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Do sentido da ausência de sentido

Christian Prigent
Para que poetas ainda?
Trad. Inês Oseki-Dépré.
Desterro [Florianópolis]
Cultura & Barbárie
2017
p. 75–86.

Antonin Artaud dizia: “Toda verdadeira linguagem é


incompreensível”.

Assim, uma linguagem compreensível seria uma linguagem


falsa.

É a questão suscitada por esse paradoxo que nos reúne aqui.

Na historia literária, chamaram ilegíveis as obras que, em tal


ou tal época, se esforçavam para inventar formas e para
“encontrar uma língua”.

Mas o que quer dizer “inventar formas” senão propor novas


maneiras de representar o mundo?

E o que quer dizer “encontrar uma língua” senão verbalizar


diferentemente a experiência que fazemos do mundo em que
vivemos assim como do mundo que vive em nós?

Não se trata, portanto, de uma questão meramente “formal”:


esses novos modos de simbolização são a própria literatura,
constituem sua história, encarnam sua transformação eterna
de si mesma em si mesma.
Basta saber isso para nunca ceder diante dos gestos de
intimidação que gostariam de recusar a invenção escrita sob o
pretexto de sua dificuldade, ou mesmo de sua obscuridade.

O critério de ilegibilidade é móvel e recobre experiências


bastante diversas.

Dizer, por exemplo, que Sade é ilegível é decretá-lo tedioso,


de uma monotonia pornográfica maçante.

Dizê-lo hoje de tal ou tal best-seller produzido pela indústria


editorial é afirmar sua indignidade artística.

Dizer, por exemplo, que um Sollers é atualmente ilegível é


julgar que sua obra não possui mais interesse literário e que
em suma ela se tornou ilegível por ter ficado legível demais.

Mas dizer Mallarmé ilegível é designar uma densidade


impenetrável, uma opacidade voluntária do sentido, um
hermetismo ou um esoterismo deliberado.

Dizê-lo de Joyce é renunciar a ver na língua de Finnegans


Wake outra coisa além de um idioleto impartilhável.

Dizê-lo de Artaud é talvez recuar diante do pathos orgânico e


da violência dos efeitos de loucura que trabalham esse texto.

Dizê-lo das narrativas de Pierre Guyotat é recusar uma


recriação monstruosa do léxico e uma escansão quase
impronunciável.
Nestes quatro últimos casos, é apontar uma dificuldade em
penetrar no que Bataille chamava de “grandes irregularidades
de linguagem” e considerar essa dificuldade como
irremediável.

Mas dizer de Rabelais que ele é ilegível para nós (para nossa
época) é somente constatar, para lamentá-lo, o afastamento
de um certo estado da língua (outrora perfeitamente legível).

Dizer do teatro de Voltaire, dos romances de Paul Bourget ou


dos relatos de sonhos surrealistas que eles se tornaram
“ilegíveis” é igualmente incriminar o que o tempo torna
caduco; mas, dessa vez, para declarar as obras fora de moda e
sugerir que elas certamente sempre o foram, que
provavelmente já o eram em seu tempo: em suma, para
considerá-las como uma espécie de “kitsch” de época.

O que se afirma habitualmente a respeito da dificuldade dos


escritos ditos “modernos” é que esses textos que parecem
hoje estranhos ou obscuros se tornarão dentro de alguns anos
textos fáceis. Sob o efeito da pátina da Historia e da lenta
evolução do gosto, os textos atualmente ilegíveis serão mais
tarde os padrões do clássico.

Situa-se, portanto, o problema numa distorção entre os


hábitos de um público numa dada época e o avanço que, em
relação a esses hábitos, certos artistas teriam feito. Supõe-se,
em suma, que os textos em questão são escritos numa espécie
de francês antecipado e que o trabalho do tempo virá reduzir a
excentricidade dessa antecipação.

O exemplo da recepção das obras da pintura vem corroborar


essa interpretação: os escandalosos quadros impressionistas
dos anos 1870 se encontram de fato hoje no calendário do
Correio ou em tampas de caixas de chocolate, e cada um de
nós, diante deles, parece comungar com algo familiar.

Não é seguro, entretanto, que se possa levar mais longe a


analogia. Pode-se, por exemplo, duvidar que Mallarmé ou
Rimbaud sejam mais legíveis hoje do que eram em 1873 ou
em 1883. O que de Rimbaud é visto como legível são os
primeiros poemas, não as Iluminações. E a mitificação da
figura de Rimbaud muito pouco tem a ver com um interesse
perspicaz pela complexidade de seus textos — que, de fato,
permanecem obstinadamente ilegíveis. Isto é, por um lado:
não lidos; por outro lado: sobre-investidos pela glosa erudita.

Essa última constatação pode incitar a encarar as coisas de


outro modo.

Por exemplo, dizendo que o tempo, nesse caso, não contribui


em nada para resolver o problema da ilegibilidade.

Mas que a dimensão da ilegibilidade é intrínseca a esse tipo


de relação particular com a língua e com o real a que
chamamos literatura.

