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Imagine-se na condição de ter que se dirigir a um lugar que você não conhece em sua cidade. Você
pede uma informação a um transeunte e toma o ônibus e a direção indicada por ele para chegar aonde
você deseja. Você desce do ônibus e verifica que chegou exatamente aonde pretendia chegar. Sua
sensação é de alívio, pois a informação dada foi precisa, e você obteve o que queria.
A linguagem que a pessoa utilizou para lhe dar a informação é a denotativa, em que o significante (a
palavra, escrita ou falada, imagem ou som) propicia a maior aproximação possível entre o significado (a
ideia mental que fazemos quando lemos ou ouvimos um texto) e o referente (o objeto real sobre o qual
fala o discurso). Assim, todos os textos referenciais se esforçam para que o leitor ou ouvinte tenha a
noção mais clara possível, de maneira mais aproximada, do fato acontecido. Isso ocorre com a linguagem
jornalística, técnico-científica, didática, jurídica etc. Embora elas nem sempre sejam claras como deveriam,
os seus produtores se esforçam para ser o mais objetivos possível.
A linguagem literária, por outro lado, funciona de forma diferente. Veja, por exemplo, os seguintes
versos de Henriqueta Lisboa:
COMENTANDO A POESIA
No fragmento acima, o texto aparentemente nos fala de uma
característica dos pássaros, embora possa parecer estranho os pássaros
assumirem traços próprios dos seres humanos. Entretanto, o sentido do
cantar dos pássaros pode perfeitamente ser ampliado para o “canto” da
poesia e do poeta, por exemplo, e nos remeter à ideia do fazer artístico. O
pássaro seria então a representação do artista, e o canto seria sua obra.
Temos aí uma linguagem propositalmente ambígua, polissêmica. Não há, da parte da poeta, intenção
de deixar as coisas bem claras. A indefinição é que confere a esse tipo de linguagem uma dimensão de
amplitude, que desafia o leitor a buscar o significado, que acaba sendo produto de alguma subjetividade
do receptor. Essa é a linguagem conotativa.
PARADA OBRIGATÓRIA
O texto abaixo é um verbete do Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés. Leia-o e
compare-o com o texto de nossa aula, para complementar sua compreensão do assunto. Procure o
citado dicionário na biblioteca de sua universidade, ou de sua cidade, e pesquise também outros
termos relacionados, como denotação, ambiguidade e metáfora. Tire todas as dúvidas com o seu
tutor.
CONOTAÇÃO POR MASSAUD MOISÉS
Com + notação; Latim cum + notatione (m), notação, marca, ação de
marcar conjuntamente.
VERSÃO TEXTUAL
AUTOR -> OBRA -> LEITOR -> OBRA
Considerando o mundo encenado pelo texto literário, constatamos que foi um ser humano que o
construiu. A esse ser nós denominamos geralmente escritor, ou autor, ou poeta, ou romancista, ou
contista. Entretanto, quando lemos um conto, ou um poema, ou um romance, escutamos uma voz que nos
fala, que não é necessariamente a locução do autor real. A essa voz, que é fictícia, chamamos narrador,
voz narrativa, locutor, voz poética, sujeito poético, eu-lírico ou eu-poético. Ainda pode acontecer, às vezes,
de termos um escritor fictício, isto é, um personagem de uma obra, que é um ser de ficção, atuando dentro
da escrita como um escritor.
Do outro lado da obra, temos o recebedor do texto. Ele pode ser o leitor ou o ouvinte, ou expectador, e
pertence ao mundo real. Ele é o ser que entra em contato com a obra, reflete sobre ela, recria o universo
fictício a partir de sua própria experiência de vida e sua cultura. Esse ser pode apresentar várias
denominações: leitor, recebedor, ouvinte, expectador, destinatário, alocutário...
Às vezes, essa diversidade de seres que de alguma forma participam do mundo literário pode levar a
alguma confusão quanto a quem é quem, e a que mundo este ou aquele ser pertence.
Vamos então exemplificar com uma obra que pode provocar uma atrapalhação no reconhecimento
dos seres e seus mundos. A obra em questão é Beira-Mar, do escritor Pedro Nava. O autor identifica a obra
como memórias; é, portanto, um texto em que Pedro Nava, já mais velho, conta a história de um jovem
personagem chamado Pedro Nava, que passa sua juventude em Belo Horizonte, nos anos em que cursou
a Faculdade de Medicina.
EXEMPLO
Considerando que a narrativa do autor Pedro Nava não é sua vida, mas a representação escrita
daquilo que o Nava idoso lembrou e escreveu sobre sua vida de jovem, podemos considerar aqui a
existência de pelo menos três seres que se envolvem com essa escrita.
