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ESSE ENTRE-LUGAR

DA LITERATURA
CONCEPÇÃO ESTÉTICA E FRONTEIRAS
© copyright 2013 by autores.

ORGANIZAÇÃO Aroldo José Abreu Pinto


Benjamin Abdala Junior
Agnaldo Rodrigues da Silva

EDIÇÃO Aroldo José Abreu Pinto

CONSELHO EDITORIAL DA ARTE E CIÊNCIA EDITORA

Coordenação Geral Suely Fadul Villibor Flory

Membros Ana Gracinda Queluz – UNICSUL


Anamaria Fadul – USP/INTERCOM
Arilda Ribeiro – UNESP
Antonio Hohlfeldt – PUC-RS
Antonio Manoel dos Santos Silva – UNESP/ UNIMAR
Benjamim Abdala Junior – USP
Jussara Suzi Assis Nasser Ferreira – UNIMAR
Letizia Zini Antunes – UNESP
Lucia Maria Gomes Corrêa Ferri – UNESP/UNOESTE
Maria de Fátima Ribeiro – UNIMAR
Maria de Lourdes Zizi Trevisan Perez - UNESP/UNOESTE
Maria do Rosário Gomes Lima da Silva – UNESP
Raquel Lazzari Leite Barbosa – UNICAMP/UNESP
Romildo A. Sant’Anna – UNESP/UNIMAR
Rony Farto Pereira – UNESP
Soraya Regina Gasparetto Lunardi – UNIMAR
Sueli Cristina Marquesi – PUC/UNICSUL
Tereza Cariola Correa – USP/UNESP
Terezinha de Oliveira – UNESP/UEM
Walkiria Martinez Heinrich Ferrer – UNESP/UNIMAR

EDIÇÃO E ARTE FINAL


DE CAPA E MIOLO Aroldo José Abreu Pinto

CORRESPONDÊNCIA

Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL


UNEMAT - Campus de Tangará da Serra
Rodovia MT - 358, Km 07, Jardim Aeroporto
Tangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000.

Os conceitos, as informações e as afirmações contidas em cada capítulo são de inteira


responsabilidade do(s) autor(es) que assina(m) o texto.

Proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização expressa dos(as) autores(as).
(art. 184 do Código Penal e Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 do Código Civil Brasileiro de 2002).
AROLDO JOSÉ ABREU PINTO
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
AGNALDO RODRIGUES DA SILVA
(ORGANIZADORES)

ESSE ENTRE-LUGAR
DA LITERATURA
CONCEPÇÃO ESTÉTICA E FRONTEIRAS

2013
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Dados Internacionais de Catalogação da Biblioteca da Universidade do Estado de Mato


Grosso - UNEMAT (Campus de Alto Araguaia/MT)

82.09 Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras / Aroldo


N241 José Abreu Pinto, Benjamin Abdala Junior, Agnaldo Rodrigues da
Silva (Organizadores). São Paulo: Arte e Ciência, 2013.
318 p.; 21cm.
Inclui Bibliografia

ISBN 978-85-8280-027-0
1. Crítica Literária. 2. Estética Literária. 3. Literatura - História e Crítica.
I. Pinto, Aroldo José Abreu. II. Abdala Junior, Benjamin. III. Silva, Agnaldo
Rodrigues.

CDU 82.09
Índices para catálogo sistemático:
1. Crítica Literária CDU – 82.09
2. Estética Literária CDU – 82:111.852
3. Literatura - história e crítica CDU – 821.09

Arte & Ciência Editora


LDE – Livraria, Distribuidora e Editora LTDA - EPP
Av. Paulista, 2.200 – Consolação – São Paulo – 01310-300
Tel. (011)3258-3153 – www.arteciencia.com.br

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................... 7

1 - FLUXOS CULTURAIS ASSIMÉTRICOS E


REFLEXÕES COMUNITÁRIAS
BENJAMIN ABDALA JUNIOR ...............................................11

2 - DESDOBRANDO AMÉRICAS: LITERATURA E


SOLIDÃO
VERA MAQUÊA ..................................................................27

3 - CÂNONE E SILENCIAMENTO: NOTAS PARA O


EXERCÍCIO CONTEMPORÂNEO DA LITERATURA
COMPARADA
MÁRIO CÉSAR LUGARINHO ...............................................53

4 - GUIMARÃES ROSA, LUANDINO VIEIRA E A


TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA
OLGA MARIA CASTRILLON-MENDES E VIMA LIA MARTIN..83

5 - RICARDO RAMOS E A TERCEIRA MARGEM


AROLDO JOSÉ ABREU PINTO ..........................................103

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

6 - RICARDO DICKE E O ROMPIMENTO DA


ESTÉTICA REGIONALISTA
MADALENA MACHADO .....................................................125

7 - TRAGÉDIA ANTIGA E NARRATIVAS


CONTEMPORÂNEAS: REFLEXÃO ACERCA DOS
FUNDAMENTOS A PARTIR DA ROMANESCA
MATO-GROSSENSE
DANTE G ATTO ...............................................................151

8 - A ESTÉTICA DO TEATRO FUTURISTA


AGNALDO RODRIGUES DA SILVA .......................................177

9 - DIÁRIO DA CONQUISTA DE VERA CRUZ: O


FASCÍNIO DO MAR, O GOSTO DO PODER E O SAL
DAS VICISSITUDES
BENJAMIN RODRIGUES FERREIRA FILHO ........................205

10 - TENSÕES ENTRE FRAGMENTOS DE


EVIDÊNCIA, SUSPENSÃO DO URGENTE E
REALIZAÇÃO ESTÉTICA NO JORNALISMO
LITERÁRIO
LILIAN REICHERT COELHO .............................................241

11 - O ASSOMBRO COMO ORIGEM DA


LITERATURA MEXICANA
MARÍA EUGENIA FLORES TREVIÑO .................................271

12 - LUZIA-HOMEM – UM FEMININO (RE)


SIGNIFICADO
ELISABETH B ATTISTA ......................................................297

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

APRESENTAÇÃO

E sse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras


é um livro que oferece ao público leitor um campo
temático específico de investigação, com textos que
discutem aspectos relacionados à estética e às concepções
que se localizam no âmago das manifestações artístico-
culturais, a partir dos estudos literários. Permeados pelas
discussões que atestam linhas de pesquisa que se
consolidaram no campo da literatura, história, memória
e cultura, bem como literatura e vida social, esta coletânea
é um indicativo de leitura àqueles que pretendem
verticalizar os conhecimentos, a respeito de questões que
articulam o entre-lugar, a concepção estética e a
compreensão sobre fronteiras.
Quando discutimos a produção cultural, o entre-lugar
apresenta-se como um interstício, um local ainda não
definido que, por isso, lança o leitor contemporâneo ao
desafio da compreensão de uma criação literária dinâmica,
não-fixa, portadora de um movimento que flui em diversas
direções, com intuito de construir um porto seguro que
possa dar novos rumos à produção literária. Nessa direção,
o singular se torna plural, o puritanismo cede lugar aos

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

processos de produção que articulam diversos sistemas,


produzindo um comunitarismo cultural.
Cria-se, portanto, uma passagem entre fronteiras,
incidindo na quebra entre “muros” culturais, sem digressões,
e, sobretudo, edificando uma complexa teia onde convivem
as diferenças. O sujeito-leitor deixa de ser fragmentado e
se torna mais completo, consequência de seu contato com
a totalidade mundial, pois ele não é somente fruto de seu
reduto nacionalista, porém partes que compõem e, ao
mesmo tempo, compreendem o universal. A obra literária
não lhe é mais um recorte do mundo, mas uma visão
totalizante da vida.
Todos esses aspectos forçam novas formas de
concepção estética, tanto na literatura quanto na arte. Pensar
a multiplicidade de culturas é também discutir as dicotomias
que persistem na literatura contemporânea; processo que
pressupõe posicionamentos críticos sobre o que se
considera centro e periferia, local e universal, sob uma
perspectiva que redimensione o lugar da cultura nos tempos
atuais. Entram em foco as noções de solidariedade entre
literaturas, hibridismo, multiculturalismo, fronteiras.
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras,
portanto, apresenta artigos e ensaios que permitem uma
construção de saberes entre fluxos culturais assimétricos,
somados às reflexões comunitárias; relações literárias entre
as américas; cânone e silenciamento, frente à
contemporaneidade da literatura comparada;
transculturação narrativa; estudos sobre a crônica e o conto;
estética regionalista; estética do teatro e narrativas
contemporâneas; literatura de viagens; estética no
jornalismo literário; e a temática do feminino no romance
brasileiro, a partir de exemplaridades significativas de

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

sistemas literários diversificados. Trata-se de temas que têm


movido às discussões dos pesquisadores da área dos estudos
literários, frente às atuais tendências que as literaturas
impõem na formação de uma nova escola literária, hoje
em formação.
A literatura, compreendida como arte humanizadora,
potencialidade que permite ao ser humano o preenchimento
de lacunas, requer sensibilidade e criticidade para que se
perceba o seu entre-lugar, o valor estético, as fronteiras
sobre as quais tem sido construída ao longo dos momentos
históricos, que são diversos. Sem que falássemos da obra,
como a narrar um romance ou filme, que ao espectador ou
leitor perderia a “graça”, ficam os indicativos sobre os
temas discutidos neste livro, por meio de textos produzidos
por intelectuais que têm se destacado no meio acadêmico e
cultural de partes diversas do país.

São Paulo, 14 de novembro de 1013.

AGNALDO RODRIGUES DA SILVA

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

FLUXOS CULTURAIS ASSIMÉTRICOS E


REFLEXÕES COMUNITÁRIAS

BENJAMIN ABDALA JUNIOR


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

As relações comunitárias supranacionais são, hoje,


laços de uma sociedade que tende a se organizar em redes.
Em relação aos países de língua portuguesa, esses laços
linguístico-culturais formaram-se através de uma experiência
histórica comum, associada ao sistema colonial. Os
primeiros colonizadores da América Latina vieram da
região, que os árabes chamaram de Al-Ândalus. Algarve
provém de Al-Gharb al-Ândalus (Andaluzia Ocidental), que
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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

abrangia o atual Algarve e o baixo Alentejo. A maior parte


da população popular de Lisboa, na época dos
Descobrimentos era de origem moura. Eram regiões
culturalmente híbridas, para onde confluíram muitas culturas
da bacia cultural mediterrânea. Alargando as observações,
poderíamos afirmar que a bacia mediterrânica, na
perspectiva de um campo que se organiza em rede, constitui
um nó multívoco, pelos cruzamentos histórico-culturais
entre a Europa, África e Ásia. No processo de colonização
das Américas, seu repertório híbrido e polissêmico veio a
misturar-se ainda mais pelas interações com os povos
ameríndios e africanos. Entendemos que esses países ibero-
americanos e, mesmo ibero-afro-americanos, reúnem
condições, na atualidade, para a constituição de um bloco
comunitário, que, ao lado de outros, mais restritos ou
abrangentes, poderão vir a reunir condições de colocar
limites às assimetrias imperiais dos fluxos culturais.
Temos argumentado que o mundo configura-se cada
vez mais como de fronteiras múltiplas e as identidades
devem ser vistas no plural1. Em termos de aproximações
linguístico-culturais, impõem-se horizontes plurilíngues e
reciprocidades em termos de poder simbólico. Em nosso
caso, para além das notórias laçadas para os países de língua
espanhola, há a variedade e amplitude das redes
comunitárias. Num mundo onde o inglês acabou por se
constituir numa espécie de língua franca, é necessário que
falemos também em português e outros idiomas, inclusive
no campo tecnológico. Em termos linguísticos, não apenas
como língua de cultura, mas de ciência.

1
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio
sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Muitas redes comunitárias supranacionais têm-se


firmado em escala planetária, como os movimentos de
gênero, de defesa e promoção dos direitos humanos, da
ecologia, etc. Estabelecem-se, assim, campos de
interlocução, para além das fronteiras de estado,
constituindo possibilidades de contrapontos à monologia
dos fluxos hegemônicos. Tais campos, múltiplos, da vida
comunitária supranacional, reúnem condições de contribuir
para interferir democraticamente na vida social, numa linha
onde a particularidade nacional tende a se articular em rede
supranacional. Talvez seja possível continuar a sonhar, como
no passado, e tendo em vista um futuro não distante, com a
possibilidade de que um trabalhador norte-americano venha
a se preocupar com o salário de um outro trabalhador, da
América Latina ou da Ásia. É verdade que isso só terá
condições de ocorrer a partir da consciência desse
trabalhador – a crise é sistêmica, com efeitos globalizadores
– de que o salário do outro trabalhador implicará na
definição de seu próprio salário. Teríamos assim a
possibilidade de uma desejável vinculação entre o
comunitário e o social.

Um mundo misturado, reconfigurações

Neste momento de crack do capitalismo financeiro e


de reconfigurações de estratégias, parece-nos
imprescindível que a crítica assuma uma atitude mais ativa
para criar ou redesenhar, com matização mais forte,
tendências de cooperação e solidariedade. E, se possível
fazer confluir, para a interlocução comunitária, bases para
a ação política na forma de blocos. Blocos politicamente
mais eficazes para estabelecer contrapontos à monologia

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

da competitividade que tem marcado o processo


globalizador e que chegou a seu paroxismo, enquanto
ideologia dominante à escala planetária, na situação
anterior ao crack financeiro.
Entretanto, como diz Riobaldo, personagem de
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, o “mundo é
muito misturado”, e a personagem fica angustiada pelo
fato de que não divisa a possibilidade de pastos bem
demarcados. Busca uma racionalidade binária, como se a
razão não envolvesse matizações de todo um feixe de
possibilidades:

Careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado
esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os
todos pastos demarcados… Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este
mundo é muito misturado […]2

De forma correlata, se, da economia ao campo cultural,


houve efeitos perversos dos modelos articulatórios do capital
financeiro, que flexibilizaram fronteiras para impor a ordem
hegemônica, por outro lado, o princípio da contradição, fez
emergir atitudes reativas e esse enfraquecimento favoreceu o
fortalecimento de ações comunitárias, pelas brechas dessa
política. Nesta nova situação, que se afigura pós-neoliberal,
podemos nos permitir o otimismo desta afirmação, as
associações comunitárias tornam-se ainda mais urgentes, e
envolvem a possibilidade de novas articulações, para além
das tradicionais. É de se lembrar a emergência do chamado
2
29. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 191-192.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China -, entre outras


possibilidades.
Nessa ampliação, em geral, das interlocuções entre
países e blocos, abre-se agora a possibilidade de um melhor
diálogo, inclusive em relação aos próprios Estados Unidos,
na possível reconfiguração da política desse país. Em nível
de Estado, evidentemente os Estados Unidos procurarão
estabelecer novas bases, para que continuem a preservar as
assimetrias no campo das circulações culturais e de
promover a aceitação das formulações discursivas que
inculcam e naturalizam seus pressupostos particularistas
como universais. Na nova configuração internacional que
se esboça, em meio à crise, abre-se a possibilidade de uma
maior abertura, já que o momento também é de mudança
de paradigmas. Isto é, dos escaninhos, em termos de
conhecimento, que são as circunscrições pelas quais
aprendemos a pensar o mundo.

Cooperação, reciprocidades

Em relação à produção literária, esta cada vez mais


exige a compreensão do sentido supranacional dos fluxos
culturais, com destaque para o comparatismo literário. Foi
decorrência histórica, no Brasil, nos estudos de literatura
comparada, a afirmação de um comparatismo que veio das
imposições de nosso processo de colonização. Verificar
essas bases tem sido uma forma de nos situar diante dos
fluxos inclinados à colonização de nosso imaginário. Trata-
se de um comparatismo importante e necessário para o
nosso autoconhecimento. Nas atitudes de atores culturais
do passado podem ser configuradas linhas que são
imprescindíveis para a melhor compreensão de nossa

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

atualidade sociocultural. Entretanto, a restrição a esse


comparatismo não nos parece suficiente, em termos
político-culturais. Temos proposto uma outra forma de
comparatismo, para figurar ao lado desse primeiro, que com
ele acaba por se imbricar na prática comparatista. Um
comparatismo prospectivo, pautado por relações
comunitárias, um comparatismo da solidariedade, da
cooperação. Comparar diante de problemáticas que nos
envolvem a todos para nos conhecer naquilo que temos de
próprio e em comum. Enlaces comparatistas, tendentes a
relações de reciprocidade.
É evidente que qualquer novo recorte que implique
ações de ordem política poderá fazer emergir novas formas
de hegemonia. Mesmo quando nos empolgamos com o
estabelecimento de laços de cooperação, é preciso atentar
para hábitos culturais arraigados, que incorporam gestos
hegemônicos nas relações entre países e regiões, em
situações de aparente reciprocidade. Lembramos, para
ilustrar, um comentário do crítico cubano Roberto
Fernández Retamar3, que afirmava gostar de alguns críticos
europeus que, de maneira simpática, diziam que o Caribe
era o Mediterrâneo americano, mas que ficaria muito mais
satisfeito se eles viessem também a dizer, imaginamos, sem
constrangimentos, que o Mediterrâneo é que seria o Caribe
europeu...
O processo colonial fixou hábitos, repertórios
literários e culturais, que vieram dessa experiência histórica
e dos contatos culturais entre povos que até então não se
conheciam. Se há hoje toda uma inclinação crítica para

3
Para el perfil definitivo del hombre. 2. ed. corrigida e aumentada. La Habana: Letras
Cubanas, 1995.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

mudanças de paradigmas, sejam eles filosóficos, estéticos,


em relação às áreas do conhecimento, entendemos que essa
tendência não pode se naturalizar sobre um rótulo genérico
de um “pós”, uma redução ao obsoleto de toda uma
experiência que se consubstancia no presente. Pior ainda
pode ocorrer em relação às instâncias políticas, onde o
“pós”, afeito às condições da mídia e dos produtos moda,
procura tudo reduzir a uma tabula rasa, sem passado.

Pós-colonialismos

Temos de levar na devida consideração o fato de que


a teorização pós-colonial tem discutido convenientemente
questões relativas à globalização, aos deslocamentos dos
povos e ao processo de americanização do mundo, sob o
impacto da mídia e do consumo mercadológico. Em
relação às questões político-sociais, entretanto, ela pode
tender a inclinações genéricas. São igualmente pós-coloniais
quaisquer sociedades marcadas pelo colonialismo, sem
maior consideração sobre sua historicidade, nivelando países
que se emanciparam no período pós-Segunda Guerra
Mundial, aos que se emanciparam desde o século XIX. Falar
de pós-colonialismo, sem consciência dessas especificidades,
implica nivelar uma cultura como a do Canadá, ou da África
do Sul, por exemplo, à complexa situação cultural da Índia
– ambas ex-colônias britânicas. Só uma análise sociocultural
pode revelar de que pós-colonialismo se trata. Essa situação
se torna ainda mais complexa, se vinculada – como acontece
– à ênfase diaspórica dos estudos pós-coloniais. Coloca-se
novamente a necessidade de se considerar de onde fala o
crítico e os laços socioculturais que acabam por enredar
suas formulações discursivas.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Como se observa na bem humorada, mas irônica


observação de Retamar, as linhas de construção do
imaginário associado a um campo intelectual, enquanto
forma, continuam a atuar para além da situação de origem.
São atualizadas muitas vezes com marcas do poder
simbólico hegemônico, que vem de situações históricas
específicas e que não podem ser escamoteadas. O
pensamento crítico não pode descartar, através de um
prefixo “pós”, cinco séculos de contatos e assimetrias
culturais, inclusive o repertório cultural que foi construído.
O grande problema, voltando-nos ao conceito de pós-
colonialismo, é de que ele pode levar a atenuar o que é
fundamental ao ato crítico: uma visão crítica e atuante, capaz
de problematizar fatos histórico-culturais, que vieram de
experiências históricas que têm suas particularidades.
São muitos os pós-colonialismos. Há, por exemplo, o
pós-colonialismo do ex-colonizador, que encontramos num
romance como Os cus de judas, de Lobo Antunes4; e, para
contrastar, o do ex-colonizado, como em Mayombe, de
Pepetela5. O primeiro vai desconstruir mitos e fazer de sua
memória individual um depoimento que se quer história.
Pepetela, numa direção oposta, embala-se por mitos, sem
deixar de criticar indivíduos que se querem mitos. Nessa
crítica, evidencia posturas etnocêntricas do passado que se
reproduzem no presente. Em Lobo Antunes, enfatiza-se a
desconstrução dos mitos e a distopia; em Pepetela, na
formação de um novo estado nacional, a construção e a
utopia. Há ainda o pós-colonialismo dos colonizadores que
permaneceram na metrópole e dos ex-colonizados que

4
Os cus de judas. Lisboa, Editorial Veja, 1979.
5
São Paulo: Ed. Ática, 1982.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

migraram. A clara delimitação do chamado lócus


enunciativo e de sua historicidade é, pois, imprescindível
para uma crítica que pretenda afastar-se da generalidade.

Mimetismo cultural e relações de poder

Refletir sobre especificidades nacionais implica situá-


las num processo de agenciamentos comunitários que tem
um solo histórico e relações de poder simbólico. Temos
destacado o sentido político de se discutir literatura no
âmbito do comunitarismo ibero-afro-americano, mas –
voltamos a insistir – as articulações comunitárias podem
ser de muitas ordens e politicamente nos parece importante
relevar que o mundo atual é de fronteiras múltiplas e
identidades plurais, seja numa perspectiva individual ou
nacional. São interações que levam à consideração de um
complexo cultural híbrido, interativo, onde a cultura
brasileira, por exemplo, é multifacética e se alimenta
produtivamente de pedaços de muitas culturas, sem deixar
de sofrer os efeitos das assimetrias dos fluxos culturais. Tais
considerações, para além das especificidades nacionais, torna
necessária a consideração do repertório enfaticamente
híbrido de nossa formação cultural. Na apropriação desse
repertório, a consciência dessa historicidade e relações de
poder que ensejou, pode contribuir para o afastamento de
produções miméticas, afins da convenção ou do estereótipo.
Tal sentido crítico contribui para o desenvolvimento de
inclinações abertas à criatividade e que às vezes acabam
para o questionamento de espartilhos ideológicos e
identidades míticas. Foi o que ocorreu, por exemplo, com
o poema “Camões: história, coração, linguagem”, de Carlos
Drummond de Andrade. Escrito numa situação histórica

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

pós-Revolução dos Cravos. Ao se apropriar de imagens e


procedimentos poéticos camonianas, ele estabeleceu um
diálogo com a historicidade das leituras do poeta português
e a da nova situação histórica, democrática, de Portugal:

Dos heróis que cantaste, que restou


senão a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
os barões nos jazigos dizem nada.6

Nessa desideologização das apreensões


conservadoras, em especial da época salazarista, sem deixar
de seguir imagens e ritmos camonianos, o poeta brasileiro
termina por afirmar:

Luís, homem estranho, que pelo verbo


és, mais que amador, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascente, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.
És a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dor de todos os homens, musical,
na voz de órfico acento, peregrina.

A identificação no repertório comum não implica,


assim, mimetismo. A distância crítica advém não apenas
através da perspectiva de um brasileiro, mas sobretudo de
quem estabelece suas bases poéticas na persistência de uma
mesma linguagem comunitária. Ampliando essas
observações, podemos afirmar que são importantes do

6
Apud ABDALA JUNIOR, Benjamin. Camões – épica e lírica. São Paulo: Editora
Scipione, 1993. p. 62.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ponto de vista crítico estudar esses diálogos, embutidos –


explicitamente ou não - nos repertórios literários, que
circulam entre os países de língua portuguesa. Por outro
lado, relevar as relações de poder que envolvem essa
circulação é uma forma de se afastar da celebração, seja da
mimese ou de um pretenso sincretismo ou do hibridismo,
que desconsidera as relações de poder e encaminha atitudes
assimilacionistas tendentes à cultura do colonizador e suas
implicações no que tange à cooptação política. Não se pode,
entretanto, deixar de considerar devidamente o fato de que
a plasticidade da língua literária portuguesa vem desde sua
formação nos tempos medievais e só pode ser estudada
adequadamente na dinâmica das tendências dos campos
intelectuais supranacionais, nos processos de mundialização
das culturas européias.

Além da cor da pele

À flexibilidade da circulação dos produtos culturais,


ao ritmo nômade do capital financeiro, que se articula em
rede, sempre reduzindo distâncias por velocidade, sempre
desdobrável, parece-nos importante contrapor estratégicas
contra-hegemônicas, associadas aos comunitarismos
supranacionais. Esse processo vertiginoso de
estandardização dos produtos culturais, por parte da
economia de mercado, não se restringe à estandardização
de massa. Convém não nos esquecermos de que a
hegemonia possui bases amplas, que não deixam de ser
mercadológicas, e procura incorporar em suas redes mesmo
a contestação de seu próprio sistema. Trata-se da
perspectiva da administração da diferença, que temos
insistido em apontar. A diferença como administração

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

política e abertura de nicho de mercado. Noutro sentido,


esta incorporação pode contribuir para a dinamização do
sistema: mudar para que as coisas continuem estruturalmente
as mesmas. Ou, como aparece no livro/filme O leopardo, de
Giuseppe Lampedusa/Luchino Visconti, “É preciso que
algumas coisas mudem, para que tudo continue na mesma”.
A emergência parcial do novo, sob controle político-social
das estruturas pré-estabelecidas e que faz valer sua
hegemonia para controlá-lo, ao mesmo tempo em que se
beneficia de sues influxos para atualizar suas redes numa
nova configuração histórica.
Não há, entretanto, para a crítica empenhada, como
fugir dessa situação, sob pena de fechar o seu campo de
reflexões em perspectivas isolacionistas. Impõem-se, ao
crítico que ele entre nessas águas, cuidando para não perder
a direção de seu projeto e ser cooptado pelo aparente
nomadismo dos fluxos, que afinal se mostra sempre
confluentes para as bases hegemônicas. Esta é uma questão
política, que se imbrica em rede com a vida sociocultural.
Para tanto, tendo em vista a necessidade de uma atitude
prospectiva, conforme temos enfatizado, o crítico não pode
se limitar exclusivamente a atitudes de negatividade crítica,
embora esta não deixe de ser sempre um seu contraponto
imprescindível. Do ponto de vista político, entendemos,
que fundamentalmente deve se embalar por uma espécie
de otimismo crítico, para dar continuidade, sob novas
formas, a gestos, que vieram do passado, com atores
imbuídos da esperança de que a vida social poderia ser
melhor do que é. Observe-se, nesse sentido, o seguinte
fragmento do poema “Coração em África”, do são-
tomense Francisco José Tenreiro, que temos reiteradamente
apontado quando discutimos a circulação cultural do campo

22
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

intelectual do após-Guerra, tal como ocorreu nos horizontes


ibero-afro-americanos e na atmosfera da guerra fria:

(...) de coração em África com as mãos e os pés trambolhos


[disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores
[do mar e dos meninos
ranhosos viciados pelas olheiras fundas das gomas de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria
[cor da pele
7
dos homens brancos amarelos negros (...)

Tenreiro é um dos atores do campo intelectual dos


anos de 1950, para quem “a pretidão do mundo (...)
ultrapassa a própria cor da pele dos homens brancos
amarelos negros”. Seu poema ilustra não apenas o
comunitarismo cultural que se faz pela ibero-afro-américa.
Noutras passagens – é um poema longo -, aponta para
atitudes libertárias de personalidades negras da África,
Caribe e Estados Unidos.
Os atores de um campo intelectual supranacional –
situem-se nas esferas do centro ou nas margens (há as
margens dos centros e os centros das margens) –, que se
pretenderem efetivamente críticos, não podem ignorar as
relações de pertencimento desses sujeitos. São laços que
levam à vida sociocultural e que não podem ser
escamoteados, em função da própria objetividade da crítica.
Mesmo quando se adote atitudes como se estivessem em
situações psicossociais de migrantes, o diálogo não se faz

7
ANDRADE, Mario de & TENREIRO, Francisco José. Poesia negra de expressão
portuguesa. Ed. Fac-similar organizada por Manuel Ferreira. Linda-a-Velha, África
ed., 1982. p. 68.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

em abstrato, mas com culturas diferentes, provenientes de


experiências históricas que têm singularidades e motivações
políticas. E estar nos Estados Unidos não é como estar no
Brasil ou em qualquer outra parte do planeta, como aparece
em certos discursos tendentes à neutralização da diferença
e à sublocação do mesmo. Se os óculos críticos advindos
dessa circulação cultural podem aguçar a percepção, em
função da própria criticidade eles não podem implicar
convergências óticas inclinadas à preservação da continuada
colonização do imaginário nas regiões ou países situados
na periferia do capital.
Fazem parte do processo de colonização das margens
considerações acríticas, dissociadas da situação
sociocultural e, sobretudo, da atualidade histórica. Nesse
sentido, o crítico não pode se ater à performance narcisista
que seria própria de quem está de passagem, na apologia
de um aparente descompromisso, afim do hiper-
individualismo da situação anterior ao crack financeiro.
Ao adotar posturas afins de uma espécie de relativismo
nômade, acaba por limitar-se a resvalar-se nos obstáculos,
sem manter laços situacionais para além do efêmero do
discurso da moda. No fundo, espartilha-se em parâmetros
circunscritos, com dimensões pré-estabelecidas. Limitar-
se a elas, significa restringir-se a cursos monológicos,
mesmo que estes possam se erigir como efêmeras
passarelas. Uma práxis crítica efetivamente séria não
permanecerá restrita a esses enquadramentos discursivos,
alheia a outros laços, dialógicos, sobretudo àqueles que
levam a um nó multidiscursivo, conectado com
discursividades que o levam do mundo da cultura ao chão
político-social. Mesmo o migrante – é de recordar o caso
paradigmático de Edward Said – conecta-se através de

24
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

redes, reside em determinados espaços e vincula-se a


malhas sociais definidas.

REFERÊNCIAS

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais:


um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo:
SENAC São Paulo, 2002.
- Camões – épica e lírica. São Paulo: Scipione, 1993.
ANDRADE, Mario de & TENREIRO, Francisco José. Poesia negra
de expressão portuguesa. Ed. Fac-similar organizada por Manuel
Ferreira. Linda-a-Velha, África Ed., 1982.
LOBO ANTUNES, António. Os cus de judas. Lisboa, Editorial Veja,
1979.
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.
RETAMAR, Roberto Fernández. Para el perfil definitivo del hombre. 2.
ed. corrigida e aumentada. La Habana: Letras Cubanas, 1995.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 29. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio Ed., 1986.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

26
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

DESDOBRANDO AMÉRICAS:
LITERATURA E SOLIDÃO
VERA MAQUÊA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

Nos espelhos cabem todas as coisas, até mesmo outros espelhos, os


espelhos estão sempre cheios de espaços dentro deles, o dobro do
espaço infinito, embora invertido. Os espelhos não se cansam nem
se enchem porque nada guardam, estão sempre disponíveis para
receber mais. E quebra-se um espelho e todo aquele espaço, de si
já infinito, se multiplica tantas vezes quantos os fragmentos desse
espelho resultarem, que não são mais que novos espelhos cheios que
não guardam nada.
João Paulo Borges Coelho in: A cidade dos espelhos.

Para estudar a literatura da América Latina é


incontornável a passagem pelo escritor colombiano, Gabriel
García Márquez. Se nos detivermos sobre alguns de seus
romances, logo somos convidados a apreender formulações
poéticas próprias do contexto da expansão da literatura
Latino-americana da segunda metade do século XX. A
partir de Cem anos de solidão, romance do autor publicado
em 1967, podemos verificar em linhas gerais três aspectos
27
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

que ainda merecem ser investigados: a concentração poética


da linguagem que integra a narrativa pela categoria temporal
manifesta na sintaxe; a referência de um lugar construído a
partir da experiência política da Colômbia; e a localização
e o diálogo históricos do romance no interior da chamada
novela de violência colombiana, de modo a investigar como
a história e a literatura são tecidas na trama ficcional, ao
final, articulações múltiplas de sentidos que se desdobram
no espectro do espelho. O romance resulta numa
extraordinária visão crítica das relações políticas opressivas
que têm dominado a história dos países na América latina.
Se proporcionalmente a escritores como Jorge Luís
Borges e Mario Vargas Llosa, por exemplo, é avara a crítica
sobre a obra geral de Gabriel García Márquez, não se pode
dizer a mesma coisa sobre Cem anos de solidão,
especificamente. Esta obra se apresenta como um desafio
para quem se propõe a estudá-la, justamente pela esparsa e
afortunada crítica, que se apresenta em larga proporção e
em diversa ordem como uma provocação e uma aventura,
dada a multiplicidade de abordagens, de métodos de leitura
e de construções críticas sobre este texto, a obra-prima de
García Márquez. Poderíamos então partir do primeiro
aspecto, rumo ao encantamento e à perspectiva inventada
no interior desta obra: a concentração poética da linguagem
que constitui a narrativa pelo investimento na categoria
temporal que se manifesta na organização do texto, expressa
na sentença que abre o romance:

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o


coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde
remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
(MÁRQUEZ, 2001, p.7)

28
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Esta construção sintática aparecerá com algumas


variações no decorrer do romance comunicando situações
semelhantes de articulação da memória numa experiência
limite – diante do pelotão de fuzilamento – núcleo do
leitmotiv. Sempre empenhada no recurso da prolepse e da
analepse, esta construção permite transcender uma eventual
estagnação do tempo da narração ou na narrativa e alcançar
o jogo final dos espelhos. Com esse mote, o narrador
retomará precisamente seis vezes a história dos Buendía. O
poder inicial da forma se espraia por todo o romance não
pelo volume de repetição, mas pela força e ressonância que
imprime no texto, cuja capacidade de perdurar no espírito
do leitor demonstra que algo a vincula à totalidade da
narrativa de maneira particularmente significativa, o que
anuncia a sorte das gerações dos Buendía.
De fato, todas as vezes em que aparece, esta construção
indicia um acontecimento extraordinário que localiza
momentos decisivos na vida das personagens, e na economia
ampla do texto. Se as camadas flutuantes do tempo se
inscrevem como prefiguração fundamental dessa narrativa
– declarada já no título do romance – é menos pela sua
dimensão de categoria do pensamento que pela qualidade
de sua substância, ou seja, a solidão que o compõe.
Existem três planos temporais fundantes neste início:
Muitos anos depois é um convite instigante da convenção
literária para o ingresso no mundo ficcional, e relaciona-se
ao universo da fabulação, do devaneio e da fantasia. Se o
romance inicia-se com um gesto primordial de certa
atemporalidade, nesta primeira escritura, o narrador lança-
se em movimentos de avanços e recuos que vão se repetir
até o final da narrativa. Como poderia o narrador contar
algo sobre o que já tenha conhecimento no primeiro período

29
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

e depois abandonar-se ao desenvolvimento da narrativa,


fazendo-a parecer-lhe tão ignota quanto ao leitor, em face
do passado e do futuro dos Buendía?
No entanto, é exatamente este jogo do narrador que
adianta uma primeira informação, a saber, que uma
personagem, o Aureliano Buendía, num determinado
momento da história estará diante do pelotão de
fuzilamento. Se considerarmos que os fatos são narrados
de maneira engenhosamente despojada a ponto de todo o
sentido do maravilhoso parecer soterrado pela trivialidade,
podemos compreender as artimanhas deste narrador-
contador de histórias. A sintaxe de abertura da narrativa é
a medida mais exata de todo o conteúdo de espelhos que
se desdobrarão no decorrer do desenvolvimento da ação.
Até então, nada se sabe: quem é o Coronel, o porquê e o
como ele chegará no limite da vida com a morte. Entre o
aparecimento e o fim da vida da personagem, só o que
temos é a criação de uma expectativa, toda ela fabulatória
e fabulosa engendrada de perspectiva que vem da
necessidade de conhecer plantada pelo narrador, cuja
matéria se anuncia como um imenso campo de
reminiscências e de memória. Essa primeira referência
temporal funda, assim, a narrativa numa quase total
obscuridade.
A segunda camada de tempo une o passado
engendrado no futuro pela memória - “Aureliano Buendía
havia de recordar aquela tarde remota...” em que a narrativa
vai se fazendo pela retrospecção, marcada por uma
reportagem ao futuro e pelo fragmento, e alicerçada no
trabalho de sapa da recordação virtual da personagem. Pela
organização dissimulada do narrador que converte o real
em maravilhoso e também o seu contrário, pode-se

30
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

observar o exagero no efeito discursivo do encantamento


no leitor (CHIAMPI, 1980, p.66). Se no plano da narrativa
o enredo se constrói sempre para diante em face do
imperativo da escrita, no plano temporal o enredo está
sempre retrocedendo a um momento do passado, como
uma ânsia incontida de alcançar alguma origem. Numa outra
leitura, mas convergente com esta neste ponto, Ludmer
afirma:

De pronto se estabelece, portanto, uma situação de narrativa


e sua correlata situação de leitura: alguém que conhece o que
acontecerá no futuro do passado (o futuro da ficção) enuncia
que, nesse futuro, um personagem (um nome) voltará
mentalmente ao passado: a regressão é o movimento inaugural
da narrativa (1989, p.23).

A busca de uma distância ancestral revela-se como um


recurso do narrador para imprimir na história a
intensificação da solidão e do tempo, anunciados já no título
Cem anos de solidão. A construção sintática e os usos da
linguagem, com o emprego de verbos em pretéritos
imprecisos e a apresentação impactante de Aureliano,
definem de saída a natureza da arquitetura de todo o
romance. Se o primeiro plano anuncia a criação ficcional,
como já foi dito, numa espécie de lugar encantado do
passado que lembra os contos mágicos, inserindo o leitor
imediatamente no reino da ficção; e se o segundo plano
oferece como uma viagem nos interstícios de reminiscências
e memória na produção da escrita, a terceira camada
temporal resulta num consórcio da expectativa e do retorno,
numa profunda e bela abertura: a de desaguar na torrente
de um passado simples - aquela tarde remota em que seu pai o
levou para conhecer o gelo, que não tem previsão de se concluir
31
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

e que poderia ser em si todo o romance. E ainda podemos


ler como a primeira e mais importante experiência do
Coronel Aureliano Buendía, como uma talvez alegria única,
do que valesse a pena se lembrar, o que se confirmará, já
que esta magnífica abertura é também a sinopse da vida
deste membro da estirpe dos Buendía, estação de
linguagem, repetidora de fatos e da solidão de todos os
outros. Assim, se a água que permite o rio marcou a
personagem, num estado de congelamento, de paralisia, o
gesto do pai e a lembrança daquele dia confirmarão a
solidão e a incomunicabilidade que será reconstituída ao
infinito na narrativa de Cem anos de solidão de uma família
ensimesmada.
Não em vão, em seguida, apresenta-se Macondo,
numa explícita recordação da mítica gênese cristã. Mas
em Cem anos de solidão, este momento original do mito
bíblico, cuja palavra tem a força criadora, está acéfalo de
Deus. O mundo já está firmado, torto, de certa maneira,
de incontornável imperfeição. Macondo era uma aldeia
de vinte casas e de tão recente o mundo, muitas coisas
careciam de nome. Mas o mundo já tinha tido um início.
Melquíades, espécie de deus que apresenta estranhos
poderes, é um cigano, mutante, alquimista, nômade que
tem a ciência do mundo, mas um poder “enganador” dos
ciganos com sua “imitação do ovo filosófico” que Úrsula
não desistia de recusar (MÁRQUEZ, p.12).
A escrita e o tempo se encontram nos limites da página,
sem maniqueísmos, entre a criação e a destruição, de modo
que o livro paradoxalmente aprisiona um século que possui
o fluxo intangível do tempo e a experiência imensurável da
solidão humana, convertendo uma coisa em outra e
confundindo possíveis fronteiras entre o real e a maravilha.

32
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

A ideia de duplo, base do trabalho de Josefina


Ludmer, à luz da psicanálise, é apresentada na forma de
leitura formalista que chega à perfeição da estrutura
intrínseca de cada elemento do texto. Essa análise
imanentista toca a saturação, mas poucos estudos deram
conta de seu detalhamento formal em níveis tão mínimos.
O sentido do duplo encontra-se com o do espelho no
momento em que a narrativa déplie sua própria estrutura e
se apresenta como crucial quanto ao que pode contribuir
para desfolhar o texto, na sua autoprodução discursiva.
Ludmer percebe que o espelho, em que a segunda parte
reflete a primeira, relaciona a sintaxe de abertura do
capítulo I com a do capítulo X, exatamente o capítulo
que divide a história. O período é construído com a
mesma estrutura sintática, no mesmo jogo temporal que
analisamos:

Anos depois, em seu leito de agonia, Aureliano Segundo


haveria de se lembrar da chuvosa tarde de junho em que entrou
no quarto para conhecer o seu primeiro filho. (MÁRQUEZ,
2003, p.169)

A linguagem, a serviço deste jogo de espelhos e na


produção constante do duplo mostra sua consistência
material e passa a transmitir referência de um lugar
construído a partir da experiência política da Colômbia,
segundo aspecto que julgamos elemento importante na
constituição deste romance.
Na segunda vez que aparece a construção paralela à
da abertura da narrativa, quem está diante do pelotão de
fuzilamento é Arcádio, sobrinho de Aureliano. Os
Aurelianos e os Arcádios são protagonistas de duas

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

vertentes sempre opositivas no romance, representam ideias


discordantes e molduram um quadro político de guerras.

Na verdade, a única coisa que pôde colher naquelas


confidências pedregosas foi o insistente martelar da palavra
equinócio equinócio equinócio, e o nome de Alexandre Von
Humboldt. Arcadio se aproxima um pouco mais dele
(Melquíades) quando começou a ajudar Aureliano na
ourivesaria. Melquíades correspondeu àquele esforço de
comunicação soltando, de vez em quando algumas frases em
castelhano que tinham muito pouco a ver com a realidade.
Uma tarde, entretanto, pareceu iluminado pela emoção
repentina. Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
Arcádio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíades
o fez escutar várias páginas de sua escritura impenetrável, que
evidentemente não entendeu, mas que ao serem lidas em voz
alta pareciam encíclicas cantadas (MÁRQUEZ, 2003, p.70).

Das duas ramificações, os Aurelianos e os Arcádios,


ambos diante do pelotão de fuzilamento, têm relações com
Melquíades, o alquimista principalmente da palavra, do
texto, duplicador na narrativa da famosa jornada científica
empreendida por Humboldt às “regiões equinociais do
Novo Mundo” na passagem do século XVIII para o XIX.
Implicado na escrita, Melquíades aparecerá todas as vezes
que a recorrência dessas duas linhagens, os buendía e os
aurielianos, se fizer. Das impressões de Úrsula, amparada
pela má sina da repetição dos nomes, temos que

os aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os


José Arcádios eram impulsivos e empreendedores, mas
estavam marcados por um signo trágico. Os únicos casos de
classificação impossível eram os de José Arcádio Segundo e
Aureliano Segundo. Foram tão parecidos e travessos durante

34
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

a infância que nem a própria Santa Sofía de la Piedad os podia


distinguir (MÁRQUEZ, 2003, p.169).

