Você está na página 1de 7

O Menor amor do Mundo

Luiz Costa Pereira Junior

A experiência amorosa estimula sentimentos superlativos. Não falo só


do desejo descabelado e transbordante, como a paixão e o impulso
sexual. Amor envolve afetos superlativos mesmo quando é centrado e
sereno, como o carinho, a saudade ou o cuidado com quem se ama.
Todos esses são estados de ânimo que só fazem sentido porque
vividos de forma intensa.

Amor que é amor, só com maiúscula intensidade. Parece que sempre


foi assim. Mas nem sempre foi. É idéia recente na humanidade essa
do amor idílico, romântico, insinuante e sutil, o amor galante, glória de
Hollywood e das novelas da Globo. Surgiu na aristocracia provençal
do século 12, lá no sul da França.

Paulo Leminski comenta que essa idéia de amor soaria esquisita a


ouvidos antigos, em Roma, na Grécia ou nos países árabes. Não é
que os casais da Antigüidade sentissem nada um pelo outro. Mas,
naqueles tempos, esse sentimento era algo maldito, uma sensação
incômoda que deveria ser, senão abolida, controlada ao máximo
possível [i] .

Se esse sentimento superlativo é histórico, se a humanidade não


nasceu com ele, então “amor” é palavra que ganhou corpo cultural e
flutuou ao sabor dos contextos. Por isso, talvez dê pano pra manga
chamar a atenção para outra escala de grandeza do ato de amar. Falo
das reviravoltas de linguagem, das revelações de afeto que são
comunicadas num nível mais atômico, mais concentrado, o grau zero
do relacionamento humano, que é a palavra.

Muito da nossa surpresa diante do mundo está nas grandes


descobertas contidas nas pequenas coisas ou formatos. É o projeto de
árvore que está no broto. É o caso particular que traduz a lógica de
um mundo inteiro. Ou o inesperado que só não se esperava porque
não se olhou com a devida atenção.

É sobre esses átomos amorosos que gostaria de falar aqui, átomos


como os poemas curtos e a etimologia.

Falar em poema curto é uma liberalidade. A rigor, não há poemas


longos ou curtos. A duração deles obedece a uma dupla
característica: ter fruição e economia. Aquilo que Octavio Paz entende
por “máxima variedade na unidade” [ii] . Cada leitor interpreta o verso
à sua maneira, o que um lê, outro não enxerga, pois um poema é um
manancial de possibilidades. Ao mesmo tempo, o verso é enxuto, diz
o máximo com o mínimo, pois não haveria melhor modo de dizê-lo.

Não há poema curto. Então, viva o poema curto! Depois da libertação


que foi o concretismo e a poesia visual, é provável que o haicai tenha
perdido o posto de menor poema para algum solitário ponto no meio
da página em branco, ou mesmo para a própria página em branco.

Não cabe discutir o quanto essas duas possibilidades de poesias


visuais (o ponto e a página em branco) podem ter de crítica a toda
cultura ocidental. Tendo, no entanto, a acreditar que a menor poesia
brasileira seja exatamente sobre o amor. É aquela que Oswald de
Andrade publicou no fim dos anos 20, com o título “Amor” seguido por
uma palavra-poema, “Humor”.

Amor

Humor

Há poemas curtos de todo tipo, muitos dos quais tratam do mesmo


tema de Oswald. Lembro o epigrama, as quadrilhas ou as jarchas
ibéricas, aqueles poemetes líricos de quatro versos. Há também o
chueh-chu chinês, com 5 ou 7 caracteres em cada uma de suas
quatro linhas.

Há até poesias brasileiras com menos letras que “Amor/humor”. Está


aí o “Cronologia”, de José Paulo Paes, para não deixar a gente mentir.
“A.C. / D.C. / W.C.” é um resumo crítico e bem-humorado da história
humana. Mas só é menor que o dístico oswaldiano se a gente
descontar os pontos de abreviatura. Aí, o número de sinais gráficos
seria mesmo menor que os do poema de Oswald.

