a partir de 1909, os princípios basilares do
futurismo: luta sem quartel às tradições, à cultura feita; exaltação dos instintos guerreiros;
apologia de um novo Homem protótipo isento de sensibilidade, saudável, amoral, dominador,
livre de todas as peias. O grande precursor é Whitman, e Campos, aliciado, como outros jovens

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europeus da sua geração, aderiu à religião whitmaniana do Homem e da Terra. Após a descoberta
do futurismo e de Whitman, Campos adotou, além do verso livre, já usado pelo seu outro mestre
Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas,
anafórico, exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de
apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária,
inexaurível.
Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade
viril que tudo integra em si e não respeita limites [“Sou EU, um universo pensante de carne e
osso, querendo passar,/ E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!”, ora
os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de
ser objecto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, a ponto de se
tornar “um monte confuso de forças”, um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares: “Foram
dados na minha boca os beijos de todos os encontros,/ Acenaram no meu coração os lenços de
todas as despedidas,/ Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares/ Batem-me em cheio
em todo o corpo com sede nos centros sexuais.”. O que distingue Campos de Marinetti é a raiva,
o prazer sádico de imaginar cenas de piratas e naufrágios, violentas, contra natura, a explosão de
histerismo mental, “virado para dentro”, que não dura muito.
Na verdade, só lutando consigo próprio, por um esforço de imaginação, foi Álvaro de
Campos o cantor whitmaniano, delirante, da Energia e do Progresso, porque inércia e tédio são,
com efeito, as constantes da sua personalidade desde a fase do “Opiário”. O Campos
whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade
pânica jamais passaram da esfera da inteligência: “Orgia intelectual de sentir a vida!”. Assim,
depois de 1916, Campos virá a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado.
(…) Decadente, não já no sentido histórico-literário da palavra, mas por se ter despenhado da
exaltação heróica, brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior
sinceridade.
Perante este Campos decaído, melancólico, devaneador, irmão de Pessoa ortónimo no
ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se
que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa
(…).Conta Alfredo Guisado que às vezes Pessoa o encontrava na rua e lhe dizia: “Você hoje vai
falar com o Álvaro de Campos.” E não era só por blague, acrescenta Guisado: “tinha realmente
nesse dia uma maneira de dizer, uma maneira de sentir diversa daquela com que costumávamos
encontrá-lo.”

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Nas Páginas Íntimas, Pessoa declara que Caeiro tem “pelo menos, dois discípulos
(Álvaro de Campos e Ricardo Reis,… mas nenhum se lhe assemelha nem de longe”. O
engenheiro afirma o magistério de Caeiro na poesia: “Mestre, meu mestre querido!/ …/Meu
mestre e meu guia/…/ Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.”, mas confessa
também a sua frustração, perguntando-lhe: “…porque é que me ensinaste a clareza da vista, / se
não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?”. Caeiro fez dele um poeta sensacionista,
fez surgir nele “a pavorosa ciência de ver”, mas teria sido preferível que tivesse ficado sempre
“Poeta decadente, estupidamente pretensioso”. É que o seu mundo de sensações é incontível, e
ele, “ser elástico, mola, agulha, elástico, trepidação”, é “o que sempre quer partir, / E fica sempre,
fica sempre, fica sempre, / Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica…”.
Que diferença entre o sensacionismo calmo de Caeiro e o dinâmico, vulcânico, de
Campos que continua a dizer no seu extravasar: “Sentir tudo de todas as maneiras,/…/
Multipliquei-me, para me sentir,/ Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão
extravasar-me”. Esta ânsia de sensações em Campos leva-o a uma constante evasão no tempo e