Mas é na relação com Melquíades que Aureliano


Segundo se distancia de José Arcádio Segundo: Melquíades
lê o relato de viagem (o equinócio) de Humboldt, o viajante
alemão que influenciou sobremaneira os escritores latino-
americanos. Melquíades é o estrangeiro, viajante, cujos
pergaminhos ocupam sua vida e sua atenção e Aureliano
entrega-se às suas histórias, maravilhosas e reais, enquanto
José Arcádio satisfazia o desejo de ver um fuzilamento. A
viagem está colocada em sentido largo, tanto externa quanto
interna, na produção da escrita quanto da sua exegese. García
Márquez, através do narrador, se refere aos escritos de
Humboldt (séc. XVIII) como uma fonte seminal do
realismo maravilhoso da América do Sul, cuja visão sobre
a América parece ter permanecido mesmo após as
inovações e reelaborações vanguardistas do início do século
XX. Considere-se que o próprio García Márquez escreveu
Relato de um náufrago, uma reconstituição jornalística, em ecos
com Robinson Crusoe (1719), do inglês Daniel Defoe. O
contato com a América, ou com o Novo Mundo, é descrito
com tanta minúcia que o mundo se torna maravilhoso, a
natureza e a exuberância da paisagem vistas como dimensão
paradisíaca. César Moreno afirma sobre Humboldt: “A
América torna-o famoso como cientista naturalista, como
segundo descobridor da América Latina, como relevador
de sua paisagem real” (NÚNEZ, 1979, p.95-7)
Sob a tutela de relatos dos cronistas, da escrita e da
própria narrativa, a ilegibilidade dos manuscritos de
Melquíades, em sua leitura do texto de Humboldt, vem a
ser referência à natureza confusa da própria narrativa de

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Cem anos de solidão, recondicionada ainda pelos pergaminhos


onde se registrara a história dos Buendía. Essa
autoreferência, em espiral no texto, vincula Melquíades de
tal maneira à produção da história que, não fosse uma
convenção literária (não existe narrativa sem narrador?) o
narrador seria suprimido por completo e mediante sua
morte, restaria Melquíadas, aparentemente, uma
personagem de margem. A narração metadiegética
(GENETTE, 1995, p.230-3) permite que o complexo das
múltiplas temporalidades estenda-se a esta e às demais
passagens em que a ideia de um homem que se lembra de
algo e que, no limite da vida, diante do pelotão de
fuzilamento, tentar ordenar fragmentos de sua vida. O
segundo aspecto que enunciamos, relacionado à referência
de um lugar construído a partir da experiência política da
Colômbia, encontra na formulação desse narrador um canal
justo para o aprofundamento do sentido de experiências
autoritárias vividas na Colômbia. A opressão e a guerra
conduzem à solidão e ao silenciamento, como podemos
observar quando, na terceira vez em que a construção-mote
aparece, é de novo Aureliano quem está diante do pelotão
de fuzilamento:

Aureliano, vestido de fazenda negra, com as mesmas botinas


de verniz com argolas metálicas que haveria de usar poucos
anos depois diante do pelotão de fuzilamento, estava de uma
palidez intensa e com um bolo duro na garganta, quando
recebeu a noiva na porta da casa e a levou ao altar.
(MÁRQUEZ, 2003, p.77)

Aureliano Buendía casa-se com a Remedios Moscote,


a menina que o encantou desde o primeiro momento em
que a viu, quando ainda ela era impúbere. Na mesma
36
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

extraordinária rapidez em que esteve pronta para casar-se,


admirando a todos pelo comportamento maduro que
adquiriu, Remedios falece. Logo que se casa, “envenenada
com o próprio sangue, com um par de gêmeos atravessados
no ventre” (MÁRQUEZ, 2003, p.83), Remedios marcará
para sempre a condenação da estirpe dos Buendía.
Aureliano terá dezessete filhos, de dezessete mulheres
diferentes, que serão todos mortos num mesmo dia. O
destino da amada se repetirá no seu próprio, como um
envenenamento com o próprio sangue. O negro das vestes,
contrastante com o brilho do verniz e das argolas metálicas
que usaria diante do pelotão de fuzilamento, coloca em
similares planos o casamento com Remedios e a experiência
da morte, como uma crônica de uma morte desde o início
anunciada.
Num jogo alternativo da linguagem, diante do pelotão
de fuzilamento, é novamente Arcádio, o sobrinho de
Aureliano, que num exemplar retrocesso apresenta
Remedios, que por sua vez cumpre o sentido do seu nome.
Instaura-se a paz entre Rebeca e Amaranta, as irmãs
mortalmente inimigas, deslizamento do mito bíblico do
ódio fraterno, pela capacidade que ela, Remedios, tinha, de
promover as boas relações humanas onde quer que se
encontrasse, e com quem fosse:

Tão profundo era o carinho que ele e sua esposa (Aureliano e


Remedios) tinham conseguido despertar na família de ambos
que, quando Remedios anunciou que ia ter um filho, até Rebeca
e Amaranta fizeram uma trégua para tricotar com lã azul,
para o caso de vir um menino, e com lã rosa, parar o caso de
ser uma menina. Foi ela a última pessoa em quem Arcádio
pensou, poucos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento
(MÁRQUEZ, 2003, p.84-5).

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Arcádio pensa na jovem tia diante do pelotão de


fuzilamento, se comunicando, ainda que precariamente, com
o tio Aureliano, cujas botas que usou no casamento usaria
também na iminência da morte. Quando surge pela quinta
vez no romance a construção espectral, é Aureliano que
volta a compor o jogo de alternância com Arcádio.
Mediante a proposta de casamento de Crespi e Amaranta,
Aureliano diz que não é hora de andar pensando em
casamentos, o momento era de Guerra.

Aquela opinião, que Ursula só compreendeu alguns anos


depois, era a única que ele podia expressar sinceramente no
momento, não só no que diz respeito ao casamento, mas
também a qualquer assunto que não fosse a guerra. Ele mesmo
(Aureliano) diante do pelotão de fuzilamento, não haveria de
entender muito bem como se fora encadeando a serie de
sutis, mas irrevogáveis casualidades que o tinham levado a
esse ponto. (MÁRQUEZ, 2003, p.91)

Como Aureliano não distinguia muito bem a diferença


entre conservadores e liberais, “o sogro lhe dava lições
esquemáticas” (p.91). Aureliano e o sobrinho, Arcádio, se
revezam no plano narrativo, sempre diante do pelotão de
fuzilamento, naturalizando o desfecho da cena e gerando a
expectativa da morte. Entretanto, neste momento, o
narrador revela que Aureliano não é fuzilado.

O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas


revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos
varões de dezessete mulheres diferentes, que foram
exterminados um por um numa só noite, antes que o mais
velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze
atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de
fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito


que lhe outorgou o Presidente da República. Chegou a ser
comandante-geral das forças revolucionárias, com jurisdição
e mando de uma fronteira à outra, e o homem mais temido
pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma
fotografia. (...). A única coisa que ficou de tudo isso foi uma
rua com seu nome em Macondo. Entretanto, conforme
declarou poucos anos antes de morrer de velho, nem mesmo
isso ele esperava (MÁRQUEZ, 2003, p.99).

Lembra Josefina Ludmer, “quem morre fuzilado não é


Aureliano, mas seu sobrinho Arcádio” (1989, p. 22), portanto,
a referência não é com relação à morte, mas à condição de
estar diante da morte. Perdidas as guerras, em que Aureliano
enfrentava inimigos, inclusive dentro da família, o narrador
apresenta o saldo da sua vida, numa sinopse biográfica de
derrotas. Arcádio assume o poder e se transforma num
déspota, autoritário, partidário de decretos (MÁRQUEZ,
2003, p.100). Mas se enrolou como um caracol quando Úrsula
lhe dá uma surra. Com a força de matriarca, Úrsula passa a
governar Macondo. Confirma-se também que Aureliano
Buendía morreu de velho, sem nenhuma esperança, apenas
contabilizando as estranhas e quase inverossímeis negociações
com a morte. Isso permite que a cena confunda-se ainda mais,
no movimento de alternância entre Arcádios e Aurelianos:

Poucos meses depois, diante do pelotão de fuzilamento,


Arcádio haveria de reviver os passos perdidos na sala de aula,
os tropeções contra os bancos, e por último a densidade de
um corpo nas trevas do quarto e as batidas do ar bombeado
por um coração que não era o seu. Estendeu a mão e encontrou
outra mão com dois anéis num mesmo dedo, que estava a
ponto de naufragar na escuridão. (...) Pilar Ternera lhe havia
pago cinquenta pesos, a metade de suas economias de toda a

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

vida, para que fizesse o que estava fazendo. Arcádio a vira


muitas vezes, atendendo na lojinha de comestíveis dos pais, e
nunca tinha prestado atenção nela, porque tinha a rara virtude
de não existir por completo, a não ser em momento oportuno.
Mas a partir daquele dia, enroscou-se como um gato no calor
da sua axila (MÁRQUEZ, 2003, p.107).

O encontro com Santa Sofia de la Piedade, “que tinha


a rara virtude de não existir por completo”, é apenas uma
marca para definir melhor o tipo de vida de Arcádio, de
modo a ir desconstruindo a expressão de totalidade sobre
o momento em que as personagens estavam diante do
pelotão de fuzilamento, dada pelo próprio narrador “off ”
como totalidade, e também como expectativa em cada vez
que apresenta a sentença em questão. Portanto, não é mais
importante o que inicialmente parece ser: a condição das
duas personagens que no momento limite pensam,
comentam, recordam etc, de alguma coisa, pessoa, ou
experiência. O mais importante parece ser mesmo o jogo
narrativo, que materializa o distanciamento e a oposição
dos Aurelianos e dos Arcádios na arena do romance. Se
Aureliano escapa do fuzilamento, Arcádio não tem a mesma
sorte. Este, um desfecho politicamente correto, em se
tratando de um ditador:

Ao amanhecer, depois de um conselho de guerra sumário,


Arcádio foi fuzilado contra o muro do cemitério. Nas duas
últimas horas da sua vida, não conseguiu compreender porque
havia desaparecido o medo que o atormentava desde a infância
(MÁRQUEZ, 2003, p.112).

Então, numa só pontada dilacerante, voltou a sentir todo o


terror que o atormentava na vida. O capitão deu ordem de
fogo. Arcádio mal teve tempo de estufar o peito e levantar a

40
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

cabeça, sem entender de onde fluía o líquido ardente que lhe


queimava as coxas.
- Cornos! – gritou. – Viva o Partido Liberal! (MÁRQUEZ,
2003, p.114).

No turbilhão da narrativa não se pode saber que medo


é este, mas será encontrado bem adiante, José Arcádio
Segundo, repetindo o que seria o medo de seu avô: o de ser
enterrado vivo. Curiosamente, há uma sugestão de que na
verdade José Arcádio Segundo é a reencarnação dos
Arcádios anteriores:

No quarto de Melquíades (...) protegido pela luz sobrenatural,


pelo barulho da chuva, pela sensação de ser invisível, encontrou
o repouso que não tinha tido por um só instante na sua vida
anterior e o único medo que persistia era o de que o
enterrassem vivo (MÁRQUEZ, 2003, p.286). (...) continuava
lendo e relendo os pergaminhos ininteligíveis. (...) mas ao irmão
bastou aquele olhar para ver repetido nele o destino irreparável
do bisavô (MÁRQUEZ, 2003, p.287).

Com isso, encerra-se a nota alternante dos Aurelianos


e dos Arcádios, mas afirma-se a continuidade de uma
retórica narrativa fundada na possibilidade de repetição
infinita. Os pergaminhos de Melquíades que guardam a
história dos Buendía tornam-se, para eles próprios,
“ilegíveis” e a incompreensão mútua é o que dividem no
final. Emerge a narrativa no seu movimento conclusivo,
como uma produção em círculos concêntricos, espelhados
e repetindo a mesma arquitetura e então nunca mais se falará
em “diante do pelotão de fuzilamento”, pois afinal, livre
Aureliano e fuzilado Arcádio, só resta a essa estrutura

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

sobreviver noutros motivos, decretando a vitória da


narrativa, sobre a derrota de sua população humana.
Macondo é o nome de um pequeno lugarejo
colombiano, uma espécie de Pasárgada às avessas, que
segundo Rama, vem de Yoknapatawpha, explicada em nota
pelo tradutor como “um condado ou município imaginário,
onde se passa grande parte do que se convencionou chamar
a saga faulkneriana, série de seis obras de William Faulkner”
(RAMA, 2001, apud AGUIAR, p. 25). Macondo aparece
obsessivamente na obra de García Márquez já no seu
primeiro romance La hojarasca, de 1955, e “será lugar
geográfico universal sobre cuyo destino caerán terribles
profecías, una de las principales será la muerte” (ARANGO,
1985, p.47). O desenho desse povoado singular será
aperfeiçoado em Cem anos de solidão. Mas não é apenas a
geografia que passeia de um romance para outro. El coronel
no tiene quien le escriba tem como personagem principal, sobre
o qual recai quase toda atenção da narrativa, o coronel
Aureliano Buendía. E assim a geografia física e humana
constitui o imbricamento histórico do homem com o
espaço, tornando-os muito próximos. Essa ancestralidade
das personagens na obra de García Márquez remete às
formas verbais que marcam o tempo em toda a narrativa,
dando o tom de uma temporalidade mítica, que indiciam
um tempo e um espaço suspensos da referencialidade, cuja
objetividade do discurso aparece sob o disfarce de uma
forma verbal própria da linguagem literária; já se pode
começar a ler o romance numa instância diversa da do
realismo tradicional, em que o motivo de abertura inaugura
um povoado – Macondo – ao mesmo tempo em que
inaugura a própria narrativa, intrincando-a na tradição
ocidental dos discursos fundacionais:

42
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e


taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas
que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e
enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente
que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se
precisava apontar com o dedo. (MÁRQUEZ, 2003, p.07)

Mas essa origem possui uma base, nada surge do


nada, já existiam algumas poucas casas e apenas algumas
coisas não tinham nome. Macondo não é exatamente o
mundo mítico cristão, em que tudo era vazios e trevas. O
povoado nasce de um mal feito, de uma fuga por um crime,
de um pecado original. Úrsula e José Arcádio Buendía
fundam Macondo por que fugiram. José Arcádio assassinou
um homem e não podia permanecer onde morava. Seu
amigo Prudêncio Aguilar que, na perda da briga do galo,
gritou a todos que Úrsula permanecia virgem um ano depois
do casamento. O encontro da matéria narrada com a
linguagem se dá de maneira tão exuberante quanto todos
os acontecimentos insólitos que formação os galhos da
trama. Após o crime, José Arcádio Buendía entra no quarto
e crava “a lança no chão da terra”. Se tivessem que ter
iguanas que teriam, mas ninguém mais morreria por causa
de Úrsula (MÁRQUEZ, 2003, p.25), estavam pois
condenados “até a morte por um vínculo mais forte que o
amor: uma dor comum de consciência”. (MÁRQUEZ,
2003, p.24) e assistiriam, quase imóveis, à passagem de cem
anos de uma irreparável solidão. Sob o castanheiro, José
Arcádio Buendía passará seus dias a chorar e conversar com
o amigo morto. Ursula tentará com sua força sobre-humana
interferir no destino de sua prole, que simbolicamente é
tão remendada quanto o ancestral, com rabo de porco e às
possíveis iguanas a quem daria à luz.
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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Toda a força da matriarca, no entanto, é acompanhada


pelo narrador. A presença direta das personagens poderia
dar ao romance rupturas que tornariam imprópria e
inverossímil a narrativa, pois cada uma delas poderia
instaurar seus próprios ritmos, de modo a romper com o
controle do narrador. Este procedimento imprime uma
percepção, ainda que difusa, no leitor: a de que a narrativa
caminha por si mesma e que, numa antinomia, o narrador
se oculta sob sua própria evidência. Em terceira pessoa,
faz a pose de quem só registra o que testemunha, não se
pondo a dizer nada que não pareça o acontecimento
desenrolando-se livremente. Como lembra Llosa, em sua
conhecida tese de doutorado sobre a obra do escritor
colombiano, é como se o narrador morresse junto com o
autor, Cem anos de solidão é um romance total porque realiza
o desejo utópico de qualquer escritor de superar Deus, de
descobrir uma realidade total, onde a noção de totalidade
não só define a grandeza do romance de Gabriel García
Márquez, mas é também a chave para sua compreensão. É
a demonstração do poder da literatura, da possibilidade
do autor criar um mundo fechado, desde seu nascimento
até sua morte, manipulando todas as ordens que o compõe
(LLOSA, 1971).
A visão “com” do narrador dificulta muitas vezes a
sinceridade do texto, como se as personagens só pudessem
falar através do narrador, apagando possíveis dissonâncias
discursivas no interior da narrativa. Talvez nenhum outro
gênero literário – nem mesmo o conto cujo narrador é
imprescindível na maioria dos casos, pela sua tradição oral
– seja tão próprio ao realismo literário quanto o romance.
Se por um lado a máxima cartesiana do cogito, que funda a
consciência individual, é que torna possível o romance,

44
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

considerando “seu alto grau de atenção que dispensa à


individuação das personagens e à detalhada apresentação
de seu ambiente” (WATT: 1990, p.19), mais do que nunca
se discute a relação das palavras com as coisas, das inúmeras
versões que circundam o imaginário da crítica sobre os
diversos conceitos de realismo.
O foco seguro de um lugar uno do narrador tradicional
se estilhaça mediante a fragmentação, o chamado fluxo de
consciência, a configuração de situações oníricas herdadas
do surrealismo e, sobretudo, o embaralhamento temporal.
A experiência subjetiva do tempo e a especulação artística
em torno de sua configuração e representação no romance
aparecem de modo exemplar neste romance. A ilusão de
que essa narrativa é clássica, “onde a história começa num
momento preciso e termina anos depois” (MORENO,
1979, p.72), é vencida por uma leitura mais atenta do
romance. Num trabalho ao mesmo tempo minucioso e
sensível, Torres (1985, p.39) sequestra do narrador sua
ausente dissimulação, discutindo a construção poética de
sua intenção objetiva e prosaica. Elementos constitutivos
da poesia são relacionados à farta, como aliterações,
assonâncias, enumerações e rimas internas na fluência da
prosa presidida substancialmente pelo narrador. São muitas
as demonstrações dadas pelo estudioso, mas ficaremos com
uma para a compreensão básica de sua propositura:

Se encerraba horas y horas a tocar la cítara


Una noche cantó.
Macondo despertó en una especie de estupor,
angelizado por una cítara que no merecía ser de este mundo
y una voz que no podía concebirse
que hubiera otra en la tierra con tanto amor.
Pietro Crespi vio entonces la luz en todas las ventanas del

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

pueblo,
menos en la de Amaranta.
El dos de noviembre,
día de todos los muertos,
su hermano abrió el almacén y encontró todas las lámparas
encendidas
y todas las cajas musicales destapadas
y todos los relojes trabados en una hora interminable,
y en medio de aquel concierto disparatado
encontró a Pietro Crespi en el escritorio de la trastienda,
con las muñecas cortadas a navaja
y las dos manos metidas en una palangana de benjuí (TORRES,
1985, p.39)

Percebe-se assim, o trabalho rítmico desenvolvido,


gerando uma forma poética adequada ao lirismo trágico
da personagem. Sem abandonar o amparo social que
sustenta as ações das personagens, García Márquez dialoga
com vários textos da tradição cultural do Ocidente. E então
podemos ver o terceiro aspecto, conforme anunciamos no
início deste texto, que é constitutivo deste romance de
García Márquez: la novela de violencia colombiana.
No romance colombiano é referido um termo em
torno do qual se relacionam várias obras de autores daquele
país que é definido como La Novela de Violencia em Colômbia,
designando um dos ciclos a que se refere Arango (1985,
p.35-7). Esse ciclo da literatura colombiana seria
singularmente marcado como uma determinação política
estabelecida naquela tradição, de forma distinta de outras
literaturas da América Latina como um todo. O termo é
referido também por Angel Rama como sendo a inovação
do romance colombiano que se produz a partir de 1953,
em que García Márquez é citado pela obra Ninguém escreve
ao coronel, como exemplar da discordância do autor do
46
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

romance de violência praticado em seu país. Assim como


Arango, Rama (Apud AGUIAR, 2001: p.189) anota o
romance colombiano em ciclos, sendo mais um deles o
intitulado Balada, que posteriormente trataria das
revoluções indígenas contemporâneas. Se a violência na
Colômbia institui uma definição particular da literatura
produzida naquele país, é de compreender sua
especificidade, já que não deve ser estendida aos demais
países da América Latina, na grande maioria corolários de
semelhante experiência histórica, incluso o Brasil. O
romance de violência estaria ligado, como sugere
diagonalmente Angel Rama, às “zonas centrais do país”,
localizando assim a obra de García Márquez na flutuação
entre sua cultura costeira e a cultura cachaca, de que é
exemplo seu primeiro romance, La Hojarasca (1955) e
respectivamente o segundo, Ninguém escreve ao coronel (1962).
Além desse último, outros textos seus estão filiados ao ciclo
do romance de violência na Colômbia (op. cit. p.199).
O ciclo da novela de violência na Colômbia
circunscreve o período de 1951 a 1972, incluindo 74
romances, relacionados por Arango (ARANGO, 1985, p.
18), entre os quais Cem anos de solidão. Neste romance, como
nos anteriores, García Márquez surge como um
questionador do relato bruto do testemunho, em que
demonstra sua compreensão de que a literatura
revolucionária não pode prescindir de um elevado senso
estético no tratamento de qualquer assunto, ou seja, o autor
expressa uma defesa explícita da literatura. Navarro, em
análise de alguns romances latino-americanos, observa que
“o princípio da violência inata associada à concentração de
poder aparece com perturbadora frequência nas narrativas”
(1989, p.180). O estudo pontual que Navarro realiza é sobre

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

como é recriada a figura do ditador em três romancistas, a


saber: Eu o supremo, de Augusto Roas Bastos; O outono do
patriarca, de Gabriel García Márquez e O recurso do método,
de Alejo Carpentier. Estendendo sua compreensão a outras
obras de substrato político, no contexto da América Latina,
Navarro demonstra que a violência é a tônica dessa
literatura. Não apenas a relação entre poder, história e
literatura, mas a reflexão sobre o sentido do poder e suas
consequências para a pessoa que ocupa determinado posto
de poder são investigados pelo crítico para concluir que a
experiência é coroada com a solidão.
Em Cem anos de solidão, José Arcádio desenvolve, com
extrema crueldade e frieza, mecanismos de coação e
arbítrio, com o objetivo de manter seu poder pessoal.
Enriquece ilegitimamente e usa o poder para único interesse
pessoal, manda fuzilar Moscote, por exemplo. Somente
porque este diz, mediante reclamação do povoado, que era
bem feito para eles: “isso é o paraíso liberal!”. No entanto,
José Arcádio é um fraco. Quando Úrsula lhe dá uma surra
por causa de suas arbitrariedades, ele se encolhe feito um
caracol. E é ela quem passa a governar o povoado.
Revelação do menor aos maiores gestos, a violência
apresenta-se em Cem anos de solidão como uma
impossibilidade de aprimoramento dos indivíduos e da
sociedade. Ninguém mais luta porque acredita em algo. Luta-
se apenas pelo poder. Então tudo resulta sem sentido, não
há um sonho de liberdade, de comunidade, que sustente
essas lutas. Elas são pura e simples lutas pelo poder, pelo
interesse pessoal e manutenção de quem nele está. Quem
tem poder não tem tempo de pensar em outra coisa, a não
ser nos estratagemas que precisa articular para a sua
manutenção. A grande lição de Maquiavel aos príncipes

48
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

modernos é a de que o difícil não é obter o poder, mas nele


permanecer, com o apoio e com o amor do povo. Em
geral, a violência é a arma mais imediata da qual se dispõe
uma pessoa de poder quando vê ameaçada a sua autoridade.
Mesmo em tempos de democracia, essa fórmula se repete
com mais ou menos sutileza. Tanto para o indivíduo quanto
para a sociedade, a consequência é funesta. Navarro refere
à solidão que oprime os ditadores, ou os donos do poder,
como consequência de sua incapacidade de amar: “O
extraordinário poder que acumularam é responsável pelo
seu isolamento social, pessoal e político” (1989, p.180).
A solidão então advém desse enclausuramento do
sujeito de poder que não pode dividir, confraternizar,
humanizar, o que seria colocar em risco a sua situação de
poder. Somente pelos títulos dos romances de Gabriel
García Márquez já se pode rastrear essa ideia de que o poder
e a solidão são parceiros inseparáveis, que subjaz em boa
parte de seus textos, a exemplo de Ninguém escreve ao coronel;
Cem anos de solidão; O general em seu labirinto; Diário de um náufrago
etc. Seja esse tema ou qualquer outro, a literatura
contemporânea na América Latina parece fazer um percurso
singular, em que a tematização da história, de personagens
da história e/ou da literatura na segunda metade do século
XX daria origem a uma nova tipologia do gênero
romanesco, segundo Seymour Menton: o novo romance
histórico (1987).
Verificamos neste romance de García Márquez,
publicado há mais de 40 anos, aquilo que Adorno chamou
“o impulso característico do romance, a tentativa de
decifrar o enigma da vida exterior (que) converte-se no
esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como
algo assustador e duplamente estranho no contexto do

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais”


(2003, p.58)
Iniciamos este texto tratando de três pilares que
sustentariam como constituintes a narrativa de Cem anos de
solidão. Encontramos a perfeita articulação entre a resolução
formal e conteudística que García Márquez alcançou com
o trabalho feito com a linguagem, com a forma romance e
com a construção de um universo ficcional que privilegia
(e inventa) o imaginário da América latina. Desde a síntese
poética derivada da alta concentração poética, passando
pela referencia de um espaço inventado, metáfora da própria
América latina a da experiência política da Colômbia e pela
localização e diálogo históricos do romance no interior da
chamada novela de violência colombiana, encontramos a
arte de um grande escritor, obra das maiores da América
latina, permitindo investigar como a história e a literatura
são tecidas na trama ficcional. O resultado é um romance
que é cáustico na crítica que empreende das relações
políticas autoritárias e opressivas que têm dominado a
história dos países na América latina, sem abandonar por
nenhum momento o sentido do que é a literatura, feitura
de palavras e de sentidos. Articulação, pode-se dizer, entre
estética, ética e política, sugerindo desdobramentos da
América, como espelhos onde cabem sempre todas as
coisas, inclusive outros espelhos.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas cidades;


Editora 34, 2003.
AGUIAR, Flávio & VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (orgs.).
Angel Rama: Literatura e cultura na América Latina. Trad. Raquel la

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Corte dos Santos, Elza Gasparotto. São Paulo: EdUSP, 2001.


ARANGO, Manuel Antonio. Gabriel García Márquez y la novela de la
violencia em Colombia. México: Fondo de Cultura Económica, 1985.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no
romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Vega, 1995.
LLOSA, Mario Vargas. García Márquez: história de um deicídio.
Barcelona: Barral Editores, 1971.
LUDMER, Josefina. Cem anos de solidão: uma interpretação. Trad.
Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989 (1985,
na Argentina).
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Trad. Eliane Zagury.
Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la America Latina.
México: Fóndo de Cultura Económica. 1987.
NAVARRO, Marcia Hoppe. Romance de um ditador: poder e história
na América Latina. São Paulo: Ícone, 1989.
NUÑEZ, Estuarto. “O latino americano em outras literaturas”. In:
MORENO, César Fernandes (org. e introd.). América Latina em sua
literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979 (edição original: 1972).
TORRES, Daniel. Los versos ineditos del Coronel Buendía. Chile: Instituto
Profesional del Pacifico, 1985.
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

CÂNONE E SILENCIAMENTO:
NOTAS PARA O EXERCÍCIO
CONTEMPORÂNEO DA LITERATURA
COMPARADA
MÁRIO CÉSAR LUGARINHO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Cultura e cânone literário

A lógica da compreensão historiográfica da cultura, em especial


da cultura discursiva, assenta no princípio da interpretação. A
capacidade interpretativa do texto é uma construção e
descoberta de sentido que traduz o essencial da significação
contida no campo documental. Essa capacidade é a resultante
dum “avaliar continuadamente as várias propostas teóricas

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

para situações textuais concretas” (U. Eco) que afasta as


traduções impossíveis do mundo textual e reduz / harmoniza
as variantes dos “mundos textuais possíveis” (J. Petóffi).
(BARRETO, 1985, p. 301).

Os estudos literários, nas últimas décadas, sofreram,


como se sabe, um amplo processo de deslocamento de sua
área de atuação, muito promovido pela transformação dos
paradigmas das Ciências Humanas. Já vai longe o tempo
em que unicamente interessava ao crítico descrever as
características estilísticas do texto ou o seu funcionamento
em termos semânticos, ou, ainda, os aspectos morfológicos
que construíam o texto, principalmente narrativo, cujos
elementos estruturais eram exaustivamente evidenciados.
De igual maneira, o texto literário deixou de ser o
objeto privilegiado pelo crítico em favor do discurso literário,
na medida em que as suas condições de produção é que
passaram à ordem do dia. Da descrição das condições de
produção, passou–se a elaboração de uma crítica mais
ampla, na qual a escritura literária não é mais o único objeto
privilegiado de análise – esta se dá através do
reconhecimento do nicho cultural ocupado pela obra e da
sua capacidade de articulação com outros saberes a fim de
que seja elaborada uma análise da cultura, da qual a obra
emerge e para a qual se destina.
As Ciências Humanas, em geral, e a crítica literária,
em particular, passaram a se constituir como saberes
necessariamente interdisciplinares, criando campos
abrangentes nos quais alguns saberes e objetos ganham
relevo, de acordo com o objetivo da análise, mas que são,
evidentemente, tomados a partir de um olhar relacional que
se solidariza com outros saberes e objetos. É a constituição

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

do projeto de História da Cultura, no qual o termo


“cultura” é amplificado para compreender toda a atividade
humana e o termo “história” é tomado a partir de seu caráter
concatenador, concedido pelo modelo da narrativa
historiográfica (BARRETO, 1985, p. 270).
A História da Cultura constitui o seu projeto de
investigação de forma ambiciosa, porque pode convocar
todos os saberes científicos já constituídos, ao mesmo tempo
em que pode privilegiar um único objeto. Fruto da
revolução metodológica no âmbito da ciência histórica, que
superou os primados do historicismo e do materialismo
histórico, a História da Cultura, apesar de permitir a reunião
de formas diversas de investigação histórica, não pretende
se constituir como uma perspectiva totalizadora, visto que
reconhece a incapacidade da História constituir tal olhar.
Dessa maneira, a História da Cultura tornou–se modelo
dos estudos interdisciplinares ao mesmo tempo em que se
tornou o campo epistemológico por onde transitam as
práticas investigativas das Humanidades.
Dessa maneira, as Ciências Humanas, como foi dito
acima, são hoje uma reunião de saberes inicialmente
autônomos que se reconhecem incapazes de obter uma
descrição definitiva de seus objetos de estudo se insistirem
unicamente em seus próprios princípios e campos
investigativos. Nesse contexto, destacam–se os saberes que
se constituíram em torno dos estudos da linguagem (a
linguística, a teoria e a crítica literária) e que recorreram a
princípios interdisciplinares para a sua (re) constituição em
bases científicas durante o século XX. É notória a forma
com que o pensamento de Claude Lévi–Strauss tomou a
linguística estrutural como modelo de análise dos mitos e
das relações de parentesco (cf. LÉVI-STRAUS, 1975), bem

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como, pouco mais tarde, os seus estudos fomentaram os


estudos da narratologia nas décadas de 1950 e 1960.
A crítica literária, reconhecida como atividade das
Ciências Humanas, teve, então, o seu caráter interdisciplinar,
multidisciplinar e transdisciplinar sobrevalorizado. Com
isso, ao invés de se observar o esvaziamento do conceito
nuclear de literariedade, percebe–se a instrumentalização
da teoria e da crítica literárias para além dos espaços
tradicionais nos quais se localizam os objetos literários.
O privilégio que o método estrutural dera à descrição
das obras literárias e à solidariedade com a Linguística
determinou uma direção bastante inesperada para a análise
literária e para muitos analistas, que tinham ao seu lado uma
tradição já consolidada pela sociologia da literatura. Vale
recordar que esta corrente crítica dedicava–se muitas vezes
à análise de processos que explicassem a maneira como uma
literatura nacional se articulava com a história nacional.
Paradigmático é o ensaio “As ideias fora do lugar”, de
Roberto Schwarz (1977), em que o crítico, a fim de
compreender a nossa produção literária do século XIX, se
debruçava por sobre a História do Brasil do mesmo século
XIX, assinalando nossas aporias políticas, sociais e culturais,
quando o modelo socioeconômico escravista convivia com
um estado de feições liberais.
A sociologia da literatura, considerada hoje a mais
importante contribuição brasileira aos estudos da
contemporaneidade (cf. MOREIRAS, 1996; RIBEIRO,
2008), dependia do reconhecimento de uma díade
fundamental, literatura e sociedade, em que se verificava uma
relação imediata, na medida em que compreendia o texto
literário como uma forma não de reflexo, mas de reflexão a
respeito da sociedade. Tal perspectiva derivara de uma

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

nascente crítica literária do século XIX, quando intelectuais


se interrogavam a respeito da constituição de valores
nacionais no texto literário. Tais valores, antes reconhecidos
como morais, na medida em que estavam subjugados a uma
perspectiva ético–religiosa, passaram a ser considerados a
partir de expressões do Estado nação, que se embutiam na
identidade de classe burguesa. Além disso, havia a busca pela
especificidade cultural dos povos europeus e pela construção
de uma narrativa histórica que previsse e justificasse a
emergência e o protagonismo da burguesia. Foi nessa época
que a literatura emergiu como uma instituição social e cultural,
porque expressava à sociedade os valores norteadores da
cultura nacional. Se a Literatura, desde a paideia, no mundo
clássico, era manancial que modelava comportamentos, por
seus aspectos éticos e morais, ela também se prestaria a uma
exemplaridade pedagógica para as classes emergentes nas
sociedades europeias do século XIX.
Mas a dinâmica das transformações sociais e culturais
que aquele século experimentou, e que continuaram ao
longo do século XX, acrescido das experimentações
artístico–literárias das vanguardas, não foram passíveis de
uma instrumentalização abrangida pela sociologia da
literatura. Faltava–lhe o reconhecimento de que seus
paradigmas estavam sendo colocados em causa pela própria
História, a que privilegiava. Ao lado da emergência de
novas classes sociais que expressavam a exemplaridade da
identidade nacional (a burguesia e, posteriormente, o
proletariado), outras formas de identificação se
constituíram, como o gênero e a etnia, o que punha em
causa seus paradigmas, já que a centralidade da nação e dos
valores nacionais era relativizada e colocada em função
desses marcadores sociais, culturais e históricos.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Mas tal prática não seria tomada de maneira


indiscutível. Antonio Candido, em “Crítica e sociologia”
(2006), apontava que tal metodologia de análise colocava
de lado o valor e o significado da obra literária, visto que
seriam submetidos a uma análise unicamente sociológica.
Fiel ao princípio de autonomia da arte e da literatura,
Candido, nesse ensaio, buscava encontrar uma síntese que
atendesse tanto ao princípio norteador da crítica, o valor
estético da obra, quanto ao interesse de sua correlação com
o meio social onde a obra é promovida. Candido propunha
a constituição de uma metodologia que fosse capaz de
devolver à obra literária seu estatuto artístico, ao se dedicar
à análise do texto em si, em que fosse levado em consideração
os juízos de valor ao lado do exame dos discursos
associados a determinadas ideologias.
O problema do valor estético da obra literária parece
ter sido o principal obstáculo para que a sociologia da
literatura se tornasse um consenso para a crítica literária.
Isso porque a dificuldade de encontrar um equilíbrio na
atividade crítica que distribuísse a ênfase entre o estudo
imanentista e o estudo do contexto, durante muito tempo,
pareceu impossível. O estudo da estética literária, que
encontrou na estilística, no início do século XX, forte
ponto de apoio e, pouco mais tarde, na enunciação do
conceito de “literariedade”, pelos formalistas russos,
sofreu um debate contínuo, durante o último século,
porque tanto a História, quanto a crítica sociológica
colocavam em causa o reconhecimento da autonomia
absoluta da obra de arte e da literatura.
Com isso, o conceito de valor estético da obra
literária, que asseguraria à crítica literária a sua autonomia
frente aos outros campos disciplinares, passou também a

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ser relativizado ao ser observado no contexto cultural onde


se constitui – como apontaram, notadamente Walter
Benjamin e Theodor Adorno, dentre outros. Os
pensadores de Frankfurt superaram os paradigmas
ofertados pela constituição do Estado nação,
reconhecendo a dinâmica histórico–cultural das grandes
narrativas que atravessavam toda a cultura ocidental: a
modernidade e a consequente instrumentalização da razão.
Ao reconhecerem o movimento mais amplo, no qual a
emergência do Estado nação, a ascensão da burguesia e o
aparecimento do proletariado eram apenas cumes de um
iceberg, constituíram análises nas quais o contexto do
surgimento da obra de arte e da obra literária eram
concomitantemente conjugados, por exemplo, às suas
histórias, aos seus procedimentos intrínsecos e às suas
formas de circulação. Dessa maneira, a arte e a literatura,
mas também a história e a filosofia, a física, a química e a
biologia, a psicologia e a sociologia, eram saberes
colocados em causa. Por terem se submetido à razão, e
consequentemente terem se tornado objetos de uma
ciência, foram instrumentalizados em prol da mesma
modernidade que substituía o mito.
Aqueles que defendem o primado do estudo da estética
na análise literária são devedores da instabilidade que se
instalou nas formas de produção literária ao longo dos
séculos XIX e XX. Apoiaram–se na tradição que emanava
do conjunto de obras que eram selecionadas para
comporem o cânone literário, já que essas obras serviriam
como orientação para o reconhecimento do que deveria
ser ou não válido como estético. O formalismo russo, ao
propor o procedimento parodístico como aquele que
constitui a dinâmica da história literária, determinou o

59
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

cânone como uma sucessão de séries que se interpenetram


e que dialogam entre si a partir de procedimentos e temas
recorrentes ao conjunto canônico.
A história literária, subsumida pelo cânone, seria
constituída por um sentido de per manência, um
continuum, mesmo quando sofresse a interferência da
paródia, já que mesmo contestado por tal procedimento,
o cânone se afirmaria e não sofreria mutações relevantes,
mas apenas acréscimos significativos de obras que
poderiam, desde a sua gênese, serem previstas, mesmo
quando apontassem para sentidos contrários. É o que
Yuri Tinianov apontara ao enfatizar a paródia como o
motor da evolução literária, que, pela reiteração de temas
ou técnicas, manteria a força canônica, apesar de
desautomatizá-lo (TINIANOV, 1978)1.
A formação dos cânones literários é devedora de uma
política ostensiva de silenciamento. Já se compreende, com
certa exaustão, que os cânones são formados,
principalmente, a partir de elementos exteriores ao literário,
de maneira que expressem algum conceito que a ele se
sobreponha (cf. JARA & TALENS, 1987). Harold Bloom
(1995), em contrapartida, defendeu que os cânones são
formados a partir de critérios estéticos que se apoiam sobre
considerações ditas universais. A provocação de Bloom ao
invés de intimidar, oferece uma rota segura de investigação

1
Caso característico, sobre o qual não cabe discorrer aqui, seria o tema recorrente
do indianismo na Literatura Brasileira; instalado pelo romantismo, sofreu a ação
parodística do modernismo e retorna inúmeras vezes na literatura contemporânea,
confirmando sua permanência, inclusive pelo viés da problematização. De igual
maneira, em Portugal, a recorrência a Camões em suas mais diversas manifestações,
desde pelo menos Garrett até Lobo Antunes, que celebrando ou desconstruindo o
mito literário, reiteram sentidos que se atualizam, mesmo que pela ação parodística.

60
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

na medida em que as formações discursivas que sustentam


o edifício canônico forem submetidas às formações
ideológicas2.
A exclusividade do critério estético e, por conseguinte,
do filosófico, que orientaria as definições canônicas cai por
terra ao serem percebidas como orientadas para sentidos
outros que não pressupõem o estético. A presença do
critério estético é certa, no entanto a própria estética é
historicizada e submetida aos mesmos princípios que
governam aqueles que nela investem (cf. FERRY, 1994).
Tendo sido projetados a partir do momento em que a
sociedade burguesa, no século XIX, reivindicava sua
autonomia histórica e (re) inventava a Literatura, os cânones
literários foram instrumentos da formulação de políticas
do imaginário. São estratégias de poder para a criação de
modelos sociais e políticos, postos em circulação pela
literatura. Como evidente aparelho ideológico, no sentido
de Louis Althusser (1992), aquelas estratégias definiram
novas identidades sociais para a sociedade nascente.
A sociedade burguesa do século XIX, novidade no
panorama histórico, econômico, político e cultural do
Ocidente, precisou construir traços de continuidade
histórica a partir do momento em que reconheceu que se
encontrava apoiada sobre a ruptura com o Antigo Regime,
o que era significativo prejuízo para o projeto de construção
do Estado nação. Avesso às rupturas, porquanto quaisquer
ameaças à estabilidade política e social criariam obstáculos
ao modelo de desenvolvimento capitalista, o século XIX
formulou suas políticas de imaginário como formas de

2
Os conceitos de formação discursiva e formação ideológica serão aprofundados mais
adiante.

61
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

institucionalização e de popularização dos conceitos de


nação e de Estado Nacional.
Benedict Anderson (ANDERSON, 2008) relata o
longo processo que se deu para a construção do conceito
moderno de nação, que veio, ao longo do século XIX, a se
confundir com a identidade cultural e histórica de uma
determinada comunidade. Mas vale ressaltar que a palavra
nação, conforme Afonso Marques dos Santos, “já existia
durante o Antigo Regime, mas é com a Revolução Francesa
que ela passa a ocupar um lugar central no novo direito
público, sem que seja necessário ou possível defini–la”
(SANTOS, 1986, p. 9). No século XIX, com a emergência
da sociedade burguesa, a nação foi a transposição jurídica
e emocional da soberania do rei para uma entidade coletiva.
O período romântico confirma o conceito,
institucionalizando–o. Filósofos e escritores românticos
levantam a voz contra o “universalismo” das raízes greco–
romanas da cultura europeia e levam a cabo a pesquisa das
origens históricas e das especificidades culturais de cada
povo europeu. Os movimentos que se seguem às
independências das Américas, o pan–germanismo, o pan–
eslavismo e o movimento de unificação italiana seriam os
resultados mais relevantes deste processo, inicialmente
europeu, de busca de identidade e, por conseguinte, de
origem.
Os conceitos de cultura popular, origem nacional,
nacionalidade e identidade e consciência nacional são todos
recorrentes ao termo nação, e confundem–se para que se
justifique a existência de um estado nação e, também, dos
indivíduos (monarcas) e entidades representativas
(parlamentos, governos) que o materializam. Dessa maneira,
a cultura popular, em contrapartida à cultura das altas

62
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

classes, é percebida como o lugar em que estariam


soterrados, sob os séculos de domínio do Antigo Regime
e, por conseguinte, da aristocracia, os indícios autênticos
da origem nacional de uma determinada comunidade.
A popularização da Literatura neste período,
impulsionada pela nascente indústria cultural, implicou o
estabelecimento de relações entre leitores distantes
espacialmente entre si, que passavam a se identificar com
os mesmos valores emanados por uma narrativa das suas
origens comuns. É nessa teia de relações, tecida pela emoção
popular e os objetivos políticos da burguesia, que foram
formuladas a nacionalidade e o nacionalismo. Buscar a
origem de um Povo era definir a biografia de uma nação e,
portanto, conceber a sua História.
Ainda, segundo Santos, Gramsci teria considerado que
esta maneira de se conceber a história pressupunha a
constituição de um poderoso instrumento político para
coordenar nas grandes massas os elementos que formavam
precisamente o sentimento nacional. A concepção das
histórias das literaturas, naquela altura, submete–se a esse
propósito flagrante. Não será à toa, que o cânone literário
terá suas raízes entranhadas nas histórias literárias por conta
da fixação e registro de obras que passam a merecer atenção
de uma crítica nascente, por remontarem, segundo os
propósitos da sociedade burguesa, a origem e a construção
das nacionalidades.
É desnecessário remontar o processo de
institucionalização da Literatura ao longo do século XIX e
o seu consequente papel fundamental na construção do
Estado nação e da sociedade burgueses. Vale assinalar
apenas, que, para tanto, foi preciso a sua massificação e o
concurso de uma classe específica, os “homens de letras”

63
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

(EAGLETON, 1991, p. 37), que reivindicava um discurso


e um saber próprios. A emergência dos “homens de letras”,
seguida pelo desenvolvimento da intelectualidade como
classe orgânica, são produtos de uma exigência dada pela
criação dos estados nacionais, que via no seu concurso a
possibilidade de vulgarização dos conceitos políticos e
filosóficos que norteariam a sociedade burguesa. O
desenvolvimento da crítica literária, durante o século XIX,
através da imprensa, foi a forma encontrada para a
transmissão do saber das classes ditas esclarecidas para a
massa populacional das classes não letradas, alçadas, agora,
à condição de leitores pela recém–criada indústria cultural.
A invenção da categoria do “homem de letras” punha
em questão o processo de disseminação do conceito de
nação e nacionalidade e sua correlação com o Estado
politicamente organizado. Era certa para o homem burguês
do século XIX a sua dupla condição de herdeiro de uma
memória do passado aristocrático e de modernizador da
sociedade que liderava. No entanto, a construção do Estado
nação impunha uma contradição: ao mesmo tempo em que
representava o Povo, incorporando–o a seu discurso e
abolia a sociedade de castas do Antigo Regime, estabelecia
uma continuidade histórica, mesmo que fictícia, entre os
diversos estratos sociais e culturais que o compunham.
Tendo em vista que a instituição literária era veículo
de propagação desse processo, sua crítica seria capacitada
a aproximar a nova massa de leitores da burguesia
ascendente de uma herança cultural do passado. Entretanto,
a crítica deveria decidir entre emitir seus juízos em nome
do grande público, formado pela nova massa de leitores,
ou em nome de uma minoria, baseada na tradição letrada e
esclarecida. Por isso, o “homem de letras” não poderia ser

64
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

um parceiro em posição idêntica ao seu grande público


leitor. Sua função seria a de instruir, consolidar e confortar
o público, ideologicamente desorientado, oferecendo-lhe
esclarecimento ante as complexas transformações
econômicas, sociais e religiosas do seu tempo, com uma
postura veladamente propagandística, processando o
conhecimento no mesmo ato de provê-lo. Terry Eagleton
assevera:

O leitor de classe média é agora menos o colaborador e


interlocutor do crítico em sua iniciativa de esclarecimento
cultural e muito mais um objeto anônimo cujos sentimentos e
opiniões devem ser moldados através de simplificação
intelectual (EAGLETON, 1991, p. 42.).