Fonte [1]
Em primeiro lugar, temos o escritor, o autor Pedro Nava, que teve uma existência real, histórica,
que nasceu em 1902 e morreu em 1984, vítima de uma profunda depressão que o levou a suicidar-se
com uma bala na cabeça. Esse autor criou um narrador, também chamado Pedro Nava, que pertence
ao mundo da ficção, e que relata a história do livro. Esse Pedro Nava narrador nos conta os eventos
ligados à juventude de um personagem chamado Pedro Nava, também criado pelo autor Pedro Nava.
Temos aí, portanto, três seres que coincidentemente possuem o mesmo nome, mas que têm
existências próprias e diversas: há o Pedro Nava autor, o Pedro Nava narrador e o Pedro Nava
personagem. O primeiro pertence ao mundo real, e os outros dois habitam o mundo ficcional.
FÓRUM
No início dos anos sessenta do século XX, surgiu no mercado editorial brasileiro um livro no
mínimo curioso: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, negra, favelada, rudemente
alfabetizada. O livro, na época, vendeu perto de um milhão de exemplares, um verdadeiro fenômeno
editorial. A narrativa é o diário de uma favelada, também chamada Carolina Maria de Jesus, que relata
momentos difíceis de sua vida miserável, com dois filhos para criar, sem marido. A linguagem
utilizada por ela foi mantida na publicação do livro, e revela momentos de intensa poeticidade, embora
apresente desvios da norma culta, como se pode comprovar no trecho abaixo:
1 de julho. Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. (...) Quando
passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não
gosta que pega. Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os
caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus
semelhantes aproveitar.
Neste exercício, vamos refletir sobre a relação entre a obra e o mundo. Procure identificar, na
situação acima descrita, os seguintes elementos, apontando alguns traços que os caracterizem:
a autora;
a narradora;
a personagem principal;
o mundo real;
o mundo fictício.
Teoria da Literatura I
Aula 02: Conotação, Recepção, Autoria
Como se viu no tópico anterior, o autor é o criador da obra literária. Na moderna concepção do
fato literário, porém, não se atribui ao escritor o estatuto de senhor da obra, como se fosse um deus
onipotente que cria seres e faz deles o que quer.
A interferência da vida do autor no texto literário hoje é bastante relativizada. Sua biografia, seu
estilo de vida, suas crenças são elementos de importância secundária na análise de uma obra. A
compreensão do texto não se subordina mais nem à vida do escritor nem a sua intenção, ao seu
“querer dizer”. Pode-se até admitir, como dizia Marcel Proust, importante escritor francês do final do
século XIX e início do XX, que haja uma intenção existente no eu literário do escritor (um “outro eu”, um
eu fictício), e não no eu físico.
A obra literária, portanto, supera a intenção do autor — o texto sobrevive sem ela. Mesmo
admitindo-se a intenção do “outro eu”, a significação de um texto nunca se esgota nesse
propósito, o sentido do texto não é determinado necessariamente pelo “querer dizer” de
quem escreveu.
O abalo na autoridade do autor conforme a crítica literária atual derruba um outro mito do passado: o
“primado das primeiras recepções”. Como a obra está cronologicamente mais próxima do autor,
consideravam-se as primeiras leituras como as mais “corretas”, por serem circunvizinhas do autor e,
portanto, de sua intenção ou de seu desejo. Atualmente, não se considera mais a primazia da primeira
recepção sobre as demais. Ao contrário, as abordagens subsequentes tendem a enriquecer a obra, ou a
diversificar a sua compreensão. Compreender uma obra fora de sua época de publicação significa
compreendê-la diferente, e não pior ou melhor.
Para um melhor entendimento da autonomia do leitor perante a obra de arte literária, leia o texto “A
morte do autor (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)”, de Roland Barthes.
Porém, há que se entender que a obra literária não paira absoluta sobre um tempo e um espaço e sua
origem é, muitas vezes, ponto de enriquecimento para a interpretação, apesar de não ser obrigatória.
Alguns autores, como o brasileiro José de Alencar, ao buscar formar uma identidade nacional na
literatura brasileira, traçou um plano literário bem delineado e suas obras apresentam uma espécie de guia
de leitura que vem a ser motivo de crítica por alguns pensadores contemporâneos. No entanto, para um
maior enriquecimento do trabalho do autor, podemos entender que a interpretação de suas obras podem
ser feitas de duas maneiras:
ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
A QUESTÃO DA INTENCIONALIDADE
A controvertida questão da intencionalidade do autor na obra
literária é discutida no texto “Intenção e recepção em Iracema, de José
de Alencar”, de Cid Ottoni Bylaardt, publicado na Revista de Literatura
SCRIPTA, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em junho
de 2008.
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf
[2] (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Iracema. Lenda do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1985.
1 - http://www.ufmg.br/boletim/bol1386/PedroNav.JPG
2 - http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf