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Perfil de Alberto Caeiro

Perfil de Alberto Caeiro, traçado a partir da leitura da carta a Adolfo Casais


Monteiro.

1. Aspetos biográficos:
          a) Nascimento: 16 de abril de 1889, em Lisboa.
          b) Falecimento: 1915, Lisboa, vítima de tuberculose.
          c) Profissão: nunca exerceu qualquer profissão; viveu à custa de pequenos
                               rendimentos.
          d) Educação: instrução primária (4.ª classe).
          e) Família:
                    - órfão de pai e mãe muito jovem;
                    - vivia com uma velha tia-avó, de pequenos rendimentos, no campo,
numa
                       quinta do Ribatejo.

2. Retrato:
a) Traços físicos:
                    - estatura média;
                    - aspeto frágil;
                    - cara rapada;
                    - louro sem cor;
                    - olhos azuis.

3. Obra
          a) Obras:
                    - O Guardador de Rebanhos;
                    - O Pastor Amoroso;
                    - Poemas Inconjuntos.
          b) Relação com Pessoa e heterónimos: é considerado o Mestre.
          c) Traços poéticos:
                    - ausência de pensamento metafísico;
                    - ausência de racionalização.
          d) Relação com a escrita: escreve mal o português.
          e) Génese: 8 de março de 1914, o "dia triunfal" da vida de Pessoa, pois
nele
                           apareceu o seu «Mestre», «"pur pura e inesperada inspiração".
O nome: Alberto Caeiro
     De acordo com o sítio http://www.umfernandopessoa.com, o nome deste
heterónimo de Fernando Pessoa seria explicável do seguinte modo...

     Alberto, um nome de origem germânica, significa «calmo» ou «nobre».

     Por seu lado, Caeiro relacionar-se-ia com cal e por isso com branco,


remetendo para os versos do heterónimo - brancos por não possuírem rima - e
para o facto de ele não crer em nada além do que vê. Assim, a sua compreensão
da realidade seria, igualmente, branca, sem nada escrito nela. Além disso, em
determinadas culturas, o branco é a cor funerária, do esquecimento e da perda
de tudo.

     Deste modo, associando o nome e o sobrenome, Alberto Caeiro significaria «a


nobreza calma do esquecimento das coisas».

     Há, ainda, quem seja audaz e associe o nome «Caeiro» a «(Mário de


Sá-)Carneiro», o grande amigo de Pessoa e que desempenhou um papel,
simultaneamente, importante e involuntário no surgimento deste heterónimo,
pois, segundo a carta sobre a génese dos heterónimos, ele teria surgido para
pregar uma partida a Mário de Sá-Carneiro.
Caeiro, o «Mestre»
Quer Fernando Pessoa (o ortónimo) quer os restantes heterónimos
consideram Alberto Caeiro o seu Mestre. Porquê?

Caeiro aponta soluções para os problemas existenciais e filosóficos que


atormentam quer o ortónimo quer os outros heterónimos.

Caeiro é, desde logo, o único que consegue atingir a paz, a tranquilidade e


a serenidade ao recusar o pensamento e ao adotar o sentir – "Eu não tenho
filosofia, tenho sentidos." –, precisamente o oposto de Pessoa, que tudo
racionalizava e era incapaz de sentir. Caeiro é, por conseguinte, aquilo que o
ortónimo não consegue ser, isto é, alguém que não procura qualquer sentido para
a vida ou para o universo, porque lhe basta aquilo que vê e sente em cada
momento.

Na verdade, todos os «eus» poéticos pessoanos são atingidos, de uma forma ou de


outra, pelo peso excessivo do pensamento, da razão, do racionalismo, causadores
de dor e impeditivos da felicidade. Assim, Pessoa apresenta-se como incapaz de
sentir; Ricardo Reis controlar as suas emoções através do uso da razão, para
evitar a infelicidade; Álvaro de Campos, na sua fase abúlica, lamenta-se do seu
vício de pensar (“Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!”).
Pelo contrário, Alberto Caeiro encontra a felicidade ao recusar o pensamento e a
existência de um lado abstrato / obscuro das coisas, defendendo a existência
apenas do concreto, do objetivo: “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, /
Sei a verdade e sou feliz”.