Ao lado da modelagem dos sentimentos e opiniões


da classe média, pouco depois, em função da sua
necessidade de afirmação no âmbito universitário inglês, a
crítica literária, já reconhecida como disciplina em que se
veicula o saber literário, passou a enfatizar uma perspectiva
nacionalista. É ela que abre espaço para a emergência de
um modelo de cidadão profundamente identificado com a
história e a cultura nacionais, representadas no Estado
(EAGLETON, 1997, p. 40). A crítica também se torna
responsável por assinalar as obras que compõem o cânone
literário, porque o torna capaz de conferir aos cidadãos o
seu devido lugar como representantes da nação e,
consequentemente, do Estado. Ao mesmo tempo, travava
uma árdua luta contra as Ciências e a Filosofia a fim de
justificar a sua existência no âmbito universitário,
recorrendo à construção de um juízo estético, porquanto
vinha a indicar, comprovar e reconhecer um valor permanente
nas obras selecionadas. A crítica tornava–se, assim, o
65
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

resultado de uma composição de conceitos de fundo


filosófico e de uma razão instrumentalizada pelo Estado, o
que lhe conferia, no mínimo, um caráter ambíguo no
momento de sua formação.
Com isso, cânone literário e identidade nacional
passaram a compartilhar um mesmo campo semântico. A
naturalização da relação impôs, continuamente, que fossem
verificadas as estratégias regulares de construção de uma
nacionalidade através do veículo literário. A relação
“natural” entre ambos os termos foi tão profunda que
chegou a sobredeterminar o juízo estético, que se
pretendia isento, na medida em que os conceitos que
nortearam a identificação da estética literária foram
submetidos pela crítica aos elementos da originalidade e
da identidade nacional. Mesmo as vanguardas e os
modernismos foram postos a serviço da nacionalidade
quando seus autores passaram, também, a participarem
dos cânones, deter minando novas tradições e
procedimentos.
O valor estético que Harold Bloom (1995) defende
como o traço fundamental a sustentar o cânone revela-se,
frente à reflexão de Eagleton, como uma oportunidade
histórica a que a crítica recorreu como forma de legitimar
o seu discurso frente a instâncias detentoras de poder
efetivo na instituição universitária. Além disso, uma
investigação mais pormenorizada a respeito da discussão
que a modernidade empreendeu a respeito do conceito
de beleza e de estética é nada mais do que a prova de que
a interferência humana e, portanto, da sua subjetividade,
no concerto da beleza é tão flagrante quanto à
superioridade “inquestionável” de Shakespeare ou Bach
(cf. FERRY, 1994).

66
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

O discurso

O projeto de uma crítica literária que se dê no interior


da História da Cultura necessita de alguns conceitos que
estabilizem uma relação que pode vir a se tornar bastante
frustrante para o crítico literário, visto que, forçadamente,
poderá vir a abrir mão de sua prática tradicional em prol
de metodologias mais afinadas com a pesquisa histórica e
antropológica. No entanto, é preciso deixar claro que o
objeto que se encontra no centro dessa articulação é o
discurso. Formulado a partir do pensamento de Michel
Foucault e Michel Pêcheux, o conceito mais contemporâneo
de discurso abre espaço para análises bem mais amplas do
que a unicamente linguística, estilística ou literária.
Essa gradativa substituição de modelos de análise é
resultado de processo que encontra suas raízes não apenas
no desenvolvimento das Ciências Humanas das últimas
décadas, mas também em vários eventos históricos que
marcaram essas mesmas décadas e que determinaram
profundas modificações na forma de funcionamento das
culturas. Eventos específicos se conjugam com eventos mais
globais e se disseminam pela cultura, levando o crítico
atento a observar essa dinâmica como uma resultante de
forças muitas vezes contrárias e concorrentes, mas que, de
alguma maneira, convergem para a produção de fenômenos
simultâneos e correspondentes.
Em fins da década de sessenta, redimensionando o
conceito de isenção ideológica da pesquisa científica, Michel
Pêcheux lançou bases de para uma nova disciplina que levaria
em conta uma perspectiva social para a pesquisa linguística
(cf. GADET & HAK, 1990). A análise do discurso estabeleceu
uma continuidade entre os elementos envolvidos no processo

67
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

de comunicação para perceber as condições de produção


do discurso. Para Pêcheux o discurso seria o material verbal,
o texto, tomado a partir de suas condições de produção; daí
compreender o discurso como uma entidade supragramatical
em que o texto é tomado em relação àquilo que o condiciona,
ou seja, é a emissão de um sujeito envolvido e submetido a
um conjunto de regras que tomariam parte, também, do
próprio texto emitido.
Apesar da proposição de Pêcheux, foi do pensamento
de Michel Foucault que se extraíram critérios para a
compreensão das condições de produção do discurso no
âmbito da História da Cultura, levando em consideração a
atenção que Foucault dera à História e à historiografia ao
longo de suas obras (cf. GRISET, 1986, p. 57–63).
Em A arqueologia do saber, publicada em 1967,
Foucault (1986) propunha que os discursos são como
uma dispersão de sentidos não relacionados a partir de
alguma unidade. A análise do discurso deveria recompor
a unidade, descrevendo aquela dispersão e estabelecendo
regras capazes de regerem suas formações. Foucault
determinou a existência de objetos, tipos de enunciação,
conceitos, temas e teorias que iriam compor as formações
discursivas, elementos que dariam condições de
reconstruírem aquela unidade dispersada textualmente.
Definindo o discurso como um conjunto de enunciados
que remete a uma mesma for mação, a análise do
discurso, para Foucault, consiste na análise dos
3
O enunciado não é a projeção direta, sobre o plano da linguagem, de uma
determinada situação ou de um conjunto de representações. Não é simplesmente a
utilização, por um sujeito falante, de certo número de elementos e regras linguísticas
(...). Se se pode falar de um enunciado, é na medida em que uma frase (uma
proposição) figura em um ponto definido, com uma posição determinada, em um
jogo enunciativo que a extrapola (FOUCAULT, 1986, p. 113–114).

68
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

enunciados 3 que comporiam o discurso. O discurso


deveria ser considerado como prática que provém da
formação de saberes articulados a práticas consideradas
não discursivas e estabelecido como um jogo estratégico
e polêmico que o impede de ser analisado simplesmente
sob seu aspecto linguístico, mas, sobretudo, como o
resultado de um jogo de ação e reação, de pergunta e
resposta, de dominação e de esquiva.
Ainda para Foucault, o discurso é o lugar onde o saber
e o poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar,
a partir de um direito reconhecido institucionalmente. O
discurso, desta for ma, veiculador de um saber
institucionalizado, gera poder, portanto. A geração de
poder pode e deve ser controlada, selecionada, organizada
e redistribuída através de procedimentos sociais que
eliminarão toda e qualquer ameaça à sustentação do
mesmo poder como se verifica em A ordem do discurso
(FOUCAULT, 1996).
O privilégio concedido à investigação das condições
de produção do discurso resulta do fato de que são elas
que, enfim, condicionariam a existência do discurso.
Inscritas no seu interior, forçam–no a enunciar
determinadas coisas de determinadas maneiras;
oferecendo–lhe objetos de que pode falar, determinando
o feixe de relações que o discurso deve efetuar para tratá–
las, nomeá–las, analisá–las, classificá–las e explicá–las
(FOUCAULT, 1987, p. 64). O campo de configurações que
estabelecem os feixes de relações é denominado por
Foucault de formações discursivas, que são os objetos
privilegiados em sua arqueologia4.
4
Rever nota 1.

69
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Por outro lado, Pêcheux buscou a construção de um


instrumental que possibilitou uma forma de abordagem da
linguagem e do discurso através das Ciências Sociais. Para
ele, um determinado estado das condições de produção do
discurso corresponde a uma estrutura definida dos processos
de produção do discurso a partir da língua: “o que significa
que, se o estado das condições é fixado, o conjunto dos
discursos suscetíveis de serem engendrados nessas condições
manifesta invariantes semântico–retóricas estáveis no
conjunto considerado” (PÊCHEUX, 1990, p. 79).
O discurso, portanto, seria impossível de ser
analisado como se analisa um texto, uma sequencia
fechada em si mesma. Contudo é necessário que se refira
ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado
definido das condições de produção. No discurso, as
relações entre instâncias são representadas pelas
formações imaginárias que designam o lugar que o
emissor e o receptor devem atribuir a si mesmos: o
emissor pode, portanto, antecipar as representações do
receptor e, antevendo as formações imaginárias do outro,
recorrer a estratégias que imponham sua fala.
É flagrante nessa reflexão a contribuição do pensamento
de Louis Althusser (ALTHUSSER, 1992, p. 85–99) que,
tomando a ideologia como ponto fundamental para
compreender o poder, ofereceu condições operacionais para
Pêcheux. Para Althusser a ideologia é a maneira pela qual os
homens vivem a sua relação com as condições reais da
existência; mas ela se dá através do imaginário, visto que o
homem tem a capacidade de produzir formas simbólicas
que representam a sua relação com a realidade concreta: o
imaginário é, então, o modo pelo qual o homem atua e se
relaciona com as condições reais da vida.

70
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

A ideologia, sendo o lugar das formas simbólicas


de representação, indica que há uma alienação da
realidade que ela própria deter mina, pois é uma
deformação das condições reais de existência. Assim,
Althusser pôde afirmar que a ideologia constitui os
indivíduos em sujeitos, já que só há ideologia pelo sujeito
e para o sujeito, isto é, a ideologia existe para sujeitos
concretos. A instituição da categoria do sujeito funda
toda a ideologia na medida em que este não se configura
como um indivíduo, mas como lugar onde e por onde
este indivíduo tem acesso à realidade, seja qual for a sua
determinação e seja qual for o seu momento histórico.
A ideologia, portanto, se impõe estabelecendo a verdade
como verdade, a evidência como evidência
(ALTHUSSER, 1992, p.95).
É possível, portanto, estabelecer a relação entre
linguagem e ideologia sem que sejam necessárias maiores
investigações teóricas. Sendo sujeitos de uma linguagem,
os indivíduos concretos vão deixando a sua configuração
individual para serem assujeitados a um processo de
representações contínuas que os induz a, imaginariamente,
se reconhecerem somente através dessa linguagem.
Para Pêcheux, o que interessava do pensamento de
Althusser à formação de uma teoria do discurso era o
conceito de superestrutura ideológica, relacionada com os
modos de produção da classe social dominante. Sendo o
discurso um dos aspectos exteriores e materiais da
ideologia, pode–se, então, afirmar que o discurso pertence
à ideologia. Os discursos, portanto, são regulados por
formações ideológicas que determinam o que pode e deve
ser dito e quando deve ser dito. As formações ideológicas,
pois, estabelecem–se através das várias formações

71
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

discursivas interligadas, que passam a representar o lugar


de articulação entre a ideologia e o discurso.
A partir daí, o discurso passou a se constituir como o
objeto fundamental para investigações que tivessem o seu
objeto de análise constituído pela matéria verbal, em que
se levassem em consideração as suas relações, lato sensu, com
o contexto. Tratar de objetos literários é tratar do discurso
literário, a partir do qual são ultrapassadas as metodologias
tradicionais da abordagem estilística, semântica e mesmo
sociológica. As questões impostas pela reflexão a respeito
do discurso definem que a abordagem pode ser a mais
ampla possível a fim de que se possa compreender o lugar
do literário neste nosso tempo.

Os campos interdisciplinares

O desenvolvimento de estudos que deixaram de lado


as práticas tradicionais de análise da obra literária, e que
passaram a considerar as relações com o contexto como
parte também da obra, é devedor diretamente do conjunto
de reflexões que foram disponibilizadas pela teoria crítica,
pela sociologia da literatura e pela análise do discurso,
criando um amálgama interdisciplinar que se aproximou
diretamente da História da Cultura e que nela se instalou.
Além disso, essas reflexões são aliadas ao desenvolvimento,
no âmbito da universidade anglo–saxã, dos estudos culturais
e, ao mesmo tempo, dos estudos pós–coloniais.
Naquela mesma década de 1960, e paralelamente ao
que acontecia no pensamento francês, os estudos culturais
se desenvolveram no âmbito dos estudos de literatura. Se
no cerne da sociologia da literatura estão as indagações a
respeito das relações entre a produção literária, o(s)

72
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

sistema(s) literário(s) e a(s) sociedade(s); para os estudos


culturais, o centro de discussões se encontra localizado para
além do objeto artístico, nas palavras de Raymond Willians,
conjugando o objeto e a sua formação, tratando-os de uma
forma não hierarquizada (cf. WILLIAMS, 1989, p. 151).
Dessa maneira, compreende–se como, na década seguinte,
os estudos culturais virão a se encontrar de maneira clara
com o pensamento pós-estruturalista francês nas
universidades norte-americanas. No fim, o estudo das obras
de maneira intrínseca era abandonado em favor do estudo
da formação dos discursos e das obras artísticas, por
conseguinte.
Pode-se dizer, assim, que os estudos culturais
evidenciam que os sistemas literários eram modelados não
apenas por suas características estéticas ou estilísticas, mas
por características de classe. Evidentemente, o conjunto
de obras que se reconhece no interior de uma literatura
nacional – considerada aqui como o cânone literário
nacional –, é selecionado por permitir que determinado
conjunto da população se identifique de maneira imediata,
como já apontáramos ao recorrermos à Terry Eagleton
(1991; 1997) e ao seu estudo sobre o desenvolvimento da
crítica literária no Reino Unido. A representação contínua
da classe burguesa no interior de obras literárias
deter minou uma severa revisão literária e, por
conseguinte, a construção dos cânones nacionais, já que
se contrapunham a um modelo canônico clássico que se
identificava com o Antigo Regime. Os estudos culturais,
assim, emergiram numa década em que as classes
trabalhadoras inglesas politicamente organizadas
encontraram seu protagonismo político numa sociedade
fortemente estratificada – ao mudar o eixo de poder,

73
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

mudava a cultura e mudaram os objetos culturais,


principalmente com a emergência da cultura de massa do
século.
Além do processo que se desenvolve no campo das
análises dos objetos culturais, deve–se levar em conta que
eventos históricos sobredeterminaram mudanças
continuadas no interior dos estudos literários, em especial,
e das humanidades, em geral. Se a emergências das classes
trabalhadoras inglesas e as revoltas estudantis de maio de
1968 são facilmente apontados como eventos de fundo
dessas transformações paradigmáticas no seio das
humanidades (os estudos culturais, o pós–estruturalismo),
de igual maneira o processo histórico denominado de
“descolonização”, encontra–se no fundo dos estudos pós–
coloniais.
A emergência das novas nações independentes, antigas
colônias das potencias europeias, determinaram o
aparecimento de um campo específico de investigação que
passava a levar em conta, de maneira mais ampla, não apenas
a cultura daquelas novas nações, mas principalmente a
relação entre o colonialismo e a formação cultural da qual
essas nações se erigiam. Mais recentemente, os estudos pós–
coloniais foram estendidos às culturas dos países
dominantes na medida em que compreenderam que o
colonialismo é um fenômeno histórico de mão dupla e que
atinge tanto a cultura do colonizador quanto a cultura do
colonizado.
Costuma–se apontar o desenvolvimento dos estudos
pós–coloniais a partir da contribuição que Stuart Hall teria
dado ao “Centre of Contemporary Cultural Studies” da
Universidade de Bir mingham, aliada, mais tarde, à
contribuição de Edward Saïd, quando da publicação de

74
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Orientalismo (SAÏD, 1990)5. Segundo Sergio Costa (2006),


professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da
Universidade Livre de Berlim, em ambos os autores é visível
a relação mantida com o pensamento de Foucault e Derrida,
cujos pensamentos circulou nos países anglo-saxões de
maneira bastante intensa. Assim, levando em consideração
que toda enunciação vem de algum lugar definido por
território, classe, gênero ou etnia, Hall e Saïd construíram
uma crítica ao processo de produção do conhecimento
científico, reconhecendo-o eurocêntrico. Isto é, a
investigação científica daria, ao tratar de objetos não
ocidentais, privilégios a modelos e conteúdos da cultura
dos países europeus, o que reproduziria a lógica da relação
colonial. Sérgio Costa afirma, também, que “tanto as
experiências de minorias sociais quanto os processos de
transformação ocorridos nas sociedades “não ocidentais”
continuariam sendo tratados a partir de suas relações de
funcionalidade, semelhança ou divergência com aquilo que
se definiu como centro” (COSTA, 2006, p. 117).
As práticas investigativas da Literatura Comparada
eram atingidas diretamente pela reflexão dos estudos pós–
coloniais, especialmente quando o analista se debruçasse
por sobre conjuntos de obras que, ao serem comparados,
reunissem textos oriundos de literaturas europeias e de
literaturas nacionais de países que emergiram do
colonialismo. Com os estudos pós-coloniais, a hierarquia
possível entre esses conjuntos seria posta de lado, na medida
em que, como primeiro pressuposto, haveria o abandono
dos conceitos de causalidade, funcionalidade, anterioridade,
ou originalidade, assim como acontecera anteriormente,
5
A primeira edição, em inglês, foi publicada em 1978.

75
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

no âmbito específico da Literatura Comparada, com o


abandono do conceito de influência.
O procedimento crítico dos estudos pós-coloniais leva
em consideração, portanto, que o conceito de “origem”
deve ser abandonado, como Foucault propusera em sua
genealogia. Em seu lugar, leva-se em consideração o
processo de formação discursiva, isto é, se não é
considerada a anterioridade de uma obra sobre outras
obras, o que localizaria a publicação mais antiga no lugar
cronológico da “origem” e, por isso, prevalente e doadora
de sentidos às que lhe sucederam, deve–se observar o
processo de formação discursiva que as atravessa e as reúne.
O conjunto só é reconhecido em função do(s) discurso(s)
que se dispersa(m) por entre as obras e nas obras.
Assim, os estudos pós–coloniais, mais do que uma
disciplina ou ciência, é um campo abrangente de reflexão
por onde a crítica transita e que tem por valor principal a
construção de um olhar crítico, senão desprovido dos
modelos tradicionais de investigação, mas
problematizador de si mesmo, ao colocar em suspenso
os seus próprios métodos investigativos. Além disso,
deve-se frisar: o prefixo “pós” da expressão “pós-
colonial” não representa um “depois”, no sentido
cronológico linear, trata-se de uma operação de
reconfiguração do campo discursivo, no qual as relações
hierárquicas são significadas e ressignificadas
(ASHCROFT, GRIFFITHS, THIFFINS, 1989, p. 2).
Sérgio Costa aponta, ainda, que se deve reconhecer a
relação próxima dos estudos pós-coloniais com três escolas
contemporâneas de pensamento (COSTA, 2006, p. 118).
A primeira seria o que se denomina, lato sensu, de pós-
estruturalismo, com o pensamento de Michel Foucault

76
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ocupando um lugar central, acompanhado das reflexões


de Jacques Derrida. A segunda seria o pós-modernismo, a
partir da contribuição de Jean François Lyotard, já que os
estudiosos do pós-colonialismo entendem que a sua
investigação é apenas possível porque se reconhece, a priori,
a condição atual pós-moderna, na qual estaria reconhecido
o estado de descentramento do sujeito e das narrativas (as
chamadas “grandes narrativas”) contemporâneas; Costa
lembra, ainda, que da teorização acerca do pós-moderno,
os estudiosos do pós-colonialismo recusam-no “como
programa teórico e político, visto que, para o pós–
colonialismo, a transformação social e o combate à opressão
devem ocupar lugar central na agenda de investigação”
(COSTA, 2006, p. 118).
A terceira e última escola que se aproxima dos estudos
pós-coloniais seriam os estudos culturais do qual, para
Costa, os estudos pós-coloniais seriam um desdobramento
numa linha cronológica, já que a presença de Stuart Hall
em ambos os campos investigativos garante certa
continuidade.
Sem dúvidas, a relação entre os estudos culturais e os
estudos pós-coloniais, acrescidos do que o pós-
estruturalismo e a análise do discurso ofereceram, resulta
num conjunto teórico6 que oferece ao crítico a oportunidade
de investigar de maneira ampla um determinado fenômeno
cultural, sem que se esteja limitado pelas disciplinas e
procedimentos científicos tradicionais, mas que seja
incentivado a questionar, problematizar ou, mesmo,

6
Recuperamos, aqui, a etimologia da palavra teoria, que, segundo o Dicionário
Houaiss e o Novo Dicionário Aurélio, do grego èåùñßá, é a ação de observar,
examinar, estudo ou conhecimento devido a raciocínio especulativo.

77
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

desconstruir o objeto investigado7. Os artigos de Hall, nas


quais podem ser encontradas questões pertinentes a um ou
outro campo de estudos e que são os mais flagrantes dessa
interdisciplinariedade são “What is this “black” in black
popular culture? (Rethinking Race)” (HALL, 1993) e “The
West and the rest: discourse and power” (HALL, 1992).
Em ambos os artigos, Hall parte da análise conjuntural e
política dos conceitos, especialmente em “The West na the
rest...”, como formações discursivas que, atravessando a
História, modificam-na e se modificam – no artigo citado,
Hall aponta, por exemplo, que “Ocidente” passou a ser
um conceito que, deixando de ser uma expressão geográfica,
tornou-se uma expressão histórica e cultural, cuja
circunscrição espacial de forma alguma é conformada pelo
espaço que o termo originalmente designava.
De igual maneira, será a perspectiva de Edward Saïd
(1995), quando, por exemplo defende que “a história e a

7
Listamos os três procedimentos levando em consideração as três práticas
investigativas que norteiam as ciências humanas contemporaneamente. A prática
do questionamento possui sua raiz na dialética platônica e pode ser considerado como
o primeiro procedimento da ciência porque induz à dúvida e, por conseguinte, à
busca da verdade. A problematização é procedimento descrito por Michel Foucault,
no volume I da História da Sexualidade (1988), e consiste em observar um conceito
em toda a sua extensão histórica e cultural, potencializando as formações discursivas
que vão se instalando gradualmente nas sociedades, instituindo procedimentos
culturais e modificando a História. A desconstrução, descrita pelo também francês
Jacques Derrida, é termo que entrou no jargão das Ciências Humanas de maneira
imediata, mais pela sugestão semântica, do que pela reflexão que o engendra e
proporciona. A desconstrução atua diretamente sobre a relação possível entre
texto e contexto, indicando que o sentido se encontra determinado pelo contexto;
mas cabe compreender como Derrida estabelece o contexto, pois, se para Foucault e
para Pêcheux, a História da Cultura é o lugar do contexto, para Derrida ele está
aberto a alterações sucessivas, porque deve considerado sem as fronteiras onde se
produz o sentido, já que o contexto e o objeto são construções da linguagem – por
isso, qualquer objeto pode ser deslocado e experimentado em qualquer contexto
estabelecendo quaisquer sentidos ou interpretações (cf. SPIVAK, 1976.).

78
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

cultura do imperialismo podem ser agora estudadas de


maneira não monolítica, descompartimentalizada, sem
separações ou distinções reducionistas” (SAÏD, 1995, p. 22)
– visto que, como afirma mais adiante, “a maioria de nós
deveria considerar a experiência histórica do império como
algo partilhado em comum” (SAÏD, 1995, p. 23). Além
disso, Saïd reconhece o estatuto privilegiado da ideia de
domínio ultramarino nas culturas dos impérios inglês,
francês e norte–americano8, que se encontrava projetada
na literatura, na geografia ou nas artes, adquirindo uma
presença contínua por meio da expansão, da administração,
dos investimentos e dos compromissos efetivos (SAÏD,
1995, p.24). Ou seja, Saïd reconhece que a cultura do
imperialismo se expande para todos os círculos da vida
quotidiana dos habitantes do império, não importando
onde se localizem, seja na metrópole, seja nas fronteiras
mais distantes – todo o conjunto é atravessado e modificado
pelo discurso imperial e o modifica, consequentemente.
Ao mesmo tempo, Hall aponta para o fato de que há a
necessidade de compreender as hierarquias estabelecidas
entre as categorias raciais, construídas pelo pensamento
eugenista do século XIX, e que se desdobram nas categorias
étnicas do século XX. Os estudos pós–coloniais, tão atentos
às relações entre os centros e as fronteiras e as periferias
dos impérios, também observa as relações internas entre
os diversos agrupamentos que compunham os impérios e
que, ainda, subsistem.
Para os estudos de obras literárias, os estudos pós–
coloniais passam não apenas a relativizar a constituição

8
A essa lista acrescentamos o império colonial português, especialmente, após a
política da “mística imperial” do Estado Novo (v. MATTOSO, 1994, VII, p. 286–7).

79
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

dos sistemas literários das nações envolvidas no


colonialismo, mas a questionarem diretamente a formação
dos cânones e dos discursos que os embasam, seja numa
perspectiva interna ao sistema, seja numa perspectiva
comparatista entre sistemas, já que se torna possível
verificar as formações discursivas que atravessam as obras,
os sistemas literários e sua crítica. Assim, os estudos pós-
coloniais são responsáveis pela observação das dinâmicas
dos sistemas a partir de um ponto de vista que se exclui
do próprio sistema na medida em que podem reconhecer
os valores que lhes perpassam confir mando ou
problematizando as formações ideológicas. Ao colocarem
em evidência questões étnicas, por exemplo, dão
visibilidade não apenas a obras censuradas, apagadas ou
“silenciadas” pela crítica tradicional, mas também aos
próprios mecanismos e estratégias de silenciamento
operados pelo sistema e que nele se entranharam,
constituindo-o e cristalizando-o.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

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82
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

GUIMARÃES ROSA, LUANDINO VIEIRA


E A TRANSCULTURAÇÃO NARRATIVA
OLGA MARIA CASTRILLON-MENDES
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)
VIMA LIA MARTIN
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Como se sabe, o projeto imperialista português deixou


marcas profundas na constituição dos países colonizados
na América, África e Ásia. Brasil e Angola, por exemplo,
têm suas histórias formativas marcadas sistematicamente
pelo autoritarismo e pela violência. Nesses espaços, a
modernidade aportou quase sempre como imposição,
fazendo do progresso um fator de exclusão e da cidadania
plena algo ainda a ser conquistado.
83
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

No bojo desse processo de modernização


conservadora, para falarmos com Florestan Fernandes,
observa-se o obscurecimento dos gestos e o silenciamento
das vozes de um grande contingente de pessoas que, através
dos séculos, foram - e ainda vêm sendo - socialmente
marginalizadas. Entretanto, na contramão desse movimento
hegemônico, observa-se - no campo literário - a produção
de textos capazes de questionar os valores que sustentam
ordens sociais profundamente injustas. Assim, obras que
dão visibilidade às práticas sociais e culturais das populações
mais pobres, afastadas das esferas de poder, acabam por
apresentar realidades outras, que frequentemente estão em
tensão com aquelas fixadas pelos discursos oficiais.
Nesse sentido, os discursos ficcionais elaborados pelo
brasileiro Guimarães Rosa e pelo angolano Luandino Vieira
operam uma espécie de denúncia das contradições
subjacentes aos projetos civilizatórios impostos para parte
significativa das populações de seus países, desestabilizando,
em ter mos ideológicos, os discursos e as práticas
autoritárias difundidas e reiteradas pelas elites dominantes
ao longo da história.
Para iluminar o modo de composição das narrativas de
ambos os escritores, as reflexões sobre a transculturação
narrativa na literatura latino-americana, formuladas por
Ángel Rama (1926-1983), parecem-nos bastante operacional.
Ao dialogarmos com sua contribuição crítica, interessa-nos
sobretudo aproveitar seus critérios para a análise de textos
literários, como os utilizados na abordagem da obra Los ríos
profundos, de José María Arguedas, por exemplo, para a
compreensão de obras produzidas em outros espaços não
menos heterogêneos e conflitantes – os dos países africanos
colonizados por Portugal.

84
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

O crítico uruguaio, ao discutir a forma particular e


específica de a América Latina inserir-se no sistema cultural
mundial, observa o empenho de certos criadores literários
do continente em tornar suas produções simultaneamente
auto-referenciais e contemporâneas dos quadros
modelares de outras culturas. O desafio foi enfrentado
principalmente pelos escritores que se vincularam ao
regionalismo dominante nos anos 1930, cujas obras
incorporaram valores tanto internos (locais), quanto
externos (cooptados de fora), expandindo as fronteiras
culturais de suas produções artísticas. Isso significa que as
obras dos escritores da transculturação identificados por
Rama, amalgamando elementos culturais de origem
europeia e americana, recuperaram de modo criativo um
universo de referências plural e móvel, ocultado pelos
rígidos cânones do positivismo.
Nesse sentido é que propomos a aproximação da
obra de Rosa e Luandino, desvendando um panorama não
apenas referencial de dois continentes distintos, mas
possibilidades amplas de um diálogo transnacional,
empenhado na divulgação e discussão das culturas tidas
como “periféricas”. Se aproximadas, as obras ficcionais
produzidas pelos dois escritores parecem singularizar-se
justamente por aliarem operações artísticas de caráter
transculturador - no nível da língua e no nível da
composição literária - e uma proposição cultural
emancipatória, localizável, sobretudo, no nível que Rama
chamou de “nível dos significados”. Assim, o trabalho
artístico dos autores deve ser entendido não apenas como
um processo, mas também como um projeto para a
consolidação de espaços sócio-culturais de maior
autonomia, libertos das amarras vinculadas à colonização

85
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

europeia. Essa integração cultural, em termos nacionais,


tem suas bases nos conceitos de sistema literário e de
formação, propostos por Antonio Candido e de região e
regionalismo, propostos por Gilberto Freyre – todos eles
considerados por Ángel Rama para tratar da constituição
do romance latino-americano.
Isso posto, discutiremos brevemente o conceito de
transculturação narrativa para, na sequência, aproximarmos
aspectos composicionais dos romances Grande sertão: veredas
e Nós, os do Makulusu à luz de seu caráter transculturador. O
texto de Guimarães Rosa é exemplar significativo de um
tipo de composição que (re)organiza elementos de conflito
entre a modernização imposta e as tradições narrativas,
rompendo com velhas noções de regionalismo literário.
Uma construção de brasilidade, portanto, análoga à
construção da angolanidade presente no texto de Luandino
Vieira. Entretanto, como veremos, em ambos os textos
irrompem vozes marginais que, ao exporem as cisões e os
equívocos oriundos dos processos coloniais, apontam
possibilidades distintas de enfrentá-los.

Sobre a transculturação narrativa

O conceito de transculturação narrativa, forjado


pelo crítico uruguaio Ángel Rama para alicerçar sua
reflexão teórica acerca da literatura latino-americana,
favorece a compreensão da chamada “literatura da
maturidade” em países colonizados, de independência
mais recente. Como se sabe, a proposição do termo
“transculturação” deve-se ao pesquisador cubano
Fernando Ortíz, que o concebeu para expressar os
processos de contato entre culturas diferentes envolvidas

86
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

no jogo da dominação imposto principalmente pelo


empreendimento colonial1.
Rama incorpora o termo “transculturação” aos estudos
literários, nos anos 70, para discutir o modo particular e
específico de a América Latina inserir-se no sistema cultural
mundial. Ele defende a ideia de que um regionalismo
renovado faz com que as fronteiras nacionais voltem a se
expandir, subsidiando o projeto de conservação e
desenvolvimento das culturas locais à medida que os
escritores revitalizam os conteúdos da tradição e permitem
a absorção de outros “sabores peculiares” (RAMA, 2001, p.
209). Ou, em outras palavras, o crítico observa que uma
condição “ideal” de plasticidade cultural latino-americana
favoreceria a escolha e reelaboração de materiais culturais
endógenos sob o impacto modernizante, o que serviria “para
explicar de que maneira formas da modernidade européia
haviam, através de um processo de transculturação, se
adaptado à realidade latino-americana, vista como
caudatária.” (AGUIAR e VASCONCELOS, 2004, p.88).
Nesse sentido, como fruto de uma perspectiva
empenhada, a transculturação narrativa é concebida e
estudada por Rama como processo e também como
projeto (em grande medida utópico) para a consolidação
de uma América Latina autônoma. Em sua perspectiva, os
critérios inventivos e seletivos de uma comunidade cultural
podem culminar - em termos de literatura - em um
“processo transculturador”. Assim, segundo o estudioso,

1
Para Angel Rama, foi no interior da antropologia hispano-americana que se
questionou o termo “aculturação”, transpondo-o para “transculturação”, proposto
pelo cubano Fernando Ortíz, que o considerou “indispensável para compreender a
história de Cuba e, por razões análogas, a de toda a América em geral” (RAMA,
2001, p. 216).

87
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

o violento choque de culturas gerado pela dominação


colonial pode ser equacionado por obras que articulam,
em diversos níveis, as inovações europeias tidas como
modernas, vanguardistas, e os traços culturais locais que
procuram preservar os valores tradicionais ou autóctones.
Sob esse prisma, o plano estético buscaria seus referenciais
no próprio da cultura local, atualizando o espírito inicial
apregoado por Ferdinand Denis (1826), que traçou as linhas
da poesia que o Novo Mundo deveria assumir para se livrar
do jugo das potencias europeias. Solucionar-se-ia, assim,
no plano estético, a tensão entre universalismo e
regionalismo, típica dos países de extração colonial.
Objetivamente, nas obras literárias, o processo
transculturador se realizaria em três níveis: o linguístico,
o da estruturação e o da cosmovisão. O nível mais
imediato - o da língua - resgata modos de expressão
regional e incorpora formas da oralidade, resultando
numa linguagem literária peculiar. Os escritores abrem
espaço às diversas culturas, ágrafas ou não, estabelecendo
um diálogo entre a tradição popular e a erudita, falando a
partir/de dentro dela.
O segundo nível, o da estruturação narrativa,
corresponde à construção de mecanismos literários
próprios, ancorada na autonomia de temas regionais e na
articulação original dos mesmos, além da valorização de
realidades especificamente periféricas. Trata-se da
elaboração de estratégias criativas, adequadas à matéria que
se intenta narrar.
Por fim, o terceiro nível, o da cosmovisão, é o ponto
em que se engendram significados, definem-se valores e
desenvolvem-se ideologias. Deixando de lado o discurso
lógico-racional e incorporando à cultura contemporânea

88
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

uma nova visão do mito - capaz de (re)interpretar os


traços particularizantes das culturas colonizadas - a
singularidade e a identidade das várias culturas regionais
seriam discutidas através do que Rama chamou de
“exercício do pensar mítico”, tributário de um repertório
que convive com as variedades locais em constante
reelaboração.
Os três níveis seriam articulados pelo escritor
simultaneamente num processo de afirmação de um
sistema literário próprio e de resistência às mudanças
oriundas da modernidade homogeneizadora. No
conjunto da produção literária latino-americana, quatro
escritores teriam encontrado um alto nível de equilíbrio
formal em sua prosa transculturadora: o brasileiro
Guimarães Rosa, o peruano José María Arguedas, o
colombiano Gabriel García Márquez e o mexicano Juan
Rulfo. Eles seriam, segundo Rama, os autores que
melhor teriam articulado, em suas narrativas, a tensão
entre os aspectos contraditórios da tradição e da
modernidade, a partir de uma mediação que considera
as distancias entre eles como imperativos da
diversidade cultural desejada.

Transculturação e utopia na literatura angolana

Se o conceito de transculturação se mostrou e ainda


tem se mostrado produtivo para a reflexão sobre a
afirmação identitária da literatura brasileira, como apontam
Flávio Aguiar e Sandra Vasconcelos (2004), parece-nos
pertinente considerá-lo também na reflexão sobre a
formação das jovens literaturas africanas. Nessa perspectiva,
Luandino Vieira pode ser focalizado como um autor da

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

transculturação, como catalizador privilegiado de temas e


técnicas específicos, fundamentais para a consolidação de
uma literatura que anseia contribuir para o delineamento
da identidade nacional.
De fato, ao se observar o projeto literário de Luandino
Vieira, verifica-se a ocorrência de processos transculturadores
bastante próximos aos observados por Rama na produção
literária da América Latina. Especialmente em suas narrativas
escritas a partir de Luuanda (1964), é possível detectar, nos
três níveis considerados por Rama - o linguístico, o da
estruturação narrativa e o da cosmovisão -, a busca pela
superação dialética da cisão cultural provocada pela presença
do colonizador português em terras africanas. Nesse sentido,
o processo histórico dá sustentação a uma singular forma de
narrar que responde às especificidades políticas e sociais
dentro das quais o autor se formou.
As obras de Luandino Vieira de modo algum
escamoteiam a dominação estrangeira exercida no recente
passado colonial angolano que, com maior sofisticação, se
perpetua ainda no presente. O impacto violento do poder
exercido pelas nações imperialistas sobre as nações mais
pobres torna inconcebível o exercício de trocas culturais
em pé de igualdade. Mas a transculturação narrativa, vale
enfatizar, não pressupõe o atenuamento da tensão existente
entre forças - econômicas, políticas, sociais e culturais - em
desequilíbrio. Inserida numa perspectiva de formação, ela
se constitui como uma espécie de resposta literária
empenhada no reconhecimento e na afirmação de um
sistema literário autônomo. Assim, a mediação das variáveis
culturais funciona como tradutora das tensões (internas e
externas), capaz de reelaborar diferentes situações culturais
marcadas por conflitos e cisões.

90
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Vale notar que a singularidade do contexto africano


em que nasce a jovem literatura angolana, comprometida
com a consolidação identitária em contexto de dominação
colonial ou de independência tardia, faz com que ela traga,
contemporaneamente, as marcas incontornáveis das
relações coloniais. E, em um contexto de herança colonial
e poder hegemônico euro-americano, não raro a diversidade
das realidades culturais africanas tendem a ser apreendidas
de modo generalista e folclorizante, especialmente por
escritores pouco comprometidos com a emancipação de
seus países.
No que tange ao trabalho do escritor africano
empenhado, caberia a ele, então, o enfrentamento da
experiência com as formas da oralidade, vinculadas às
tradições, e com as formas da escrita, condição essencial
para a produção literária de matriz ocidental. Daí que
responder, de maneira coerente e ética, ao desafio da
articulação entre tradições/modernidade só é possível a
partir de uma utopia revolucionária, atrelada a valores como
liberdade e justiça social.
É desse modo que uma perspectiva emancipadora, tão
presente no imaginário de vários escritores africanos, como
Luandino Vieira pode, de certo modo, ser aproximada da
utopia acalentada por Rama, na sua apreensão processual
da literatura latino-americana. Entretanto, se para o crítico
uruguaio a transculturação é, sobretudo, uma aposta na
superação literária da dualidade cultural do subcontinente,
para o intelectual angolano talvez ela signifique, para além
da missão de reivindicar os contornos de uma identidade
cultural própria, a necessidade prática de (re)construir
politicamente e socialmente a própria nação. Portanto, à
possibilidade de a narrativa discutir o processo

91
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

modernizador e os desequilíbrios sociais, reconhecendo


progressivamente a identidade nacional em formação,
agregam-se valores revolucionários, responsáveis por
transformar os cenários de exploração colonial.

Luandino leitor de Rosa

Dentre os diversos romances publicados por Luandino


Vieira, Nós, os do Makulusu (1975) é um dos que permite
um fecundo diálogo com o romance de Guimarães Rosa,
Grande sertão: veredas (1956). As duas narrativas podem ser
aproximadas, logo de saída, por uma de suas dimensões
mais peculiares: a construção de uma linguagem mesclada,
capaz de amalgamar na forma romanesca elementos típicos
da oralidade.

O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo,


que matam só para ver alguém fazer careta... eh pois, empós,
o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são,
vem o cão. (ROSA, 1984, p. 10).

Vou na igreja do Carmo, escolhi este caminho velho da nossa


terra de Luanda, quero chegar lá por onde Maninho xingava-
me de não chegar a nenhum sítio e sei, ele me provou com
sua vida e sua morte que nestes caminhos velhos não sai estrada
nenhuma. (VIEIRA, 2008, p. 21).

A escrita original, de matriz proverbial, brota das


vertentes arcaicas da língua, conferindo vivacidade aos lugares
e às coisas. Há uma espécie de afirmação nacionalista latente,
da qual o intelectual é o porta-voz, sem que isso represente
um localismo reducionista. Pelo contrário, os gestos de
reinvenção linguística evadem para uma “paixão libertária”,

92
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

de forma análoga a identificada por Antonio Candido ao


observar a função do intelectual que luta com a consciência
de grupo (CANDIDO, 2006). Note-se ainda que, em ambos
os contextos de produção - o Brasil da década de 50 e a
Angola da década de 70 -, os dois romances surgem como
síntese de uma perspectiva regionalista, localista, e de uma
perspectiva vanguardista, de inovação linguística e caráter
generalizante. No Brasil, a narrativa de Guimarães Rosa dá
novo fôlego à vertente regionalista iniciada no Romantismo,
constituindo “uma alteração profunda no modo de enfrentar
a palavra” (BOSI, 1989, p.485). Em Angola, o
amadurecimento da literatura de Luandino coincide com o
momento de radicalização da guerra de independência, em
que a transgressão da norma culta afirma um grau de
autonomia essencial à conquista de identidade cultural do
país, como esclarece Manuel Ferreira (1997).
Sem dúvida alguma, a memória pessoal de ambos os
escritores é fundamental para a escritura de suas obras. Rosa
nasce e passa parte de sua vida no sertão mineiro, que constitui
matéria primordial de seu romance. Já Luandino vive a
infância e a adolescência em musseques luandenses - bairros
pobres e periféricos cuja maior parte dos habitantes tem raízes
interioranas -, que são espaços privilegiados na construção
de suas narrativas, fundamentalmente na elaboração de Nós,
os do Makulusu. Sertão e musseque são, portanto,
microcosmos onde convivem sujeitos que aspiram - com
menor ou maior radicalidade - a transformações sociais.
Em termos de linguagem, os dois autores parecem ser
movidos por um esforço contínuo de ênfase expressiva,
realçando os significantes e potencializando significados.
Assim, a linguagem de seus textos é misturadíssima, moldada
conforme a necessidade de expressão, a partir de materiais

93
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

de línguas e falares pré-existentes. Fontes eruditas e


populares são a matéria prima cuidadosamente trabalhada
pelos escritores. Expressões em latim, construções
metalinguísticas, neologismos, provérbios, aforismos, causos
populares e, no caso específico de Luandino, termos e
estruturas da língua quimbundo geram uma mescla única
em que as virtualidades da língua são colocadas em função
de um projeto literário que visa a reconhecer e amplificar a
voz de falantes não eruditos. Trata-se, assim, da
transculturação flagrada no nível mais imediato da obra: o
de sua própria linguagem.
É preciso ressaltar que a influência dos procedimentos
artísticos elaborados por Guimarães Rosa, na obra de
Luandino Vieira é reconhecida pelo próprio autor que
declara em entrevista ao estudioso Michel Laban: “Eu só
não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães
Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de
criar uma linguagem que não seja a que os seus personagens
utilizam: um homólogo desses personagens, dessa
linguagem deles.” (VIEIRA apud LABAN, 1980, p.27). E,
mais adiante:

(...) li Grande sertão: veredas e mais se confirmou aquela ideia,


aquele ensinamento que me tinha dado quando li Sagarana: a
liberdade para a construção do próprio instrumento linguístico
que a realidade esteja a exigir, que seja necessário. E sobretudo
a idéia de que este instrumento linguístico não pode ser o registo
naturalista de qualquer coisa que exista, mas que tem que ser no
plano da criação. (VIEIRA apud LABAN, 1980, p.35)

A importância da obra de Rosa para a escritura de


Luandino é inequívoca. Assim como é inequívoca a
autonomia que esta adquire em relação à primeira. Cada
94
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

escritor desenvolveu ao seu modo uma relação orgânica


específica entre a forma de contar e as realidades de que
tratam as suas narrativas. E, se Guimarães Rosa funcionou
como modelo inspirador para Luandino Vieira, o autor
angolano soube aproveitar as suas lições com um talento
muito próprio, criando um universo literário singular capaz,
também ele, de mobilizar outros escritores, como o
moçambicano Mia Couto.

O romance transculturador entre a experiência


individual e a experiência comunitária

Em Grande sertão: veredas e Nós, os do Makulusu, os


mundos misturados instaurados pela linguagem de Rosa e
Luandino traduzem literariamente os mundos misturados
que constituem o sertão mineiro e a cidade de Luanda.
Embora tenham como referência contextos históricos
diversos e bastante específicos - a disputa no universo da
jagunçagem e a guerra colonial - ambos os romances recriam
espaços que se aproximam por abrigarem temporalidades
históricas diferentes. Elementos de um mundo arcaico, de
tradição oral, e de um mundo moderno, de tradição letrada,
enredam-se num meio hostil, violento, onde não seria
exagero afirmar que a paz depende da guerra.
Desses mundos emergem Riobaldo e Mais-velho, dois
narradores problemáticos que se fazem porta-vozes do
desconcerto e da perplexidade. Ligados, portanto, tanto à
tradição romanesca moderna como a uma história específica
das letras, no Brasil e em Angola, em que os processos
literários se fazem a partir de uma tradição fraturada e de
um esforço contínuo de autonomização. No caso de
Riobaldo, a marca da resistência se observa em sua

95
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

necessidade (compulsiva) de narrar para compreender as


experiências vividas; em Mais-velho, essa marca está nas
forças dirigidas para a avaliação de seu tempo e para a
construção de uma identidade cultural metaforizada,
inclusive no encantamento que lhe invade o nome, como
lembra Rita Chaves (2005, p. 21).
No romance de Rosa, o universo tradicional, também
de caráter mítico, pode ser identificado com a grande
aventura jagunça, matéria épica por excelência. Assim, no
interior do sertão, ganha relevo a força do jaguncismo,
espécie de resquício de estruturas sociais arcaicas. Já em
Nós, os do Makulusu, a tradição está vinculada à memória de
Mais-velho de uma infância repleta de cumplicidade e
ternura nas areias do Makulusu, musseque luandense
rememorado como um espaço idílico, identificado com a
vida antes da invasão colonial.
Interessante é observar como, nesse “fundo arcaico”,
sobressaem-se narradores problemáticos que, na impossibilidade
de explicar o mundo apenas com o aporte da sabedoria
tradicional, tentam elaborar novos sentidos para a sua
existência e para o caos dos acontecimentos. Riobaldo é
movido pelo encontro com o Menino-Diadorim e a
consequente dor advinda da paixão que o arrebata. Já Mais-
Velho é movido pelo choque causado pela morte do irmão
Maninho e a crise de consciência que ela deflagra: de que
modo compreender um espaço de valores tão
convulsionados? Como se posicionar diante da guerra
colonial?
A partir dessas experiências radicais - amor e morte -
Riobaldo e Mais-velho estruturam as suas narrativas a partir
de discursos questionadores, que veiculam os impasses
próprios do homem moderno, imerso na complexidade e

96
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

na fragilidade das relações humanas e sociais. Assim, no


nível da estruturação dos dois textos, observamos que o
drama ficcional típico do romance se desenvolve num
mundo profundamente vinculado à tradição oral. Nesse
sentido, a trajetória dos dois narradores - pelas veredas do
sertão e pelas ruas e vielas de Luanda - é uma travessia
errante, já que ambos buscam, inutilmente, restaurar a
harmonia de um universo de valores irremediavelmente
perdidos. As experiências, portanto, vão oscilar entre o
agora vivido e o miticamente rememorado, o que adensa
as contradições vividas pelas personagens.
Sintomáticos, nesse sentido, são o início e o final de
cada um dos romances. A primeira fala de Riobaldo, que
se propõe a contar sua vida para um interlocutor letrado e
urbano é: “- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de
briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores
no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia
isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.” (ROSA,
1984, p.7). Já a narrativa de Nós, os do Makulusu tem início
com as palavras de Mais-velho sobre a morte do irmão:
“Simples, simples como assim um tiro: era alferes, levou
um balázio, andava na guerra e deitou a vida no chão, o
sangue bebeu.” (VIEIRA, 1991, p.11).
As duas referências a tiros, sejam os fortuitos disparados
por Riobaldo – “Nonada”, seja o tiro - simples e fatal - que
aniquila Maninho parecem ser representativas das construções
narrativas que vão se seguir. O estilhaçamento dos universos
ficcionalizados pelos romances de certo modo é anunciado
logo nas primeiras linhas das narrativas. E os verdadeiros
alvos dos tiros talvez sejam não apenas as consciências das
personagens em crise, mas também a própria linguagem que
tenta dar conta de seu dilaceramento.

97
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

O final das duas histórias também pode ser


aproximado. O texto de Guimarães se encerra com a
conclusão de Riobaldo: “Existe é homem humano.
Travessia.” (ROSA, 1984, p.568). O de Luandino, com uma
pergunta: “- Nós, os do Makulusu?” (VIEIRA, 1991, p.121).
No primeiro caso, constata-se a inclinação humana para
uma (interminável) busca/travessia; no segundo, relativiza-
se a identidade do narrador, seu irmão e amigos, com o
espaço idealizado da infância. Em ambas as situações,
afirma-se a precariedade que constitui a nossa condição e a
instabilidade de identidades sempre em construção:
“Homens desterrados, estamos todos condenados a uma
travessia incerta e solitária, sem retorno possível.”
(ARRIGUCCI Jr., 1994, p.29).
O esfacelamento dos sentidos vinculados à experiência
abala a possibilidade de compreensão dos narradores,
tornando necessária a busca por novos significados. Quando
a identidade da experiência se desintegra, explica Theodor
Adorno, o ato de narrar experiências adquire novos
contornos. (ADORNO, 2003). Nesse sentido, as estratégias
utilizadas pelos narradores, que visam a (re)construir a
memória, produzem um sentido comunitário capaz de se
organizar, ainda que precariamente, a partir das atitudes dos
outros com quem interagem. Nesse caminho, concebe-se
identidade como uma condição individual e coletiva que
agrega e faz com que os sujeitos se reconheçam (também) no
estabelecimento das diferenças em relação a outros sujeitos.
Desse modo, do ponto de vista da cosmovisão dos
romances, as interpretações do real assinalam a lógica da
colonização revisitada. À luz do conceito de transculturação
narrativa evidencia-se o alcance crítico dos dois textos,
capazes de revelar a crise de valores que marca a cisão entre

98
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

os mundos arcaico e moderno. Tal cisão é tão mais


esclarecida - e esclarecedora - na medida em que, no plano
literário, oralidade e escrita - em língua portuguesa -
harmonizam-se artisticamente.
Os contornos do imaginário político dos escritores se
expressam em seus projetos literários. Em comum, observa-
se que, para ambos, a literatura parece ser veículo para
discutir fundamentos humanos e da vida em sociedade, a
partir de estratégias discursivas que funcionam como
mecanismo de rompimento do mundo ordenado pela lei
que massifica, oprime e aliena. As consequências de tais
investidas resistem ao ideário hegemônico da modernidade
e necessitam ser enfrentadas a partir de perspectivas teóricas
e críticas afeitas à compreensão de mundos plurais (e
misturados) como a América Latina e a África.

******

Na elaboração dos romances Grande sertão veredas e Nós,


os do Makulusu, observa-se o empenho dos autores no
sentido de enfrentar o conflito entre “influência européia”
e tradições orais, vivido intensamente em países colonizados.
Em ambos os casos, tal enfrentamento se dá no bojo de
uma ideologia pautada em projetos utópicos de libertação
e integração. No romance brasileiro, tal ideologia se
apresenta de forma mais diluída, uma vez que o sertão
mineiro pode ser compreendido como metonímia de uma
condição de brasilidade historicamente assentada na
desigualdade social; já no romance angolano, o Makulusu
pode ser compreendido como metáfora da nação em
processo (revolucionário) de construção, comportando
ainda possibilidades de consolidação a partir de gestos

99
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

modernizadores menos excludentes. Nos dois casos, as


narrativas são dotadas de um sentido de resistência e de
uma amplitude simbólica que atestam a maturidade das
literaturas do Brasil e de Angola.
Hoje, é possível considerar que a diversidade que
constitui o universo cultural dos países colonizados por
Portugal é responsável pela produção de sentidos que
representam uma “comunidade simbólica”, como aponta
Stuart Hall (2006, p. 48). Ou seja, ainda que em cada espaço
diferenciado seja possível observar uma “tradição” própria,
uma “continuidade literária”, cuja imagem Antonio Candido
referencia como a “transmissão da tocha entre corredores”
(CANDIDO, 1981), também é possível observar o
estabelecimento de laços supranacionais, que abarcam autores
e obras em língua portuguesa cujos projetos podem ser
aproximados. Dessa forma, o híbrido cultural é
constantemente atualizado em práticas literárias
transculturadoras, na contramão da ideia de povo puro ou
de literatura original. Trata-se, assim, do reconhecimento de
universos de tensões e contradições, vistos em perspectivas
comunitárias, conforme trata Abdala Júnior (1989 e 2003).
Nesse espectro mais amplo é que se observa a
possibilidade da tradução da tradição, tal como a realizam
os escritores da transculturação que, sem se afastar de suas
referências de origem, dialogam com formas e narrativas
outras, afirmando a complexidade e a hibridez de culturas
literariamente traduzidas.

REFERÊNCIAS

ABDALA Jr., Benjamin. Literatura história e política. São Paulo: Ática,


1989.

100
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

______. De voos e ilhas. Literatura e comunitarismos. São Paulo:


Ateliê Editorial, 2003.
ADORNO, T. W. Posição do narrador no romance contemporâneo.
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1989.
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CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
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101
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

LABAN, Michel et alli. Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra.


Lisboa: Edições 70, 1980.
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VIEIRA, Luandino. Nós, os do Makulusu. São Paulo: Ática, 1991.

102
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

RICARDO RAMOS E A TERCEIRA


MARGEM
AROLDO JOSÉ ABREU PINTO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

Ensaio, conto, crônica, documento, fantasia. A situação limite dos


dramas apreendidos se configura nas fronteiras do gênero, não cabe
dentro da área que tradicionalmente lhe é reservada e, por isto
mesmo, invade o espaço do outro, para dizer deles com mais
empenho e liberdade.
José Carlos Garbuglio (In: RAMOS, 1984)

Um certo autor... um certo “entre-lugar”1

Há tempos que esquadrinhamos a produção ficcional


de Ricardo Ramos, com especial destaque para os textos
1
As reflexões deste capítulo integram as atividades de pesquisa do Projeto
“Organização e disponibilização do acervo de Ricardo Ramos: segunda etapa”
(CNPq 2012-2014). Parte do trabalho foi encaminhada à Revista Cathedra/Mx
sob o título “El cuento de Ricardo Ramos: intersticios e intersecciones”.

103
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

curtos do escritor, procurando situá-los entre as tendências


estéticas contemporâneas. Mais especificamente, a
preocupação tem sido a de demonstrar que o ficcionista
possui um modo singular de percepção e representação da
realidade em seus contos, novelas, crônicas e romances, o
que particulariza seu estilo, num processo que toma o trivial,
o habitual, o cotidiano, como pretexto para representar
uma realidade marcada pelo desnudamento das fragilidades
humanas. O resultado obtido pelo escritor, numa acepção
mais ampla, seria a exacerbação e a cristalização de uma
tensão ao nível da linguagem, o que o situaria entre os
grandes escritores da segunda metade do século passado.
Esse posicionamento crítico tem se revelado
consistente para compreendermos a imanência de sua
produção, mas, ao perscrutarmos, dentro de um todo
orgânico, a disposição dos elementos essenciais que
compõem os objetos ficcionais tomados como fonte de
estudo, observamos que existe, na produção de Ricardo
Ramos, uma “terceira margem” a ser considerada – se nos
permite a imagem João Guimarães Rosa a partir de “A
terceira margem do rio”, conto constitutivo de Primeiras
estórias (1978). Dito de outro modo, para além de uma
primeira margem, que revela um modo particular de
representação, e uma segunda margem, que dá a conhecer
um conteúdo representado, há uma terceira margem mais
intrincada a que nos submete o “canoeiro” ricardiano e que
parece situar sua obra em um lugar, ou melhor, num entre-
lugar – acepção mais filosófica e atualizada – mais próximo
ou talvez mais aplicável à narrativa contemporânea e que
nos permite explorar e refletir sobre algumas fronteiras na
literatura ou, ainda, dar conta das influências e/ou
confluências entre mundos hierarquizados ou não que

104
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

constituem certo zeitgeist2 de inserção de sua produção.


Explícita ou implicitamente, o princípio operador do
termo, em contraste e/ou complemento ao que
denominamos de interioridade – essa experiência e
evidência de ação que legitima a execução de uma obra
artística e que garante sua autonomia –, tem o poder de
produzir um efeito particularizador em certo objeto
artístico. Certamente há uma dimensão externa e objetiva
de concepção que dá sustentação direta ou indireta a toda
narrativa esteticamente elaborada, seja no polo da produção
ou da recepção de determinado objeto. Porém, a questão é
pôr em evidência, discutir, sistematizar e problematizar
alguns desses limites, sem perder de vista o essencial: o texto
ficcional e seu caráter lúdico primeiro.
A título de exemplificação ou mais propriamente da
elucidação da discussão proposta, poderíamos retomar aqui,
como ponto de partida, algumas colocações empreendidas
por Antonio Candido, em Literatura e sociedade (1965), sobre
as tensões nas formas de manifestação do pensamento da
literatura nacional que redundaram, em certo momento da
nossa historiografia, no que o crítico denominou de
“dialética do localismo e do cosmopolitismo” (p.131),
vivificado com mais afinco nos períodos denominados
como Romantismo e Realismo, estendendo-se até o
Modernismo, principalmente até a geração de 1930. É óbvio
que nossas conjecturas não pretendem apontar para uma
discussão nos mesmos moldes empreendidos por Antonio
Candido, mas retomar essa questão nos parece importante
para a compreensão do processo de formação cultural/

2
Termo que, como sabemos, pode ser traduzido, ainda que precariamente, como
“espírito da época” predominante em certa região e/ou cultura.

105
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

literário brasileiro e, ato contínuo e de maneira mais pontual,


para procurar apreender e situar a percepção de Ricardo
Ramos sobre esse zeitgeist característico e presente em
determinado momento de sua produção. Afinal, Ricardo
Ramos não partilha diretamente da discussão apontada pelo
crítico Antonio Candido, mas certamente apresenta, no bojo
de sua obra, um embate, uma tensão de forças, que remete
para uma busca constante de uma identidade própria, não
só aquela presente, como já dito, apenas intrinsecamente
ao texto ficcional, mas manifestada em toda a sua produção
de exercício de intelecto por um modo específico e
autêntico de perceber e percorrer as realidades coetâneas e
que se revela, numa esfera mais ampla, até mesmo em sua
atuação intelectual como jornalista, editor, professor de
publicidade e propaganda e crítico literário, como é possível
averiguar, por meio de pesquisas mais sistematizadas, em
documentos existentes em seu acervo particular, hoje
disponível na Universidade de Estado de Mato Grosso,
campus regional de Alto Araguaia.
Se Candido (1993, p. 23) aponta para “tendências
universalistas e particularistas” em relação à literatura
brasileira, no caso de Ricardo Ramos talvez pudéssemos
pensar numa preocupação em tornar manifesto um
“sobrevir”, um vir ou acontecer a posteriori, pois o escritor
estreia em 1954 com a publicação de narrativas curtas em
obra que recebeu o título de Tempo de Espera e, num momento
em que essas tensões nas formas de manifestação do
pensamento da literatura nacional parecem já ultrapassadas,
o escritor ainda dá ares de carregar o peso da superação
dessa visão, pois integra uma forma de expressão claramente
manifesta e talvez até denunciadora de uma sensação de
falta de capacidade de reação a uma situação de dependência

106
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

cultural, econômica, social e política que debilita, abate e


fragiliza os indivíduos de uma sociedade organizada,
particularmente a dos intelectuais e demais integrantes da
sociedade brasileira das décadas de 1950 a 1990, período
em que se assenta sua produção ficcional. Para melhor
compreensão do que envolve essa questão, retomemos
Candido (1965):

Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa


vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege
pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada
pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e
por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades
de criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo,
a imitação consciente dos padrões europeus. Isto se dá no
plano dos programas, porque no plano psicológico profundo,
que rege com maior eficácia a produção das obras, vemos
quase sempre um âmbito menor de oscilação, definindo
afastamento mais reduzido entre os extremos. E para além
da intenção ostensiva, a obra resulta num compromisso mais
ou menos feliz da expressão com o padrão universal. O que
temos realizado de mais perfeito como obra e como
personalidade literária (um Gonçalves Dias, um Machado de
Assis, um Joaquim Nabuco, um Mário de Andrade), representa
os momentos de equilíbrio ideal entre as duas tendências
(p.131-132).

E ainda sobre a nossa condição, por assim dizer,


“colonial”, acrescenta:

Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem


realmente consistido numa integração progressiva de
experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o
dado local (que se apresenta como substância da expressão)
e os moldes herdados da tradição europeia (que se apresenta
107
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

como forma de expressão). A nossa literatura, tomado o


termo tanto no sentido restrito quanto amplo, tem, sob este
aspecto, consistido numa superação constante de obstáculos,
entre os quais o sentimento de inferioridade que um país
novo, tropical e largamente mestiçado, desenvolve em face
de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma
civilização elaborada em condições geográficas bastante
diferentes. O intelectual brasileiro, procurando identificar-se
a esta civilização, se encontra todavia ante particularidades
de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos
padrões europeus que a educação lhe propõe, e que por
vezes se elevam em face deles como divergentes, aberrantes
(CANDIDO, 1965, p.131-132).

Dos fragmentos acima, destaque-se, entre as colocações


de Candido, a informação de que as oscilações extremistas
de visões de alguns autores em determinada época se dão
com maior intensidade no plano dos programas, mas que
no plano psicológico profundo há uma menor oscilação.
Ricardo Ramos parece alinhar-se com esse segundo bloco
de autores que se afastam dos extremos, tencionando um
resultado “mais ou menos feliz da expressão com o padrão
universal” (p.131), ou seja, Ricardo Ramos não opta nem
por um apego cru a questões nacionais – ao contrário,
procura desnudar os sentimentos humanos em sua essência
–, nem tão pouco assume uma posição conformista,
principalmente no que diz respeito à imitação desse ou
daquele arquétipo histórico/cultural vigente,
principalmente os padrões europeus. Tal como os autores
citados por Antonio Candido (Gonçalves Dias, Machado
de Assis, Joaquim Nabuco e Mário de Andrade), Ricardo
Ramos busca sua “personalidade literária”, equilibrando a
representação de um certo sentimento já arraigado de
privação de vivência expressiva de valores que definem o
108
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

conhecimento seguro e profundo dos entretons que


compõem uma sociedade organizada, característico de um
país novo como o Brasil, com sua capacidade de lançar
imagens que vão muito além das fronteiras geográficas, ou
seja, sem abandonar particularidades distintivas de meio,
raça e história, inerentes ao seu convívio em determinado
ambiente e nem sempre correspondentes a outros padrões,
o autor busca sobrepujar certas barreiras com a
representação de um ser ficcional individual que remete,
ao mesmo tempo, ao coletivo das relações humanas.
Entretanto, não há como esquecer, como destaca também
Candido (1987):

Sabemos, pois, que somos parte de uma cultura mais ampla,


da qual participamos como variedade cultural. E que, ao
contrário do que supunham por vezes ingenuamente os nossos
avós, é uma ilusão falar em supressão de contatos e influências.
Mesmo porque, num momento em que a lei do mundo é a
inter-relação e a interação, as utopias da originalidade
isolacionista não subsistem mais no sentido de atitude
patriótica, compreensível numa fase de formação nacional
recente, que condicionava uma posição provinciana e umbilical.
(CANDIDO, 1987, p.154).

Discutir ou evocar essas questões, como sabemos,


significa pensar nas condições de produção e num objeto
que considera o discurso literário e não só o texto em si, o
que nos remete para a observação da literatura de caráter
estético de forma que esta revele uma cultura articulada da
qual um produto surge e para o qual é destinado. Entre
esse sujeito e o objeto há um pequeno espaço que se
entreabre para uma gama de perspectivas muitas vezes não
conjeturadas anteriormente, nem por um emitente e nem

109
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

por um recebedor, mas que podem reunir, incorporar e


até mesmo superar a discussão dos embates entre o dito e
o não-dito ou entre o jogo do sentido e o do não-sentido
de determinado objeto.
Acreditamos que tenha ficado claro que não pretendemos
um discurso tautológico e nem mesmo logocêntrico3. Ao
contrário, buscamos conjecturar sobre como a centralidade
das ideias e dos sistemas de pensamento são apreendidos por
um discurso de tal forma que esses “entre-lugares” acabam se
tornando um espaço propício para refletir, imaginar e
identificar uma nova identidade para uma certa produção
ficcional, o que pode, ato contínuo, redefinir a própria ideia
de sociedade ou contestá-la, uma vez que permite o vislumbre
de outros sinais indicativos de identidade.
Ricardo Ramos, obviamente, não usa seu texto
abertamente para professar questões que dão feição a uma
identidade latino-americana. Essa problematização se dá no
âmbito do discurso literário. Surge, emerge, portanto, de uma
situação e de uma necessidade de expressão estimulada pelo
funcionamento de uma cultura ainda marcada por um certo
tipo de sujeição ou talvez falta de consciência da própria
identidade nos setores econômico, político e cultural. Afinal,
elementos dessa fronteira, que não são o remate, mas o início
de um processo de sobrevivência ou restauração de uma
terceira margem ainda estabelecida somente pela capacidade
imaginária de revelar um produto a partir de sinais, estão
abertos à ponderação. Ramos alude a situações abertas, mas
acaba delineando contornos. Muito mais do que se propor a

3
Termo tomado na acepção que lhe dá o filósofo francês contemporâneo Jacques
Derrida (1930-). In: Glossário de Derrida, supervisão de Silviano Santiago. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1976.

110
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

fundar, enaltecer ou condenar diferenças, desigualdades,


anormalidades, irregularidades, acaba espontaneamente
levando a um movimento de vaivém. É justamente nesse
movimento oscilatório que se refigura a realidade em seus
textos ficcionais.
Ainda no âmbito das fronteiras, há que se lembrar que
elas nem sempre são estáticas, o que dificulta uma reflexão ou
formação de um juízo mais ou menos confiável. Sendo assim,
ao tratar da obra de Ricardo Ramos, temos que considerar a
porosidade e a elasticidade de configurações a que está
submetido esse objeto para, só então, pensá-lo na esfera do
imaginário. Seja como forma de imergir ou esquivar-se de
maneira sorrateira dessa sensação de incompletude inerente
ao ser humano, seja como representação consciente ou
inconsciente dessa nossa utopia de uma sociedade ideal ainda
hoje presente em grande parte do ocidente, as narrativas de
Ricardo Ramos perfazem um painel do nosso tempo, trazendo
em si toda a tensão entre os fenômenos mentais ou emocionais
próprios da natureza humana.
Nas palavras de Garbuglio (In: RAMOS, 1984), o
escritor funcionaria como uma câmera em movimento,
focalizando os aspectos mais comuns da sociedade e, pelo
exercício da fantasia, irrompendo o bloqueio dos
condicionamentos sociais e desnudando todo um processo
de inacabamento inerente ao ser humano.

No geral fica a impressão de que à narrativa preexiste uma


experiência que recorta o fato e ativa a dose de realismo. Vivida
pelo narrador aquela experiência do acontecimento (claro,
trata-se de uma estratégia adotada pelo contador de histórias,
exatamente para provocar o sentido de aproximação entre
dos dois vértices da realidade) facilita a passagem da
observação à invenção, que é ao mesmo tempo estimulada e

111
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

estimulante das situações limites em que se completam a fantasia


e observação. Ao serem provocadas, as aspirações pessoais
contidas pelas várias formas de coerção rompem as camada
de contensão e afloram, enquanto se ilumina o jogo do
estilhaçamento social e a criação se inventa. (GARBUGLIO,
In: RAMOS, 1984, p.8).

Num domínio mais amplo, essa fragmentação e


desnudamento da sociedade irá se dar, na
contemporaneidade, pela negação do homogêneo e do que
se apresenta como lógico ou mesmo racional. Há como
que uma indefinição das descrições e o fluxo do pensamento
do sujeito do discurso aglutina uma abundância de frases,
expressões e termos que se embaralham, se liquefazem, se
sobrepõem, se entrecruzam num todo paradoxal. O
singular e o plural se mesclam e, desse modo, uma visão
maniqueísta da realidade perde lugar decisivamente. Nesse
universo de ordem e desordem, estabelece-se um juízo ao
mesmo tempo endógeno, porque tem sua origem no interior
de uma estrutura ou sistema estabelecido, e universal,
porque reflete a supremacia intelectual arraigada num
determinado ambiente. Por meio da palavra/imagem, a
literatura projeta-se em direção à apropriação da terceira
margem de que nos fala Guimarães Rosa.

Um modo característico de narrar: uma leitura de


“O terceiro irmão”

A arte é um jogo que brinca e diverte. Sua eficácia depende muito da


habilidade do criador em dispor das palavras e empenhar o leitor na
sua aventura. (...) o texto de Ricardo Ramos também é uma forma de
resistir às investidas da estupidez que ameaça o homem no universo da
automação e de resgate de uma dimensão perdida.
José Carlos Garbuglio (In: RAMOS, 1984, p.12)

112
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

“O terceiro irmão”, conto publicado inicialmente na


obra Circuito fechado (São Paulo: Martins, 1972) e,
posteriormente, nas obras 10 contos escolhidos (Brasília:
Horizonte/INL, 1983), Os melhores contos: Ricardo Ramos.
(Sel. Bella Josef, São Paulo: Global: 1998) e Estação primeira
(São Paulo: Scipione, 1996), constitui um relato que expõe,
com bastante sagacidade e agudeza, um universo em que
são contrabalançados valores postos cotidianamente na
sociedade.
A narrativa é constituída por um entrelaçar de
vocábulos, expressões e frases que revelam o processo de
automação a que a sociedade é submetida na
contemporaneidade. Narrativa curta, possui como fio
condutor o comportamento de dois irmãos que tem
características opostas, mas a inserção de um suposto
terceiro irmão – na verdade, um ser surreal interposto entre
os irmãos antípodas – traz um efeito singular e
desestabilizador da ordem, lançando o leitor em terreno
movediço e trazendo-o para questionamentos de condutas
e rotinas já arraigadas no censo comum e cristalizadas na
sociedade. Modo característico de narrar de Ricardo Ramos,
as dicotomias se estabelecem num registro que deixa
entrever os condicionamentos que se fundem e vão se
somando de modo inusitado já que acabam refletindo as
contradições a que estão mergulhadas as relações humanas.
No começo do conto já é possível observar essa questão:

O irmão mais velho, tinha dez anos, fechou a janela e


co-mentou maravilhado:
— Deus é muito grande. Fazer o mundo, o sol, as estrelas. É
uma coisa!
O irmão mais novo, dois anos mais moço, duvidou:
— E foi Deus quem fez?
113
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

O primeiro, estava escandalizado, levantou a voz:


— Então não foi? Se não foi ele, quem é que fez?
O segundo continuou, só respondendo:
— Ninguém, ora!
— Como ninguém?
— Já estava feito.
— Sem se fazer, nem nada?
— É, de nada.
— Você não acredita?
— Acreditar em quê?
— Você é uma besta (RAMOS, 2012, p.21).

Neste início do conto é claramente perceptível uma


tentativa de estabelecer uma tensão dialética entre as
personagens, além de outras imagens que podem ser
depreendidas do texto e que buscaremos explorar ora mais
ora menos detalhadamente. Primeiro, são alinhavados
alguns indícios dos comportamentos, sentimentos, anseios
e pretensões repetitivas e previsíveis que o narrador busca
transpor ao leitor. A atitude manifesta de credulidade de
valores religiosos arraigados do irmão mais velho
contrastam com o ceticismo do irmão mais novo.
Estabelece-se aí um primeiro embate entre o pragmatismo
daquele que não acredita nas “verdades” da fé e, do outro,
aquele que possui uma opinião manifestadamente calcada
nos dogmas religiosos.
Há dois andamentos distintos e ao mesmo tempo
complementares no enredo: o de amadurecimento pessoal de
cada uma das personagens, alternada pela narração de conflitos
e visões distintas entre ambos, e o de início e fim dos tempos
marcado no começo do conto pela menção à criação do
mundo por Deus e a retomada da mesma ideia no desfecho.
Destaque-se também o fato de serem três os irmãos; número

114
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

que, por si só, já remete a toda configuração bíblica: a tripartição


em Deus pai, Deus filho (Jesus Cristo) e Espírito Santo.
Não são atribuídos, porém, nomes às personagens, há
apenas “o mais velho”, “o mais novo” e, em seguida, “o
terceiro irmão”. Essa gradação resulta numa forma singular
de dar feição às diferentes percepções do mundo e
construção de caráteres presentes em uma sociedade.

O terceiro irmão, o que só tinha um olho, entrou na discussão


apaziguando:
— Esperem aí, não é tão simples. Desde o começo os homens
se dividem. Os que acreditam, os que não acreditam. Foi
sempre assim. (RAMOS, 2012, p.21).

Importante observar que o suposto terceiro irmão, que


se coloca como conciliador entre os outros dois irmãos,
ironicamente “só tinha um olho”, mas possui a faculdade
de divisar a realidade e enxergar mais longe que os demais.
É nesses momentos que Ricardo Ramos vai em direção a
um modo característico e meticuloso de oposição, ou seja,
narrador e personagens concebidos em seus textos curtos,
exigem, ao mesmo tempo, a atenção de um virtual leitor
para o que é comum nos comportamentos e ações humanas,
mas também uma consciência mental do pormenorizado,
do particular, que, no sentido rigoroso do termo, desnuda
e dramatiza, de maneira direta ou indireta, a ambiguidade
das relações coletivas.
Apesar da clara referência do narrador aos lugares,
gestos e palavras das personagens, é como se essas
personagens não existissem nos precisos e sucintos relatos
de Ricardo Ramos, pois, mais importante que o relato
explícito das minudências, apresenta-se o drama humano,
que é reduzido ao essencial e oferecido num vocábulo ou
115
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

numa expressão. É o que podemos entrever na sequência


do conto “O terceiro irmão”.

Quando fez doze anos, o irmão mais velho ganhou uma bola
e jogou futebol. O irmão mais moço ganhou um livro e leu.
Às vezes, um chamava o outro:
— Vamos jogar?
— Você não quer ler?
Nenhum dos dois aceitava. O mais novo calado, abanando a
cabeça. O mais velho se irritando:
— Você não sai, não corre, não faz exercícios.
— Pra quê? Não tenho vontade.
E continuava lendo. O outro xingava:
— Bicha!.
Ele respondia, sem se alterar:
— É a mãe.
O terceiro irmão, o que só tinha uma perna, comentava com
certa alegria:
— Vocês são diferentes como dois irmãos. (RAMOS,
2012, p.22).

Na narração, os anos vão se sucedendo e as diferenças


vão se acirrando. Se no início do conto o narrador destaca
um conjunto de concepções comuns a determinado grupo
social e já arraigadas no pensamento coletivo, como a crença
em valores religiosos, em seguida, há um choque entre o
físico e o intelectual, mas o destaque novamente é para a
frase cirúrgica do terceiro irmão, que só tinha uma perna,
“— Vocês são diferentes como dois irmãos”. Há, portanto,
uma estrutura que vai se repetir: são dadas as características
de um e, em seguida, do outro, para, no contraste, inserir-
se o terceiro irmão e sua concepção de mundo. Não é, por
conseguinte, nem na personagem “A” e nem na “B” que se
formam o juízo no conto “O terceiro irmão”. A faculdade

116
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

intelectual para julgar, avaliar com correção, discernimento


e bom senso é dada ao terceiro irmão, mas este deixa sempre
um vocábulo ou frase carregada de novos sentidos e a
imagem se entreabre novamente às reflexões do leitor. As
ponderações do terceiro irmão demonstram equilíbrio
mental, porém, também está claro que é como se esta
personagem não existisse, ou seja, é como se fossem apenas
projeções de sujeitos existentes no conjunto das relações
humanas. Fica para o leitor, como já dito, a responsabilidade
de preencher os vazios do texto.
Segundo David Lodge (2011, p. 41) “os romancistas
literários modernos, ressabiados com as soluções
engenhosas e os finais felizes, tendem, pelo contrário, a
imbuir seus mistérios com uma aura de ambiguidade a
deixá-los irresolvidos”. Ricardo Ramos materializa esse
modo de representação por meio do narrador a cada nova
cena que se acresce ao conjunto da narrativa.

Quando chegou aos quinze anos, o irmão mais velho aprendeu


a dançar. O irmão mais novo aprendeu a ouvir música. Um
saía para os bailes de sábado, onde fez do rock ao samba, e
esticava as noites com chope e violão. O outro ficava com os
seus discos, o seu grava-dor, quieto e de olhos fechados, apenas
mexia o corpo num balanço quase de não se perceber. Com
o tempo, o primeiro decorou Chico, Edu e Lyra, até cantava.
O segundo estalava os dedos, sempre um ritmo sem palavras.
— Como é que pode gostar disso?
Isso era o canto de protesto, com versos e instrumentos de
fora, estrangeiro feito um menino sozinho dentro de casa.
— Eu gosto.
— Eu sei. Há gosto pra tudo.
— É. Está aí você.
E brigavam, música pop, música popular brasileira, ambos
com um ar superior, que podia ser mais agressivo, mais discreto,

117
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

no en-tanto o mesmo tom de fácil discordância.


— Você faz questão de ser original. Pendure um disco no
pescoço.
— Você é o consumidor modelo. Continue batucando os
seus sambinhas.
O terceiro irmão, o que só tinha um ouvido, levantava as
mãos e dizia:
— Somos todos irmãos, consumidores. Qual é mesmo a
músi-ca desse verso? (RAMOS, 2012, p.22-23).

As contradições no interior do texto entre as


personagens se repetem. O desenho da experimentação de
valores que compõem uma sociedade organizada vão
aclarando um modo característico de representação de
experiências próprias de um país capitalista. Assim, as
imagens criadas, conforme já dito, vão muito além do relato
simplista da condição de um país sul-americano como o
Brasil. Elas são definidoras de um sistema econômico
correspondente a certos padrões de dominação vigentes
num âmbito bem maior. A narrativa acaba sendo também
compreendida em termos da contradição social a que a
sociedade e o indivíduo estão expostos
contemporaneamente. Artisticamente, essas contradições
provocam, na obra de Ricardo Ramos, sujeitos ficcionais
que, apesar fragmentados, desconstroem e indagam sobre
o cotidiano. Tanto que no conto, o terceiro irmão, que só
tem um ouvido, levanta as mãos e diz: “— Somos todos
irmãos, consumidores” (RAMOS, 2012, p.23). Nessa frase
está sintetizada a consciência do narrador dos elementos
que determinam o meio e, pelas sensações físicas, intensifica-
se a imagem criada. Do mesmo modo, o remate desse
conjunto de situações narradas entre os irmãos traz algo
que particulariza a cena: após a fala do terceiro irmão de

118
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

que nós todos somos irmãos consumidores, há um


questionamento solto – “Qual é mesmo a músi-ca desse
verso?” (RAMOS, 2012, p.23). Todavia, não há como
definir com segurança se quem fala é a personagem ou o
narrador pois não há verbos dicendi introduzindo ou
arrematando a fala da personagem e, além disso, há um
remetimento direto ao leitor como se se abrisse uma janela
para o diálogo e, ao mesmo tempo, se iniciasse um
questionamento de uma situação. Metaforicamente, é
possível entender a frase “Qual é mesmo a música desse
verso?” como um modo de se referir ironicamente e
criticamente à absoluta falta limites nas relações capitalistas.
É como se o narrador ou a personagem evocassem o leitor
para, entre outras coisas, enxergar que não há melodia
alguma na coisificação do homem.
Caminhando para o desfecho, a narrativa ganha
contornos que reforçam ainda mais esse ponto de vista
singular do narrador.

Quando alcançou a maioridade, o irmão mais velho estava


no fim do curso científico e ia fazer medicina. O irmão mais
novo se iniciava no clássico e pensava em filosofia. O primeiro
tinha uma namorada firme, o segundo tinha muitas. Um se
vestia com cuida-do, acertava a barba quadrada, punha água-
de-colônia no lenço; o outro usava as mesmas calças
desbotadas, os cabelos despenteados e compridos, os óculos
redondos. Nas refeições, o mais velho comia muito e crescia,
aumentava, forte e sólido, enquanto o mais moço nem tanto,
esquecido, alongado, meio frágil. (RAMOS, 2012, p.23)

Ainda de acordo com Lodge (2011, p. 20) “a ficção


moderna tende a suprimir ou a eliminar a voz do autor,
apresentando a ação por meio da consciência dos

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

personagens ou delegando a eles a tarefa de narrar”.


Observe-se que, no fragmento acima, o narrador abre mais
um bloco de comparações entre os irmãos:
IRMÃO MAIS VELHO IRMÃO MAIS NOVO
"curso científico" "iniciava no clássico"
"medicina" "filosofia"
"tinha uma namorada firme" "tinha muitas" namoradas
"vestia com cuidado, acertava a "usava as mesmas calças desbotadas,
barba quadrada, punha água-de- os cabelos despenteados e
colônia no lenço" compridos, os óculos redondos"
"comia muito e crescia, aumentava, "nem tanto, esquecido, alongado,
forte e sólido" meio frágil"

Estabelece-se entre ambos uma relação que busca


evidenciar ainda mais um certo pragmatismo ou não no
modo de tratar questões filosóficas, estéticas, físicas,
científicas, etc. Porém, a partir de determinado momento
da narração, já não se sabe a quem se pode atribuir as falas.
Podemos, a partir das pistas deixadas pelo narrador nos
períodos anteriores, até conjecturar a quem pertence cada
afirmação, mas, no geral, fica a impressão de que, ao
caminhar para o desfecho, o narrador quer justamente, como
afirma Lodge (2011), delegar a tarefa de apresentar os fatos
às personagens para demonstrar que, apesar das diferenças,
tudo se mistura num conjunto que vai constituir a
diversidade humana em suas frágeis relações. Tanto que o
terceiro irmão, que só tem um lado, acaba se perdendo e já
não sabe o que dizer.

[...] Talvez por isso tam-bém discutissem:


— Quando eu for rico.
— O negro é bonito.
— A guerra acabou, ninguém pensa em ninguém.

120
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

— A luta não é minha, é de todos.


— O povo está conformado.
— Eu não sei, não vejo televisão.
O terceiro irmão, o que só tinha um lado, o do meio, perdia-
se no barulho, na fronteira, e já não sabia o que dizer. (RAMOS,
2012, p.23-24).

E, para encerrar o conto, o narrador assume


novamente a apresentação dos fatos. Em cada frase, uma
gama de novas imagens se apresenta.

O irmão mais velho saiu e foi denunciar o irmão mais moço.


O irmão mais moço foi condenado à morte por crime de
opinião.
O terceiro irmão, o que só tinha uma vida, tomou o seu lugar
diante do pelotão de fuzilamento. As balas todas acertaram o
alvo, porque ele estava um pouco maior. Não deixou bilhete
nem última vontade.
E os irmãos sobreviventes continuaram, discordando,
brigan-do, sorrindo, até que a cidade escureceu, o país acabou,
o mundo caiu, e um grande silêncio voltou sobre todas as
coisas. (RAMOS, 2012, p.24).

O final do conto deixa aberta a sensação de que uma


filosofia utilitarista, representada pelo irmão mais velho,
acaba prevalecendo sobre o intelecto e a liberdade de
expressão. O pragmatismo capitalista ganha terreno e
destrói a opinião coletiva. Na contemporaneidade, quando
a opinião ganha força, ela é metaforicamente fuzilada em
uma sociedade massificada.
Enfim, os três irmãos, cada um a seu modo, pintam
com maestria um quadro da sociedade contemporânea,
deixando mais visíveis as fronteiras de uma situação
perceptível nos meandros da literatura brasileira da segunda

121
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

metade do século passado. Muito embora tratemos aqui


de apenas um autor em específico e a partir de recortes
bastante diversos, há uma certa “terceira margem” ou um
certo entre-lugar na ficção de Ricardo Ramos que diz muito
sobre as realidades sociais objetivas e/ou subjetivas dos
indivíduos que habitam determinado espaço geográfico.
Este entre-lugar no texto ficcional de Ricardo Ramos
demonstra o quão necessários são a constituição de uma
autonomia e de uma autoconsciência dinâmica e criativa
para fazer frente a determinadas características como o
automatismo e a passividade.
Cada vez mais, os domínios de quem narra vão se
diluindo ou, outras vezes, nem mesmo existem,
especialmente no conto. A experiência de se alterar
substancialmente ou se decompor a identidade humana em
estilhaços ganha ênfase de tal forma que as estruturas
textuais, a exemplo do conto aqui tomado para reflexão,
demonstram o quão multifacetada são as experiências que
acompanham a representação do homem na literatura
contemporânea.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:


Ática, 1987.
______. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 7.
ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993.
______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária.
São Paulo: Nacional, 1965.
GARBUGLIO, José Carlos. Ricardo Ramos, o sobrevivente. In:
RAMOS, Ricardo. O sobrevivente. São Paulo: Global, 1984. (Coleção
Múltipla)
122
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

LODGE, David. A arte da ficção. Tradução: Guilherme da silva


Braga. Porto alegre, RS: L&PM, 2011.
RAMOS, Ricardo. O terceiro irmão. In: ____. Circuito fechado. São
Paulo: Globo, 2012.
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ____.
Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

RICARDO DICKE E O ROMPIMENTO DA


ESTÉTICA REGIONALISTA
MADALENA MACHADO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

A Literatura Brasileira feita em Mato Grosso por


Ricardo Guilher me Dicke 1 apresenta traços de
rompimento com a estética regionalista. No que tange a
1
Ricardo Guilherme Dicke nasceu e faleceu (1936-2008) em Cuiabá-MT, tendo
residido por vários anos no Rio de Janeiro. A obra publicada até o momento é
composta por: Caminhos de sol e lua (1961); Deus de Caim (Edinova) 1968; Como o
silêncio (Clube do livro) 1968; Caieira (Francisco Alves) 1978; Madona dos Páramos
(Antares) 1981; Último Horizonte (Marco Zero) 1988; A chave do abismo (Fundação

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

produção em prosa, seus livros registram tramas situadas


em Mato Grosso como uma localização geográfica para
debater temas de interesse universal. É assim desde sua
obra inicial, Deus de Caim (2006) em que da fictícia Vila do
Pasmoso o enredo se concentra em Cuiabá para em
seguida retornar a Pasmoso, fazendo da localização um
mero pretexto para a discussão maior do peso e culpa
que cada personagem traz consigo. As obras posteriores
seguem a mesma trilha de identificações da paisagem, usos
e costumes mato-grossenses porém, seu interesse maior é
com relação à psicologia dos personagens, dramas, amores
não correspondidos, os mistérios da alma humana, a
denúncia social de esmagamento de homem e natureza a
serviço do poder. No trabalho quase escravo da Caieira
que intitula o segundo romance dickeano, as mazelas dos
agregados em fazendas, verdadeiros latifúndios em Rio
abaixo dos vaqueiros (2000), as agruras pela posse do
diamante no romance Os semelhantes (2011) ou do ouro
em “Toada do Esquecido” (2006), temos um painel da
vida de homens e mulheres que gastam a vida em função
do enriquecimento do patrão ou da sobrevivência, a
qualquer custo, nessa literatura que tem na força estética
de encenar a morte, a podridão da carne e da alma
humana, como destaca Hilda Magalhães (2001, p. 207)
sua maior qualidade literária.

cultural de Cuiabá) 1986; Cerimônias do esquecimento (EdUFMT) 1995; Rio abaixo


dos vaqueiros (Secretaria de cultura de Mato Grosso) 2000; O salário dos poetas
(Secretaria de cultura de Mato Grosso) 2000; Conjunctio Oppositorum no Grande
Sertão (Secretaria de cultura de Mato Grosso) 2002; Deus de Caim (afabrika) 2006;
Toada do esquecido e sinfonia equestre (Cathedral/Carlini&Caniato) 2006; Madona dos
Páramos (Cathedral/Carlini&Caniato) 2008; Cerimônias do sertão (Carlini&Caniato)
2011; Os semelhantes (Carlini&Caniato) 2011; A proximidade do mar & A ilha
(Carlini&Caniato) 2011; O velho moço e outros contos (Carlini&Caniato) 2011.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Quando Machado de Assis no famoso ensaio de


1873, “Instinto de nacionalidade”, chamava atenção para
o fato de que não é a cor local que indica se uma obra é
nacional ou não, mas sim o quão humano venha a ser a
literatura do escritor que se queira perene no seu ofício
de escrever; já antevemos a expansão a qual Antonio
Candido dá ao tema em Formação da Literatura Brasileira
(1997). Neste livro, tomando a questão do regionalismo
visto enquanto programa e critério estético, a inteligência
nacional estava às voltas com a definição do nacionalismo
romântico e, por extensão, grupos como o nordestino
desejavam reconhecimento por meio de um alinhamento
crítico e a reivindicação da prioridade e primazia da vida
intelectual, perdurando inclusive até após o Romantismo.
Confor me Franklin Távora, o fundador da ideia
regionalista para a dimensão maior do nacionalismo, via
na incorporação do senso da terra, a paisagem para o
que ele chama de vivência regional visando um sentido
maior da literatura nacional, há mérito nisto como indica
Candido (1997, p. 269) na medida em que Távora define
com clareza o discernimento por parte do escritor
quanto à psicologia e o ambiente. A imaginação segundo
ele, será muito mais convincente aliada ao conhecimento
real da referida natureza. É o que faz notar no romance
brasileiro feito no nordeste no século XX, alguns deles
como Jorge Amado e José Lins do Rego, põem na região
não somente a ênfase na contemplação, ou motivo de
orgulho e enlevo, mas também complexo de problemas
sociais. Assim, explicar a fisionomia, os fatos, a
decadência, enumerando os tipos humanos e procurando
interpretar-lhes o comportamento, o modo de ser
(Candido,1997, p. 271), conduz a uma visão mais

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

circunstanciada do que se pretende definir literariamente


a autonomia da região, no caso, a nordestina.
Já no livro História da Literatura de Mato Grosso (2001),
Hilda Magalhães dissertando a respeito da literatura
produzida por Ricardo Dicke, destaca a peculiaridade com
que o escritor trabalha em sua obra a natureza mato-
grossense. Com um tratamento diferenciado, segundo a
pesquisadora, de uma natureza-mãe os enredos abarcam
uma natureza povoada por diabos cruéis e libidinosos
(2001, p. 212). O Preto Pignon ou Diabo Preto de Caieira
com sua figura enigmática e quase fantasmagórica ronda as
casas de Boa Esperança, enfeitiça as mulheres, enlouquece
os homens de ciúme e domina a imaginação dos
empregados da caieira. Por causa da atmosfera que ele
inspira, o lugar de onde se extrai a cal que fica nos arredores
dos municípios de Nossa Senhora da Guia e Nossa Senhora
do Livramento, fer vilha de cogitações acerca do
demoníaco. Isto posto na tentativa de nomeação da figura
que, segundo a personagem Zurina (Dicke, 1978, p. 101)
tinha visto o próprio, o Capeta, o Tambor Fim-Fom, o
Para-Que-Te-Quero, o Tinhado, Caprunho, o Maferrico, o
Tomba, o CapaVerde, Cramulhão, o Canhim, o Danado,
Mau-Fadado, Capricujo, Caprimujo, Caprisujo, Caprípede,
a cogitação vem direto dos olhos negros do burrinho para
a posterior encarnação em Pignon. Em Rio abaixo dos
vaqueiros (2000), um dos protagonistas, o Velho, é
acompanhado de perto pelo tocador de rabeca, João
Baaraboz que se faz imprescindível em todas as ações do
fazendeiro, aconselha, insinua, propõe um pacto e se mostra
o próprio pactário. Enquanto no conto “Toada do
Esquecido”, a líder dos fugitivos do garimpo, O Esquecido,
de Rondônia para Vila Bela, primeira capital de Mato

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Grosso, é El Diablo, uma mulher travestida de homem que


impõe suas vontades aos demais, comanda, por fim seduz
e mata cada um dos companheiros que estão de posse do
saco de ouro que, na fuga do garimpo com a intenção de
chegar à Bolívia, seguem de kombi e jipe mas o ouro se
esvai pelo caminho. No desespero, louca de raiva e
indignação sofre um acidente e também morre.
Desse modo, seguindo o raciocínio de Hilda
Magalhães (2001), diríamos que a presença desse ser que
povoa o imaginário popular, ao mesmo tempo em que
registra uma vertente regionalista, universaliza a trama
porque põe em evidência um sentido desbravador do que
se passa para além da materialidade da vida, quem comanda,
define, escolhe o próprio destino.
Pensamos inclusive que a literatura de Ricardo Dicke
não se aliena ao depor contra as arbitrariedades do poder
como no caso de Caieira (quando o patrão americano Mr.
Filler se gaba de ser dono de tudo, da terra, da vida dos
homens debaixo do seu poderio) ou O salário dos poetas
(2000) (que versa sobre a vida do general Alfredo Augusto
Barahona, deposto do seu país depois de quarenta anos de
ditadura, infringindo ao povo todo tido de abuso da
autoridade. No Brasil, após sofrer um atentado vegeta numa
cama onde é obrigado pela consciência a rever todo seu
passado); essa literatura também faz ver de forma crítica a
devastação da terra, as matas em chama, os animais
atropelados na corrida desenfreada pelo lucro como em
“Toada do Esquecido” e Cerimônias do Esquecimento (1995)
respectivamente, mas não se restringe a isso. Problematiza,
questiona visões díspares quando o assunto envolve as
relações humanas. O que na nossa opinião, ultrapassa a mera
denominação de literatura regional em termos de

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

circunscrição da cor local. Ainda, no fato de compor um


quadro existencial em que as relações são problematizadas
Dicke tem plena consciência no fato das escolhas estéticas,
ao ponto da pesquisadora Gilvone Miguel (2005, p. 89)
afirmar: “em sua narrativa, os limites da região, do sertão
mato-grossense, perdem-se como dado local, ou melhor,
são transladados para a imensidão do mundo, adquirindo
facetas universais e integradas na concepção do imaginário
universalizante”. Assim, na esteira do que Antonio Candido
discute acerca do romance Grande sertão: veredas assumindo
a ideia do sertão neste romance ser o mundo, passamos a
outro olhar interpretativo.
Na comparação do sertão discutido por Dicke em
relação a Guimarães Rosa, Magalhães (2001) sublinha a fuga
em comum nos dois enredos. A diferença vem por conta
de que em Madona dos Páramos (2008) quando os personagens
fugindo de um presídio de Cuiabá se embrenham nas matas
mato-grossenses com destino à Figueira-Mãe, uma espécie
de Canaã, temos nesse enredo um sertão de limites bem
definidos, pelo menos à primeira vista. Contudo,
discordamos da pesquisadora no comentário acerca de que
o sertão nesse romance dickeano é bizarro e alógico,
dominado pelo inconsciente. (2001, p. 213). A intensidade
das emoções tratadas no enredo é tão forte que isto é
transferido para as agruras da natureza, a mata é densa de
tal forma que parece ser sempre noite ou quando o sol se
faz notar é tão causticante que beira ao insuportável ou
ainda, na chuva, a água vem com tamanha força que a
lembrança do dilúvio é inevitável. Diríamos por outro tanto
que não se trata de bizarrice ou alogismo e, sim, de algum
exagero por parte do escritor. Algum, porque não é preciso
lembrar que apesar do intenso desmatamento que Mato

130
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Grosso vem sofrendo ao longo dos anos, não é raro


encontrarmos a natureza intacta no interior do Estado,
animais silvestres morrem a todo dia nas rodovias e a
riqueza dos rios atrai a implantação de hidrelétricas em
vários municípios mato-grossenses. Também não
esqueçamos a recente lei (outubro/2012) sancionada pela
Presidente da República que protege as matas ciliares e
proíbe o desmatamento sem controle. O que nos autoriza
a ver na literatura de Ricardo Dicke uma verossimilhança
muito mais que um alogismo como pretende o livro História
da Literatura de Mato Grosso.
Quanto ao fato dos personagens se dirigirem àquela
espécie de Paraíso terrestre denominado Figueira-Mãe,
longe de ser visto como um inconsciente que a todos dirige,
ou o mito do mundo das delícias ao qual não chegam,
ainda por cima se perdem na mata, mostra por outro
tanto, a faceta bem humana dos personagens. Isto, em se
pensando que a fuga/busca por um espaço onde não haja
nenhum tipo de sofrimento ainda move o perambular
existencial de muitos seres humanos em pleno século XXI
e o que a literatura faz é potencializar tal atitude. Madona
dos Páramos transpõe, à semelhança do que ocorre em
Grande sertão: veredas, as barreiras do dado imediato, o aqui
e agora e instaura uma realidade universal (Magalhães,
2001, p. 213). Naquele, sobressaindo às imagens da terra
e da mata fechada, desgastada, enfim, a natureza de
exuberante para perigosa, temos num primeiro plano a
vingança da moça sem nome. O silêncio imposto aos
assassinos de sua família, conduz – por isto ela é a madona
– os homens e seus destinos (horizontes), por ser tão
misteriosa, sedutora, eles não conseguem apreender seu
pensamento. Então, se configura num percurso pelo

131
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

“sertão-angústia, um sertão-loucura, ao contrário da


versão roseana, sublimada pelo questionamento racional
de Riobaldo, um sertão-resposta, um sertão-
apaziguamento.” (MAGALHÃES, 2001, p. 214).
Importante observar que o drama de fugir e já não
saber para onde, com uma mulher que está em suas mãos,
mas não possuem, faz o narrador principal ceder a voz a
cada um daqueles homens unificados pela dor, a miséria de
corpo e alma, um passado sem compreensão, um presente
desnorteado e a impossibilidade de futuro, faz da narrativa
dickeana um mosaico do que a contemporaneidade tem de
fragmentária e mística.
No romance Cerimônias do sertão (2011), Dicke
universaliza ainda mais a rusticidade da natureza. Embora
Frutuoso Celidônio, o mesmo narrador de Cerimônias do
esquecimento tenha no sertão o desejo de dissertar a respeito
da Beleza, algo que não acontece no romance de 1995,
personagens e situações quase idênticas avançam na tentativa
de compreensão. Podemos ter uma noção bem nítida do
lugar que a todos rodeia: “Aqui, as luzes dos postes e das
casas fazem-se de um amarelo triste, doentio, como se tudo
bruxuleasse, lusco-fusco espesso como óleo untuoso, e os
carros passam e as pessoas vão e vêm como se necessitassem
de proteção contra a noite que avança silenciosamente.”
(DICKE, 2011, p. 53). É porque na noite impera o silêncio
ao qual nem todos estão preparados, na expectativa, a
angústia da não resposta, a necessidade de se escutar/sentir
as próprias dores se agudiza. Seja o rei Saul com sua
consciência dilacerada entre o ciúme de Davi e o amor do
filho Jônatas, seja o ir e vir sem fim de João Ferragem com
sua rabeca, e o próprio Celidônio com suas divagações sobre
Leonora e a encarnação da Beleza, fazem deste sertão muito

132
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

mais que um lugar esquecido no tempo e no espaço das


grandes cidades. Chuva, calor, sol, tudo que emoldura a
ideia de Mato Grosso, povoa o imaginário da gente de
Aguassu, mas é também da gente de qualquer lugar pois,
afinal importa mesmo, de acordo com o que
acompanhamos nestas cerimônias, é atar as pontas da vida
com o mundo. (2011, p. 67).
Diante do exposto, temos como acertada a opinião
segundo a qual a literatura Pós-moderna de Ricardo
Dicke trabalha com a trajetória da humanidade no que
tem de questionamento à existência humana, seus livros
representam uma grande contribuição não apenas
regional, mas também nacional. (MAGALHÃES, 2001,
p. 220). Ainda neste sentido, acreditamos que a
fisionomia literária cunhada em cada uma das narrativas
dickeanas, tem a inteligência a um só tempo fina e crítica
para as relações que se estabelecem entre o meio, o
homem e deste consigo mesmo. Destoando daquilo que
Alfredo Bosi na sua História concisa da Literatura Brasileira
(1997) convenciona de ficção regionalista moderna, o
texto de Dicke não segue uma tendência como o
regionalismo nordestino que, de for ma paralela
reivindica a dianteira nos rumos da vida intelectual do
país, enquanto denuncia os efeitos da indústria da seca.
Na denominação “cerimônias” vem à mente a
conotação de uma celebração e, no caso do enredo de
Cerimônias do sertão, o natural é pensar no casamento da
filha de Anelinho Abbas que conta interminavelmente a
história do rei Saul a Celidônio. Entretanto, não é o que
aparenta. As cerimônias que são celebradas no sertão/
mundo de Dicke, é justamente a tentativa de entender
não só os questionamentos relativos à Beleza conforme

133
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

acompanhamos no enredo, é poder se situar nos


interstícios preenchidos entre vida e morte. Ao que dá
testemunho cada voz narrativa – por isto cerimônias –
para além do narrador principal, Frutuoso Celidônio.
Por isso a cerimônia não se reduz somente à celebração
daquele casamento que, em seguida se transfere ao bar
Portal do Céu para posteriormente todos os seus
ocupantes seguirem rumo à casa do ferreiro, João Valadar.
Cada um com sua dúvida, incerteza da vida, desgosto,
angústia por não se sentir bem com o que foi, está sendo
sem saber se virá a ser, gente, vontade, testemunho do
que é a vida.
No livro Dos labirintos e das águas: entre Barros e Dickes
(2009) afirmávamos que os personagens de Cerimônias do
esquecimento “são paisagem sem fundo, espelham o homem
com um saber por construir, ao invés de buscar um absoluto
que lhes ampare, estão em transformação. Sobre eles pousa
o silêncio, aliado na luta contra o esquecimento do que são,
significam.” (MACHADO, 2009, p. 169). Afirmação esta
que repercute no livro cujas cerimônias a serem festejadas
são localizadas: no sertão. Artifício utilizado pelo escritor
como a lembrar que a liberdade em jogo na trama narrativa
vem de dentro e se espalha ao redor, contamina, absorve e
surte efeitos, inclusive no ato da leitura do romance. Já na
pesquisa empreendida acerca do romance dickeano O salário
dos poetas (2000), nesse mesmo livro, Vera Maquêa é exímia
em afirmar:

O escatológico, o místico, o religioso, o filosófico se ombreiam


nessa narrativa vibrante, densa, carregada de cores e
luminosidade. Nada é dito com reservas, tudo parece ser
exposto cruamente ao leitor que acompanha voraz o vício
inebriante do texto. Misturando espaços e tempos, é possível
134
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

sentir o calor escaldante das ruas de Cuiabá, o horizonte


espraiado de Chapada dos Guimarães, o sertão de Mato
Grosso e, ao mesmo tempo, perceber de perto o despotismo
dos Luíses cassados pela Revolução Francesa e a universalidade
dos personalismos que geraram esses sistemas autoritários e
que têm condenado populações do mundo inteiro à
indescritível miséria. (2009, p. 196)

Argumentos que vão ao encontro de nosso pensamento


segundo o qual, a localização de tramas e complicações
psicológicas universalizam a literatura de Ricardo Dicke.
São a um só tempo um chamado e um legado do que a
liberdade produz, a luta por esta, o conceito de vida e seu
escoar lembram a todo instante na narrativa de Dicke o fio
condutor de sua obra literária. Outro fator preponderante
no que tange ao foco de nossa discussão diz respeito à
autonomia da esfera interrogativa do escritor. Aliada da
literatura, a filosofia e religião, além de música e pintura
convergem ao poder inquiridor da palavra; no formato das
imagens pensantes temos o resgate da sensibilidade das
emoções perdidas para o imediatismo em que vivemos. Não
importa se aqui ou lá, a escrita narrativa de Ricardo Dicke
parece conclamar o leitor a sentir sem precaução, avaliar a
vida com outros parâmetros e dimensionar sua relatividade
na existência. Vejamos na citação:

Todos esperam. Um fluido corre entre eles: é a alma do


silêncio, o espírito da noite que perpassa, todos sentem, nas
brisas que vêm das profundezas da escuridão, lá onde léguas
e léguas das espessuras mais densas se perdem nas mais
profundas distâncias de tudo do mundo, lá onde não há
ninguém e tudo é solidão, as regiões onde as esferas rolam no
óleo eterno da Solidão, rolamentos harmônicos do maior
negror. (DICKE, 2011, p. 195).

135
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

O trecho lembra o confronto inevitável do eu consigo


mesmo. É também o lugar de onde não se foge, a avaliação
irremediável que todos nós fazemos da existência em algum
momento da vida, seja no sertão mais longínquo, seja nas
grandes cidades em que o homem mesmo rodeado de gente
muitas vezes se sente na mais completa solidão. A literatura
e seu perambular pelos mais diversos temas tem em Ricardo
Dicke a primazia de questionar a tradição, impulsionar o
leitor a pensar diferente do cristalizado, mas sem esquecer a
capacidade inebriante da imaginação criadora. Isto posto
desde a intensificação do pensamento obtido no romance
Último horizonte (1988) até a elevação máxima desta potência
nos últimos romances do autor publicados em vida. Se todos
esperam, todos sentem, nos informa aquele excerto. Seria só
o silêncio, a vibração do nada? O que vem de muito longe, a
brisa que a todos toca, se perde pelo mundo a ponto de se
transformar na solidão em si que consome quem dela se
ocupa, eis nosso entendimento do teor universal desta que é
uma exemplificação do que vem a ser a literatura do escritor
mato-grossense.
No livro Dos labirintos e das águas, Gilvone Miguel
também discute a premissa defendida por nós para o quilate
universal do texto literário de Ricardo Dicke. Nessa obra
que reúne trabalhos dos mais diversos pesquisadores que
já se debruçaram sobre a obra do escritor aqui interpretado,
temos uma noção mais amplificada do que significa a
arregimentação de imagens empreendida pelo escritor.
Compreendamos junto ao artigo da pesquisadora como se
estabelece o jogo de imagens anteriormente apontado:

A forma ficcional dickeana permite, pelo processo da


mitocrítica desvendar os conteúdos do imaginário simbólico

136
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

e arquetipal na representação do homem e do espaço regional.


Nos meandros de suas narrativas ficcionais, vamos perceber
os laços com a imaginário histórico local pela recuperação e
pela nova formatação das imagens que, [...] estão presentes
no cotidiano histórico do homem mato-grossense.
(MIGUEL, 2009, p. 130)

Tal assertiva dá margem a que concluamos, com base


numa dimensão mitopoética, o conteúdo criativo de que
se reveste as imagens da solidão, a fuga, a interiorização
dos problemas humanos. Da mesma maneira que
pontuávamos a respeito de questões ligadas ao
enfraquecimento das emoções ou das formas de repressão
no dia a dia das pessoas comuns, Gilvone Miguel depreende
da ficção dickeana o quanto o escritor universaliza questões
vividas pelo homem no Estado de Mato Grosso. Ali se
encontram a disputa por terras, minerais, amor, inveja, ódio,
fraternidade ou sua ausência, a iminência da morte
estampadas em tramas próprias. Ao passo em que ganham
nomes os lugares, os becos, os sertões, personagens,
sentimentos, ânsia pelo absoluto num tempo em que este
não é mais possível, tudo arquitetado pelas mãos do escritor
que busca o equilíbrio entre o local e o universal. Neste
intuito, ainda fazendo uso das palavras daquela
pesquisadora: “A narrativa ostenta uma expressão vital dos
meandros regionais do interior do Estado de Mato Grosso
e expõe o imaginário, que é mítico-ficcional e histórico, do
espaço sertanejo, simbolicamente impregnado do sentido
da travessia.” (MIGUEL, 2009, 131). Travessia esta de um
sentido muito maior que se embrenhar pelas matas do
Estado em busca do Éden perdido, ou o caminho para se
chegar à Bolívia, ou ainda para se livrar das memórias que
insistem em atormentar a consciência de quem nunca teve
137
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

em relação ao povo oprimido. A situação de limiar a qual


muitos personagens dickeanos enfrentam, é algo que ao
mesmo tempo pode ocorrer na vila do Pasmoso, Cuiabá,
nos rios Aguassu ou das Pacas, na estrada da Guia, Vila
Bela ou ainda numa biblioteca de uma casa num afastado
bairro da capital mato-grossense. Nesta ambientação
personagens se demoram em perguntas acerca do que é a
vida, a morte, destino, ações humanas e sem encontrar
respostas objetivas muitos deles entram em desespero,
compactuam com o Diabo ou se entregam de vez a ele.
Não sem antes berrar pela presença de Deus feito horizonte,
formatado no silêncio e forjado no esquecimento.
Alguns pensamentos são reiterativos na literatura de
Ricardo Dicke como aquele de estar mos
irremediavelmente presos num imenso palco, mais
precisamente num horrível teatro do mundo no qual de
hora em hora Deus melhora. Pois bem, para quem
interpreta o texto literário delineando pistas da
universalidade, tomamos tais expressões como
simbolicamente impregnadas das oscilações em que se
movem corpo e mente de personagens singulares, temos
no sertão, a mata, enfim os arredores, a prefiguração do
estado de alma dos seres ficcionais. Não só pela ideia de
vastidão, sobretudo por fazer pensar para além do
paisagismo evidente. O excesso que o escritor capta nas
imagens sertanistas da água, fogo, ar, terra em diversos
enredos, dá testemunho não só do formato universal das
tramas ao retomar o pensamento filosófico de
Empédocles, ou o terror provocado com a repetida frase
de Pascal no romance O salário dos poetas, “o silêncio desses
espaços infinitos me apavora”, Dicke lembra em cada
detalhe da dicotomia que cerca o homem: grandeza x

138
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

pequenez. É como se dissesse que o homem não passa de


um grão de areia perante a imensidão do universo que
não se dá a conhecer, além de provocar arrepios na
incompreensão. Contudo, não se dar a conhecer não
significa que o homem não vá se lançar a seu encalço, é
assim que entendemos o seguir em frente do bando de
Madona dos Páramos, de “Toada do esquecido”; os homens
e mulheres alternando o caráter em função da própria
ambição no romance Os semelhantes; o general que fica à
beira da morte, mas reluta em ir embora n’O salário dos
poetas; o Velho saturado de dias que quer morrer mas não
supera o pacto que fez para obter prestígio e ser dono de
Rio abaixo dos vaqueiros. Algo interpretado por Gilvone
Miguel nos seguintes termos:

Os personagens vão pelo sertão sem se dar conta de que a


existência gloriosa desejada para o futuro é um projeto
irrealizável e prosseguem a jornada em combate heroico contra
todas as evidências consumadas nas adversidades circunstanciais
do sertão. A força que sustenta essa persistência e gera a
mobilização está arraigada no imaginário que os impulsiona a
ir em busca do futuro, similarmente ao processo histórico da
ocupação das terras mato-grossenses. (2009, p. 142)

Apenas uma ressalva com relação ao enredo do conto


“Sinfonia Equestre”. Na trama a heroína Janis Mohor é
movida inicialmente pela vingança, quer matar o assassino
de seu pai por causa da disputa por terras. Até aí
perfeitamente condizente com o contexto histórico mato-
grossense, especificamente em se tratando da ocupação
territorial. Entretanto, a personagem ganha envergadura
humana e universal na medida em que muda o grau de
importância na vida. Com a convivência de Belisário, uma

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

espécie de mentor espiritual da personagem, Janis afina suas


emoções, não tem mais aquela ideia fixa de vingança apesar
de concretizar a morte do assassino de seu pai, ela morre
também, porém sabendo escutar a sinfonia que rege a vida.
Então, é possível apontar a uma harmonia pretendida e
realizada no conjunto da literatura dickeana.
Mikhail Bakhtin em Questões de literatura e estética (1998)
definindo a estética literária deixa claro sua posição em
relação à universalidade da cultura humana junto a uma
orientação filosófica. Obra voltada para o mundo, que trate
de pessoas, relações sociais, valores éticos e religiosos ocupa
uma posição artística de cunho poético ao levar à tensão
emocional e volitiva da forma. Esteticamente significativa,
a forma do homem e seu corpo no campo literário faz
pensar, mergulha o leitor na imaginação das possibilidades
humanas e leva ao que Bakhtin chama “compreender o
objeto estético na sua singularidade e estrutura puramente
artística” (1998, p. 22). Daí seu caráter de devir, futuro que
arregimenta os valores morais e físicos do homem estético.
Ao que nos leva a distinguir junto à literatura de Ricardo
Dicke os meandros de uma estética perfeitamente
consequente quando se trata de forma e conteúdo, ainda
mais ao lembrarmos que a temática aqui em discussão é a
reavaliação da ideia regionalista de uma narrativa universal.
Nessa via de compreensão da estética literária
dickeana, em seu artigo “Dicke: o autor do esquecimento e
o esquecimento do autor”, Everton Barbosa, um dos
autores que escrevem para o livro Dos labirintos e das águas,
segue na mesma linha interpretativa aqui adotada:

Dicke não se enquadra nos paradigmas literários elaborados


pela produção regionalista mais tradicional (ou de Cuiabá, seu

140
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

espaço mais específico). Por outro lado, também não escapa


mais, atualmente, a essas questões acerca da cultura local, porque
o espaço de seus romances é impreterivelmente Mato Grosso,
porque já é, há algum tempo, tema de interesse para acadêmicos
das universidades locais e, principalmente, porque mesmo não
se enquadrando num discurso tradicional regionalista mato-
grossense, caracterizado, sobretudo, pelo ufanismo à terra e
pela valorização das belezas naturais e culturais de Mato Grosso,
é tomado hoje como um dos grandes representantes da arte
do Estado não somente pelos críticos e artistas nacionais, como
o provam as referências, mas pelos agentes culturais e pensadores
locais. (2009, p. 155-156).

Literatura de cunho poético, teor criativo, incomoda,


faz pensar, tira da tranquilidade e envolve o leitor num
mistério – a vida em construção – coloca em cheque a velha
definição de Regionalismo. Como pretende Everton
Barbosa, se o Regionalismo ao incidir sobre elementos
culturais selecionados para representar o local acaba por
reduzir a cultura, a identidade cultural, contudo, não passa
ao largo do conceito de regionalismo. Como nosso
propósito neste artigo não se restringe a discutir à
identidade cultural em si, pensamos nessa literatura mais
no quesito comparativo ao sentimento latino-americano à
maneira de Barbosa. Segundo ele, Dicke pode ser
comparado a Gabriel Garcia Marquez ao optar pela
perspectiva do marginalizado para falar da vida, mundo,
fazer a diferença. Vemos aí o vulto maior de sua literatura,
seja nos fantasmas dos pobres e torturados mortos pelo
general do Chileraguay no romance O salário dos poetas, seja
as indagações cheias de reflexão dos igualmente professores
e poetas Frutuoso Celidônio (Cerimônias do esquecimento e
Cerimônias do sertão) e Jerombal Thauttes (Último horizonte).

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Lendo o artigo do pesquisador Everton Barbosa, podemos


observar a sutil diferenciação que ele empreende em torno
da obra dickeana, textualmente temos:

A obra de Dicke está inserida em uma cultura que vive


constantemente a questão do regional, a necessidade de
afirmação das coisas locais e que procura reforçar sua
identidade calcando-se em programas de conservação e
incentivo às produções que procuram realçar o elemento local.
Lendo seus textos, no entanto, não se nota nenhuma
preocupação a esse respeito, apesar de também apresentarem
aspectos locais. Essa é uma evidência de que a sua produção
efetivamente mantém viva a cultura em que se insere e que
não podemos definir nem somente como mato-grossense,
nem somente como universal. Essas categorizações têm o
efeito de limitar a extensão que um texto literário pode alcançar.
(2009, p. 164)

Se aquele pesquisador não vê sentido na distinção que


pode ser feita entre a estética regionalista e a universal,
pensamos, ao contrário, ser de suma importância
empreender tal discussão, uma vez que a ideia de ícone
literário perpassa toda a argumentação a respeito. Sobretudo
se pensarmos num escritor fora dos grandes centros de
leitores e produtores de literatura. Se Everton Barbosa
prefere antes observar a obra dickeana pelo viés de uma
identidade cultural pontuada no entremeio do jogo do
poder, pensamos por outro lado numa disposição clara
dessa narrativa arquitetada numa estética que alia o manejo
das palavras até uma poética pensante, pensamentada.
No livro Estética da criação verbal (1997), Bakhtin
esclarece nuances bem a propósito do que vimos elencando.
O herói por exemplo, sua extensão humana, disposição na
atividade estética, a relação emotivo-volitiva com a
142
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

determinação interior, seu todo significante, tudo isto nos


interessa para confeccionarmos um posicionamento relativo
à obra de Ricardo Dicke. Assim, conforme a ideia principal
daquele teórico, não importa em se tratando do herói, a
vida como um todo, mas atos isolados, os mecanismos
psicológicos que dão acesso à mente do personagem/herói.
A forma da relação com o acontecimento, como este é
vivido no todo constituído pela vida e o mundo é encarecida
para o entendimento daquele que é a vida pulsante na criação
verbal. O princípio estético ou criador que preside a vida
do herói é marcado pela orientação emotivo-volitiva
material, o que equivale dizer que o autor tem seus valores,
sua visão da vida que não são necessariamente as do herói.
Este, dentro do processo estético significa a doação da vida,
o “ver em si mesmo o outro até o fim”. (BAKHTIN, 1997,
p. 37). Duas consciências não coincidentes ganhando vida
nas mãos do artista literato, assim entendemos o ato de
criação verbal de Ricardo Dicke. Dois pensamentos não
necessariamente comungando da mesma opinião, apesar
de muitos de seus enredos centrarem em extensos
monólogos, ainda assim é possível afirmar o digladiar da
própria consciência do herói. Como no caso dos
personagens de Deus de Caim. Neste enredo se misturam
uma culpa imensa, o noção de pecado espraiada na narrativa,
fraqueza de caráter e incompreensão dos acontecimentos
humanos costuram a trama narrativa. Assim, é possível
afirmar com Bakhtin que o lugar ocupado no mundo pelos
heróis dickeanos, para além de uma localização geográfica
definida, o que encontramos é um espaço do conhecimento,
de si, do outro, do mundo com emoção interior possível
graças à contemplação ativa e produtiva. É pensando assim
que observamos o teórico russo lançar mão do conceito

143
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

de ato estético, na medida em que o eu leitor pode se


enxergar no outro da história acompanhada. O princípio
estético várias vezes reiterado, demonstra uma preocupação
ética por parte de Bakhtin em entender o outro, se colocar
no lugar do outro, estabelecendo assim uma relação entre
homem e mundo vincada no sentido maior de vivenciar o
estado interior de ambos os lados. É nisto que se configura
uma abordagem estética, é nisto ainda que destacamos a
diferenciação na literatura de Ricardo Dicke. Dois pontos
de vista sempre são possíveis se encontrar em sua ficção, o
todo estético vem da criação, a poética conforme
salientamos antes. Os atos isolados e não a composição de
uma vida na sua integralidade, fazem os heróis dickeanos
mais humanos, pois os acontecimentos protagonizados por
eles não comportam uma solução.
Na afirmação de Bakhtin, “a forma é uma fronteira
que resulta de um tratamento estético” (1997, p. 105), temos
um pressuposto para avaliar a prosa ficcional de Dicke no
sentido do limiar a que já nos referimos. À fronteira advém
a diferenciação de interno e externo, a autoconsciência e a
vivência do outro ou, mesmo, o se colocar na posição do
outro, tudo isto no ato da leitura literária. Ampliamos desta
forma o estatuto regional para universal tomando por base
a existência estética criada por Dicke, sedimentada na
dicotomia fundamental de valores e sentimentos partindo-
se de duas consciências pensantes. Acontecimento existencial
a priori aberto, anuncia a unidade de sentido e valor discutida
ao longo da trama narrativa levada ao leitor. Podemos
encontrar situação limítrofe de forma bastante cristalizada
principalmente no enredo de Cerimônias do esquecimento. Mais
do que a Noite da Predestinação que marca o fim de um
ciclo e começo do outro, a nova era em que todos os

144
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ocupantes do lugar chamado bar Portal do céu esperam


encontrar, demanda uma travessia que é preciso
empreender. Ao chegarem na ferraria de João Valadar, eles
precisam passar por um rio chamado Letes e adentrarem
numa gruta cheia de mistérios. Ali se ouvem gritos e ranger
de dentes, é necessário contar a própria história e o mais
importante, saber ouvir o outro. É nestes termos que se
configura a atmosfera do romance, uma preparação, a
celebração de uma vida que se anuncia, sem a
obrigatoriedade de cumprimento do tempo ou prazo,
delimitado pela objetividade. É deste modo a aposta de
Ricardo Dicke para a compreensão de um tempo em que a
cronologia perdeu a relevância, o que prepondera nesta
narrativa é o divagar das horas, a feitura da própria
subjetividade em desarmonia com o ambiente. Logo, o que
vem num primeiro plano é a vida do espírito, “mensurável
em termos de valores e emoção” (BAKHTIN, 1997, p.
124). Configura-se, portanto, o processo estético
significante o qual defendemos para a literatura do mato-
grossense. Escritor para quem o trabalho estético equivale
a moldar a determinação interna, a emoção, o estado
interior, o todo da vida interior de tal maneira que a fronteira
entre dois mundos se torna tênue. Ainda é preciso frisar
que o texto dickeano, apesar do entrelugar marcado pela
objetividade/subjetividade, não se assenta em um ritmo
transcendental, fica, antes, numa situação limite entre o aqui,
o distante, o corpo e a alma, o fim da vida, a indagação da
morte. Conotação espiritual no que se refere à vida interior,
às indagações que acometem todo homem ao atingir um
grau de maturidade em que as respostas prontas já não
satisfazem e, por isso, é preciso empreender as próprias
perguntas. É evidente que isto aparece de forma mais

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arrefecida nas obras iniciais do escritor em que um enredo


permeado de um ritmo ainda esperado para uma trama
romanesca se faz notar. Além disso, num enredo em que
pesa uma complicação mesmo que psicológica, prevalece
um desfecho, seja da intriga amorosa ou uma disputa
esperada – referimo-nos aqui a Deus de Caim e Caieira.
Acreditamos que o marco distintivo na obra dickeana
no que tange ao aludido efeito, vem a ser o romance Último
horizonte. Neste há a intensificação do pensamento, a
ordenação dos valores internos aparece de forma caótica e é
preciso por parte do leitor, uma postura mais atenta, crítica.
Porque o enredo não se estrutura de forma convencional,
aqui não há propriamente uma história a se acompanhar, há
sim um jorrar do pensamento do protagonista Jerombal
Thauttes. Um viajar da consciência, o deambular de
perguntas de nível bastante profundo, sem interlocutor a não
ser a memória da locutora de rádio Collette Thomas. Posições
existenciais a serem discutidas, a vida num ponto de ebulição,
encontramos com outro sentido nas Cerimônias do esquecimento;
em Rio abaixo dos vaqueiros toda uma estrutura de família é
questionada, a ideia de proteção, liberdade, opção de vida
levam os personagens a abandonarem posicionamentos,
ambicionarem outro espaço e irem ao encontro de apaziguar
a própria consciência mesmo que isto signifique não ser dono
mais da própria alma.
Dessa forma, na compreensão que empreendemos
acerca da literatura de Ricardo Dicke, vimos que o
Regionalismo nos moldes tradicionais, quais sejam, baseado
em movimentos nativistas, busca do caráter brasileiro em
que pese o indianismo, sertanismo, caboclismo e, mesmo
marcado pelos ciclos econômicos e sociais, cangaço e seca,
mineração, praieiro, gado, nortista, nordestino, central,

146
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

gaúcho e outros (COUTINHO, 1997, p. 140), não pode


ser atribuído à literatura mato-grossense que ora nos ocupa.
Se o motivo do Regionalismo realista do final do século
XIX e primeiras décadas do XX é a cor local, conforme
defende Afrânio Coutinho, entendendo isto como a
valoração dos costumes, tipos, fala dos grupos regionais, o
pitoresco, seus problemas e conflitos oriundos das estórias
do povo, em Ricardo Dicke isto não se justifica. As cidades,
estradas, o quebra-torto, a viola de cocho, o guaraná ralado,
a sesta após o almoço, o jeito meio cantado do povo falar,
não é a característica singularizante dessa literatura. Tais
aspectos sim podem ser localizados junto à cultura mato-
grossense, mas são as situações conflituosas do homem de
qualquer tempo e lugar, vistas e debatidas no âmbito da
consciência que despertam a atenção para seu texto
ficcional. Nossa argumentação se reforça, sobretudo, na
retomada do pensamento crítico da pesquisadora Gilvone
Miguel, especificamente ao afirmar que:

Dicke não é um escritor regionalista na concepção restritiva


ou depreciativa que o termo agrega em si em vários contextos.
É, contudo, regionalista no sentido de que é o representante
da literatura produzida no Estado de Mato Grosso, por sua
grande produção narrativa de intensos conteúdos e de estética
singular; (2007, p. 49)

Pelo fato de ter nascido nestas terras e conhecer a fundo


o cenário de seus romances, o cotidiano de seus
personagens, só pode ser apontado como regionalista na
medida em que o leitor percebe em suas criações a
reconfiguração da realidade histórica com a ficção.
Entretanto, é necessário ponderar junto à produção
narrativa de Ricardo Dicke cujos resultados literários são
147
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

cada vez mais reconhecidos, que ele rediscute o


convencionalismo da representação regional ao atingir o
estatuto universal, conforme entendemos que deva ser
pesquisada a literatura que se incumbe do pensamento do
homem mato-grossense.

REFERÊNCIAS

DICKE, Ricardo Guilherme. Deus de Caim. Rio de Janeiro: Edinova,


1968
_____. Caieira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978
_____. Madona dos páramos. Rio de Janeiro: Antares, 1981
_____. Último horizonte. Cuiabá: Marco Zero/Secretaria Municipal
de Educação e Cultura de Cuiabá, 1988
_____. Cerimônias do esquecimento. Cuiabá: Editora da UFMT, 1995
_____. Rio abaixo dos vaqueiros. Cuiabá: Lei estadual de incentivo à
cultura, 2000
_____. O salário dos poetas. Cuiabá: Lei estadual de incentivo à cultura,
2000
_____. Deus de Caim. 2ª ed. Cuiabá: afábrika, 2006
_____. Toada do esquecido & Sinfonia equestre. Cuiabá: Carlini & Caniato;
Cathedral Publicações, 2006
_____. Madona dos páramos. Cuiabá: Carlini & Caniato; Cathedral
Publicações, 2008
_____. A proximidade do mar e a ilha. Cuiabá: Carlini & Caniato,
2011
_____. Cerimônias do sertão. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2011
_____. Os semelhantes. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2011
_____. O velho moço e outros contos. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2011

148
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ASSIS, Machado de. “Instinto de Nacionalidade”. In: Obra Completa.


Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria
Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997
_____. Questões de literatura e estética. Tradução de Aurora Fornoni
Bernadini e outros. São Paulo: Ed. UNESP, 1998
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
1997
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1997. v. 02
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global,
1997. v 01
MACHADO, Madalena e MAQUÊA, Vera. (Org.). Dos labirintos e
das águas: entre barros e dickes. Cáceres: UNEMAT, 2009
MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. História da literatura de Mato
Grosso: século XX. Cuiabá: Unicen, 2001
MIGUEL, Gilvone Furtado. O imaginário mato-grossense nos
romances de Ricardo Guilherme Dicke. 2007, 311 f. (Tese de
Doutorado em Literatura Brasileira) Universidade Federal de Goiás.
_____. “Mitopoética em Madona dos Páramos: entre o local e o
universal.” In: LEITE, Mário Cezar Silva. Mapas da mina: estudos
de literatura em Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.

149
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

150
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

TRAGÉDIA ANTIGA E NARRATIVAS


CONTEMPORÂNEAS: REFLEXÃO
ACERCA DOS FUNDAMENTOS A
PARTIR DA ROMANESCA MATO-
GROSSENSE
DANTE GATTO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

Convivemos, no que se refere à literatura brasileira


mato-grossense, por um lado, com aquela concepção
desenvolvida por Antônio Cândido (1981, p.10) em
Formação da literatura brasileira, que dá a dimensão da nossa
literatura em relação “às grandes”: “pobre e fraca”; mas,
por outro, como prerrogativa da nossa pós-modernidade,
apoiados pelos estudos culturais e pós-coloniais, vivemos
um momento de revisão do cânone, anunciando vez e voz
151
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

às minorias: o discurso com propensão universalizante


cede lugar à diferença, como lembra Eduardo Coutinho
(1996, p.67). Temos consciência agora que não se trata de
uma substituição de modelos: o centro pela antítese
periférica, mas, o que nos resta fazer é abandonar os
paradigmas dicotômicos e explorar a pluralidade de
caminhos abertos no contato colonizador/colonizado. De
qualquer forma, vale ainda o conselho de Cândido: “se
não for amada [nossa literatura], não revelará a sua
mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós.”
(CÂNDIDO, 1981, p.10).
O caráter social da literatura, surgido com a hegemonia
burguesa (autor / imprensa / leitor) e implicou a
preponderância dos grandes centros de produção e
distribuição. Neste sentido, se faz necessário um resgate
(não encontrei ainda um termo adequado para substituir
“resgate”, tendo em vista o desgaste do mesmo no meio
acadêmico) intelectual e artístico no caminho de superar
nossa condição de periferia. Ora, não conhecemos as nossas
produções culturais, e se não a conhecemos, não a
divulgamos, não fazemos leitores, não construímos a crítica,
não participamos do mercado editorial, forte aliado do
sistema de produção e de implantação do cânone. As
condições atuais se fazem propícias para tanto, tendo em
vista a arrancada econômica do Estado, considerando a
hegemonia da estrutura economia sob a superestrutura
ideológica, determinada pelo materialismo histórico.
(LUKÁCS, 1968, p.15). É certo que vivemos um tempo de
revisão do cânone, mas consideramos saudável nossa
investida.
Delimitamos nosso estudo aos romances, já
identificados nas historiografias regionais da literatura mato-

152
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

grossense, do momento de implantação da literatura no


Estado (Luz e Sombras, 1917, de Feliciano Galdino de Barros;
Mirko, 1927, de Francisco Bianco Filho; Piedade, 1937, de
José de Mesquita e Era um Poaieiro, 1944, de Alfredo Merien),
recentemente reeditados pelo Núcleo Wlademir Dias-Pino,
da Universidade do Estado de Mato Grosso, campus de
Tangará da Serra. Estas reflexões não adentrarão
analiticamente nestes romances, mas apresentarão a
pertinência deste estudo, bem como a fundamentação
teórica e histórica.
No mundo antigo, sob a perspectiva da coletividade,
tragédia implicava desfecho catastrófico. Nem toda tragédia
antiga tem desfecho catastrófico, como argumentaremos
neste artigo, mas o modelo em que nos apoiamos para
assegurar um conceito tem tal suporte que, aliás, se faz
muito significativo. A interpretação correta de tragédia, no
nosso entender, não se deve apoiar no desfecho
catastrófico. E isto ficou mais claro na modernidade que
possibilitou outras saídas para o herói. Tragédia, por fim, é
um olhar para a completude do ser, para o sentido da vida,
e está no percurso do herói neste processo. Bem fácil de
entender que uma situação de profunda tristeza,
acompanhada de morte, nos esclareça muito de nós e da
vida. A tragédia é e está neste esclarecimento, mesmo que a
tristeza não haja morte. O que faremos é fundamentar tais
afirmações, no sentido de justificar nossa pesquisa.
Uma das muitas consequências da atualização da
compreensão do trágico, com o passar do tempo, com a
atenuação do mito, consiste na tragédia atualizar-se em
novas formas literárias, e o herói encontrar uma saída na
conciliação ou sublimação. De qualquer forma, o trágico toma
caráter epifânico.

153
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Quando nos referimos à tragédia reportamo-nos a


forma do gênero dramático. Não fica difícil perceber que
se trata da forma mais adequada para abrigar o trágico,
por conta do discurso direto, da cena, notadamente pelo
espetáculo teatral que esta no horizonte criativo do
dramaturgo, mas o trágico pode caber em qualquer forma.
A tragédia, enquanto conteúdo, será o trágico explicitado
em toda a sua grandeza e isto se processa esteticamente. É
condição sine qua non da tragédia conter o trágico e acabamos
usando um termo pelo outro.
Aristóteles refere-se á tragédia como imitação de
seres superiores. E acrescenta: “É a tragédia a
representação duma ação grave, de alguma extensão e
completa, em linguagem exornada, cada parte com seu
atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual
inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas
emoções”. (ARISTÓTELES, 2005, p.24).
Frye (1973, p.203) argumenta que somente a
tragédia “garante uma condição desinteressada à
experiência literária”, bem como “o sentido do
autêntico fundamento natural do caráter humano” toma
lugar na literatura por meio das tragédias. As demais
ficções literárias são expressões de afetos emotivos. Se,
por um lado, apresentamo-nos aqui concordantes disto;
por outro, queremos lançar fundamentos para um olhar
às “demais ficções literárias” pelo viés da tragédia. Bem
claro que ao tratar de formas e gênero diferentes seria
mais oportuno empregar o termo trágico em lugar de
tragédia que distingue uma for ma específica em
discurso direto. Mas consideramos, por fim, a assertiva
de Leski (2001, p.23): “Toda a problemática do trágico,
por mais vasto que sejam os espaços por ele abrangidos,

154
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

parte sempre do fenômeno da tragédia ática e a ela


volta”.
“Os gregos criaram a grande arte trágica e, com isso,
realizaram uma das maiores façanhas no campo do espírito”,
afirma Leski (2001, p.26-27), mas não desenvolveram
nenhuma teoria do trágico que tentasse ir além da plasmação
deste no drama e chegasse a envolver a concepção do
mundo como um todo. Aliás, perdeu-se no helenismo
posterior boa parte da elevada concepção do acontecer
trágico, isto é, as multivariadas refrações que se revela na
tragédia clássica, sempre com majestosa grandeza. A palavra
trágico desenvolveu-se significando “o horrível, o
desagradável, o sanguinário”, e não há, neste sentido, aquele
“emaranhado profundo a que é induzido o homem por
suas paixões, ou num certo estado do mundo que permite,
ou mesmo determina, tal ocorrência”. O fato é que não se
encontra no classicismo helênico a palavra com o peso da
cosmovisão com que aparece em nossos dias, “destinos
fatídicos de caráter bem definido e, acima de tudo com
uma bem determinada dimensão de profundidade”.
A noção de que o mundo é trágico em sua essência é
bem antiga, mas nossa época vive dominada por idéias
desse tipo. Fundamentamo-nos na concepção de que a força
da tragédia, enquanto arte está em explorar os limites da
condição humana, o ser. Fazia sentido a catarse pelo desfecho
trágico naquele tempo de ingenuidade, unidade do homem
com a natureza como identificou Schiller. O momento de
surgimento da tragédia grega é exemplar uma vez que se
combina ao aparecimento do pensamento racional. O mito,
enquanto expressão espontânea do ser perdeu espaço para
explicações determinadas pela dialética das relações
humanas. O cidadão tem de prestar contas à coletividade e

155
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

a palavra ganha força neste contexto e constrói, digamos


assim, verdades vazias do ser. E depois, de certa forma,
acabamos dominados pelo racionalismo burguês. O paradoxo
essencial da condição humana é que à medida que
avançamos no domínio da natureza perdemos o contato
com a nossa própria natureza. Dizendo em outras palavras,
fragmentamo-nos enquanto ser. Eis que a tragédia nos
fornece ainda recursos deste resgate essencial, diante do
afastamento de nós mesmo na modernidade do
racionalismo pragmático. A tragédia moderna, portanto, é
não estar sendo aquilo que somos em essência. E a força
para tal constatação é o que dá representatividade ao herói
que por fim logra sua epifania: “[...] encontrar Deus que
mana em nós como uma fonte despercebida”. (ORTEGA
Y GASSET, 1978, p.71).
A essência da tragédia moderna

é o processo pelo qual o homem adquire clareza sobre si


mesmo, repousando o valor moral da auto interrogação
trágica na implacabilidade com que a ilusão é despedaçada e a
natureza real do herói revelada, principalmente para ele
próprio. A recompensa pelo grande momento da realização
do destino trágico é a autoconsciência e a auto-realização.
(COSTA e REMÉDIOS, 1988, p.39).