Mesmo que não seja o poema mais curto, é de todo modo um achado
esse encontro a sós entre amor e humor. Não só porque rimam. Têm
muito em comum. Ambos só podem ser feitos acompanhados. O amor
carnal, tesão de pele, roçar de coxas, arranca do corpo o suor que é
pura umidade, que vem de húmus, matriz latina da palavra “humor”. O
amor sexual, de quebra, melhora nosso humor. É, enfim, alegria
mútua, festiva, um estado de ficar bem e de fazer ficar bem.
Esse é um modo dentre tantos de ver o amor hoje em dia, talvez o
mais hedonista deles, o mais consciente de que toda relação é uma
interação entre dois seres, com o mesmo peso na jogada. Mas, como
falei no início, nem sempre a palavra “amor” foi encarada dessa forma.

Os romanos antigos por muito tempo deram um sentido passivo a


palavras relacionadas ao afeto. “Amor” por muito tempo significou
“qualidade de ser amado”. Quando um romano dizia “amor”, só lhe
vinha à cabeça “ser amado”, nada mais. Dizem que, por influência
externa, talvez germânica, a palavra ganhou teor ativo, como
“sentimento de amar”.

Não sabemos ao certo em que momento da história essa mutação


ocorreu. É como se o verbo “receber”, atributo de quem recebe, de
repente começasse a valer também como sinônimo de algo oposto,
que é “entregar”. De pista com mão-única, virou pista dupla, ação
mútua, com vai-e-vem.

A palavra “paixão” também chegou a ter sentido passivo. Aí virou


casaca, passou a ser aplicada com sentido ativo. Leminski cita
“Paixão de Cristo”, aquilo que Cristo “sofreu”. A palavra também dá
nome à conduta ativa, com alvo, àquilo que nos leva a fazer algo, não
mais com o sentido anterior, de “ser atingido”.

Há uma incerteza genética naquilo que é passivo num momento e


ativo no outro. Ser objeto e não ser sujeito da ação . Ser sujeito e não
ser objeto. Em grego, lembra Leminski, o verbo paskhein é “sofrer
ação criada por outro”, ser alvo. Daí derivou “patético” (tentar
sensibilizar alguém), “simpatia” (sentir junto), ”antipatia” (sentir contra).
Em latim, o grego paskhein ganha equivalente em “patior passivus
sum”, “pati”, que é o antepassado de “paixão” [iii] .

Os gregos tinham quatro verbos para “amor”. O amor fraternal era


“filéo”. Aquele ligado à satisfação de um desejo ou o prazer de fazer
coisas agradáveis era “agapeu”. Já o amor protetor, entre pai e filho,
neto e avô, se chamava “stergo”.

O amor dos casais, propriamente, se chamava “erao”, “erós”. Platão


mostra Sócrates no Fedro narrando duas origens para esse afeto
sensualizado. Para os homens, o amor seria “eros” (alado), aquele
que tem asas. Para os deuses, seria muito mais complexo, seria
“ptérôs” (alante), aquele que doa asas. O amor é “menos o que voa do
que o que faz voar”, como diria H. Joly ao analisar essa passagem.
Não é só auto-suficiente, porque tem asas, como é incapaz de bastar
a si mesmo, daí querer compartilhar [iv] .
O amor a dois talvez não esteja num ou noutro campo, não seja alado
nem alante, eros ou ptérôs, mas viva na encruzilhada, na intersecção.
Luiz Jean Lauand me fez lembrar outro dia do poema curto de Nilson
Machado:

Amar, verbo lenitivo


Usa-se na voz ativa
Sujeito passivo

Amar não tem sentido só passivo, muito menos ativo, ocupa o meio-
campo, conjuga-se em voz média. Dizer que amo alguém é dizer o
quanto me amo também. É como quem diz “eu me confesso”: no
momento mesmo em que me revelo, a revelação é feita a mim
também. “Não se consuma uma confissão a mim senão pela confissão
ao outro”, diz Mário Bruno Sproviero. No momento em que falo a
alguém, o que falo me afeta. Sou sujeito da ação e seu alvo. Sou voz
média. O mundo dos deuses e dos homens numa só expressão.
Amor, humor [v] .

Seja qual for o sentido de origem, foram os latinos que nos legaram a
forma sintética “amor”, um significante com mil e uma utilidades,
aplicado a várias situações, não fragmentado como os quatro
vocábulos gregos. Mas, como vimos, mesmo os romanos davam a
“amor” um sentido diferente do atual.

Quando acontece isso com as palavras, elas revelam muito de nossa


visão sobre as outras pessoas, os preconceitos de época, os modos
como encaramos aqueles com quem nos relacionamos.

Várias são as palavras que flagram o pensamento de uma cultura, de


um povo, sobre aqueles com quem interagimos. Verdadeiras sagas
humanas se escondem sob o véu da mais insignificante palavra. Por
isso, pode ser muito útil recuperar essa antropologia de costumes que
é a etimologia.

Vejamos a trajetória da palavra “desejo”. Como lembra o filólogo


Flávio Di Giorgi, ela viria do verbo latino “desiderare”, descendente
que é da palavra sidus (estrela). Os adivinhos romanos usavam
“considerare” para o ato de decifrar o futuro por meio das estrelas.
Desiderare era o verbo para as pessoas que, desalentadas por
sucessivas previsões frustradas, não se amparavam nem mais na
leitura das estrelas, desistiam de especular sobre o futuro. Desiderare
é “desistir das estrelas”, daí “desejar” ser para Di Giorgi o mesmo que
dizer “tenho a certeza da ausência”. Se não tenho o que necessito, só
me resta desejar, ter a certeza da falta daquilo que não posso ter [vi] .
O sentido primevo de “desejo” é mais resignado e asséptico que o
sinônimo “querer”, significação bem mais impetuosa e diretamente
sensual, aplicada hoje ao verbo “desejar”. É como se a Antiguidade
protelasse uma aplicação menos pejorativa a palavras que instigam
afetos, como “amor”, “desejo” e “paixão”.

Faz sentido. A vida era imprevisível na Antigüidade. Culturas inteiras


eram invadidas e riscadas do mapa por inimigos e epidemias. Num
contexto tantas vezes precário, trágico e sangrento, natural a
predileção pela ordem, pelo comedimento e pelo diálogo. Era preciso
exorcizar todos os parênteses à razão, como a rebeldia, a ira, a
loucura, a arte e a vilania dos sentidos, que tanto perturbam a
percepção sóbria dos fatos, como fazem o prazer e o amor [vii] .

Foi assim que “orgê” (“agitação” ou “irritação”) virou a matriz de


“orgáon” (“desejo ardente”), o antepassado de “orgasmo” – essa
explosão de prazer que não tem controle, remédio ou hora marcada.
Nem nunca terá [viii] .

Vem da cultura patriarcal a idéia de que a mulher, futuro objeto de


devoção do amor cortês, era vista com suspeita e animosidade. E isso
se refletia no nível mais elementar da comunidade, que é a linguagem.

O termo jurídico para a esposa grega, “damar”, deriva da raiz que


significa “domar”, “subjugar”, “submeter”. Está no DNA do latim
“domina” (dono, dominador), que evoluiu no português até chegar a
“dama” no século 13. Sinônimo de aristocrata na Idade Média, “dama”
carrega a defesa de que a mulher subjugada é distinção respeitável
[ix] .

Até o século 16, não havia nome culto para órgão genital feminino. O
homem como imagem e semelhança de Deus, era a matriz anatômica
do Gênesis. A mulher era sua cópia piorada, veio da costela e o levou
à perdição. Como criatura de Deus, tem de ter os mesmos órgãos do
homem, mas, como ser inferior, ela os têm mal desenvolvidos, para
dentro.

Parteiras, médicos e anatomistas acreditavam no sexo único. A


mulher tinha pênis (vagina), prepúcio (os lábios), testículos (ovários) e
escroto (útero). “Aidoion” (pênis) era usado por Aristóteles no plural
“aidoia” como equivalente do latim “pudenda” (genitais de mulher e
homem). “Koleión” ou “koleos” (colhão) era sinônimo de “vagina”. A
confusão entre lábios e prepúcio data do século 10.
Por mera falta de necessidade, os elitizados “vagina”, “vulva”, “ovário”
e “útero” tinham outros usos até o século 17. Vagina era “bainha de
espada”, vulva era “porta de vai-vem”, ovário era a região das aves
que produzia ovos e útero era “barriga”, valia tanto para homem como
mulher [x] .

“Vagina” é a versão culta do hábito de associar a genitália feminina


(ou a própria mulher) a recipientes para o membro masculino, como
bolsas, caixas, sacolas e vasilhas. “Boceta” é termo pré-romano para
caixa de uma madeira muito comum entre os celtas. “Quenga” é
africano, a vasilha de coco em que os bantos de Angola comiam nas
senzalas. “Bruaca” vem do castelhano “bolsa de mendigo ou
peregrino” (“prostituta” ou “mulher velha”). “Cabaço” é associado à
cabaça, vasilha, como se fosse o tampo da vasilha ou a própria
vasilha.