Sintetizando, Caeiro é considerado o Mestre em consequência dos seguintes


princípios poéticos:
▪ Recusa o pensamento (que implica que se deturpe o significado das coisas que
existem), a filosofia e a metafísica, a essência, acreditando o poeta apenas na
aparência (captada pelos sentidos), eliminando assim a dor de pensar e
alcançando a felicidade;
▪ Sensacionismo: Caeiro substitui o pensamento, que considera uma doença, pelas
sensações que colhe no exterior objetivo, defendendo que nada existe para além
do que é percetível para o ser humano, para além do que é captado pelos
sentidos – ou seja, devemos percecionar, conhecer e fruir o mundo através dos
sentidos, sobretudo a visão, e o real se reduz à materialidade;
▪ Aceitação serena do mundo e da realidade tal qual eles são: as coisas são o que
são, resumem-se à sua aparência, não têm significados ocultos, e o poeta aceita-
as como elas são, sem as questionar, sem as pensar, visto que “pensar é não
compreender” (pelo contrário, o ortónimo pensa, vê para além das aparências,
considerando que aquilo que vê é apenas a exteriorização de outra coisa);
▪ Comunhão com a Natureza: o ser humano deve submeter-se às leis naturais e
não deve racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as
ideias de vida ou de morte, que existem enquanto verdades absolutas), daí a
negação da existência de significados ocultos na Natureza – neste ponto,
aproxima-se do paganismo;
▪ Caeiro sente-se deslumbrado perante a natureza e a sua diversidade (a “eterna
novidade do mundo”);
▪ Caeiro é o poeta do real objetivo e do olhar ingénuo sobre o mundo: Caeiro
aceita as ideias de vida e de morte sem mistérios, despojadas de reflexão, de
pensamento, de subjetividade;
▪ Neopaganismo: Caeiro tem uma visão pagã da existência, resultante da
comunhão com a Natureza, que passa pela descrença na transcendência e pela
opção pela sensação, considerara a única verdade;
▪ Considera que só o presente existe e deve ser vivido;
▪ Irregularidade formal (verso livre, irregularidade métrica e estrófica), «seguida»
por Álvaro de Campos.

Note-se, porém, que existe uma grande liberdade dos discípulos em relação ao
seu Mestre. Por exemplo, Ricardo Reis é discípulo de Caeiro apenas em parte,
visto que ama a Natureza e o viver lúdico da infância, mas não possui a calma e a
placidez exibidas pelo Mestre diante da passagem / do fluir do tempo e da
certeza da morte. Reis receia-a e angustia-se perante a sua mortalidade e a do
ser humano em geral.

Por sua vez, Álvaro de Campos, apesar de amar e reverenciar Caeiro, “exaspera-
se por não conseguir viver os seus ensinamentos”. É o próprio Campos que
afirma: “Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu”.

Fernando Pessoa, por seu turno, é a antítese do Mestre, porque pensa e sofre em
virtude dessa racionalidade e da consciência. Ele que afirmou que cada um dos
heterónimos constitui uma espécie de drama, o que leva alguns estudiosos da
obra pessoana a falar em Poetodrama relativamente à questão da heteronímia.

Em suma, Caeiro é o Mestre, mas quer o ortónimo quer os heterónimos seguiram


o seu próprio caminho com liberdade

Temas de Alberto Caeiro


. Objectivismo:
 apagamento do sujeito lírico;
 atitude

 atenção à diversidade e à "eterna novidade do mundo";


 integração e comunhão com a Natureza - Caeiro é o poeta da Natureza;
 poeta deambulatório;
 concretização do abstracto: "Com um ruído de chocalhos / Para além da
curva da estrada / Os meus pensamentos são contentes"; "Escrevo versos
num papel que está no meu pensamento";
 predomínio do real objectivo e das sensações: a subjectividade e a
intelectualização do sentir não fazem parte da ideologia de Caeiro;
 áurea mediania: elogio da vida campestre;
 aceitação do mundo tal qual ele é.
. Sensacionismo:

 Caeiro é o poeta das sensações tais como são;


 Caeiro é o poeta do olhar: a visão é um modo de conhecimento
privilegiado, pois permite percepcionar a imensidão do mundo, superando
a dimensão física limitada do poeta;
 predomínio das sensações visuais ("Vi como um danado") e auditivas;
 primado dos sentidos / das sensações sobre o pensamento - submissão do
pensar ao sentir (o pensamento implica que se deturpe o significado das
coisas que existem);
 a sensação é o único meio possível de conhecimento do mundo: "Sou o
Descobridor da Natureza. / Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. /
Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-
próprio".
. Antimetafísica:

 negação / recusa da metafísica;


 recusa do pensamento ("Pensar é estar doente dos olhos"), do mistério e
da reflexão como meio para atingir a calma, a paz e a felicidade.
. Panteísmo naturalista / sensualista:

 tudo é Deus, as coisas são divinas;


 identificação do poeta com a Natureza: "Mas sei que a verdade está nelas
e em mim / E na nossa comum divindade";
 relação íntima e directa com a Natureza.
. Neopaganismo: a ideia de comunhão absoluta com a Natureza resulta numa
visão pagã da existência, que passa pela descrença total na transcendência; a
única verdade das coisas é a sensação.

. Aceitação do real e da vida, sem problematizar a existência, contentando-se


em «sentir» e em «ver».

. Defesa do natural, do espontâneo, do instintivo .

. Recusa do conceito de arte como algo difícil e artificial; defesa de um


conceito de arte como um acto natural e quase involuntário: "Vou escrevendo
os meus versos sem querer...".

. Procura de uma verdadeira identidade: "Desembrulhar-me e ser eu, não


Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu" .

. Defesa da necessidade de uma nova aprendizagem que faça o sujeito poético


«desaprender» tudo quanto lhe foi convencionalmente imposto: "Procuro despir-
me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram".

. Aceitação da ordem natural das coisas: "... a única casa artística é a Terra


toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma..." .
. Desvalorização do tempo enquanto categoria conceptual: "Não quero incluir
o tempo no meu esquema".

. Estoicismo: aceitação passiva de tudo - a vida humana deve ser encarada num


plano de igualdade relativamente à vida de outros seres que existem no universo.

. Contradição entre a "teoria" e a "prática":  estamos perante uma «máscara»


que funciona como uma tentativa de superação de uma subjectividade angustiada
que, à primeira vista, parece ter sido anulada (através do objectivismo, das
sensações, da negação do pensamento e do misticismo), mas que prevalece e se
vislumbra a cada passo. É a contradição entre a teoria e a prática que marca toda
a poesia de Alberto Caeiro.
Linguagem e estilo de Alberto Caeiro
 Linguagem simples, familiar e objetiva.
 Pobreza lexical.
 Verso livre, geralmente longo.
 Irregularidade / liberdade estrófica e métrica.
 Despreocupação a nível fónico.
 Adjetivação pobre e objetiva.
 Pontuação lógica.
 Predomínio do presente do indicativo, modo do real.
 Frases simples.
 Predomínio da coordenação.
 Aproximação à prosa.
 Metáforas e comparações originais, relacionadas com elementos
naturais: "Minha alma é como um pastor", "Pensar incomoda como andar à
chuva", "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento".
 Marcas de oralidade.

Alberto Caeiro: o fingimento artístico – o poeta «bucólico»


▪ Origem do poeta bucólico

         Logo no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro


declara-se pastor por metáfora, o que constitui, no fundo, o
despontar daquilo que Pessoa ele mesmo considerou um «poeta
bucólico de espécie complicada».

         De facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais


Monteiro, na qual explica a génese dos heterónimos, o ortónimo
afirma que, certo dia, desejou criar um poeta bucólico para pregar
uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa ideia se concretizou apenas
em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma cómoda alta e
escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase»,
cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a
sensação de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe
inventar mais uns discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa
ortónimo e dos outros heterónimos.