O herói moderno passou a aceitar o seu destino de


derrota e a encará-lo como necessário e se é herói trágico,
o é devido à grandeza de seu caráter, e não por causa de
suas ações. O trágico constitui-se na ação (movimento
interno ou externo, psicológico ou dramático) reveladora
ao herói da sua natureza, isto é, da sua tragédia.
A decadência da vida como depositária do sentido
apenas transferiu a proximidade e o parentesco mútuo das
156
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

pessoas. Restou um conflito particular em cada personagem


como pressuposto de sua existência, motivador de seu ser,
seu próprio fio ao destino por ela engendrado. Nascidos
da solidão, cada um, em meio a outros solitários, resta
precipitar-se ao trágico isolamento em que cada palavra
trágica dissipa-se incompreendida, e o feito trágico não é
acolhido adequadamente. A solidão é, pois, essência do
trágico, “pois a alma que se fez a si mesma destino pode ter
irmãos nas estrelas, mas jamais parceiros” (LUKÁCS, 2009,
p.43), mas a solidão é paradoxalmente dramática, porque a
forma diálogo pressupõe “um alto grau de comunhão
desses solitários para manter-se polifônica,
verdadeiramente dialógica e dramática”. (LUKÁCS, 2009,
p.43). Será, no entanto, a linguagem do homem solitário
lírica e monológica, ela própria terá de tornar-se
problemática, tomar-lhe o lugar, aprofundando e
complicando o problema trágico. Não é, essa solidão,
somente a “embriaguez da alma aprisionada pelo destino”,
mas, também, “o tormento da criatura condenada ao
isolamento e que anseia pela comunidade”. (LUKÁCS,
2009, p.43). O verdadeiro problema da tragédia moderna
é a confiança. Envolta em vida, mas plena de essência, a
alma do novo herói jamais poderá compreender que sob o
mesmo manto da vida não reside, forçosamente, a mesma
essencialidade; ela sabe de uma igualdade de todos aqueles
que se encontraram e é incapaz de compreender que esse
saber não procede deste mundo, que a certeza íntima desse
saber não pode oferecer nenhum penhor de que ele seja
constitutivo dessa vida. (LUKÁCS, 2009, p.43).
A alma do herói, à tumultuada festa carnavalesca da
multidão humana ao seu redor, sabe que as máscaras têm
que cair e promover o encontro de irmãos desconhecidos.

157
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Sabe e anseia por isto e encontra a si mesma, sozinha no


destino. Do ter-se encontrado advém a tristeza deste
caminho, cuja vida se lhe anuncia caricatura do que a
“sabedoria do seu destino proclamou com tão nítida
clarividência” (LUKÁCS, 2009, p.44), pela qual avançou
nas trevas, solitária. Solidão está psicológica, além de
dramática; “e se a psicologia no drama não deve permanecer
como matéria-prima não elaborada, o seu único meio de
expressão é a lírica da alma”. (LUKÁCS, 2009, p.44).
O romance, enquanto gênero, ainda não se
consolidou, mas se faz à luz da história. (BAKHTIN, 1988,
p.397). Devemos, pois, considerar sua natureza acanônica:
“Trata-se da sua plasticidade, um gênero que eternamente
se procura, se analisa e que reconsidera todas as suas
formas adquiridas. Tal coisa só é possível ao gênero que é
construído numa zona de contato direto com o presente
em devir.” (BAKHTIN, 1988, p.427). Completa Aguiar e
Silva (1977, p.684): tal gênero “não cessa […] de revestir
novas formas e de exprimir novos conteúdos, numa
singular manifestação da perene inquietude estética e
espiritual do homem”. O romance, como era com a
epopeia, ainda tem por intenção a totalidade, mas o “[...]
romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade
extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para
a qual a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática”. (LUKÁCS, 2009, p.55).
Bem, o romance já não pode ser visto como tragédia
(relação do homem com seu destino) ou épica (relação do
homem com sua comunidade), mas síntese dialética de
ambas. Em que se constitui o mundo moderno em relação
ao mundo épico? Cisão: divórcio entre a essência e a vida,
o que implicou a necessidade de selecionar uma essência

158
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

determinada entre a infinidade de essências. Multiplicidade


de cosmovisões, acrescente-se, se constituiu circunstância
histórica para a instauração do romance. Não é mais natural
ser herói, afirma Lukács (2009, p.41). A arte não é mais
cópia, porque todos os modelos se foram. Enquanto a épica
é a aventura da exterioridade, o romance é a aventura da
interioridade: “estória da alma que se encontra a si mesma”.
(Lukács, 2009, p.41). Projeto existencial, de escolha
individual, que tenta realizar o herói indivíduo que, neste
contexto, alcança a condição de protagonistas de sua
própria tragédia. Na épica, a condição de herói é natural,
mas, no romance, a luta é o que conta e não o resultado
final. A hierarquia entre essência e existência que é inerente
à tragédia e à épica, no romance se torna parte integrante
da forma, a própria problemática.
Argumenta Lukács (2009, p.60), que a epopéia dá
forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma,
mas o romance buscará descobrir e construir a totalidade
oculta da vida pela forma. Não há harmonia na relação da
totalidade objetiva da vida com os sujeitos, nem tal
totalidade é harmoniosa. A estrutura dada do objeto indica
a configuração em que devem ser incorporados abismos e
fissuras da situação histórica. A forma romanesca objetiva
a busca do herói, como psicologia dele. Ora, aventura da
interioridade. Nem os objetivos, nem os caminhos podem
ser dados imediatamente. Mas se o forem, isso não constitui
juízo claro de contextos verdadeiramente existentes, será
mais um fato psicológico sem correspondente no mundo
dos objetos ou no das normas.
Leski (2001, p.33) estabelece alguns requisitos e um
ingrediente do trágico. Agora, em lugar da alta categoria do
herói da tragédia, o trágico sustenta-se na “considerável altura

159
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

da queda”. A simples menção de um estado de profunda


miséria, por exemplo, pode vibrar na nossa consciência,
mas não necessariamente se configura como trágico. O grau
do trágico é o que designamos por “possibilidade de relação
com o nosso próprio mundo”. Quando nos sentimos atingidos
profundamente é que experimentamos o trágico. Importa
pouco qual o ambiente em que se desenrola a ação ou até
que seja indigno de fé, bem como o tempo. Ainda, o que
permanece válido, pelo impacto, é a vulnerabilidade da
existência humana.
Outro requisito de Leski (2001, p.34) é a “consciência”:
“O sujeito do ato trágico, o que está enredado num conflito
insolúvel, deve ter alçado à consciência tudo isso e sofrer
tudo conscientemente.” A prestação de contas é própria
do espírito grego. O autenticamente trágico, portanto, não
comporta o herói desfibrado ou vítimas alienadas do
destino. Na tragédia antiga, para Hegel (apud WILLIAMS,
2002, p.56), as personagens representavam os fins éticos
substanciais. Os fins, na tragédia moderna, diferentemente,
parecem inteiramente pessoais. Nosso interesse, portanto,
não é direcionado para a afirmação e necessidade ética,
mas ao ‘indivíduo isolado e suas condições’.
Para Hegel (apud WILLIAMS, 2002, p.55),

Para que haja uma genuína ação trágica é essencial que o


princípio de liberdade e independência individual, ou ao menos
o princípio de autodeterminação, a vontade de encontrar no
eu a livre causa e a origem do ato pessoal e de suas
consequências já tenha sido despertada.

Por meio da individualidade consciente a ação trágica


essencial pode ocorrer: “uma ação de conflitos e resolução
necessários”. (WILLIAMS, 2002, p.55). Tanto os propósitos
160
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

do indivíduo quanto o conflito resultante são substanciais


e essenciais. Os fins dos indivíduos, conscientes, tinham, na
tragédia antiga, um conteúdo essencial e universal que
despertava nossa empatia pelo simples conflito.
A dimensão da consciência a que nos referimos aqui, é
claro, envolve também os sentidos, o corpo. Campbell (s.d.,
p.63) argumenta que é próprio da tradição cartesiana pensar
na consciência como algo inerente à razão, como se a cabeça
fosse o órgão gerador da consciência. A cabeça é um órgão
que orienta a consciência numa certa direção ou em função
de determinados propósitos: hábitos, cultura, certa idéia
de moral. “Mas existe uma consciência aqui, no corpo. O
mundo inteiro, vivo, é modelado pela consciência.” Ainda,
acrescenta: “acredito que consciência e energia são a mesma
coisa, de algum modo. Onde você vê, de fato, energia de
vida, lá está a consciência.”
Finalmente, o ingrediente do trágico, a que nos referimos,
retomando Leski (2001), está ligado à “contradição
inconciliável” de Goethe. Apesar da falta de solução do
conflito trágico ser o ponto central para a realização da
autêntica tragédia, segundo algumas teorias modernas,
argumenta Leski (2001, p.35-36), mesmo em se tratando
da tragédia grega, há, ainda, a possibilidade de uma
“conciliação”. Exemplifica com Oréstias, de Ésquilo, em que
o fim não é a destruição, mas uma “conciliação que, em
proporção inaudita não só envolve os homens que sofrem,
mas também o mundo dos deuses”. Há outras tragédias,
inclusive de Sófocles (Electra, Filoctetes e Édipo em Colona)
em que há uma “completa reconciliação e ajuste”. Em
Eurípides, inclusive, há peças em que se pode falar num
happy-end. Esta “barafunda” geralmente é tolerada de modo
tácito. Leski, no entanto, sugere uma pesquisa, partindo da

161
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

palavra “tragédia” e considerando as origens do fenômeno.


Não é, pois, de se excluir de uma tragédia um final
feliz, com a reconciliação das forças em luta e a salvação
do indivíduo em perigo. Apesar das tragédias áticas,
algumas, terminarem com um final feliz e com uma
reconciliação, cumpre entender que ainda assim elas revelam
o trágico, “em copiosa medida”. (LESKI, 2001, p.36). Fica,
portanto, inevitável o desacordo de Leski em relação ao
“inconciliável” de Goethe e o aproxima ao irracionalismo
de Nietzsche.
Segundo Nietzsche (1999, p.27), a dinâmica do trágico,
o processo artístico se efetiva por meio do espírito apolíneo e
do espírito dionisíaco, “da mesma maneira que a procriação
depende da dualidade dos sexos”. Espírito opostos: a
inspiração contida de Apolo e o entusiasmo arrebatado de
Dionísio.1 Tratam-se de dois mundos artísticos separados:
o do sonho e o da embriaguez. Tem-se daí seu caráter
fisiológico: “Pensar a arte à luz do Corpo.”
(KOSSOVITCH, 1979, p.122). Pertence ao apolíneo, “a
experiência que não se empenha - é a contemplação da
aparência”. As intensidades móveis estão do lado de
Dionísio. O apolíneo estabelece a “pura distância”, um
recorte, destacando “formas frias e felizes; força de
superfície, desprovidas de tensões... aquém da ação”.
(KOSSOVITCH, 1979, p.122). São expulsas as imagens
terríveis e os pesadelos. Como um barqueiro em meio a
um mar enfurecido confia na sua frágil embarcação, o
homem individual, firme e convicto, se sustenta no principium
individuationis (o “princípio de individuação” Nietzsche

1
Optei por utilizar a designação “Dionísio”, não obstante as fontes utilizadas neste
artigo grafam “Dioniso”.

162
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

recupera de Schopenhauer: O mundo como vontade e


representação). A vida, então, se torna possível e digna de
ser vivida. Encontra-se, pois, em Apolo a expressão mais
sublime, a imagem divina e esplêndida, cujos gestos e olhares
nos falam de toda a sabedoria e de toda a alegria da
aparência, ao mesmo tempo em que nos falam da sua beleza.
(NIETZSCHE, 1999, p.30). O dionisíaco é a supressão das
distâncias e da visão, é o estabelecimento de uma
comunicação que unifica as singularidades, abolindo-as
como indivíduo, como consciência. Na base da experiência
dionisíaca, portanto, está o “colapso da individuação”, quando
um homem sente que todas as barreiras entre ele e os outros
estão quebradas em favor de uma harmonia universal
redescoberta. É, pois, a ruptura do principium individuationis:
um “delicioso êxtase” análogo à embriaguez em que “o
subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento”
uma vez rasgado o véu de Maia. “Sob a magia do dionisíaco
torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas
também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta
a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido.”
(NIETZSCHE, 1999, p.30). O homem deixou de ser artista
para ser a própria obra de arte: o poderio estético de toda
a natureza, agora ao serviço da mais alta beatitude e da
mais nobre satisfação do Uno Primordial, revela-se neste
transe sob o frêmito da embriaguez.2
2
No Crepúsculo dos Ídolos, de 1888, Nietzsche considera o apolíneo e o dionisíaco
como categorias da embriaguez e assim reflete sobre a oposição destas idéias estéticas,
nestas condições: “A embriaguez apolínea produz, acima de tudo, a irritação que
fornece ao olho a faculdade da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são
visionários por excelência. Ao contrário, no estado dionisíaco, todo o sistema
emotivo está irritado e amplificado, de modo que descarrega de um golpe todos
seus meios de expressão lançando sua força de imitação, de reprodução, de
transfiguração, de metamorfose, toda espécie de mímica e de arte de imitação”.
(NIETZSCHE, 1984, p.69).

163
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Uma visão nietzscheana sintetiza este processo


artístico:

Vejo Apolo diante mim como o gênio transfigurador do


principium individuationis, único através do qual se pode alcançar
de verdade a redenção na aparência, ao passo que, sob o
grito de júbilo místico de Dioniso, é rompido o feitiço da
individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do
Ser, para o cerne mais íntimo das coisas. (NIETZSCHE, 1999,
p. 97).

O verdadeiro artista é aquele que dá vazão aos espíritos


vitais da natureza, quando o ser humano não se distingue
do todo, podendo contemplar o que é sua existência
enquanto aniquilação e ruína, mas sem sofrer tais
conseqüências. A preocupação é a condição essencialmente
trágica do homem, encarnada pelo protagonista: O herói
da tragédia grega, Édipo ou Prometeu, é o modelo original
para o Übermensch de Nietzsche, o super-homem e O
Nascimento da tragédia coerentemente, o “protótipo de toda
sua filosofia”. (SILK; STERN, 1995. p.296).
O dionisíaco é a instauração de uma nova existência.
Nossa plenitude, com a qual transfiguramos as coisas e a
preenchemos de nossa própria alegria de viver. Sim, alegria
de viver, apesar do sofrimento:

O profundo grego, extraordinariamente suscetível como


ninguém ao mais terrível e ao mais severo sofrimento, consola-
se olhando frontalmente para a terrível destrutividade da
chamada história do mundo, assim como para a crueldade da
natureza, e está em perigo de ansiar por uma negação budista
da Vontade. A arte resgata-o, porém, e através da arte a vida.
(HOLLINRAKE, 1986, p.216).

164
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

José Miguel Wisnik (1987, p.219) obser va a


dificuldade de tal compreensão: como que uma disposição
radicalmente trágica pode dar origem a um
posicionamento afirmativo. Sim, por vezes sentimos tal
incompreensão ao afirmar que tragédia é afirmação da vida,
bem como o único sentido da felicidade. O poder da
liberdade dionisíaca suscita a transfiguração que garante
seu lugar no eterno retorno.3 Não nos prolongaremos aqui
no que diz respeito à aproximação e ao afastamento de
Nietzsche dos inspiradores de seu primeiro livro, O
Nascimento da Tragédia: Schopenhauer e Wagner. O
rompimento com Wagner, também, era em razão de
considerar que o músico cedia à influência do pessimismo
schopenhauriano. Nietzsche, portanto, não podia
considerar sua música, como antes o fizera, em O nascimento
da tragédia, atribuindo-lhe força ao renascimento da grande
arte da Grécia. Eram parentes, considerava ele, porque
expressam a decadência, isto é, a fraqueza e a negação.4
Nietzsche reconhece que o gênero se diferencia pela
presença do coro e busca entender sua função e

3
Podemos considerar o eterno retorno, conforme Deleuze (1944, p.77), apesar das
premissas antigas, como uma descoberta nietzscheana. Não se encontrava nos
antigos, Nietzsche bem o sabia, nem na Grécia, nem no Oriente, a não ser de uma
maneira parcelar e incerta, num sentido completamente diverso. O segredo de
Nietzsche é que o eterno retorno é seletivo, isto é, não é simplesmente um ciclo,
num retorno do todo, num retorno do mesmo, num retorno ao mesmo. Eis a
doutrina nietzscheana: “Vive de tal maneira que devas desejar reviver, é o dever
(porque tu reviverás, de qualquer modo! [...] Mas que saiba bem para onde vai a sua
preferência e que não recue diante de nenhum meio! Aí está a eternidade!”
4
Pensava Schopenhauer: “O que confere a toda tragédia, seja qual for a sua forma, o seu
impulso característico, é o despertar do conhecimento de que o mundo, de que a vida
não pode oferecer verdadeira satisfação e, por conseguinte, não merece a nossa lealdade.
Esta é a essência do espírito trágico, portanto, conduz à resignação”. (HOLLINRAKE,
1986, p.76). Wisnik (1987, p.216), acrescenta: “É à compreensão do ‘erro fundamental
que está no âmago da própria existência’ como sendo o ‘ter nascido’.”

165
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

representatividade, contestando a assertiva tradicional e a


de Schlegel.5 O espírito socrático no caso foi o responsável
pela morte da tragédia. A tensão entre Dionísio e Apolo
no fundo representa harmonia e está do lado do físico, isto
é, do corpo. Não há lugar na tragédia ao racionalismo
socrático, otimista, para quem toda a verdade é
racionalmente acessível. O Nascimento da tragédia representa
a esperança de um retorno saudável ao espírito da tragédia.
A música trágica que, antes, teve sua expressão mais acabada
nas criações de Ésquilo, seria corporificada na
Gesamtkunstwerk de Richard Wagner de quem, futuramente,
se afastaria definitivamente, como já comentamos.
A atitude trágica enquanto “experiência do cotidiano”
foi sintetizada por Maria Felomena Souza Espíndola (2001).
Encontramo-nos com ela no desenvolvimento das reflexões
anteriores, amparados principalmente pela visão estética
nietzscheana. Fica assim, pois, configurado o trágico:

a) ser humano dilacera-se entre o bem e o mal, repetindo a


imagem de “Dioniso fragmentado pelos Titãs”, num doloroso
processo de individuação;
b) mas o homem pode superar a individuação, no momento
em que mergulhar na embriaguez da eterna volúpia do existir.
Dominado pela letargia, inconsciente do cotidiano e das
fronteiras da existência, tendo perdido a memória da fala e
do andar, ele é a energia da natureza [processo dionisíaco];
c) recuperada, porém, a consciência do cotidiano, o homem
sofre o estranhamento da vida, e a lucidez do conhecer gera a
5
Trata-se de August-Wilhelm Schlegel (1767-1845). Foi um dos principais
promotores do movimento romântico alemão, sendo particularmente conhecido
pelas suas magistrais traduções de Shakespeare e pela importância de suas
contribuições críticas e teóricas com respeito à estética do romantismo, em cujo
âmbito figuram as Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Preleções sobre
arte dramática e literatura), de onde procede a menção feita por Nietzsche.

166
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

náusea ante o absurdo da existência humana, condenada a


um universo contingente; e,
d) o estado de nojo ante o absurdo de ser, porém, é superado
[conciliação/sublimação, por meio de uma visão estética do
mundo: processo apolíneo] pela aprendizagem da dor,
caminho através do qual a criatura humana aprende a serena
tranqüilidade em face da destruição, um estado que lhe
possibilita a restauração da unidade primordial e onde o
homem se constrói na grandeza do dizer sim à vida, a despeito
de todas as castrações impostas pela contingência do mundo.
(grifo nosso).

Temos, então, individuação, embriaguez, náusea e superação,


configurando uma atitude trágica como experiência do cotidiano.
Cabe, ainda, inserir aqui nossa posição quanto ao grau
máximo da atitude trágica, apoiados notadamente em
Nietzsche e na pesquisa de Leski, que seria uma situação trágica
em que o herói alcança consciência sobre si mesmo,
convivendo com o próprio aniquilamento (não
necessariamente a morte), e o faz com serena lucidez: dizer a
si mesmo, mais que aos outros, a sua dor, aprofundando a
consciência da destruição a que está voltado.
A história de Mato Grosso, desde a República, foi
marcada pela disputa da liderança política do nortão, ainda
sob a hegemonia coronelista de pecuaristas e usineiros, e o
sul, mais desenvolvido, sacudido por intensa migração. A
criação do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso
(1919) e do Centro Mato-Grossense de Letras (1921) são
marcos significativos, suportes da sustentação da literatura
mato-grossense, enquanto sistema, que identificam o
modernismo literário em Mato Grosso. José de Mesquita e
de Dom Aquino Correa, nomes fartamente repetidos em
todas as instâncias locais, fazem parte deste processo,

167
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

notadamente enquanto críticos literários, solidificando um


estado de coisas.
Tais condições resultaram no muito repetido
anacronismo da concepção artística em Mato Grosso,
acentuando fortemente o papel educativo, moral e
patriótico, em relação ao que se pensava e o que se fazia no
resto do país, conforme identificam Melo (2008),
notadamente no que se refere à Semana de arte moderna.
Como conseqüência direta desta visão passadista da
arte, temos uma concepção de mundo retrógrada e
reacionária. Assim, em vários textos, José de Mesquita deixa
transparecer sua aversão ao modernismo, relacionando-o
às correntes políticas esquerdistas que abertamente
condenava. No entanto, era um intelectual atualizado, o
fundador e primeiro presidente da Academia Mato-
Grossense de Letras, com as novidades vanguardeiras, com
podemos comprovar pelas muitas referências aos seus
contemporâneos, mesmo por meio das personagens de suas
peças de ficção, notadamente Paulo do romance Piedade em
que se identificam fortes sintomas autobiográficos. Melo
(2008) acentuam, portanto, que se trata de uma “opção
consciente dos intelectuais envolvidos com o projeto do
Centro Mato-Grossense de Letras e do jornal A Cruz,
influentes representantes da literatura local”.
Outros elementos subjacentes à crítica literária do
Estado foi o projeto de “recristianização”, “retomando a
tradição católica; propósito que se casou perfeitamente com
a ideologia da ordem conservadora que iria sustentar o
Estado Novo” (MELO, 2008) pelo sentido organizacional
que se tentava impor à ordem social.
O regionalismo que Mesquita defendia divergia da
proposta dos escritores regionalistas de 1930, do nordeste

168
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

brasileiro, que estava profundamente comprometida com


as contradições, inerentes às profundas injustiças sociais
sofridas pelas regiões distantes, submetidas à hegemonia
econômica do centro. Sua concepção de regionalismo “se
limitava a mostrar paisagens e costumes”, utilizando-se “da
exaltação do regional para manter o status quo” (MELO,
2008), subserviente, pois, ao aparelho ideológico do Estado
(Althusser).
Fica, pois, estabelecida uma “hierarquia de prioridades
para a emergente literatura mato-grossense [...] o problema
estético como subordinado ao problema maior da criação
da nacionalidade/fortalecimento regional, e este
subordinado ao problema religioso”. (MELO, 2008).
Significativo é o caso de Uma Interpretação da Literatura
Brasileira, de Vianna Moog, publicado pela primeira vez
em 1943. O autor defende a tese de que a literatura brasileira,
diferentemente das grandes literaturas européias, francesa,
alemã, espanhola, inglesa, portuguesa, todas
homogeneizadas por um princípio unificador, se
caracterizaria por “estonteante diversidade”. (MOOG,
2006, p.21). Chega então à idéia de que, não sendo um
continente, somos antes um “arquipélago cultural”
(MOOG, 2006, p.22) composto por sete ilhas - Amazônia,
Nordeste, Bahia, Minas, São Paulo, Rio Grande do Sul e
Metrópole (isto é, a cidade do Rio de Janeiro, então capital
federal) - que explicariam nossos fenômenos sociais,
históricos, econômicos, políticos e literários. Cada “ilha”
teria sua vocação específica a se refletir na literatura que lhe
corresponde: a amazônica seria marcada pelo elemento
telúrico; a nordestina pela preocupação social, a baiana,
pela tendência à erudição; a mineira pelo pendor
humanístico; a paulista pelo ímpeto bandeirante e

169
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

proselitista; a gaúcha, pelo contraponto entre regionalismo


e universalismo; e a metropolitana (ou seja, carioca), pela
propensão para a pintura de costumes e por certo
desencanto cético e irônico. Conforme Souza (2007, p.138-
139), a tese não deixa de ter encanto literário e poder
persuasivo, mas é conceitualmente frágil, baseando-se mais
em síntese imaginosas do que em análises demonstráveis.
Bem, fica de válido à leitura da obra a consciência do
arquipélago cultural, bem como se pode constatar que não
há nenhuma menção ao Mato Grosso e ao Centro-Oeste,
comprometendo o sentido de nacionalidade da literatura
brasileira, pela desconsideração da diversidade. Curioso
que o recente trabalho de Roberto Acízelo de Souza:
(Introdução à historiografia da literatura brasileira), de 2007, do
mesmo modo, não há nenhuma referência às historiografias
de Mato Grosso.6
Cabe-nos, de resto, a pergunta: seria possível discernir
uma vocação específica a refletir-se na literatura de Mato
Grosso? Pensamos que não. Pelo menos neste momento.
Temos um quadro complexo que foge a reduções
esquemáticas, mas pensamos poder sintetizar algumas
reincidências estéticas nas narrativas apresentadas e talvez chegar
a uma resposta mais abrangente.
Identificamos em estudos desenvolvidos
anteriormente, voltados às narrativas selecionadas, narrador
fortemente intruso, com função ideológica, emprestado a
terminologia de Genette (s.d.); perspectivas infensas às
conquistas do modernismo brasileiro; confluência de estilos,

6
Em 2001, Hilda Gomes Dutra Magalhães publicou História da Literatura de Mato
Grosso: Século XX e em 2005 foi reeditada A História da Literatura Mato-Grossense de
Rubens de Mendonça, cuja primeira edição é de 1970.

170
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

privilegiando perspectivas românticas, no sentido em que


o herói romântico ainda tinha como prerrogativa restaurar
o equilíbrio; maniqueísmo no processo de criação das
personagens; personagens fortemente estereotipadas e
protagonistas planas, conforme Forster (1998, p.66-67);
visão patriarcal do mundo e, por fim, desfechos
catastróficos.
As tragédias gregas floresceram num momento
significativo da história da humanidade, do confronto do
universo mítico e a racionalização do espírito, sintetizando
esteticamente tal tensão. E se, por um lado, o espírito
humano avançou dialeticamente; por outro, o trágico
sobrevive até nossos dias, exibindo exemplarmente o
choque que colocou o ser no limite. A romanesca mato-
grossense, por sua vez, na iminência de aderir a um mundo
que se lhe anunciava, no mínimo, perigoso, como
demonstramos, apontando as perspectivas da elite
intelectual do Estado preferiu um retorno ao romantismo,
tentando resgatar uma totalidade para sempre perdida. Se
o herói moderno, problemático, se efetiva na consciência da
realidade e segue em frente, o nosso herói mato-grossense
responderá com a vida a inadequação ao mundo moderno.
Tal tentativa, de totalidade, promove o fechamento dos
valores humanos a uma realidade, digamos assim, confortável,
não reconhecendo a complexidade da realidade, tentando
recuperar essencialidades e promovendo homogeneidades
que acabaram resultando numa estética muito particular,
que podemos configurar como tensão (mais uma) entre a
dialética da realidade e o romantismo normatizado
(nacionalismo e regionalismo). Consideramos que a saída
pelos desfechos trágicos, como apontamos, denuncia,
preliminarmente, a pouca desenvoltura das elites mato-

171
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

grossenses. No entanto, temos clareza, não devemos, de


forma alguma, reduzir a arte ao pensamento intelectual,
uma vez que, artista e intelectual, são entidades diferentes e
se localizam em instâncias determinadas.7 Vamos, pois,
aprofundar o estudo dos romances selecionados,
analiticamente, no sentido de extrair-lhes propriedades
estéticas, pelo viés da tragédia, discernindo o lugar da
romanesca mato-grossense: entre arte e intelectualidade e
entre essência e existência.
Há de se considerar, por fim, a saída para a tragédia
cristã, tendo em vista a exploração da religiosidade na
temática dos romances.
Mário de Andrade (2002, p.117) observa que os poetas
do Cristianismo afastaram-se sempre das tragédias de temas
cristãos, ao passo que retornaram assiduamente aos temas
trágicos da Antigüidade. Isso deriva, argumenta ele, de ser
impossível, ou pelo menos dificílimo, com o santo, ou com
o herói cristão, infundir horror e piedade que são
prerrogativas da tragédia.

A fatalidade, na tragédia, domina o limitado humano, de forma


que o desenlace, o que vai suceder e sucede mesmo, NÃO
TEM COMPENSAÇÃO. Não pode ter compensação,
porque si tiver, deixa de ser exatamente trágico, não inspira
horror nem piedade ... Na tragédia, e por isso ela é tão
causticante, quando o herói morre, a gente guarda a sensação
de que tudo acabou para o herói, como símbolo de um

7
“A honestidade do grande artista consiste precisamente no fato de que, quando a
evolução de um personagem entra em contradição com as concepções e ilusões por
amor das quais eles se engendrara na fantasia do escritor, este o deixa desenvolver-
se livremente até as últimas conseqüências, e não se incomoda com a anulação das
suas mais profundas convicções pela contradição em que ficam face à autêntica e
profunda dialética da realidade”. (LUKÁCS, 1968, p.40).

172
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

destino. Édipo como Otelo, como Prometeu, não tem


compensação. (ANDRADE, 2002, p.117).

Há de se argumentar, ainda que a catarse (identificação


profunda com o destino do herói) não mostra coerência
com as reduções morais da tragédia. “Para aclarar o mito
trágico”, argumenta Nietzsche (1999, p.141), “o primeiro
reclamo é justamente o de procurar o prazer a ele peculiar
na esfera esteticamente pura, sem qualquer intrusão no
terreno da compaixão, do medo, do moralmente sublime”.
Aristóteles, argumenta Nietzsche (s.d., p.17), identificava
na compaixão um estado enfermiço e perigoso, cujo
remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia
como sendo esse purgativo. De fato, na Poética, não há nada
que indique uma purificação do Espírito, uma ascese da
alma. Os espectadores não se sentem melhores por expulsar
o mal de suas almas, como seria do gosto do cristianismo
da Idade Média. “A tragédia, em suma, parece escapar a
antítese da responsabilidade moral e do destino arbitrário,
tal como escapa à antítese do bem e do mal.” (FRYE, 1973,
p.208).

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

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175
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

176
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

A ESTÉTICA DO TEATRO FUTURISTA


AGNALDO RODRIGUES DA SILVA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

Discutir Deseja-se Mulher (1928) e O Rei da Vela (1933)


pelo viés da produção futurista, requer indicar o
engajamento de Almada Negreiros e Oswald de Andrade

1
Parte deste texto está publicada no livro O futurismo e o Teatro (2003), de Agnaldo
Rodrigues, cuja bibliografia estará nas referências.

177
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

nessa tendência inovadora que abalou a Europa no início


do século XX. No lastro das ideias de Marinetti, conforme
indica Telles(1983), no seu importante trabalho sobre as
Vanguardas Europeias, esses autores de língua portuguesa
transformaram-se em marcos do teatro futurista, no
decorrer do modernismo, em épocas aproximadas, mas em
espaços distintos.
As peças teatrais de Almada Negreiros e Oswald de
Andrade foram pioneiras, em seus países, no que se refere
ao trabalho experimental do teatro futurista; eles aderiram
à modalidade cênica que dialogou com as realizações
dramáticas de Maiakovski, Piscator e Brecht, autores que,
além de cultivarem o Futurismo, enveredaram-se pelas
produções expressionistas e dadaístas.
De acordo com Rodrigues (2003), O Rei da Vela e Deseja-
se Mulher são peças teatrais que expressam, de diferentes
maneiras, características futuristas, principalmente no que se
refere à concepção de espaço cênico e contestação do teatro
burguês. Apresentam uma linguagem típica das vanguardas,
em uma tentativa de romper com a linguagem de representação
e tentar envolver o leitor na decifração do texto. Os
personagens são paradigmas e recebem uma excessiva carga
de conteúdos psicológicos, que agrupados, atribuem um cunho
alegórico, simbólico e, às vezes, carnavalesco às peças.

II

O teatro de vanguarda, principalmente o futurista,


insistiu no fato de que a principal renovação se deu no
âmbito da cenografia e através dos atores, muito mais do
que no da dramaturgia. Os cenários aproximavam-se da
realidade circundante, como se a apresentar uma

178
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

provocação em aberto, fruto do avanço tecnológico e


científico, resultado da modernidade.
O Rei da Vela apresenta como cenário o escritório de
usura, de Abelardo I, e a ilha paradisíaca, local onde os
burgueses descansam de suas atribulações diárias e fecham
negócios financeiros, aspectos que se constituem em
elementos denunciativos de textos cênicos voltados à
discussão sociopolítica de um determinado período
histórico do Brasil. No escritório da fábrica de velas, por
exemplo, pode-se observar, como se fossem mercadorias
de bazar, os seguintes objetos: o retrato da Gioconda,
um sofá futurista, caixas amontoadas, um castiçal de latão,
um telefone, um mostr uário de velas de todos os
tamanhos e cores, porta enorme de ferro e o prontuário,
além de peças de gavetas rotuladas.
O Rei da Vela apresenta ao público um mundo às
avessas, cujo ponto crucial é o capitalismo selvagem que
obriga o homem a fazer de sua comunidade uma grande
selva, regida pela lei do mais forte. Verifica-se a ausência
da consciência, única capaz de retirar o homem dessa
situação alienante promovida pelo dinheiro; consciência esta
que poderia elevá-lo ao mundo pensante.
Deseja-se Mulher é uma peça que foi produzida no lastro
do teatro francês. Sua primeira cena apresenta a boîte de nuit,
pequenas mesas redondas com baldes de gelo, um grupo
de girls – vestidas como num cabaret; elas dançam um número
de variedades, avançando entre as mesas; em seguida, o
cenário que serve de pano de fundo transforma-se, como
que em um passe de mágica; a cena mostra uma casinha
isolada no campo, mesa e duas cadeiras diante da casa,
árvore ao lado, um despertador. Ao final do texto, entra
em cena um barco, em alto mar, de onde um marinheiro

179
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

joga uma rede de pescar e captura uma sereia, constituindo-


se em uma cena carnavalesca.
Almada constitui cenários de natureza burguesa em
Deseja-se Mulher: boîte, casa, barco; essa atitude revela a crítica
sociopolítica ao capitalismo, em comunhão com o conflito
existencial que homem moderno vivia no início do século
XX, movido pelo interdito do sexo, imposto pela religião
e referendado pela sociedade. A mulher, considerada ainda
o anjo da guarda do lar (idealizada sobre a figura de Nossa
Senhora), contrata-se com a prostituta, a qual o homem
procurava para obter prazer, despejando sua sujidade do
desejo do sexo. A prostituta, idealizada pela figura de Maria
Madalena, era um mal necessário, tendo em vista que a
sociedade precisava dessa imagem para continuar
estigmatizando o sexo como pecado.
Ao analisar o cenário que Oswald sugere para
encenação da peça, pelas rubricas, percebe-se que ele
procura captar o movimento de massa, o conflito das classes
e a luta de ideias, transformando o palco numa espécie de
circo que funciona como miniatura do mundo. Identifica-
se a relação com o que declarara Maiakovski, em 03 de
janeiro de 1921: “o problema do teatro moderno é a luta
com o mal social. Mas não se pode dizer semelhante besteira
no Século XX! (aplausos). Façam o favor de não aplaudir,
vaiem apenas” (HELENA, 1985, p. 107). É possível
apreender que Oswald demonstra uma extrema
preocupação com o aspecto formal, mas não abre mão em
veicular uma mensagem politizante, em tempos em que a
arte e a literatura engajadas tomavam uma valoração de
representação social.
Vê-se a influência de Piscator em Oswald. Piscator, em
suas produções, desenvolve a história de modo a fazê-la

180
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

voltar à cena, surgindo a partir de então o drama


documentário, inspirado no proletkult russo, quando o autor
se manifesta contrário ao subjetivismo expressionista. O Rei
da Vela tem esse caráter panfletário, típico do teatro
proletário, iniciado em Berlin em 1919, considerado pelo
seu iniciador como uma necessidade política da arte.
Contudo, o experimento vanguardista de Oswald não se
esgota somente na relação com o futurismo, isso já se encontra
visivelmente claro, tal como observa Lúcia Helena:

Do expressionismo, nota-se em seus textos a concepção do


personagem estereotipado, bem como a intenção de recuperar
o palco como expressão do mundo circense, selvagem,
agitado, repleto de aventureiros, prostitutas, charlatães, palhaços.
Não é estranho à dramaturgia oswaldiana este caráter de
apelo circense, de mundo em que as figuras estranhas se
entrelaçam e o riso é uma forma de veicular a crítica de uma
sociedade em crise. As indicações cênicas, de influência
futurista, mesclam-se nele desse caráter circense bem acentuado
(1985, p. 108).

Em nível de personagens, em O Rei da Vela elas são


submetidas a fazer parte de um submundo; esse submundo
estabelece vínculos naturalistas com a patologia, nutrindo
a intenção de aludir e destruir os padrões burgueses do
teatro, por meio de uma representação negativa da
sociedade. Deseja-se Mulher reveste-se de um caráter
amplamente socioexistencial. Almada toma como
parâmetro de discussão as relações frustradas entre
homem/mulher, devido aos preconceitos sociais e
interferências castradoras da religião na vida humana.
Há, nessas peças, algumas características surrealistas,
mesmo que em pequenas proporções. Explica-se, portanto,

181
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

a libertação da linguagem, a preocupação em produzir


imagens nas mais variadas arbitrariedades, as conexões que
irrompem atravessadas pelo poder da linguagem onírica e
da explosão do humor.
O teatro como “espetáculo provocação”, que se
solidifica nas relações entre o palco e a sala de espetáculos, é
o que estabelece a interação entre os atores e os espectadores.
Esse traço peculiar permite a fusão entre surrealismo e
futurismo, colaborando para a ruptura da concepção
tradicional de teatro. Deste modo, o público é chamado à
cena, a sentir-se participante, a intervir se for o caso,
movimentos estes que provocam a catarse no expectador.

Neste amálgama de problemática social brasileira municiada por


experimentos vanguardistas, o teatro de Oswald veio revolucionar
o painel da dramaturgia brasileira, estagnada numa linha ora
melodramática herdeira dos dramalhões românticos, ora
naturalista e voltada à patologia social (HELENA, 1985, p.109).

Magaldi (2000) frisa que, apesar de cronologicamente,


Oswald ser o autor dos primeiros textos brasileiros
modernos, não foi ele quem provocou a modernização do
nosso teatro. No estudo do teatro como espetáculo, O Rei
da Vela, enquanto texto literário, tem uma grande importância
na constituição do quadro modernista, porque abre
possibilidades ainda inexploradas: o espetáculo provocação.
Magaldi (ibidem) ainda afirma que o texto teatral de
Oswald representou o exemplo inaugural de um teatro
concebido segundo os princípios modernistas. Ao invés
de uma análise rósea da realidade nacional, ele propõe uma
visão desmistificadora do país. A paródia substitui a ficção
construtiva, e a caricatura feroz evita qualquer sentimento
piegas. Em lugar do culto reverente ao passado, privilegia-
182
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

se o gosto demolidor de todos os valores. Renega-se


conscientemente o tradicionalismo cênico, para admitir a
importância estética da descompostura. Em metalinguagem
de claro significado, uma réplica define o programa a ser
desenvolvido: “a burguesia só produziu um teatro de
classe. A apresentação da classe. Hoje evoluímos.
Chegamos à espinafração” (1998, p. 03).
O Rei da Vela e Deseja-se Mulher possuem características
que as aproximam da dramaturgia brechtiana (que procura
quebrar a ilusão do palco) e da concepção de teatro épico.
Dentre tais características, podem-se frisar duas: a primeira
é o desejo de não se apresentar apenas como questionamento
das relações inter-humanas, objetivo essencial do drama
clássico e do drama burguês, mas de apresentar as
determinantes sociais dessas relações; a segunda é o intuito
algumas vezes didático de suas obras, que têm o objetivo
de esclarecer o público, somando-se a necessidade de
transformação da consciência humana.
A segunda característica, acima citada, liga-se
visceralmente à catarse, eliminando o pacto mágico e
ilusionista do teatro burguês, impondo à composição teatral
recursos novos, que força o abandono dos aspectos
narrativos. Esses recursos introduzem o distanciamento
entre o narrador e o espectador (no caso, o público) de um
lado e o mundo narrado de outro, distância esta que não se
evidencia no drama tradicional. As personagens atuam
com plena autonomia, ao invés de serem projetados a partir
da perspectiva do narrador. A unidade tradicional é
substituída por uma sequência solta de cenas, nas quais se
apresentam episódios de certo modo independentes, cada
qual com sua própria ponte e, todos eles, montados por
uma “figura exterior/ausente” aos acontecimentos.

183
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Os teatros de Almada e Oswald utilizam-se do


distanciamento épico e de cenas soltas, em que, além do
interesse pela textura das personagens, que são, na maioria
dos casos, estereotipadas e farsescas, valorizam a fabulação
que lhes permitem lançar uma sátira divertida, e, ao mesmo
tempo, aguçada. É a utilização do ridículo para se alcançar
o fim específico. Brecht, por exemplo, utilizava tais recursos
na sua dramaturgia, para recuperar a técnica de tornar
pouco familiar o que é familiar, provocando
estranhamentos, o que passaria normalmente por natural,
aproveitando para isto recursos da caricatura, do estilo da
Comedia Dell’ Arte2 e do grotesco.
Não se pode negar que o teatro de Brecht tem origem
no naturalismo e expressionismo, paralelamente. No caso
do teatro oswaldiano, suas personagens fazem, referência
ao teatro de tese, ora negando-o, ora utilizando-se dele;
Em O Rei da Vela tem-se, por exemplo, a própria
sucessividade dos Abelardos, que denuncia, explicitamente,
o esforço que a dramaturgia burguesa fazia para manter-se
no tablado, apesar de todo fatalismo determinista da qual
a obra encontra-se impregnada.

2
Magaldi (2001), em O Texto no Teatro, afirma que a Commedia dell’ Arte caracteriza-
se pela presença física do ator no palco e que leva às últimas consequências a
verdade segundo a qual o palco é o lugar do ator. É uma constante da herança
teatral, desde que o primeiro homem representou para outros homens. Foi através
da Commedia dell’ Arte que tornou-se regra no elenco a presença da atriz, afastada
em muitas épocas do palco, por ancestral preconceito. Permite recriar extraordinários
jogos feéricos,nem de longe sugeridos pelo cenário. Com base num roteiro, o ator
improvisa uma unidade cênica de inteira coerência, e que se sustenta no palco pelo
prodigioso dinamismo. O intérprete torna-se em parte o autor do próprio papel e
facilita criar num estilo e num único veio cômico, e não em diverso, muitas vezes
antagônico. Nesse estilo, tem-se a exuberância dos gestos, o uso da mímica e de
passos aparentados à dança, a agilidade acrobática, o movimento permanente que
não se ajusta à calma e ao repouso.

184
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Também ao naturalismo dever-se-ia a preocupação de Brecht


e de Oswald com os “pedaços da realidade inteiramente
crus”. Mas nem Brecht nem Oswald apresentam mais o
mundo sem fissuras, como os naturalistas o faziam. Suas
peças compõem-se de fragmentos de realidade, nos quais
não se evoca uma época através de detalhes e acúmulos de
fatos, mas pelo desvendar do material reprimido (HELENA,
1985, p. 111).