O objetivo de uma obra de arte não é, contrariamente ao que


se costuma dizer, o de produzir belos objetos. Seu objetivo é o
de formar representações justas. Uma obra literária procura
representar exatamente a experiência do mundo e da vida de
quem a escreve.

Ora, essa experiência nunca é uma experiência da clareza. É,


antes, a de um caos, de uma opacidade, de uma mistura
inarrazoável de delícias e de horrores, de gozo e de angústia.
Em suma, é uma experiência da ausência de sentido. Ou, ao
menos, da incerteza do sentido. Uma experiência da
“existência na medida em que não tem sentido”, como diz
Jean-Luc Nancy.

À experiência do sentido, não a fazemos diretamente diante


da vida que levamos mas diante dos discursos que nos dizem
algo dessa vida. Percebo sentido quando leio uma obra de
filosofia, um ensaio científico, uma análise política. E quando
percebo esse sentido, percebo geralmente também o que sua
estrutura racional e a positividade dos enunciados que a
constroem têm de decepcionante. No próprio momento em
que apreendo seu sentido, percebo a inadequação desse
sentido à maneira como o mundo, singularmente, a mim, me
afeta. Em outras palavras: a legibilidade do propósito me faz,
em larga escala, senti-la como um falar “falso”. E essa prova é
sem dúvida o que desperta em mim o desejo de um outro
modo de abordagem da verdade, de uma outra postura de
enunciação, de um outro tratamento dos meios de expressão:
o desejo de literatura, em suma.

Se tentamos, através de um trabalho artístico, deixar uma


marca da maneira como representamos para nós mesmos
nossa própria vida, e se queremos que essa marca tenha algo
de justo, é preciso que ela comporte essa relação com a
opacidade. Porque essa opacidade é a verdade da experiência
que fazemos da vida. Quero dizer com isso que não há obra
de arte coerente quanto ao seu propósito que não
compreenda em seu âmago a dimensão de opacidade que fez
com que essa obra fosse feita.

Pois é diante da consciência da opacidade que surge o desejo


de fazer obra de arte. Se o mundo for claro, a experiência
simples e a vida legível, não há obra de arte. Mas se surge a
necessidade da obra (ou antes: a necessidade de efetuar o
gesto que talvez faça obra) — não há nem ilogismo nem
escândalo em querer que esse gesto conserve em si algo da
dimensão de opacidade que fez com que ele se desdobrasse.
Existe, portanto, uma fatalidade da “ilegibilidade” em toda
obra de arte. E se podemos ser sensíveis ao enigma que uma
obra nos propõe, é porque esse enigma imprime em nós,
aquém ou além das significações, a sensação violenta de que
ali se representou algo da opacidade objetiva da vida.

Não é o amor pelo mundo que nos impele à literatura, mas o


amor pela literatura. Não é a injunção de uma experiência
imediata qualquer do real que nos convoca à pratica da
literatura, mas a paixão pela língua.

Mas o que é essa língua que nos apaixona desse jeito?

A língua é o que o recorta no mundo uma figura estranha a


ele pelo próprio fato desse recorte: o homem, o falante.

É porque falamos que o mundo surge diante de nós como


mundo. E é por essa mesma razão que ele se separa de nós.
Falar nos afasta do mundo e afasta o mundo de nós. E se um
mundo surgir em nossa fala, será um mundo mediatizado,
colocado na distância e na estranheza.

Nenhuma mimesis transparente poderia dar conta disso.


Porque para dar conta disso exatamente, seria preciso dar
conta não apenas das figuras que formam esse mundo, mas
da infigurável distância que torna possível a formação dessas
figuras.

Dito de outro modo: a literatura só pode nomear justamente o


mundo se mantiver no âmago desse esforço de nomeação o
inominável que encarna a “diferença não lógica” que o
mundo é para nós.

A literatura que sobrevive aos séculos é uma manifestação


dessa experiência: ela realiza a língua. Assim, não é tanto o
mundo que ela diz — mas o que a própria língua realiza:
nosso excesso ao mundo, o poder que a palavra tem de
colocá-lo à distância e de nos libertar dele.

Nisso a ilegibilidade está nela não como o verme estranho na


fruta, mas como o caroço essencial ao seu desenvolvimento.
Se não houvesse essa obscuridade, estaríamos no logro.
Habitaríamos, logrados, a clareza de línguas que não passam
de ilusório reflexo das coisas, jogos de espelhos de nosso
desejo de estar em paz com ele e submetido às suas leis.

Ao contrário da História e das Profecias (religiosas,


políticas…), a literatura enfrenta um presente. O amor pelo
seu tempo é o assunto da literatura.

Mas o sentido do presente é apenas o sentido de uma perda


do sentido, o sentido de uma fuga estrelada, diante de nossos
saberes, nossos discursos e nossas crenças, do rebanho já
bastante (ou ainda não) domesticado das significações.

A literatura dá conta dessa perda: se sentido há nela, esse


sentido é apenas o sentido de um ausentar-se objetivo do
sentido. Propor do mundo uma legibilidade (na coerência dos
grandes sistemas explicativos, na euforia das visões utópicas
ou na homogeneidade das ficções que articulam o tempo)
seria para ela trair o esforço de verdade, submeter-se ao
engano, consentir ao mundo.