 
▪ Poeta bucólico

         Caeiro resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi


inventado e modelado pelo ortónimo como «poeta bucólico». Ou
seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura que vive no campo, com
simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto com a
Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo
aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia
bucólica, eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e
inocência.

 
▪ Atitude de contemplação/observação da Natureza e deambulismo

         Caeiro é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De


facto, ele deambula livremente pela Natureza, pelo campo,
observando e apreendendo instintivamente o que o rodeia e
captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade
do mundo.

         A poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade


maravilhosa do real.

 
▪ Relação de integração, comunhão e harmoniosa/simbiose com os
elementos da Natureza e afastamento social

         Caeiro procura viver em plena integração e comunhão com a


Natureza, aprendendo com ela a aceitar o bom e o mau, a felicidade
e a infelicidade, a vida e a morte. A sua alma «conhece o vento e o
sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da Natureza sem
gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz e
tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a
Natureza, alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra.

         Deste modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade


plena: «Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a
verdade e sou feliz”.

 
▪ Simplicidade e felicidade primordiais

         Poeta do real objetivo, observa as coisas com um olhar


ingénuo e puro: “pensar é não compreender. / (…) E a única
inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade, Caeiro, o poeta
da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e a sua
aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental.

         De facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois,


além de se apresentar como metáfora, aparenta contradizer-se:
“Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O rebanho é os meus
pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto metáfora;
quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida
pastoril.

 
▪ Existência tranquila no (tempo) presente

         Para Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é


atraiçoar), nem futuro (pois este tempo é um campo de miragens).
Assim, vive o presente, gozando cada impressão como se fosse única
e original.

 
▪ Bucolismo como máscara poética

         Caeiro mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de


forma a passar a imagem de um homem simples na forma original e
primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa que esconde todo um
conhecimento filosófico e cultural.

         Caeiro finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na


realidade, não o é), um homem simples, que deambula pela
Natureza, apreendendo instintivamente o que o exterior lhe oferece.
Deste modo, a sua arte poética/criação artística é algo espontâneo e
não artificial (artificialidade reacional da elaboração do texto), daí
que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos /
como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma
construção.

         Este fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do


pensamento, fingindo que é um homem instintivo que vive só para
fora, para o exterior.

Alberto Caeiro: reflexão existencial – o primado das


sensações / o sensacionismo
 
▪ Por reflexão existencial entende-se a reflexão sobre uma forma de estar no
mundo, de viver a relação com ele e com os outros.
 
▪ Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao pensamento

         Alberto Caeiro recusa o pensamento, o conhecimento


intelectual e vive de impressões, privilegiando as sensações,
sobretudo as visuais. O pensamento perturba-o, fá-lo sofrer, é fonte
de enganos, não lhe permitindo conhecer o real (“Pensar é estar
doente dos olhos”), por isso procura libertar-se dele, privilegiando o
conhecimento sensorial da realidade.

         Para o poeta, o conhecimento do mundo e do real circundante


faz-se através das sensações. De uma forma que se quer espontânea e
natural, elas revelam uma existência que, em contacto com a
natureza, dispensa a ciência e a técnica.

         Assim, vive em harmonia consigo e com os outros, aceitando o


mundo e a vida e sendo feliz, precisamente porque recusa o
pensamento e dá primazia às sensações. Perceciona a realidade
através do olhar, sem intelectualizar essa perceção, daí afirmar-se
que a sua poesia é sensacionista, na medida em que substitui o
pensamento (que associa a uma doença) e o sentimento (subjetivo e
convencional) pela sensação. A subjetividade não existe para ele.

 
▪ O poeta do olhar

         Caeiro apreende o real através dos sentidos / das sensações,


nomeadamente as visuais, recusando o pensamento. Este corresponde
a uma atitude reflexiva que impede a compreensão e a uma doença
da visão [“pensar é estar doente dos olhos” (Poema II)], que constitui
um obstáculo à fruição do que os sentidos percecionam
(nomeadamente a Natureza).

 
▪ Observação objetiva da realidade

         Caeiro valoriza a realidade exterior concreta e observável:


“Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo” (poema II).