O interessante quando se fala em distanciamento, que


se alia aos experimentos de vanguarda, especialmente ao
futurismo, diz respeito à técnica utilizada para encontrar
novas formas de estruturação da linguagem dramática.
Lúcia Helena (1985) ressalta que há o emprego de um
arsenal de recursos em peças desse estilo; tais recursos
seguem do uso da ironia e da paródia, da alusão e
intertextualização, da estruturação de personagens
farsescos (em Deseja-se Mulher, o quadro da sereia) e
circenses (O Rei da Vela por inteiro), até o uso de
marionetes e maquetes; desse modo, acontece uma
transformação do ponto principal da discussão em
personagem, no afã de encontrar uma nova mensagem,
uma nova for ma de expressão. Há uma fusão de
características que per mite ao teatro futurista a
intromissão em um novo espaço cênico de representação,
bem como de todos os elementos que o integram.

III

Stalloni (2001) afirma que se há um domínio em que a


ambiguidade da arte teatral aparece claramente, é realmente
o do estatuto e da função da personagem. Para a tradição
grega, a personagem (persona = máscara) é um simples

185
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

suporte da ação, diante da qual ela (a personagem) deve


apagar-se.
Aristóteles, em A Poética (1990), diz que “a tragédia
não imita homens, mas sim a ação, a vida [...] Muito longe
de imitar caracteres graças às pessoas em ação, os autores
concebem, ao contrário, os caracteres através das ações.
Assim, são realmente os atos cumpridos e a história que
constituem a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é tudo,
é a coisa mais importante” (p. 1450a).
Para discutir a personagem no teatro futurista,
escolhemos, neste estudo, Abelardo I e Heloisa de Lesbos
que são personagens de O Rei da Vela; e Vampa e Homem
– Protagonista (ora freguês, ora ele) que são personagens
de Deseja-se Mulher.
Essas personagens trazem em sua construção
quesitos que permitem classificá-las como heróis/
heroínas/anti-heróis, cuja carga simbólica, associada aos
outros elementos do texto, emite diretrizes de um projeto
filosófico e sociológico, muito comum quando se trata
do teatro político. Não é à toa que o futurismo é, entre os
ismos do modernismo, o mais político. A personagem,
nessa linha de pensamento, é o elemento chave para que a
mensagem seja recebida pelo espectador de forma
impactante, uma vez que

A personagem, teatral, portanto, para dirigir-se ao público,


dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada
mas mostrada como se fosse de fato a própria realidade.
Essa é, de resto, a vantagem específica do teatro, tornando-o
particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação
suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação:
frente ao palco, em confronto direto com a personagem, elas
são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção

186
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos. Sabem disso os


pedagogos, que tanta importância atribuem ao teatro infantil,
como o sabiam igualmente os nossos jesuítas, ao lançar mão
do palco para a catequese do gentio (PRADO, 1985, p. 85).

Considerando a observação de Prado, pode-se afirmar


que a função de relatar ou até mesmo antecipar fatos não
mais interessa ao teatro futurista, pois o público não está
alheio ao processo, porém fazendo parte dele, em uma
interação que não era comum conceber. Nessa direção, O
Rei da Vela e Deseja-se Mulher, indicam, pelas rubricas, a
descrição do cenário sob a função enunciativa. Isso quer
dizer que por essa função o expectador é contextualizado
diante da trama que será desenvolvida, pois ele teria a visão
global das características predominantes das peças. As
personagens entram em comunhão com os objetos
cenográficos, cujo resultado é o complemento aos sentidos
do texto, incluindo significados subjacentes. Lembremo-
nos que nesses períodos históricos em que as peças em
estudo foram produzidas, não se podia dizer tudo
abertamente, dado a censura instalada tanto em Portugal
quanto no Brasil.
Outra questão importante para se destacar é o fato de
que o teatro futurista despreza a figura do narrador; isso
não pode ser entendido como uma forma de simplesmente
camuflar o narrador. Ele é apagado por completo do
contexto, visto que caberá às personagens a tarefa de
conduzir o enredo, construir o clímax, criar a complicação
e desencadear o desfecho final (que denominaremos aqui
de apoteose3 da peça). Vale lembrar, oportunamente, que
os atos introdutórios das peças são extremamente
3
Cena final de teatro, deslumbrante, que representa uma visão de glória, glorificação.

187
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

impessoais; constituem-se de frases curtas e quase que


independentes entre si, formando um jogo de informações
que, à priori, parecem fragmentadas, como se fossem
recortes de papéis que, organizados, criam o texto.
Observemos esses atos introdutórios de O Rei da Vela e
Deseja-se Mulher, respectivamente:

ATO I - Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo &


Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas amontoadas.
Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de
latão. Um telefone. Sinal de alarma. Um mostruário de
velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme
de ferro à direita correndo sobre rodas horizontalmente e
deixando ver no interior as grades de uma jaula. O prontuário,
peça de gavetas, com os seguintes rótulos: MALANDROS –
IMPONTUAIS – PRONTOS – PROTESTADOS. Na
outra divisão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES –
SUICÍDIOS – TANGAS.
ATO II – Uma ilha tropical na baía de Guanabara, Rio de
Janeiro. Durante o ato, pássaros assobiam exoticamente nas
árvores brutais. Sons de motor. O mar. Na praia ao lado,
um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro
com a bandeira americana. Palmeiras. A cena representa um
terraço. A abertura de uma escada ao fundo, em comunicação
com a areia. Platibanda cor de aço com cactos verdes e
coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e
gelo. Uma rede do Amazonas. Um rádio. Os personagens
se vestem pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial.
Morenas seminuas. Homens esportivos, hermafroditas,
menopausas.
ATO III – O mesmo cenário do primeiro ato, á noite. A
cena está atravancada de ferro-velho penhorado a uma Casa
de Saúde. Uma maca no chão. Uma cadeira de rodas. Um
rádio sobre uma mesa pequena. A iluminação noturna vem
de fora, pela ampla janela. Heloísa se lastima prendendo com

188
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

os braços as pernas de Abelardo I (ANDRADE, 1976, p. 11,


55,56, 99).

PRIMEIRO ATO: (Boîte de nuit. Pequenas mesas redondas


com os baldes de gelo. Um grupo de girls o mais despidas
possível dança um número de variedades avançando entre as
mesas. / Um criado de cabelo branco empastado de cosmético,
farda vermelha e galões de ouro, atende o freguês que está só
a uma mesa).
SEGUNDO ATO: (Uma sala com a metade para o fundo
elevada em estrado. / Cadeiras no primeiro plano, de costas
para o público. Entre o estrado e as cadeiras uma personagem
de costas para o público. Uma varinha na mão, à laia de
batuta de chefe de orquestra. Bate com a varinha no estrado
três vezes pancadas de Molière. / Aparece sobre o estrado
uma linda mulher com imponente vestido de grande gala.
Avança solene até ao fim do estrado e do mesmo modo
volta a sair de cena. / A personagem bate repetidamente com
a varinha no estrado).
TERCEIRO ATO: (Um poste de viação com os três olhos:
amarelo, vermelho e verde./ Polícia sinaleiro com bandeiritas
de várias nações no peito e nos antebraços. / O protagonista,
de gabardina e maleta, dirige-se ao sinaleiro com um
cartãozinho). (NEGREIROS, 1997, p. 497, 509, 516).

As observações que se referem à constituição do


cenário, ou contextualização de personagens ou ações, mais
visíveis em Deseja-se Mulher, podem ser perfeitamente
dispensadas quando encenadas, pois são substituídas por
objetos ou situações concretas. Não se pode perder de
vista que se trata de produções para encenação dramática,
nas quais os atores e o cenário, pela encenação, tem a tarefa
de transmitir as mensagens que tenham sido dispostas no
texto cênico pelas rubricas.

189
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

IV

Em O rei da vela, Abelardo I e Heloísa de Lesbos


representam a união da aristocracia rural com a burguesia
nacional, a primeira em decadência e a segunda principal
detentora do capital no país. D’ Incão (apud Priori, 1997)
afirma que o casamento entre as famílias ricas e burguesas
era usado como um tipo de ascensão social ou uma forma
de manutenção do status. Abelardo I, “o rei da vela”, é
burguês enriquecido à custa da privação alheia, pois ele
fabrica e vende velas por ser um produto de alto consumo
em um país extremamente supersticioso como o nosso; país
onde todo habitante, no ato de sua morte e velamento, é
coroado por velas, que estaria simbolizando a luz que o
espera no céu. A vela também simboliza, nesse período da
história nacional, a incipiente industrialização do Brasil, que
ainda não fabricava sofisticados produtos de consumo que
pudessem substituir a energia elétrica.
Abelardo I, portador do codinome de “rei da vela”, é
uma personagem rica para análise; no elemento fálico “vela”
centraliza-se um poder supremo – o rei. Isso nos remete
aos antigos reinados medievais, que em nada tem a ver com
o relógio econômico mundial do período a que a peça se
refere. É feita uma alusão à Idade Média, o momento
“escuro” da história mundial. O rei, na peça de Oswald,
criado sob uma perspectiva futurista, não possui o direito
divino comum a toda monarquia, pois este pode ser
destronado, como se constata no decorrer do texto, tanto
pelo seu servo (ou tipo de capataz) quanto pelo Mr. Jones,
que representa o capital estrangeiro na economia nacional.
A personagem Abelardo é uma viva referência, pela
somatória de fatores alusivos e simbólicos, a Pedro

190
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Abelardo, filósofo que escandalizou a Igreja Medieval pela


concepção de mundo, religião e amor que nutria; a grande
paixão dessa personagem história fora Heloísa, sobrinha
do cônego Flubert, com quem se casou em segredo, e por
quem alimentava verdadeiro amor, chegando, por ordem
do tio da jovem, a ser emasculado.
Helena (1985) observa que o racionalismo atribuído
ao pensamento de Abelardo I é transformado, na obra, em
pragmatismo comercial, na relação de um casamento sem
amor com Heloísa de Lesbos e a aludida emasculação
poderia ser vista como uma forma de indicar a impotência
da burguesia em crise. Entretanto, na fina teia do constelado
alegórico das personagens, a cada decifração, a cada parte
que surge por alusão, mais o todo se esfacela na construção
de uma alegoria, na qual o que vale é a constante alusividade
entre as partes que a compõem.
Por outro lado, Vampa e o Homem-Protagonista, de
Deseja-se Mulher, fazem alusão aos famosos cabaret (s)
franceses. Os fatos acontecem em tom de mistério para o
espectador, devido à velocidade com a qual o desfecho se
dá. Da boîte de Nuit, onde tudo começa, o freguês e a Vampa
se ligam em noivado e logo aparecem em uma casinha
isolada no campo, em cuja parede Fata escreve a fórmula
mágica da unidade encontrada: 1+1=1; ele logo a
abandona, fascinado por outra mulher.
A cena é modificada, já que agora temos o vestido de
noiva, que a priori não faz sentido; Vampa prova o vestido
e, inexplicavelmente, desmaia. Não se concretiza a unidade
desejada, pois o homem filosofa que o único problema
desse mundo é o caso pessoal de cada um de nós, de modo
que o único ser deste mundo que erra o seu fim é o homem.
Fata, com seu vestido de noiva nos braços, endoidece;

191
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Freguês conclui que mataram o homem que voltou as costas


à vocação, que garante ou justifica a unidade do humano.
No último quadro, o homem regressa esperado pela Vampa;
e, convencido, o homem compreende ter encontrado a
mulher que lhe completa, ou o sentimento inédito que
buscava: o amor.
As duas personagens da peça de Almada encontram-
se ligadas pela necessidade de realização humana, numa
fórmula cujo resultado contraria as leis da física ou da
matemática, como ciências exatas e incontestáveis: 1+1=1
– quer dizer: homem + mulher = realização (filho?); como
se através do amor o homem e a mulher se tornassem apenas
um, é a plenitude absoluta do ser, concretizada pelo
nascimento de um filho.
Confrontando as personagens em uma análise que
quebre os muros temporais, apontemos rupturas e
continuidades entre Abelardo I e o Homem-Protagonista.
O primeiro assume o papel de anti-herói, uma personagem
despojada de “heroísmos” por excelência, devido às
circunstâncias socioeconômicas nas quais está inserido. O
segundo torna-se herói porque cobiça uma fórmula, filosofa
em busca da compreensão de si mesmo e, finalmente, alcança
a realização (plenitude?), apesar de ter sido em uma cena
amplamente carnavalizada.
Há muito que se falar sobre os heróis, devido às
ambiguidades que lhes são decorrentes. O Homem-
Protagonista é modelado sob o estigma do herói tradicional,
aquele que passa e não se transforma em paradigma;
diferentemente, o herói mítico permanece e, ao longo do
tempo, transforma-se em arquétipo da humanidade.
Segundo Rosenfeld (1982), o herói deve ser
apresentado em termos “fotográficos”, stanislavskianos.

192
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Mas a personagem de Almada não é construída neste


sentido, pois é elaborada com o fim explícito de ser um
mito, resultando desse propósito a necessidade de
estruturá-la de modo seletivo, magnificado, esquemático e
universal, sem diferenciação psicológica. Tudo isso
contradiz radicalmente a concepção naturalista que pede
diferenciação empírica, caracterização detalhada, nuanças
e tiques, diminuindo a personagem, em vez de a magnificar.
O Naturalismo destina-se a dar à personagem (no caso
do herói) a máxima realidade empírica possível, ao passo
que o mito destina-se a dar-lhe a menor realidade empírica
possível. Por isso, o mito é a - histórico, visa sempre-igual,
arquétipo, e, sobretudo, não reconhece transformações
históricas fundamentais. Os fenômenos históricos são, para
ele, apenas máscaras através das quais transparecem os
padrões eternos. Sua visão temporal é circular, não há
desenvolvimento, mas interpretação de acordo com a época
em que é discutido. O mito salienta a identidade essencial
do homem em todos os tempos e lugares.

O primeiro problema (sobre o herói)4 é que Boal tem um


pouco de medo dele e o considera, não sem razão, perigoso.
Do outro lado, também com razão, parece julgá-lo muito
importante para o teatro, principalmente para o teatro
engajado que luta em favor de idéias sociais avançadas. A
longa argumentação em favor do herói, com a aplicação
discutível de exemplos tirados de Brecht, demonstra que é
com a consciência um pouco atribulada que recorre a este
ente mítico, atualmente não muito cotado. De algum modo
trata-o como um tigre que deve ser mantido dentro da jaula.
É por isso mesmo que o cerca de todo um aparelho crítico

4
Intromissão nossa.

193
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

distanciador para que não escape. E talvez seja por isso que
procura apresentá-lo de forma naturalista: para que o mito
não seja muito mítico. O fato, porém, é que toda a crítica não
visa ao herói, como tal, mas apenas aos erros do herói
fracassado (ROSENFELD, 1982, p. 25).

Sob a perspectiva de Rosenfeld, indiquemos


semelhanças e dessemelhanças entre Abelardo I e Heloísa
de Lesbos, Homem Protagonista e Vampa. Nessa direção,
podem-se analisar essas personagens em um patamar
fotográfico, porém diferente dos termos stanislavskianos.
O herói, nesta perspectiva, não é desvinculado de sua função
personagem e, por consequência, representa um setor da
sociedade positivo e negativamente (quando este se torna
vítima do processo sociopolítico e cultural).
Abelardo I e Heloísa são o retrato, posto em palco,
da realidade brasileira daquele momento histórico, pois
discute a queda da Aristocracia, que não conseguia mais se
manter altiva no sistema vigente; além disso, expõe a lenta
degradação da burguesia, que passo a passo buscava novos
aliados que lhe pudesse servir de tábua de salvação: a
aristocrática rural.
Contudo, esse retrato não é apresentado ao público
de maneira trivial, como era de praxe, mas
carnavalizadamente (no sentido discutido por Bakhtin, em
Problemas na poética de Dostoievski,1997) em paradoxos que
chocavam toda uma concepção de realidade e de visão
tradicional de personagem. Abelardo I é nome atribuído à
pessoa de nobreza, cuja numeração indica sucessão, fidalguia
(filho de algo, o que valia era o sangue, a nobreza, tal como
na Idade Média); é justamente essa personagem, com nome
de fidalgo, que representa, na peça de Oswald, os padrões
burgueses. Heloísa de Lesbos, representante da classe
194
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

aristocrata, tem um sobrenome um tanto duvidoso e que


nada se relaciona com aristocracia; Lesbos refere-se a
lesbianismo, que, segundo o naturalismo, é um tipo de
desvirtuamento, uma anormalidade patológica; A
personagem une-se a um homem por puro interesse
econômico, traços futuristas que anunciam uma nova e
breve produção teatral nacional.

O Homem-Protagonista e Vampa representam, numa


sociedade conservadora que era o grande Portugal, a união
de dois extremos. O Homem-Protagonista aparenta um
perfil fidalgo, que tenha ido até a boîte apenas para se divertir;
e lá conhece a Vampa, cujo perfil revela ser uma mulher da
noite, um tipo de mulher fácil, por quem se apaixona a
primeira vista. No decorrer do diálogo, o Homem inventa
um nome para Vampa: Fata. Desse modo, podemos fazer
alusão de Fata com fata (lidade), o destino ou fado, na
perspectiva da mitologia grega.
Mas o que chama atenção nessa relação (Homem-
Protagonista e Vampa) é a velocidade dos diálogos no
desenvolvimento da trama. Personagens de cunho futurista
aderem à modalidade rapidez, cujos contextos formais onde
aparecem estão divididos em atos e subdivididos em
quadros. Os quadros são curtos, objetivos, concisos e
transmitem, quase que num piscar de olhos, a mensagem
que se desejam discutir. Almada Negreiros insere as
personagens em pequenos quadros, onde eles
experimentam emoções e sensações diversas (e transmitem
tais emoções e sensações ao público); a impressão que
temos é a de que estamos diante de representações de uma

195
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

realidade corriqueira, porém camuflada pelos preconceitos


sociais.
Coelho (1996) observa que Vampa, como
representação de época, é apresentada com todos os
detalhes que singularizam a mundana parisiense. Esse tipo
de mulher se tornou o símbolo feminino da Belle Époque
(inclusive pela ousadia de fumar): mulher refinada, exótica,
ar desdenhoso, vícios excêntricos, aparentemente liberta de
interditos. Vampa Reforça essa imagem de mulher,
principalmente pelo fato de lhe terem “tirado tudo” (os
órgãos de reprodução, impedindo-a de ser mãe); por isso,
ficou “vazia como casca d’ostra” (ALMADA, 1997, p. 497).

A Vampa. Chamam-lhe a Vampa. É a mascote de nós todos.


Tem cá feito uma falta. É a primeira vez que aparece depois
da operação. Correu tudo muito bem. Deixou de ser mulher.
Dizem que deixou de ser mulher. Tiraram-lhe tudo, tudo,
tudo. Vazia como uma casca d’ostra.
[...] Tiraram-me todos os parafusos a mais. Vamos lá ver
como se agüenta a caranguejola. Recomeço o serviço. Aqui
me têm. Estou mais levezinha. Sem contrapesos. Vamos
levar isto com gênica até ao fim (NEGREIROS, 1997, p.
497).

Os esquemas psicológicos que desenham as


personagens de Deseja-se Mulher e O Rei da Vela fazem uma
projeção universalizada, magnificando-as numa realidade
empírica que as tornam arquétipos, o que nos permite
marcar essencialmente um determinado ponto de nossa
história: frustração nas relações homem/mulher e
proliferação do capitalismo selvagem.
Sob a perspectiva de Boal (1975), essas personagens
estariam localizadas, em sua realidade empírica, no teatro

196
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

engajado, aquele em que se luta em favor de ideias sociais


avançadas. Esse pensamento de Boal vem ao encontro do
que Almada e Oswald promoveram em suas peças, o
político-social interagindo, através da obra de arte, com a
crítica coletiva de um aspecto atual, contemporâneo ao
contexto onde vivem seus autores.
Pensar as personagens como representação de uma
determinada época é discutir o processo de mimese, em
que não se compreende mais a arte pela arte, mas como um
produto que está impregnado de concepções de vida e de
sociedade; temos, portanto, personagens que nutrem
qualidades, anseios e defeitos humanizados.

O problema do herói é básico e não pode ser facilmente


descartado. Boal tem razão ao lhe dar considerável importância.
Teria sido conveniente, talvez, focalizar com igual atenção o
problema do mito (do herói mítico, portanto). Trata-se de
questões legítimas, de relevo tanto para o teatro em geral como
em especial para o teatro engajado; questões que decerto não
são de fácil solução. A poética de Boal, todavia, não parece
abordar o assunto com suficiente empenho. É de qualquer
modo característico que procure justificar o herói, polemizando
contra o anti-herói da dramaturgia moderna e esforçando-se
por redefini-lo em termos sociológicos: “cada classe, casta ou
estamento tem o seu herói próprio e intransferível”. Há o herói
feudal. E há o herói burguês (o que soa um pouco paradoxal,
fato bem sintomático o burguês, quando herói, não é lá muito
burguês. O fato de talvez haver burgueses heróicos não implica
que haja heróis burgueses). E há o herói proletário
(ROSENFELD, 1982, p. 28).

A retomada de Rosenfeld permite trazer à tona, com


mais profundidade, a questão do herói. O Homem-
Protagonista e Vampa, Abelardo I e Heloísa são

197
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

construídos sob a visão futurista, pois nutrem características


que os descartam da árdua tarefa de continuidade. Na
verdade, fazendo jus ao futurismo, que foi o mais político e
violento dos ismos, as personagens rompem com a tradição
vigente. Os dois últimos estão num contexto burguês e,
por isso, diante do sistema, eles tem uma ação contrária,
antagônica a sua classe. Se a sociedade burguesa explora o
proletariado, o herói burguês deveria contrariar esse
paradoxo, o que não foi o caso dos Abelardos e Heloísa.
Nesse sentido, as personagens de O Rei da Vela
comportam-se como vilões, porque são burgueses e se
comportam como tais. Tem o desejo pela ascensão e poder,
personagens capitalistas que exploram o proletariado e se
sentem vitoriosos em aumentar suas riquezas pela
exploração do mais pobre. Um caso típico da drenagem
de renda de baixo para cima.

ABELARDO I: O senhor sabe, o sistema da casa é reformar.


Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros [...]
Vivemos disso. O senhor cometeu a maior falta contra a
segurança do nosso negócio e o sistema da casa [...] No
capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!
O CLIENTE: Mas eu já paguei mais do dobro do que levei
daqui [...] (ANDRADE, 1976, p. 13, 14, 15).

Um problema faz-se mister: qual o sentido de se ter


heróis na sociedade moderna? Esta indagação parte da
constatação de que em O Rei da Vela Oswald utiliza vilões
na função de protagonistas, em uma literatura engajada
como a futurista. Brecht comenta: “feliz o povo que não
tem heróis”, mas Boal completa: “Nós não somos um povo
feliz. Por isso, precisamos de heróis”, e para finalizar
momentaneamente a questão Nathaniel Hawthorne resume:

198
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

“Um herói não pode ser herói a não ser num tempo heróico”
(Apud ROSENFELD, 1982, p. 29).
Em O Rei da Vela é, justamente, a presença do vilão
que possibilita a denúncia social. Na verdade, ele é o
instrumento para que se atinja o fim específico: refletir
injustiças sociais, pelas quais causavam a ascensão da
burguesia e a intromissão do estrangeirismo na cultura
econômica brasileira.
Futuristas assumidos, Almada e Oswald desenham
personagens populares para um teatro popular, cujo alvo
de crítica é a burguesia, a aristocracia em decadência e o
Capitalismo. Com base nas peças desses autores, podemos
dizer que um teatro atual e popular não deve abandonar o
propósito de abarcar as angústias e as preocupações do
povo. É a literatura e arte na sua função social, que, entre
outras questões, resguarda a defesa dos interesses do povo,
apresentando a realidade analiticamente, interpretando
criticamente, para enfim conscientizar o público. Tais
características são as norteadoras do teatro político, em
todos os países nos quais ele se desenvolveu.
Rosenfeld (1982) menciona que o teatro popular também
pressupõe entretenimento ao público através da sátira, da
paródia, da farsa, da caricatura e de todos os recursos da ironia,
do sarcasmo e da comicidade; essas características, sem dúvida,
são eficazes na elucidação do conteúdo da obra, por meio do
desmascaramento e da desmistificação de tabus, das
convenções estéreis e mitos nocivos.
Neste tipo de teatro, o herói é quase que irrelevante. A
comicidade, em compensação, recorre a qualquer tipo de
Arlequim popular. Desse modo, o bobo costuma gozar
de ampla liberdade e foi por meio da história do teatro,
mesmo em época de opressão, que personagens dessa

199
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

categoria transformaram-se em um recurso excelente para


criticar a realidade, com o propósito de se dirigir mais à
inteligência do que à emoção. Mesmo supondo que a risada
seja um desabafo cartático, uma libertação inócua e, por
isso, em certa medida, um meio de atingir o público através
da descarga festiva, a comicidade, quando manipulada com
lucidez, pode ser uma arma demolidora.
Em O Rei da Vela, as personagens são pensadas em
moldes satíricos e carnavalescos, uma combinação de
comicidade e tragédia. Oswald usa a sátira e a ironia como
técnica de ataque à aristocracia e à burguesia. O autor
apresenta dramas humanos, tais como: o desregramento
de todos os familiares de Heloísa, bem como a forma como
se dá a sucessão dos Abelardo. Soma-se a isso Heloísa,
personagem que vive o drama do empobrecimento de sua
classe, tornando-se oportunista. Casa-se com Abelardo I,
mas quando este morre, une-se a Abelardo II, a fim de
assegurar a posição social da família:

ABELARDO II: Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!


(Heloísa hesita um instante perto do morto, depois ampara-
se sobre o ombro de Abelardo II que a mantém estreitamente
no centro da cena. Ouvem-se os acordes da Marcha nupcial
e uma luz doce focaliza o par. Aparecem então em fila, vestidos
a rigor, os personagens do segundo ato que, sem dar atenção
ao cadáver, cumprimentam o casal enluarado, atravessando
ritmadamente a cena e se coloca por detrás dele, ao som da
música. O fascista saúda à romana...) (ANDRADE, 1976, p.
118-119).

Abelardo I deixa de ter importância, como se vê na


descrição acima, que constitui o fechamento da peça teatral.
Heloísa e Abelardo II prometem, pelo enlace matrimonial, a

200
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

continuidade do reinado das velas e a vitalidade da burguesia/


aristocracia na sociedade moderna. Conforme Lúcia Helena
(1985), o “trono” de Abelardo I, “o rei da vela”, é um
verdadeiro palco circense, aparecendo em seu próprio
escritório de usura um domador de chicote nas mãos, seu
alter-ego (na figura de Abelardo II). Mas o poder de
Abelardo I não pertence a ele mesmo, posto que é transferível
a Abelardo II, que urde sua morte e se apossa de seus bens,
além de casar-se com Heloísa, celebrando a aliança entre o
capitalismo em ascensão e a oligarquia em crise.
A família do coronel Belarmino, pai de Heloísa, é um
desfilar de seres que exibem o ataque de Oswald aos
diversos setores da sociedade brasileira e aos seus
preconceitos; e também ao conceito de família burguesa,
ciosa de suas hipocrisias expressas nos códigos de
convivência social, apenas aparentemente respeitados. Desse
modo, Totó Fruta-do-Conde é o irmão pederasta; Joana-
João-dos-Divãs, a irmã de cama fácil; dona Cesária, a mãe,
quatrocentona de alta linhagem, mas que mantém com o
futuro genro uma relação por demais “amistosa”; Tia Polaca
(também conhecida por Polaquinha, numa referência às
prostitutas francesas da época) é a defensora do bom nome
e do comportamento aristocrático, mas que, ao mesmo
tempo, mostra-se encantada com a capacidade sedutora de
Abelardo I; Perdigoto, o irmão beberrão e fascista; Pinote,
o intelectual comprometido com as elites que retrata e das
quais depende.

VI

Entre O Rei da Vela e Deseja-se mulher pode-se


considerar, portanto, a ausência da unidade tradicional, que,

201
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

como já mencionamos, é substituída pela sequência solta


de cenas. As peças apresentam episódios de certo modo
independentes, cada qual com sua própria significação,
porém alinhavados pela necessidade de continuidade e
desfecho. As personagens atuam em diversos e diferentes
settings; em Deseja-se Mulher, por exemplo, as cenas podem
confundir o expectador, que necessita de raciocínio lógico
e interpretativo para se situar no jogo de ações.
Vê-se, sobretudo, a influência de Marinetti na forma
como tais peças foram estruturadas. Há uma tentativa de
captar o movimento de massa, o conflito das classes e a
luta de ideias, fazendo do palco uma espécie de laboratório,
restrito à análise minuciosa do comportamento humano.
Esses indicativos fazem de Deseja-se Mulher e de O Rei da
Vela peças futuristas, pioneiras nas literaturas de língua
portuguesa, no tratamento de temas sociopolíticos e
existenciais do modernismo.

REFERÊNCIAS

ALMADA NEGREIROS. Obra Completa. volume único, org. Alexei


Bueno, introdução de José Augusto França. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1997.
ANDRADE, Oswald. O rei da vela. São Paulo: Victor e Civita,
1976.
ARISTÓTELES. La poétique. Trad. M. Magnien, Paris, Le Livre de
Poche, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução
de Paulo Bezerra. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

202
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

COELHO, Nelly Novaes. “A Imagem Degradada da Mulher em


Almada Negreiros – Entre a Ótica Modernista e a Tradição
Herdada”. Pronunciamento realizado durante o Colóquio
Internacional Almada Negreiros. Porto, 14 de dezembro de 1996.
HELENA, Lúcia. Totens e Tabus da Modernidade Brasileira: símbolo e
alegoria na obra de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1985.
MAGALDI, Sábato. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
MAGALDI, Sábato. O Texto no Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,
2001.
PRADO, Décio de Almeida. A Personagem no Teatro. In
CANDIDO, Antonio. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva,
1985.
PRIORI, Marry Del. História das mulheres no Brasil. 2ed. São Paulo:
Contexto, 1997.
RODRIGUES, Agnaldo. O Futurismo e o teatro. Tangará da Serra:
A.R Editora, 2003.
ROSENFELD, Anatol. O Mito e o Herói no Moderno Teatro Brasileiro.
São Paulo: Pespectiva, 1982.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: DIFEL,
2001.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo
Brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios
e conferências vanguardistas, de 1857 até hoje. 7ed. Petrópolis: 1983.

203
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

204
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

DIÁRIO DA CONQUISTA DE VERA


CRUZ: O FASCÍNIO DO MAR, O GOSTO
DO PODER E O SAL DAS VICISSITUDES1
BENJAMIN RODRIGUES FERREIRA FILHO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO (UFMT)

Portugal, no ano de 1500 do calendário cristão, está


em plena expansão imperialista, portanto suas forças
políticas e econômicas modificam o mapa geopolítico da
época: enfraquecem e rompem limites territoriais e
1
Este trabalho está ligado ao Projeto de Pesquisa “Brasil e Portugal: o processo
colonial”, desenvolvido na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus
Universitário de Rondonópolis, por sua vez vinculado ao Grupo de Pesquisa “As
vicissitudes da civilização brasileira”, cadastrado no Conselho Nacional de

205
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

simultaneamente traçam novas linhas e fronteiras, que não


serão definitivas ao longo da história, é claro. Como há
uma dinâmica de combate entre culturas, fronteiras culturais
também serão impostas, rompidas, transformadas, no
processo de colonização. Necessariamente ligadas ao poder,
as fronteiras são cambiáveis, contraem-se, dilatam-se,
fortalecem-se e se dissipam. As ações humanas delineiam
riscos ambivalentes, contraditórios — estranhos e familiares
— no ambiente em que vivem.
É em 1500 que os navegadores portugueses chegam
ao Brasil e modificam decisivamente a configuração que
encontram, pois introduzem no novo ambiente elementos
bem estranhos a toda a organização humana — ancestral
— ali estabelecida. O lugar que alcançam é habitado por
seres humanos que têm um modo particular de viver e de
se relacionar com o mundo, uma cultura própria, muito
diferente dos hábitos europeus e das “avançadas”
características da conduta ocidental. A terra é nova em
relação aos espaços comumente explorados pelas
civilizações tradicionais da época, pois, embora navegantes
de outros tempos já tenham ousado buscar mares

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 2010. Inicialmente foi


pensado como uma espécie de roteiro de cinema, um escrito híbrido que, sendo
“científico”, rompesse com o cientificismo acadêmico e trouxesse um enfoque
relativamente leve ou poético para um assunto histórico pesado, como todos os
assuntos históricos, afinal. Roteiro de cinema (especular, caleidoscópico, mágico),
metáfora impura, palimpsesto borrado, seria, pois, um texto aberto às facetas e
dimensões míticas, afetivas e até mesmo fantásticas, que não estão ausentes da
história. Sendo parcial, está muito longe de dar conta mesmo de pouca parte do
“vasto mundo” teórico que implica, embora represente já um segundo resultado
dos estudos sobre as primícias da ocidentalização brasileira — o primeiro é “Salvar
essa gente: opinião expressa do escrivão estrangeiro” (FERREIRA FILHO, 2009).
O resultado é ingênuo? Insano? Insatisfatório? Cabe ao leitor fazer sua própria
viagem e avaliar o curso.

206
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

desconhecidos e regiões longínquas, a geografia de fins do


século XV tem os seus limites e além dos marcos conhecidos
está o indefinido, que provoca medo e terror.
Há quanto tempo o homem navega? O pensamento
historiográfico de Fernand Braudel (2001, p. 97-98) imagina
“os primeiros marinheiros na noite dos tempos” e realça a
impossibilidade de alcançá-los: “Seria apaixonante assistir
às primeiras ‘navegações selvagens’ que, no Mediterrâneo
e fora dele, afrontaram os perigos do mar. Não contemos
com isso!”; porém tenhamos algumas datas como
referência: “As primeiras navegações devem ter começado
muito cedo, entre o X e o VII milênios. Mas as provas são
frágeis”. De toda maneira, há séculos e séculos antes de
Cristo o comércio marítimo já está estabelecido: “É o ouro
do Egito ou o metal branco da Babilônia que dão origem
ao Mediterrâneo das trocas, aquele que se desenvolverá
plenamente com o II milênio”; lembrando que “a navegação
do II milênio supõe outras navegações mais pobres, muito
anteriores à glória dos faraós” (BRAUDEL, 2001, p. 94).
Não se trata de estabelecer marcos cronológicos precisos.
Mas convém não ignorar que no coração da história se
esconde uma navegação que se perde na escuridão das eras.
E a expansão marítima liga-se à obscuridade remota.
Como reforça Pierre Chaunu (1994, p. 193), “Não
teriam os portugueses conseguido em quinze anos controlar
a metade das trocas no Oceano Índico, se não tivessem
incorporado e ultrapassado toda uma experiência milenar”.
Também Cariri Jaguaribara (ou seja, Capistrano de Abreu)
filia a marinha portuguesa a próximas e distantes
experiências instrutivas do passado. Para ele, a grande
quantidade de viagens no mar Mediterrâneo acaba
colaborando progressivamente com a perícia dos

207
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

marinheiros; a arte náutica, conforme se desenvolve,


melhora as embarcações; com a invenção da bússola, as
costas são fixadas com exatidão pelas cartas marítimas;
desde o século XIV, genoveses e venezianos viajam
regularmente do Mediterrâneo para o Atlântico, ocupados
na carreira de Flandres, importante foco industrial têxtil; à
meia distância entre Itália e Flandres, graças a sua posição e
a seu porto privilegiado, Lisboa torna-se escala dessa rota;
a partir do contato com os estrangeiros, o exemplo é logo
seguido e a cobiça leva à imitação, o que propicia a
contratação de mestres italianos; “começou-se e consumou-
se rápida a aprendizagem; em poucos anos surgiu vigorosa
a marinha portuguesa. Os primeiros anos do século XV
mostram-na sólida e apta para as maiores empresas”
(ABREU, 1999, p. 126).
A aventura lusitana pelo Mar Tenebroso afora se
desenvolve após milênios de técnicas de navegação. Os
habitantes da terra encontrada pelos portugueses —
inicialmente chamada de Vera Cruz, depois de Santa Cruz
e finalmente de Brasil — são vitalmente ligados a ela; nela
estão enterrados os seus antepassados; ela é a base
aparentemente segura da dinâmica dos seus ânimos e das
suas crenças. Como entra na lógica política e econômica
das disputas entre pretendentes diversos, ela passa a ser
submetida a outra ordem de pertencimento: a coroa, o
poder, a lei da igreja e as armas assinalam a conquista
portuguesa. As tribos humanas dali, que antes também
guerreavam entre si, ou seja, não viviam abençoadas por
uma paz paradisíaca, agora enfrentam uma invasão
desconhecida. Se a chegada dos portugueses é relativamente
pacífica nos contatos iniciais, logo se manifestarão o conflito,
a violência, a exploração e até o extermínio.

208
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel,


datada de primeiro de maio de 1500, registra a chamada
“viagem do descobrimento” — e todos sabem que a
palavra “descobrimento” implica muitos problemas. A
carta de Caminha é um escrito muito importante, tanto que
Sílvio Castro (2003, p. 33) considera que tenha passado “de
documento a monumento”, “um documento perene da
mais moderna cultura humanista de Portugal”. Possui valor
histórico e literário, pois realça vestígios das ações
portuguesas por aqui empreendidas logo no início do
processo de colonização (que se desdobrará em novas
vicissitudes históricas) e é considerada uma obra do
Quinhentismo brasileiro, nessa ligação inicial que a literatura
brasileira tem com a literatura portuguesa. Uma viagem é
narrada no texto de Caminha; uma viagem pode ser
empreendida com a leitura da carta.
Nove de março de 1500, segunda-feira. A frota comandada
por Pedro Álvares Cabral parte de Lisboa. Apesar das
lágrimas de despedida, é um dia solene e alegre, prelúdio
de uma das maiores viagens da história, preâmbulo de
atribulações, naufrágios e perdas que marcarão para sempre
os heróis sobreviventes.
As “Palavras de pórtico” expressam uma mensagem
assim: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
‘Navegar é preciso; viver não é preciso’”2. Navegar é preciso?
Os naufrágios indicam que navegar não é preciso, “exato”,

2
O famoso texto de Fernando Pessoa “Palavras de pórtico” aparece como epígrafe
da introdução à edição brasileira de sua Obra poética. A introdução recebe o título
“Fernando Pessoa, encontro de poesia” e é assinada pela organizadora do livro,
Maria Aliete Galhoz. Em nota de rodapé, ela se refere ao poema como “nota solta”
e assinala: “Esta nota solta, e não assinada, foi publicada, pela primeira vez, na
primeira edição deste volume” (GALHOZ, 1998, p. 15).

209
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

“correto”, “razoável”; a faina marítima não é exercida “sem


erro” ou “sem acidente”. As necessidades ocasionais
demonstram que navegar é preciso, “necessário”, “urgente”,
“indispensável”; mas as necessidades ocasionais são
determinadas por conveniências prementes para o momento,
mas que, vistas em certa perspectiva, podem ser até
consideradas irrisórias; no entanto, no momento, são
decisivas e se o valor do empreendimento é alto sob certo
prisma e ridículo sob outro ângulo, o valor relativo
(principalmente a eventual inutilidade) da tarefa não impede
o transcurso de toda uma história da navegação (muito menos
a física da navegação dos astros e de tudo quanto é). Se
navegar, no entanto, implicar os maiores perigos; se navegar
implicar a morte dos nautas? Navegar é preciso? Viver é
preciso? Viver não é preciso, “exato”, “correto”, “razoável”,
nem mesmo para a pessoa mais metódica e previsível, pois
seu controle está entre inúmeras possibilidades e o acaso paira
sobre a existência e a surpresa espreita e forças randômicas
estão ao redor. Viver é preciso, “necessário”, “urgente”,
“indispensável”, para todo ser vivo, pois a vida quer vida; e
mesmo quando a vida desiste da vida, pede a morte, busca a
morte, junta-se à morte, o corpo sem vida continua
alimentando a vida, de alguma maneira, com sua volta ao
húmus; a vida que diz “viver não é preciso”, negando o fato
biológico, avalia a vida pulsando como vida. Viver,
“aproveitar a vida”, “buscar o melhor da vida”, “passar bem
o tempo de vida” — é preciso? É possível? De tal maneira a
vida é tragada por fatos e fatores tão mesquinhos e
determinantes que o que ela pode ter de sublime fica reduzido
ao útil ou ao funcional. E o que pode ser grandioso?
As naus, com os seus nautas, estão a postos. Tal como
havia ocorrido na ocasião da saída dos navios de Vasco da

210
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Gama em 1497, Lisboa está envolvida pela exaltação que o


ensejo provoca. Tucídides também registra, em Atenas, uma
ocasião de muita comoção popular, quando os atenienses
partem em expedição contra a Sicília, na Guerra do
Peloponeso. Toda a cidade participa da preparação e da
partida. Eis que a frota vai zarpar e a viagem é decisiva.
Para todos. Todos estão envolvidos, emocionalmente, com
o acontecimento. Algo crucial, com resultados fatais, está
em andamento.
Em oito de março de 1500, domingo, no bairro de
Belém, em Lisboa, uma grande movimentação acompanha
a preparação da gente de armas da frota de Pedro Álvares
Cabral. Segundo João de Barros, está presente o próprio
rei Dom Manuel, com sua corte, no Restelo, onde é rezada
uma missa a Nossa Senhora de Belém. A bandeira da cruz
da ordem da Cavalaria de Cristo é benzida por Dom Diogo
Ortiz e entregue pelo rei ao capitão-mor. Todos formam
uma procissão e acompanham os navegadores até a praia,
onde os capitães beijam a mão de Dom Manuel e se
despedem. É uma grande solenidade, da qual toda a cidade
participa. Os terrenos e praias de Belém, enfeitados de
homens e barcos coloridos, mais parecem campos floridos.
O domingo é festivo e a música se espalha pela atmosfera.
A frota está preparada, batéis rodeiam as naus, pessoas se
movimentam, contemplando a cena e compondo a história.
A saudade, a perda e o sofrimento não estão ausentes
do processo de expansão da Coroa Portuguesa, que
acumulou suas catástrofes. Muitos patrícios sumiram,
tragados pelas ondas, muitos se perderam pela distância
afora, muitos morreram diante de companheiros de
jornada. E tantos ainda vão se extraviar, ao longo da história,
perdendo-se para sempre seus corpos de seus entes queridos,

211
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

os quais não os verão mais, não os velarão, nem os


sepultarão. Por isso o velho do Restelo protesta, em Os
lusíadas, e recrimina os empreendimentos de conquista; no
poema de Luís Vaz de Camões (um náufrago, por sinal), o
louvor épico não elimina completamente o pensamento
crítico, portanto o lamento irado do idoso provém do veio
filosófico do poeta, discutido por Egídio Namorado, Luís
de Sousa Rebelo, Roger Walker e João Mendes (1979), por
exemplo. Por isso, com relação à descoberta de Vasco da
Gama, concordando, depois, com o velho do Restelo,
“aqueles que perderam pai, irmão, filho, ou parente nesta
viagem, cuja dor não deixava julgar a verdade do caso” 3,
na maneira de ver de João de Barros (1988, p. 169), são
contrários ao prosseguimento da expansão marítima. Na
Roma antiga, os dissabores do mar traumatizam Horácio,
o poeta festivo, a ponto de ele adotar como regras para si
o sossego e a anti-viagem: “Ele detesta, em particular, a
viagem desnecessária que põe em risco a vida humana,
especialmente a viagem por mar, a mais desabusada de
todas” (TRINGALE, 1995, p. 152).
De onde vem o sal do mar? Em 1497, por ocasião da
partida de Vasco da Gama, os portugueses, em procissão,
3
O plano inicial para as citações diretas dos textos históricos em português
consultados era reproduzir fielmente o registro sincrônico da língua portuguesa
constante nas fontes, a escrita da época. As dificuldades de ordem gráfica, no
entanto, impediram a realização deste projeto e então os trechos citados estão
atualizados, mas uma pequena tentativa de ser fiel ainda permanece. Realmente, os
problemas paleográficos são muitos, começando pela transcrição. A carta de
Caminha, por exemplo, atualizada, apresenta, evidentemente, variações: “Posto
que o Capitão-mor desta vossa frota, assim como os outros capitães, escrevem à
Vossa Alteza sobre a nova da descoberta desta vossa terra nova [...]” (texto editado
e atualizado por Maria Angela Vilela); “Posto que o Capitão-mor desta vossa frota
e assim igualmente os outros capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do
achamento desta Vossa terra nova [...]” (texto atualizado por Silvio Castro).

212
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

estão envolvidos na solenidade do embarque. João de Barros


(1988, p. 125-126) informa que

foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia
posse das muitas que nela se derramam na partida das armadas
que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia
descobrir: donde com razão lhe podemos chamar praia de
lágrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vêm.