Dito de outra maneira:

Ou bem o mundo se decanta como evidente — e a língua


literária pode ser o reflexo dessa declinação legível.

Ou bem ele é obscuro e começa precisamente ali onde o


sentido se detém — e a língua literária o constata: seu
expoente (seu ponto de verdade) é inelutavelmente essa in-
significância, essa vacuidade instalada no âmago de toda
constituição das significações.

Talvez possamos até mesmo dizer que a língua literária tem


por objetivo simbolizar essa vacuidade, essa perda e esse
arrancamento. Não que deva dizê-los — mas deve formar sua
forma (por meio de ritmos abstratos, de artifícios
violentamente não-naturalistas, de fraseados não-figurativos).
É o que a “poesia” tenta, e nela se realiza, por essa razão, a
própria lógica da “literatura”,

Nem Baudelaire, nem Mallarmé, nem Joyce (etc.) escreveram


para tornar o mundo legível. Suas obras constroem, em face
da obscuridade do mundo, uma obscuridade homóloga. Não
que essas obras recusem o sentido, elas mantêm, ao contrário,
uma instabilidade viva, uma indecisão do sentido. É nisso que
produzem efeito de verdade.

É, portanto, bizarro surpreender-se com o fato de que a


literatura seja, por vezes, “ilegível”.

É ingênuo exigir dela que seja a priori legível.

É miserável recusá-la quando não o é. Pois é rejeitar-lhe a


própria essência. Quando sonhamos possuir o sentido do
mundo na transparência das obras literárias, desvelamos
nosso desejo de sermos possuídos por esse mundo, de que a
clareza da literatura seria um reflexo consumado.

Assim, nosso voto de que os textos sejam legíveis é


paradoxalmente o voto de nos devotarmos de corpo e alma ao
mundo — e de que não haja mais literatura.

Aquele que se contenta com a experiência do mundo (ou com


a crença) não escreve, não faz literatura.

Aquele que acredita estar na língua como um peixe na água


fica borbulhando no aquário do mundo e tampouco escreve.

Só escreve aquele a quem a língua assombra como uma


dificuldade, um tormento, aquele que ama do mundo apenas
o que a língua dele transforma.

Escreve-se para responder à vergonha de ficar sem língua de


tanto usar a língua de todos e de acabar por esse uso restrito
ao lugar das representações comuns.

Escreve-se para não ceder a esse rebaixamento abjeto.

Escrever responde a uma recusa de ser refém das ficções que


a palavra comum, as representações ideológicas e as crenças
que nela se estratificam tentam nos fazer tomar pela
realidade.

Escrever é recusar essas visões assujeitadas.

Escrever é, portanto, intensificar a obscuridade na obscena


clareza das ficções que nos entregam ao mundo afirmando
entregá-lo a nós (contá-lo, explicá-lo a nós).
Mas a obscuridade de que estou falando é por sua vez uma
clareza. Ela esclarece o sentido da especificidade humana:
sobre o mundo, colocamos menos nomes do que nãos:
negações, nãos aos nomes que já se encontram aí e que são a
ficção do mundo, o mundo como ficção — os nomes que
reduzem o mundo a uma imagem, a um ícone, a um ídolo.

A eventual obscuridade dos escritos literários provém do fato


de que a literatura é devoção total à língua — isto é, a essa
força de ruptura que nos exclui do mundo ao mesmo tempo
em que nos dá consciência dele.

Assim, Arthur Rimbaud não veio para dizer o mundo mas


para criar “a ópera fabulosa” que afirma que “não estamos no
mundo”.

E Samuel Beckett não escreveu para descrever um mundo


possível mas para responder, contra toda e qualquer afasia, à
necessidade especificamente humana de falar e, falando, de
cernir, “provindo da impossível voz, o infactível ser”.

Se a língua nos ex-cetua do mundo, escrever é cultivar essa


exceção. “Quem o realiza”, diz Mallarmé falando do gesto da
escrita, “integralmente se retrai”.
É verdade que esse gesto de retraimento pode ser um gesto
(social) de retraimento em relação ao mundo.

É sobretudo um gesto estético de retraimento em relação ao


senso comum que faz mundo.

Enquanto retraimento, retirada, ruptura, ele se oferece, numa


grande medida, como “mistério”, como diz ainda Mallarmé.
Encarna em todo caso nosso desejo e nosso poder de não
sermos reduzidos a um reflexo das coisas objetivadas e de
escapar às figuras repertoriadas do mundo.

É assim que apostamos nossas chances de desatar nosso


assujeitamento a essas representações fixadas e de
embaralhar nossa identificação em meio a esse cenário do
possível.

É evidente que a literatura não está aí para redobrar a


legibilidade dessas figuras, dessas representações, desse
cenário.

Ela está aí para assumir e encarnar nossa estrangeiridade ao


mundo.

E é por essa razão que, frequentemente, não reconhecemos


nela as significações que nossas imagens ou nossas crenças
dão ao mundo para nos submeter a ele.

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