         Ao recusar o pensamento e ao optar pelo concreto, encontra a


felicidade: “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a
verdade e sou feliz”. O real é o único meio de atingir a verdade e a
felicidade, desde logo porque a realidade existe sem necessidade do
pensamento.

         Para o poeta, nada existe para além daquilo que é percetível,


para além daquilo que o ser humano capta os sentidos.

 
▪ Rejeição do pensamento abstrato e da intelectualização
         Caeiro recusa o conhecimento intelectual e defende o primado
das sensações.

         O poeta nega que a Natureza tenha significados ocultos. As


coisas são o que são, resumem-se à sua aparência e àquele cabe-lhe
aceitá-las como elas são, sem pensar, porque "pensar é não
compreender”.

         O mundo é claro, evidente, simplesmente é – ser é o único valor


possível. O conhecimento chega apenas através dos sentidos,
nomeadamente do olhar, pois o pensamento incomoda-o, perturba-o,
é fonte de infelicidade: “Pensar incomoda como andar à chuva”.

 
▪ «Filosofia» da antifilosofia (pensamento antipensamento)

         Caeiro rejeita a filosofia (bem como o conhecimento


intelectual, a metafísica, a ciência) e, consequentemente, constrói
uma nova filosofia: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (Poema
II). Ou seja, ao percecionar a realidade como se fosse um simples
pastor que acompanha o seu rebanho, encontra na Natureza e nas
sensações uma nova filosofia de vida.

         Caeiro é, talvez, o heterónimo mais complexo, visto que recusar


o pensamento ou qualquer tipo de filosofia é pensar e filosofar, e
tentar atingir o grau zero do pensamento implica já uma complexa
operação mental. De facto, a recusa da filosofia e a apologia da
sensação pura constituem uma outra filosofia, pois recusar a filosofia
é filosofar, tal como afirmar que não se pensa é já pensar.

 
▪ Aceitação do mundo

         Caeiro aceita o mundo e as coisas como são, relacionando-se


com eles de forma harmoniosa, visto que recusa o pensamento e a
abstração, privilegiando as sensações, nomeadamente as visuais.

         Segundo ele, devemos fazer a “aprendizagem do desaprender”,


devemos aceitar a vida e a morte sem mistérios, despojados de todo o
pensamento, de toda a reflexão, de toda a subjetividade.

         Para este heterónimo, o real é a única fonte de felicidade e de


conhecimento. Também isto explica que viva em comunhão com a
Natureza, aprendendo com ela, através das sensações, a ser feliz.

         Em suma, Caeiro, aceita o real e a vida, não problematiza a


existência, contentando-se em sentir, ver e ser feliz.

Contradições da poesia de Alberto Caeiro


 
▪ Caeiro afirma que desvaloriza ou recusa o pensamento, mas os seus poemas
constituem reflexões e não tanto descrições da Natureza.
 
▪ Caeiro analisa e reflete sobre as sensações, não se limita a captá-las.
 
▪ Caeiro afirma ser contra a filosofia, mas expõe a sua “doutrina” nos seus
poemas.
 
▪ Em síntese, Caeiro advoga a naturalidade e a simplicidade, mas constrói uma
poesia pensada e trabalhada.
 

"Sou um guardador de rebanhos"


Poema IX

“Sou um guardador de rebanhos”