Quando vira poder secular, o Vaticano proclama o ódio ao prazer a


dois. Para Santo Agostinho (354-430 d.C.), o ato carnal era aviltante
até dentro do casamento – toda criança já nasce contaminada pelo
pecado transmitido pela “semente” (sêmen). O concílio de Macon (585
d.C.) decide que um cadáver macho não deve ser sepultado ao lado
do corpo de uma mulher, antes que o dele se decomponha. Segundo
o papa Gregório I, o Grande (604 d.C.), a cópula macula um casal até
quando a meta é procriar. O bispo de Paris, William de Auverge, diz
no século 13 que o prazer retarda o desenvolvimento da alma [xi] .

É então que a palavra “espúrio” muda de sentido. Segundo Plutarco


(50-120 d.C.), o adjetivo “spurius” deriva de uma palavra sabina para
genitália feminina. Na Idade Média, é a criança ilegítima, que veio só
da semente da mãe [xii] .

O amor homossexual é igualmente maldito. Em 900 d.C., um ato


interfemural condenava o réu a pão e água por dois anos, tempo em
que não podia pisar na igreja. Se a falta avançasse para o coito anal,
a pena durava por sete anos. Em 1120, o Concílio de Nambus decreta
pena de morte, na fogueira, a quem praticasse a cópula anal. Luís 9
(1214-1270), da França, e Eduardo I (1239-1307), da Inglaterra,
adotaram a fogueira contra todos os pecados anais. Castrados e
pendurados pelas pernas até a morte foram os homossexuais
condenados por Afonso 10, o Sábio (1221-1284), rei de Leão e
Castela [xiii] .

Vem desse período a palavra “pudico”. “Pudicus” vem do grego


“podex” (ânus), de podice (o que dá ventosidades). Ser pudico é
manter-se honesto, casto. Ânus inviolado [xiv] .
A origem de “espúrio” e “pudico” mostra uma cultura ocidental que nos
legou séculos de desconfiança contra a companhia feminina ou
homossexual. Essa cultura tão raivosa teve sua animosidade inscrita
na própria língua. Como então ela resolve sua relação com um
sentimento tão compreensivo, como o amor?

Meu palpite é que não resolve. Opera mutações de sentido nas


palavras até adequá-las às mudanças de comportamento. Por isso,
“amor” e “paixão” se livraram do lodo passivo e chegam ao século 21
com sentido ativo consolidado. Se uma cultura não faz assim, deixa
sentimentos inteiros sem palavra adequada.

Sérgio Augusto lembra, com inveja, de palavras estrangeiras de uso


único, sem versão, que ele gostaria de ver popularizadas no Brasil. A
palavra russa “razbliuto” nomeia o sentimento carinhoso que temos
por quem já não amamos. Há um termo indígena da Terra do Fogo,
“mamihlapinatapei”, só para aquele olho a olho em que cada parceiro
espera que o outro tome a iniciativa, mas nenhum tem coragem de dar
o primeiro passo [xv] .

Curiosas as palavras raras que resumem situações não tão raras


assim. Muita coisa deixa de ser dita ou de ganhar nome porque
simplesmente a língua de uma cultura faz suas escolhas e dá suas
ênfases, de acordo com prioridades que se vão consolidando com os
anos.

A história das palavras usadas no amor é cheia de imprecisões e


reviravoltas de sentido, de voz ativa, passiva e média. Em mais de 20
séculos de uso, a própria palavra “amor” se reconfigurou, dançou
conforme a música, deu nome a sensações diferentes e muito mais
intensas do que caberiam em suas quatro letras.

Talvez por isso todo mundo fale de amor com propriedade, mas
ninguém sabe dizer direito o que é. Até que chega uma certa hora, o
olho no olho, o peito aberto como ferida, o coração na ponta da língua.
É então que 20 séculos de dúvida se dissipam, nenhuma outra palavra
se revela mais precisa, mais exata. E a única coisa cristalina e
inconfundível é aquilo que você só pode dizer dessa maneira e de
nenhuma outra mais, esse verbo intransitivo, que é a única verdade
daquele momento, a sua mais sincera verdade: “eu amo”.

Você também pode gostar