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no espaço. A necessidade de se evadir no tempo e no espaço pulula pela Ode Marítima: “Ah, seja
como for, seja para onde for, partir/ Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, / Ir
para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,”. Esta insatisfação, este extravasar de
sensações acabam por criar nele o tedium vitae (o tédio da vida), a sensação angustiosa do vazio e
da frustração. O tédio leva-o a viver “cheio de todos os cansaços” e a desejá-los
narcisisticamente: “Para mim só um grande, um profundo/ …Um supremíssimo cansaço,/Íssimo,
íssimo, íssimo,/ Cansaço.”
Caeiro rejeita a evocação do passado, pois pretende viver só o presente; o mesmo não
acontece com Campos porque, no presente, sente o tédio, o cansaço e a solidão, e o passado
surge-lhe como refúgio evadindo-se, então, no tempo a recordar vagamente: “A pobre velha casa
da minha infância perdida!”. O antes, a sua infância, a idade da inconsciência, o lar onde foi feliz
são o imaginário porto de abrigo onde procura desembarcar o desajustado do presente, aquele que
vinca o seu isolacionismo, ao gritar: “Quero ser sozinho, / Já disse que sou sozinho!”. Por outro
lado, pela imaginação projecta-se no futuro, dado que os progressos da civilização apaixonam o
engenheiro: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/ Ser completo como uma
máquina!!”, embora não conduzam a lado nenhum, não preencham a sua alma insatisfeita.

Fernando Pessoa ortónimo


O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia
prática, não inculca uma norma de comportamento; nele há quase sempre apenas a expressão
musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se
vislumbra por instantes “uma coisa linda”, nostalgias de um bem perdido que não se sabe qual
foi, oscilações quase impercetíveis de uma inteligência extremamente sensível, e até vivências tão
profundas que não vêm “à flor das frases e dos dias” mas se insinuam pela eufonia dos versos,
pelas reticências de uma linguagem finíssima. Lirismo puro (…), voz de anima que se confessa
baixinho, num tom menor, melancólico, de uma resignação dorida, agravada, de quem sofre a
vida sendo incapaz de a viver. (…)
Quando lhe chega aos ouvidos uma vaga música desconhecida que não parece deste
mundo, agradece e sorri, embora com tristeza, porque essa música vem sempre do outro lado do
muro intransponível: “Aceito o que me dão,/ Como quem espreita para um jardim/ Onde os
outros estão”. Que sentido tem essa música? Existiu ou foi imaginada? Não sabe responder. (…)
Herdeiro do gosto garrettiano pelo popular, também o seduz o mundo fantástico da
infância, adotando para o sugerir reminiscências de contos de fadas, de cantigas de embalar e
toadas de romanceiro. Porém, separa-o da tradição lírica portuguesa do “coração ao pé da boca”,
o seu estrutural anti-sentimentalismo, a ausência do biográfico na sua poesia, a tendência para
reduzir as circunstâncias humanas concretas a verdades gerais. O sentimentalismo confessional
estava naturalmente fora do seu caminho porque Pessoa viveu essencialmente pela inteligência
intuitiva ou discursiva, pela sensibilidade que lhe é própria e pela imaginação. “Eu simplesmente
sinto/ Com a imaginação. / Não uso o coração”.
Na poesia ortónima não há propriamente duas fases, mas duas maneiras. Uma delas é “a
modernista”, tão diferente da outra que justificaria mais um heterónimo. O período “modernista”
(incluindo o simbolismo, o “paulismo”, o intersecionismo) começa em 1913 (…) e termina em
1917, (…) portanto, não durou muito. No entanto, a maneira típica de Pessoa já vigora em 1913
com “Ó sino da minha aldeia” e, em 1915, com “Ela canta, pobre ceifeira”, poemas com a finura
dos motivos e a discrição clássica dos recursos caraterísticos da poesia ortónima.
No Pessoa ortónimo o ritmo alicia, as próprias vivências são muitas vezes de essência
musical; instintiva ou calculadamente, de qualquer modo apoiado à nossa melhor tradição lírica,
Pessoa tira das combinações de sons efeitos muito felizes: “Leve, breve, suave,/ Um canto de ave/
Sobe no ar com que principia/ o dia. / Escuto, e passou…/ Parece que foi só porque escutei/ Que
parou.”

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