            O poema, constituído por três estrofes (duas sextilhas e um dístico) de versos brancos
e métrica irregular, apresenta-nos um sujeito poético que se assume, metaforicamente, como
um pastor, remetendo assim para o início do poema I, no qual se lhe comparava.
            A primeira estrofe inicia-se com uma metáfora (“Sou um guardador de rebanhos”) que
institui o sujeito poético como um ser natural e que anula a oposição entre o pensar e o sentir,
através da identificação entre pensamentos e sensações, característica do sensacionismo de
Alberto Caeiro: o conhecimento da realidade adquire-se pela sua apropriação direta mediante
os cinco sentidos humanos, isto é, ele relaciona-se com a realidade, seja ela flor, fruto, ou um
dia de calor, através dos sentidos. E isso basta-lhe, pois é essa relação que lhe traz a verdade
desse real. Por outro lado, ao afirmar a sensação como fonte única do conhecimento do real, o
sujeito poético nega o pensamento, submetendo-o à sensação. Deste modo, ele consegue unir
o pensar ao sentir: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o
sentido.” (vv. 7-8).
            A enumeração dos órgãos associados aos sentidos nos versos 4 a 6 (olhos, ouvidos,
mãos, pés, nariz e boca) reforça a importância do sentir afirmada no verso 3 e hierarquiza as
sensações de acordo com o grau de conhecimento que permitem apreender: as sensações
visuais são a primeira fonte de saber, seguindo-se as auditivas, as táteis, as olfativas e, por fim,
as gustativas. Estilisticamente, o polissíndeto (repetição da conjunção coordenativa
copulativa «e»), o paralelismo sintático e a anáfora (vv. 5-6) traduzem a simplicidade do sujeito
poético.
            Os versos 7 e 8 exemplificam a identificação entre pensar e sentir, primeiro através de
uma definição, depois metaforicamente (“E comer um fruto é saber-lhe o sentido.” – v. 8),
procedendo à objetivação do pensamento, isto é, conferindo-lhe um estatuto concreto, de
objeto.
            A estrofe final, de caráter conclusivo (é iniciada pela locução «por isso»), começa por
afirmar a sua tristeza, que advém do excesso (“Me sinto triste de gozá-lo tanto” – v. 10), daí
que seja natural e não perturbe o conhecimento da realidade nem a felicidade (ideias já
desenvolvidas no poema I, nos versos 9 a 13 e 14 a 18). O sujeito poético aceita, então, essa
tristeza porque ela provém de um excesso natural de felicidade. Porém, a tristeza evolui para
felicidade (v. 14) no momento em que o sujeito poético substitui a perceção mental do prazer
(“gozá-lo”, v. 10) pela ligação direta com a realidade (“Sinto todo o meu corpo deitado na
realidade”, v. 13).
            A realidade é aquilo que é concreto, o que existe sem ser preciso pensar, aquilo que é
captado através dos sentidos, em estreita conexão, em comunhão total com a Natureza, ideia
afirmada nos versos 11 e 13, onde o contacto de todo o corpo com a erva salienta um desejo
de quase fusão com os elementos naturais.
            Nos dois versos finais, o sujeito poético confirma várias ideias características da sua
poesia:
1.ª) a verdade consiste no conhecimento direto da realidade;
2.ª) esse conhecimento e essa apropriação da realidade concretizam-se através dos sentidos, sem
qualquer interferência do pensamento;
3.ª) o primado das sensações e a ausência do pensamento são a única forma de conhecimento
autêntico e fonte de felicidade;
4.ª) a felicidade é diretamente proporcional ao contacto direto com a Natureza, um exemplo mais da
supremacia do sentir sobre o pensar.
            Quanto aos recursos expressivos, além dos já identificados e da sinestesia do verso 12
(“olhos quentes”), há os seguintes traços típicos da poética caeiriana:
. a linguagem simples e de caráter oralizante (repetições de vocábulos, polissíndeto, predomínio
da coordenação…);
. o predomínio de nomes concretos e a quase ausência de adjetivos;
. o uso de palavras do campo lexical das sensações, que revela o primado do sentir sobre o
pensar, sempre objetivado (“Penso com os olhos e com os ouvidos”, “Pensar uma flor é vê-la e
cheirá-la”);
. a sintaxe simples, com repetição de estruturas frásicas e predomínio da coordenação;
. a variedade estrófica, métrica e rítmica;
. o verso branco.
            Por último, quanto à estrutura interna deste poema, uma possibilidade consiste na sua
divisão em duas partes:
. a 1.ª corresponde às duas primeiras estrofes e nelas o sujeito poético afirma o seu
sensacionismo e o primado do sentir sobre o pensar;
. a 2.ª constitui uma conclusão – a terceira estrofe –, através de um exemplo, das ideias
expressas nos versos anteriores.

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