As lágrimas derramadas são dos navegantes, do povo


e de todos. Não são vertidas apenas no porto de Lisboa:
os mares distantes também as recebem. Assim, em 1500,
quando a frota comandada por Pedro Álvares Cabral está
prestes a partir, “o coração de todos estava entre prazer e
lágrimas: por esta ser a mais formosa e poderosa armada
que até aquele tempo para tão longe deste reino partira”,
como formula João de Barros (1988, p. 171). A cada
empreendimento naval de conquista ou comércio há o
mesmo sentimento.
No livro História trágico-marítima, que traz relações de
naufrágios e perdas de navios portugueses em batalhas,
desde 1552 até 1602 (narrações compiladas por Bernardo
Gomes de Brito), o enfoque recai especialmente sobre o
desastre. As lágrimas de Portugal estão ali. Os náufragos
sobreviventes olham do chão desconhecido da África a
carcaça de sua nau, parte da terra lusa distante (naufrágio
do galeão São Bento). Estão molhados os olhos assombrados
do capitão Jorge de Albuquerque Coelho, que ouve o pedido
dos marinheiros famintos para comerem os cadáveres dos
companheiros; na mesma embarcação, estão igualmente
úmidos os olhos de todos os nautas que vêem seu pedido
de socorro ser negado pelos tripulantes portugueses de uma
caravela que passa, apressada (naufrágio de Jorge de
213
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Albuquerque Coelho). A nau Santiago está quebrada,


perdida, no meio da noite, ao som do bramido do mar,
dos estalos da madeira, da gritaria desesperada e da
confissão chorosa de seus passageiros aos religiosos
(naufrágio da nau Santiago). Os marinheiros do galeão
Santiago, que está afundando depois de ser atacado por
holandeses, juntam o sal que derramam dos olhos às águas
salgadas que tomam o navio; Melquior Estácio do Amaral
(que escreve os sucessos do galeão Santiago e da nau Chagas,
isto é, os malogros dos dois navios), discutindo as causas
dos desastres que se abatem sobre as embarcações da Índia,
diz que as lástimas pelas muitas naus que se perdem por
cobiça devem ser choradas com lágrimas de sangue (batalhas
do galeão Santiago e da nau Chagas). Aliás, Melquior Estácio
do Amaral, sempre em seu capítulo da História trágico-
marítima (“Tratado das batalhas, e sucessos do galeão Santiago
com os holandeses na ilha de Santa Helena, e da nau Chagas
com os ingleses entre as ilhas dos Açores: ambas capitanias
da carreira da Índia; e da causa, e desastres, porque em vinte
anos se perderam trinta e oito naus dela”), aponta os
problemas técnicos que provocam tantos desastres navais,
como contenções perigosas de despesas na construção e o
exagerado abastecimento de mercadorias no transporte,
visando maior lucro; para ele, a cobiça funesta põe a perder
naus, riquezas e excelentes homens de ofício, habilitados a
trabalhar com mestria na marinhagem, que fazem muita falta
para os empreendimentos portugueses. Portanto muitos
infortúnios poderiam ter sido evitados, se não fosse a gana
econômica, que está acima da técnica, da sociedade e do
Império. É recorrente nos diálogos de Sócrates a imagem
do piloto hábil e competente, como neste ponto dos Ditos
e feitos memoráveis de Sócrates, de Xenofonte: “numa travessia,

214
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

escutam os que navegam aquele que consideram o melhor


piloto” (PLATÃO; XENOFONTE; ARISTÓFANES,
1987, p. 102); o melhor piloto é um modelo — em Platão,
por sinal, associado ao melhor político. As grandes viagens
da Coroa requerem essa gente prestimosa, mas a glória
marítima portuguesa, infectada da ganância econômica,
exige suas hecatombes. Tanto que o soldado prático de
Diogo do Couto (1980, p. 122) reclama: “Mas é esta nossa
nação tão coitada, ou tanto pera pouco, que trabalhamos
por nos aniquilarmos uns aos outros”.
A secreção lacrimosa de todo um povo acrescenta mais
sal ao sal do mar (mesmo que os portugueses chorem sobre
as águas do Tejo, o Tejo carrega consigo as lágrimas para o
Mar Tenebroso). A face triste e trágica dos estragos e das
desventuras também faz parte do glorioso conjunto das
conquistas. São esses elementos aflitivos que orientam as
palavras do tão citado poema de Mensagem, de Fernando
Pessoa (1998, p. 82):

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Amigos, filhos, pais, noivas, mães. Quem fica sente falta


daqueles que o mar levou. Complexo, o afeto humano
demanda sentimentos e espasmos. Mães que perdem filhos,
que reação podem ter, dentro da ausência madre? Em
Madona dos páramos, um romance sertanejo, Ricardo
Guilherme Dicke (2008, p. 407) compõe uma passagem
sobre mãe, lágrima, sal e mar: “Pense na tua mãe, lágrimas
215
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

na noite retumbando — o que é o inefável? —, rios de


estrelas fluindo e transmigrando, para onde? Onde poderias
viver outra vida a não ser ao seu lado?”; é uma composição
sacra: “Todas as mães são as amadas de Deus, em multidão,
abençoando o mundo”; as lágrimas das mães têm relação
com o mar, são como um túmulo, são mais que um túmulo
acolhedor que guarda, na lembrança, o ser, o filho, são ainda
mais que isso: “Suas lágrimas do sal, do oceano mais
genuíno, são maiores que todos os túmulos lembrados na
Solidão, granito e aço erguidos contra todos os
esquecimentos”; sagrada, mítica e cósmica é a maternidade
que lança a vida na existência: “Felizes nós, filhos das nossas
mães e dos deuses que com elas se deitaram. Deuses e
deusas, nós, titãs filhos da Terra e do Caos, filhos do Acaso.
Todas as probabilidades emergem no mar do Acaso”.
Lágrimas, mar, vida: a navegação possui muitas dimensões:
históricas, cósmicas, míticas. Sim.
Navegação e naufrágio caminham de mãos dadas na
história. As lágrimas humanas banham o mar bem antes da
constituição do império lusitano. Sem dúvida, o receio dos
portugueses procede. O povo, comovido, no momento
festivo da partida da frota de Cabral, tem os seus motivos
de pranto, conscientes ou não. Na Odisséia e na Eneida, que
trazem informações lendárias e históricas, a dor e a perda,
ligadas aos perigos do mar e aos naufrágios, são constantes.
Entre tantas imagens que poderiam ser citadas, basta
lembrar que a mãe de Ulisses morreu de saudade e de
apreensão, porque seu filho, um marinheiro, estava perdido,
quiçá morto, no mar, como ela informa, já no Hades,
diretamente ao filho querido, que desce vivo ao mundo dos
mortos, para evocá-los: “foram, sim, as saudades de ti, as
preocupações a teu respeito, nobre Ulisses, a minha ternura

216
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

para contigo que me tiraram a vida doce como o mel”


(HOMERO, 1978, p. 104). Na Eneida, quando as troianas
que acompanham Enéias estão na praia, chorando a morte
de Anquises e deplorando o cansaço das fadigas
insuportáveis do mar, elas ouvem as convincentes palavras
de Íris (disfarçada), enviada por Juno: “Desde então temos
percorrido todas as ondas, todas as terras, uma quantidade
de rochedos inospitaleiros e climas tempestuosos, e,
joguetes das ondas, perseguimos através do mar imenso
uma Itália que se furta sem cessar” (VIRGÍLIO, 2003, p.
136). As lágrimas salgadas são copiosas, tanto na Eneida
quanto na Odisséia.
Em nove de março de 1500, pois, parte a armada
chefiada por Pedro Álvares Cabral, constituída por treze naus,
comandadas por: 1) Pedro Álvares Cabral (capitão-mor), 2)
Sancho de Tovar, 3) Simão de Miranda, 4) Aires Gomes da
Silva, 5) Vasco de Ataíde, 6) Pero de Ataíde, 7) Nicolau
Coelho, 8) Bartolomeu Dias, 9) Pero Dias, 10) Nuno Leitão,
11) Gaspar de Lemos, 12) Luiz Pires e 13) Simão de Pina.
João de Barros (1988, p. 171) informa que “Seria o número
da gente que ia nesta frota entre mareantes e homens de armas
até mil e duzentas pessoas”. A frota se afasta de Lisboa, sai
do Tejo e penetra no mar. Rumo ao sul, desce pela costa
portuguesa, passa ao largo do estreito de Gibraltar, deixando
para trás a península Ibérica, sem entrar para o mar
Mediterrâneo, pois avança para o cabo da Boa Esperança.
Catorze de março de 1500, sábado. Os navios se
aproximam das ilhas Canárias. Durante todo o dia, de perto,
de longe, os navegantes ficam entre elas, contemplando os
pontos de terra salpicados na massa marítima. Os nautas,
entretanto, não têm tempo para o arquipélago. Nem
Caminha. A missão lança à frente os navegantes lusitanos.

217
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

A pressa se estenderá, logo mais, também às ilhas de Cabo


Verde: a viagem prossegue: “As reservas de água estavam
intactas nesse período úmido e fresco de março, e a nova
Volta empreendida supunha que, reconhecidas as balizas
das Canárias e de Cabo Verde, se passasse adiante sem
perder um momento no caminho” (CHAUNU, 1984, p.
139). Vale a pena, no entanto, olhar para as ilhas, dispostas
em conjunto. Se pudéssemos tomar uma distância, de uma
posição aérea, inclusive, e observá-las com calma... Assim
como viajamos, não podemos contemplar o painel
geográfico que elas dispõem, senão em fragmentos. A Gran
Canaria é a mais próxima de todas quantas são vistas, ao
longo da longa viagem que transcorre. O céu, o mar e as
ilhas. As naus se movem no quadro. As cores e os sons
estão em volta. A brisa resvala na pele.
Como informa José Manuel Azevedo e Silva, em 1500,
as Canárias já pertencem à Espanha, como reconhecem o
Tratado de Alcáçovas (1479) e o Tratado de Tordesilhas
(1494). Segundo ele, as Canárias são conhecidas desde a
Antiguidade, quando eram consideradas o limite ocidental
do mundo; as ilhas que os gregos chamam de Makaron e os
romanos de Afortunadas são comumente tidas como as
Canárias. Leonardo Torriani, engenheiro italiano a serviço
do rei de Espanha nas Canárias, escreve no final do século
XVI o seu estudo Descrição e história do reino das ilhas Canárias.
Tem a obrigação de descrever tecnicamente e fortificar as
ilhas e concebe um livro de história, recorrendo ao
“monumento das letras” para adorná-lo e tornar mais
agradável a “exigüidade do assunto”, segundo informa ao
rei Filipe II, no proêmio.
“As ilhas Canárias, antes ditas Afortunadas, são famosas
entre quantas banha o mar, do índico Oriente ao Ocidente

218
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

mouro, pela menção que delas fizeram antigos poetas,


historiadores e geógrafos”, escreve Torriani (1999, p. 7).
Com as palavras de Torriani — “Estas ilhas, antigamente
(segundo Plínio e outros) foram chamadas Afortunadas pela
grandíssima fertilidade e abundância de frutos, pela
constância do clima, pelos suaves e úmidos ventos e pela
pureza e temperança do ar” (1999, p. 13) — a viagem
prossegue. A natureza abarca a aventura. A brisa espalha o
sal do mar.
Vinte e dois de março de 1500, domingo. Os nautas avistam
as ilhas de Cabo Verde — essas ilhas, montes de terra que
emergem das profundezas do mar, que submergem no azul
do mar. Aquela ali, o piloto Pero Escolar diz ser a ilha de
São Nicolau. Fale de suas viagens, Pero Escolar. O tempo
passa sem pressa e sem vagar, seu ritmo pertence à própria
cronologia absoluta, independente das noções humanas. O
mar é o imenso mar que abarca todas essas velas que vão e
os marinheiros singram sua epiderme salgada, absorvidos
por empreendimentos tão maiores que eles próprios.
Dos estudos de Daniel Pereira (2005, p. 29-56), vamos
colher e organizar algumas informações. Oficialmente,
consta que António Noli e Diogo Afonso teriam descoberto
o arquipélago de Cabo Verde entre 1460 e 1462. Quando
chegam, os portugueses encontram as ilhas desabitadas.
Documento mais antigo sobre Cabo Verde, a Carta Régia
de 3 de dezembro de 1460, assinada por D. Afonso V, doa
as ilhas do arquipélago então conhecidas ao infante D.
Fernando (assim como Madeira e Açores). O início do
povoamento ocorre por volta de 1461-1462 e é muito
trabalhoso e difícil, já que as condições não ajudam e o
lugar não oferece atrativos; mas a posição geográfica
favorável das ilhas para a navegação leva ao estabelecimento

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

luso no local. A localização estratégica das ilhas logo


transforma Cabo Verde em base para parada e
abastecimento de navios. Assim, já durante a Expansão
Marítima, há ligação de Cabo Verde com algumas viagens
importantes da história: em 1497, a frota comandada por
Vasco da Gama aporta na Praia, para abastecimento; em
1522, Sebastião de el Cano chega à Ribeira Grande e então
tem certeza de sua circum-navegação.
Agora, uma curiosidade: Daniel Pereira (2005, p. 36)
escreve que em 1500 a esquadra de Pedro Álvares Cabral
faz escala em São Nicolau, no porto da Preguiça, o que não
consta na carta de Caminha.
Noite seguinte à segunda-feira, ao amanhecer — “e a noute
segujnte aa segda feira lhe amanheceo se perdeo da frota
Vaasco de Atayde com a sua naao”.
Não faz tempo ruim, o vento não é forte, o mar não
está excepcionalmente agitado. O que aconteceu? Sumiu a
nau de Vasco de Ataíde. Mas como foi? Ninguém pode
saber como foi. Sua nau não se encontra mais entre as naves
da frota. Pedro Álvares Cabral comanda diligentemente a
busca. Não é possível tal incidente. Todos procuram por
toda parte, mas é inútil. “A nau de um deles tinha se perdido
/ No mar indefinido”, cantam os versos de Mensagem, de
Fernando Pessoa (1998, p. 87-88). E a indefinição do mar
traga para sempre o navio, com suas riquezas, suas armas e
seus tripulantes. É assim que sentem os navegadores, que
prosseguem.
Um momento intrigante dos registros históricos é que
a nau perdida, que Caminha identifica pelo comando de
Vasco de Ataíde, é apresentada de forma diversa em outros
contextos. “Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros e
Damião de Góes dão comandada por Luís Pires o navio

220
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

que desgarrou à altura do Cabo Verde; Gaspar Correa


chama a Pero de Figueiró o comandante”, comenta
Capistrano de Abreu (1999, p. 101). Continua nosso Cariri
Jaguaribara: “Nem uma das duas opiniões serve. Caminha
vinha na armada”; e pondera que, em Porto Seguro,
Caminha pôde ver os capitães reunidos no navio de Cabral
e que esteve com eles em outros momentos. Na mesma
passagem, então, Capistrano de Abreu conclui, em favor
de Caminha: “nem uma opinião pode contrabalançar a sua
afirmação; por conseguinte, o navio desgarrado foi o de
Vasco de Ataíde”.
Vinte e um de abril de 1500, terça-feira. Longo mar de
longo, longo de longo mar. Os navegantes mareiam, mareia
o mar. Sinais de terra. Oitavas de Páscoa. Os pilotos fazem
seus cálculos. Aparecem ervas nas águas, compridas; quais
são? Os nomes que os mareantes referem são: botelho e
rabo-de-asno. Cada pequena coisa é um sinal.
Vinte e dois de abril de 1500, quarta-feira. Que aves são
aquelas? Fura-buchos. Sem dúvida, um nome muito poético
para animais que sobrevoam as faces da mata, do rio, da
terra, do mar, do abismo. Um monte, alto, redondo, se
destaca no horizonte. Terras baixas, terras chãs, grandes
arvoredos. Pedro Álvares Cabral nomeia o monte: “Monte
Pascoal”; e também a terra: “Terra de Vera Cruz”. O
prumo é lançado: vinte e cinco braças. As âncoras são
arremessadas em dezenove braças. Tudo bem. A frota passa
a noite fundeada aqui.
Cabral batiza a nova possessão lusitana de “Terra de
Vera Cruz”, mas ao assinar a carta Caminha já abre uma
variação para o nome, “Ilha de Vera Cruz”, expressão que
depois é substituída por “Terra de Santa Cruz”, locução
que, por sua vez, é derrotada por “Brasil”, apesar da

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

campanha (de Pero de Magalhães de Gândavo e João de


Barros, por exemplo) pelo nome cristão.
Vinte e três de abril de 1500, quinta-feira. A frota se
movimenta. Os navios menores vão adiante. Os portugueses
seguem rumo à terra. As braças vão diminuindo,
sucessivamente. As embarcações param. O ancoradouro
fica à frente de um rio. Os primeiros homens são vistos.
Em sua prosopopéia, os navios mais adiantados dizem que
são sete ou oito os vultos observados. Movimentos de batéis
e esquifes. Todos os capitães se dirigem à nau capitânia,
para uma deliberação. Nicolau Coelho é enviado à terra,
em um batel. Enquanto Nicolau Coelho se dirige ao rio,
vão aparecendo homens e logo cresce o número desses
nativos.
A natureza é saudável, viçosa, tem grande vigor. A
chegada da armada portuguesa, que tem efeitos presentes
e futuros, transforma absurdamente o lugar: é como se um
corpo cumprisse sua trajetória de antanho e, de repente,
tivesse sua rota alterada. Na Eneida, de Virgílio (2003, p.
111), no momento de seu suicídio, entre suas últimas
palavras, ardendo de amor, Dido pronuncia: “Fundei ilustre
cidade; vi as minhas muralhas; vinguei meu esposo, castiguei
um irmão inimigo. Feliz fora se nunca os navios troianos
tivessem tocado os nossos litorais”. Antevendo a barbárie
que a civilização portuguesa cometerá e que os brasileiros
prolongarão, tendo em vista a “dilatação planetária do
Ocidente” e o consecutivo “destino trágico da humanidade
ameríndia”4, uma paródia poderia urdir-se: “Felizes seriam
as tribos se nunca os navios europeus tivessem tocado estes
litorais”. Um “Novo Mundo” livre do impacto das Grandes

4
As expressões são de Pierre Chaunu (1984, p. XV e XVII-XVIII).

222
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Navegações e das colonizações humilhantes: a história


efetiva, inscrita nos seres humanos e no espaço, não admite
conjeturas fantasiosas; a história, traçada, exibe suas
manchas, suas fendas, seus vestígios, expõe as alegrias e os
desalentos dos viventes; uma vez que aflora o fenômeno
histórico, de que adianta o devaneio da ucronia, sendo ele
científico, pseudocientífico ou sonhador? Se determinado
fato não houvesse acontecido ou se determinado feito
tivesse ocorrido: o jogo de probabilidades imaginadas ou
de ilusões construídas não é totalmente proibido, mas não
muda os acidentes, se bem que a leitura dos acidentes varia.
Uma perturbação violenta — e gradual — ocorre, neste
momento. Do ponto de vista imperial, oficial, contudo, a
conquista, cheia de glória, é abençoada, justa e pia.
Quanto aos habitantes da terra, não reagem com
violência, no primeiro momento, de tão extraordinária
ocorrência. Dotados de arcos e flechas, obedecem ao sinal
de Nicolau Coelho e depõem suas armas. Terão suas
culturas aviltadas e aos poucos eliminadas; serão atacados,
escravizados e mortos no processo de colonização; um
genocídio que perdura até hoje (2013) é aqui iniciado pelos
europeus surgidos do mar; no entanto, o armamento é
depositado no solo, não é usado para atacar ou tentar
exterminar a ameaça alienígena. Em sua relação, Pero Vaz
de Caminha menciona mais de uma vez o gesto dos
indígenas de largar as armas, no chão, em sinal de paz.
Gândavo (2004, p. 145-146) não diz que os índios são
“vingativos e odiosos”, não chama a atenção para o seu
grito de guerra “vamos matar”? Esses homens encontrados
na nova terra da Coroa Portuguesa não atacam os
conquistadores, não se mostram, inicialmente, “temíveis na
guerra”, não lançam os “ânimos fortes” de sua “altiva

223
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

nação” (expressões do indianismo romântico de Gonçalves


Dias) contra os europeus que invadem, sob os signos da
Bandeira de Cristo e das armas de Portugal, o território
ligado às culturas “pré-cabralinas”, ancestrais.
Serem pardos e estarem nus são as características dos
homens de Vera Cruz que chamam a atenção dos
portugueses. Nos primeiros contatos, os homens de povos
diferentes trocam presentes (um barrete vermelho, uma
carapuça de linho e um sombreiro preto, da parte
portuguesa; um sombreiro de penas de aves e um ramal
grande de continhas brancas, da parte indígena). A primeira
tentativa de comunicação verbal é inviável, pois o mar,
quebrando na praia, impede o entendimento. O oceano,
troando e impondo seu som, não dá azo a tentativas de
decifração. Os portugueses retornam a seus navios.
Tenebrosa como o mar, a noite é carregada de chuva e vento.
Vinte e quatro de abril de 1500, sexta-feira. Pela manhã,
por volta de oito horas, seguindo o conselho dos pilotos, o
capitão ordena que as naus saiam. Os navios vão, puxando
os batéis e os esquifes atados por cordas. Navegam no rumo
do norte, em busca de bom porto, onde parem, pousem e
se reabasteçam de água e lenha, por simples garantia, não
pela falta desses suprimentos. Vão os navios, singrando o
mar. Os barcos menores seguem mais próximos da terra,
em busca de melhor ponto para ancoragem. Espectadores
da grande novidade, sessenta ou setenta habitantes de Vera
Cruz contemplam as naves que vão. O porto seguro é
encontrado, no final da tarde. Afonso Lopes, que sonda o
local com um esquife, toma dois nativos, que navegavam
em uma jangada, e os leva à nau capitânia, onde são bem
recebidos, até festejados. É um contato “antropológico”
que se dá: os europeus sondam, com fina inteligência,

224
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

homens diversos, de cultura diversa. Os dois homens são


observados e escrupulosamente estudados pelos
portugueses. São descritos fisicamente, tanto em relação às
características do corpo quanto em relação a seus adornos.
Seus comportamentos, movimentos e reações são
examinados. Enquanto os dois autóctones estão no navio,
a comunicação entre eles e os invasores toma uma direção
carregada de valor econômico e uma dimensão semântica
bem de acordo com os interesses portugueses: um deles
indica o cordão de Cabral e um castiçal e gesticula, como
que informando que na terra havia ouro e prata. Quando o
visitante vê um rosário e acena para o colar do capitão e
para a terra, Caminha assume a interpretação dos
portugueses de que os nativos dariam ouro pelas contas;
se, entretanto, os gestos querem significar a intenção de ficar
com as contas e o colar, este sentido é prontamente negado,
pois os lusos não podem traduzir a mímica por uma coisa
que não admitem. Os hóspedes dormem no navio.
Vinte e cinco de abril de 1500, sábado. Logo de manhã,
Pedro Álvares Cabral ordena que seja avaliado o local onde
a frota está atracada. A verificação e os cálculos revelam
uma ancoragem grande, formosa e segura, os três adjetivos
marcados pelo intensificador “tão”: a vera beleza de Vera
Cruz age sobre o olhar estrangeiro, sobre as cordas cordiais
portuguesas e sobre as letras de Caminha. O espaço é tão
amplo que, segundo a estimação lusa, bem uns duzentos
navios cabem aqui. E ficam geograficamente protegidos
dos castigos do mar. Logo que se posicionam as naves, há
nova reunião na nau capitânia; Nicolau Coelho e
Bartolomeu Dias são escalados para levar os dois índios
que dormiram a bordo, os quais voltam com suas armas e
carregam os presentes que receberam, para cada um uma

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

camisa nova, uma carapuça vermelha, um rosário, um


cascavel e uma campainha. Caminha acompanha Nicolau
Coelho. Afonso Ribeiro, um degredado, recebe a missão
de imiscuir-se entre aquela gente, como simpático e eficiente
intruso, para estudar seus costumes.
Dirigem-se para a praia e logo podem perceber uma
multidão de uns duzentos homens, nus e armados, a quem
os dois que visitaram o navio sinalizam que pousem no chão
suas flechas. O grupo obedece. Desembarcam os dois
primeiros hóspedes e o degredado; a dupla foge
imediatamente, talvez querendo preservar os seus presentes.
O degredado é recebido por um senhor, que o acolhe, mas
depois está de volta, com os dois recebidos na nau, agora
sem seus presentes.
Surgem mais nativos. Entram pelo mar, levando cabaços
de água até os batéis. Pedem presentes em troca de sua
iniciativa; recebem de Nicolau Coelho cascavéis e manilhas.
Trocam suas armas por qualquer objeto que os portugueses
queiram oferecer-lhes. Os europeus observam suas pinturas
e ornatos. Aparecem três ou quatro moças indígenas, cujas
lindas genitálias chamam a atenção dos estrangeiros, que não
têm nenhuma vergonha de olhá-las, no trocadilho de Caminha,
que, aliás, se repete, porque diverte: vergonha (sexo) X
vergonha (pudor). Caminha escreve que uma estupenda
algazarra impede a comunicação e por isso os portugueses
sinalizam que os nativos se retirem; eles obedecem; os
navegantes buscam água e se preparam para ir, mas ainda
são chamados de volta, pois os índios não querem que o
degredado fique entre eles; o degredado Afonso Ribeiro,
por sua vez, volta com os presentes que deveria oferecer a
um provável chefe da tribo, então Bartolomeu Dias o manda
novamente ao grupo, para que os presentes sejam entregues;

226
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Afonso Ribeiro oferta os objetos ao homem que o acolheu


inicialmente. Todos os nautas voltam para junto da frota.
Essa algazarra — que impede a comunicação desejada pelos
conquistadores, os quais anseiam por lançar seguras bases
para a conquista — parece ser índice de alegria,
confraternização e solidariedade da parte dos nativos; mas
as relações humanas deste contexto estão subordinadas à
lógica da expansão imperialista.
Acompanhado dos outros capitães, o capitão-mor
coordena um passeio vespertino dos nautas, em vários
barcos que se deslocam pela baía. Desfilam os europeus,
nos seus batéis, e assim pintam com uma imagem
extraordinária a paisagem marítima. Cauteloso, Cabral
proíbe que desçam à praia, mas todos desembarcam num
ilhéu, onde se divertem e descansam. Alguns marinheiros
pescam. Finalmente, os portugueses retornam às naus.
Vinte e seis de abril de 1500, domingo de páscoa, dia em
que é rezada a primeira missa no Brasil, celebrada por Frei
Henrique. Logo de manhã, Pedro Álvares Cabral já ordena
que se providencie a solenidade religiosa e escolhe o local:
o ilhéu onde estiveram na véspera. Aqui se destaca a
presteza técnica dos portugueses, pois eles constroem
rapidamente um pavilhão e um altar, para que a cerimônia
católica seja realizada em condições materiais razoáveis. A
obra é construída no ilhéu, pois, tudo indica, os portugueses
querem privacidade para a sua sessão religiosa; os índios,
no entanto, os observam da praia, nem sempre de maneira
comportada e silenciosa: depois da missa, durante a
pregação do Frei Henrique, eles fazem um barulho dos
diabos, aos saltos e às danças, tocando buzinas e cornos.
A superioridade técnica dos portugueses se evidencia
no próprio discurso de Caminha, que compara as jangadas

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

toscas dos nativos com aquelas que ele está acostumado a


ver. Caminha descreve as jangadas locais, frágeis e
ineficientes. É uma peça de jangada que aproxima, neste
momento, lusos e nativos, pois o capitão ordena que
Bartolomeu Dias lhes entregue uma trave solta de uma das
embarcações rudimentares.
Quando o esquife de Bartolomeu Dias se aproxima
dos nativos, eles ficam alvoroçados e se lançam na água, ao
encontro do estrangeiro. Neste momento, Caminha observa
que há entre eles um que parece prudente, pois recomenda
que se afastem dos visitantes; mas Caminha interpreta que
este homem alheio não é ouvido ou obedecido. A gente
dos primeiros contatos é mansa e não ataca os navegadores;
sequer os evita, como a prudência aconselha. Ainda desce
um marinheiro de Bartolomeu Dias e se junta aos silvícolas,
ficando bem entre eles, recebendo cabaças de água daqueles
que acenam, contentes, aos outros nautas que também
desembarquem.
Neste dia ocorre a assembléia entre os capitães, para
decidir enviar a nau dos mantimentos a Lisboa, com a
notícia da conquista. Poderiam mandar uns dois homens
daqueles, como amostra, poder para isto têm, mas decidem
não usar a força contra ninguém, não deportar nenhum deles,
pois entendem que não há necessidade disso. Ficam, sim,
dois degredados, para colherem informações sobre a nova
propriedade da Coroa Portuguesa.
Depois da reunião entre os capitães, os portugueses
desembarcam, armados, portando a bandeira da Ordem
de Cristo. Os nativos depõem as armas, cena que se repete
várias vezes na carta; porém desta vez Caminha (2003, p.
101) realça que, ainda antes da chegada dos lusos, eles
colocam as armas no chão, “pelo ensino que dantes tinham”.

228
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Entre esquivos e familiares, eles acabam se misturando aos


portugueses, trocando objetos locais por coisas
estrangeiras.
Neste dia 26 de abril ainda acontecem várias coisas
dignas de anotação. Enquanto Cabral atravessa o rio ao
colo de alguns subordinados, os nativos não lhe reconhecem
nenhuma superioridade hierárquica (Caminha pondera que
eles não têm conhecimento de tal posição). Caminha
observa os nativos tingidos e as moças nuas, visíveis e à
vontade, às quais ele dedica uma atenção que chega a ser
lírica, repetindo o seu trocadilho das vergonhas (genitálias)
expostas sem nenhum constrangimento (vergonha). Uma
das moças carrega uma criança no colo, atada por um pano,
com as perninhas de fora, mas a provável mãe não está
coberta, também está nua.
Os portugueses tentam se comunicar com um velho
que se aproxima. A comunicação dos estrangeiros é muito
interessada, e Caminha realça a busca de vantagens quando
assinala que querem saber se existe ouro nas redondezas. É
este mesmo velho de lábio furado, que tenta colocar a pedra
que lhe serve de adorno bucal na boca do capitão, causando
riso entre os lusos e aborrecendo Cabral. Caminha acha
que esta pedra será enviada a Lisboa, escreve a Dom
Manuel. Se ela existe ainda hoje, eis um curioso objeto
histórico.
Uma ocasião de alegria e festa é a diversão entre índios
e europeus, cena da qual Diogo Dias é o protagonista. Ele
atravessa o rio e se dirige para um grupo de nativos que
dançam e brincam. Leva consigo um gaiteiro e promove
entre todos um verdadeiro festival — um momento de
“festival contentamento”, poderíamos dizer, acionando a
poesia de Bocage. Dança, volteia, pula e se exibe em saltos

229
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

mortais, causando espanto e riso. Uma passagem —


digamos — “comovente” que, num momento de ilusão,
poderia até fazer pensar em integração, encontro jovial de
culturas, união, amizade... No entanto a proximidade
excessiva é suspeita e os índios se afastam. Os semelhantes
são diferentes.
O lugar é rico em águas, tem rio, tem lagoa, tem praia.
Os portugueses marcham por terra, enquanto os batéis os
acompanham do mar. Bartolomeu Dias — o grande
navegador, que não voltará à sua pátria, que será devorado
pelas águas salgadas ou lançado por elas em uma praia
distante — Bartolomeu Dias mata um tubarão, que os índios
recolhem ao litoral. Bartolomeu Dias é um herói lusitano.
Compõe, neste momento, esta marinha e, no
prosseguimento da viagem, será aniquilado pelo gigante
Adamastor referido por Camões (1988, p. 151), o Cabo
das Tormentas, que dobrou e reduziu a Cabo da Boa
Esperança: “Aqui espero tomar, se não me engano, / De
quem me descobriu suma vingança. / E não se acabará só
nisto o dano / De vossa pertinace confiança”. O poema de
Fernando Pessoa, do livro Mensagem, inscreve o “Epitáfio
de Bartolomeu Dias”, acolhedor de sua morte náufraga:

Jaz aqui, na pequena praia extrema,


O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.

Porém, por enquanto, Bartolomeu Dias ainda está vivo,


assim como Caminha, que também morrerá na jornada.
Voltando à carta escrita ao rei Dom Manuel, seu autor leva
adiante suas preciosas anotações. Um observador muito
atento, Caminha pensa sobre a inconstância dos índios, que
230
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

se aproximam e se retraem o tempo todo; é necessário


tratá-los bem, fazer o que querem, para melhor os amansar.
Especula que não tenham habitações (casas ou moradas),
que vivam ao ar livre, o que lhes faz bem ao corpo, à
aparência, como aos animais. Mas Afonso Ribeiro volta
com a informação de que eles têm pequenas choupanas.
Afonso Ribeiro, o degredado, enviado a espiar os seus
hábitos, retornou repelido por eles, que não o queriam tão
intimamente presente.
Os lusos se recolhem às naus.
Vinte e sete de abril, segunda-feira. Os portugueses saem
para providenciar água. Encontram vários habitantes —
“Já muito poucos traziam arco e flecha” (CAMINHA, 2003,
p. 105). Os lusos barganham objetos indígenas que, tudo
indica, serão enviados ao rei. Afonso Ribeiro, outros dois
degredados e Diogo Dias são enviados por Cabral para
estarem entre os nativos, para investigar seus costumes.
Visitam uma povoação de nove ou dez casas, que são
descritas. A ordem do capitão era que os degredados
dormissem por lá, mas seus anfitriões não permitiram o
pernoite. De lá trazem novos objetos locais, que devem ser
encaminhados a Lisboa.
Vinte e oito de abril, terça-feira. Os portugueses
desembarcam para recolher lenha e lavar roupa. Encontram
por volta de setenta nativos, “desarmados, sem flechas e
sem nada” (CAMINHA, 2003, p. 107). Vão chegando mais
índios, até uns duzentos, Caminha calcula. Ajudam os
portugueses no recolhimento e transporte de lenha.
Bisbilhotam os carpinteiros fazendo uma cruz. Caminha
acredita que estão curiosos porque não conhecem o ferro,
suas ferramentas são de pedra, o que denuncia uma técnica
ainda pré-histórica em relação à tecnologia portuguesa.

231
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Ficam tão próximos dos visitantes e tão à vontade, que até


atrapalham o trabalho. Esta cruz em construção é que ficará
como marco do “achamento”.
Cabral ordena que dois degredados e Diogo Dias se
dirijam à aldeia e passem a noite lá. Novamente exige que
durmam no local e insiste para que de lá não voltem, de
maneira alguma. No entanto, os moradores não querem,
definitivamente, a permanência dos estrangeiros e eles são
obrigados a retornar para a nau. Levam pássaros, que
receberam dos índios.
Caminha observa as aves e a natureza. É uma análise
detida que ele faz. Os dados referentes a 28 de abril se
fecham com a descrição dos arcos e flechas para o rei.
Vinte e nove de abril, quarta-feira. A nau dos mantimentos
é desocupada e preparada para voltar a Lisboa, levando as
novidades acerca das conquistas portuguesas, sobre a nova
terra e sobre as características que tem. A carta de Caminha
será enviada por intermédio deste navio. Exceto Sancho
de Tovar, os portugueses não descem à terra; permanecem
ocupados com a preparação da nau dos mantimentos.
Sancho de Tovar traz para a embarcação dois jovens índios,
que são bem tratados, comem de tudo e dormem a bordo.
Muitos deles desejavam vir com o português, são curiosos
e sociáveis, mas ele apenas escolheu dois.
Trinta de abril, quinta-feira. Os lusos desembarcam para
abastecer a frota de lenha e água. Nos cálculos do escrivão,
quando os estrangeiros desembarcam os nativos são oito
ou dez e rapidamente cresce o número deles, até chegarem
a quatrocentos e cinquenta, mais ou menos. Os homens da
terra auxiliam os estrangeiros no trabalho, carregam lenha
até os barcos, sempre alegres e dispostos. Neste momento,
a sagacidade econômica e imperialista aflora na letra

232
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

lusitana: “E estavam já mais mansos e seguros entre nós do


que nós estávamos entre eles” (CAMINHA, 2003, p. 110).
Logo a seguir, narrando como brincavam e se divertiam
juntos os europeus e os ameríndios, o escrivão reforça o
jogo político das relações: “dançaram e bailaram sempre
com os nossos, ao som de um tambril nosso, como se
fossem mais amigos nossos do que nós seus” (CAMINHA,
2003, p. 111).
Ainda quando se refere ao dia trinta de abril, antes de
desembarcarem, estando Cabral prestes a descer ao
continente, Sancho de Tovar se apresenta, com os seus dois
convidados. Depois de comerem, vão da nau ao batel e os
dois índios os acompanham. Enquanto o grupo navega,
um dos dois convidados de Sancho de Tovar recebe de
presente um dente de javali. Caminha nota que a presa
significa para o presenteado uma verdadeira joia.
Cabral, acompanhado por outros companheiros, entra
pela mata, até um rio. Caminha, em seu raciocínio geográfico,
entende que é o mesmo curso de água que desemboca no
mar. Enquanto todos se divertem, Caminha reflete sobre a
enormidade da floresta que admira. Cabral determina que
se dirijam ao ponto onde está a cruz construída, onde,
ajoelhados, os portugueses beijam o símbolo sagrado, para
que os índios vejam a veneração. E o efeito é imediato:
obedecendo ao aceno dos conquistadores, os índios também
beijam o madeiro. Caminha medita sobre a facilidade que
encontraria a catequese por essas plagas, já que são tão dóceis;
a dificuldade maior sem dúvida é a língua, mas os dois
degredados que ficam podem aprendê-la e facilitar a
conversão dessa gente — “E imprimir-se-á facilmente neles
todo e qualquer cunho que lhes quiserem dar” (CAMINHA,
2003, p. 111).

233
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Caminha é criterioso em suas observações. De seus


costumes, assinala que não domesticaram animais e não são
lavradores. Nota que não existem ali bois, cabras, ovelhas
ou galinhas e que eles se alimentam do tubérculo abundante
que há na terra, além de frutos e sementes. Uma leitura atenta
detecta que a carta de Caminha traz estudos cuidadosos do
local visitado. É com uma atenção que beira o científico
que ele olha a gente, a terra, os animais.
Também desponta da caligrafia de Caminha o modo
amigável, afável, simples que marca os indígenas. Ele tem a
impressão de que, se os portugueses convidassem a todos,
todos subiriam às naus; mas os portugueses levam somente
quatro visitantes, dois convidados de Cabral (um dos
primeiros a subir a bordo, que recebeu uma camisa, agora
acompanhado de um irmão) e os dois outros já submetidos
à condição de pajens, um de Simão de Miranda e outro de
Aires Gomes: então o grau de hospitalidade — de
submissão — já chegou a esse ponto.
Primeiro de maio, sexta-feira, último dia de permanência
da frota na costa do Brasil, neste primeiro contato
denominado “Vera Cruz”. Amanhã, dois de maio, as naus
partem, a de mantimentos de volta a Lisboa, levando a Dom
Manuel a carta de Caminha, as restantes para as Índias, em
busca de novas conquistas. Pero Vaz de Caminha, o escrivão
da frota, como já antevimos, não pisará mais o solo natal.
As vicissitudes da viagem exigirão sua vida.
Os portugueses desembarcam, levando a bandeira da
Ordem de Cristo. Procuram o melhor posto para fincar a
cruz, considerando sua visibilidade. Cabral marca o ponto
e, enquanto uns ficam cavando, ele, com os outros, vai
buscar a cruz, que é trazida em procissão, da qual os índios
participam, ajudando no transporte do grande objeto

234
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

político-religioso. Cravada a estaca da cruz no coração


brasileiro, os portugueses pretendem, em longo prazo,
matar o paganismo e fazer viver aqui, absoluto, o
cristianismo. A superioridade hierárquica da religião cristã
será um poder fundamental no processo de
enfraquecimento e extinção das culturas indígenas, que
ainda hoje está em andamento. Erguida a cruz, a segunda
missa é celebrada, agora em terra, não mais isolada no
ilhéu, como a primeira. Surpreendentemente, os índios
participam do rito, imitando os gestos europeus e se
comportando de maneira até pia — e não ímpia. Isto não
escapa aos olhos de Caminha, que especula sobre a
conversão dos gentios. Ele não deixa de concluir que não
haverá dificuldade de todos serem “tornados e
convertidos ao desejo de Vossa Alteza” (CAMINHA,
2003, p. 114). O casamento de política e religião não
poderia ser mais explícito. Após a missa, cerca de
cinquenta cruzes são atadas ao pescoço dos nativos. São
crucifixos de estanho que sobraram da viagem de Vasco
da Gama, da qual Nicolau Coelho, que era o portador
dos símbolos metálicos, participou. Frei Henrique
comanda o ritual.
Depois da distribuição de cruzes, os lusos embarcam
para se alimentar. Sobem com Cabral um índio que fazia
gestos aos companheiros durante a missa e um irmão deste.
Como os portugueses viram em seus sinais sensibilidade
religiosa, este homem, de uns cinquenta anos, acaba se
destacando. Agora, está a bordo, e também seu irmão; cada
um recebe uma camisa de presente.
Um caso moral que se destaca, na carta, é o gesto dos
portugueses de cobrir uma índia, que está nua, em plena
missa. Mas Caminha percebe, com o seu olhar cristão atento,

235
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

que ela não tem cuidado nenhum em estender o pano, para


se cobrir, de modo que ela se senta e o tecido não esconde
o que deve esconder. Existe uma nudez persistente, aquém
e além da civilização.
Caminha anuncia a fuga de dois grumetes, que devem
ficar na terra, junto aos dois degredados escolhidos para
permanecer por aqui para observação dos costumes e
entendimento com os nativos. Caminha procura fazer uma
descrição geográfica da terra, a partir do pouco que pôde
perceber nesses dias. Não é possível saber se tem ouro,
prata ou ferro; mas bons ares ela tem e água em abundância.
Então vem a célebre sentença, a ideia de que a melhor coisa
a ser feita pelo rei é “salvar esta gente”. Caminha avalia
que, se apenas funcionasse como ponto de apoio para a
navegação das Índias, ainda assim já valeria a nova
possessão; mas, mais do que isto, eis descoberto outro
território para expansão da “Santa Fé”.
O móbil religioso é frequente. E alguns sinais são
recorrentes, na história de Portugal: o entusiasmo pelo
poder do império; o entendimento de que os portugueses
cumprem uma incumbência sagrada, levando a fé cristã para
os pagãos; a ideia da posição política superior de Portugal,
diante de todos os Estados do mundo, por sua missão
evangélica. Mesmo o soldado prático, coberto das
experiências de Diogo do Couto, um historiador crítico e
incômodo, emite palavras bem consoantes com a crença
na missão portuguesa, já que, segundo ele,

lhe sustenta Deus há tantos anos o reino de Portugal, e os


favorece em todas as mais conquistas que comete, e o tem a
ele e aos seus vassalos postos no cume da roda da fortuna,
com a grande piedade que nisto tem usado, e com as

236
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

maravilhosas façanhas que seus vassalos têm obrado naquele


Estado, na conservação e defensão daquela cristandade
(COUTO, 1980, p. 203).

O mesmo poder que invade e conquista pode,


piedosamente, fazer um diagnóstico e adotar um
procedimento salvador. Aos motivos edênicos que atraem
os aventureiros europeus juntam-se os motivos apostólicos
que converterão os gentios. A visão do Novo Mundo como
uma espécie de Paraíso terrestre seduz bem menos os
portugueses do que os espanhóis, de acordo com o que
observa Sergio Buarque de Holanda, mas a justificação
sagrada das operações de conquista é bem nítida nos
lusitanos. A fantasia religiosa e uma ligação visionária da fé
com a política aparecem em vários lampejos fantásticos, na
história de Portugal, como, por exemplo, na batalha de
Ourique ou no próprio sebastianismo (que se estende). No
“Prefácio à segunda edição” de Visão do Paraíso, Sergio
Buarque de Holanda (2000, p. XXV) comenta:

Não só a supremacia crescente do saber racional ou empírico,


mas também um caudal maior de conhecimentos acerca das
antigas terrae incognitae, fazem desbotar-se ou alterar-se uma
fantasia, herdeira de tradições milenares, que se infundiu nas
almas dos navegantes e de quantos homens largaram a Europa
na demanda de um mundo melhor, ao contato com os bons
ares e boas terras do novo continente. E que, mesmo passado
o deslumbramento inicial, ainda se mantém longamente por
força dos costumes e da inércia, conseguindo sobrepor-se
tranquilamente aos primeiros desenganos.

Voltando à carta de Caminha, ela está se encerrando.


Nas últimas linhas, o escrivão ainda solicita a intervenção
do rei em favor de seu genro, Jorge de Osório. As
237
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

derradeiras palavras pedem mercê. A carta viajará para


Lisboa, levada pela nau dos mantimentos, que retorna a
Portugal; o escritor seguirá para as Índias, juntamente com
a frota. Caminha conclui um documento histórico,
fundamental para a cultura da nova sociedade, híbrida, que
vai se desenvolver. E assina “Deste Porto Seguro, da Vossa
Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio
de 1500. Pero Vaz de Caminha”.
A frota comandada por Pedro Álvares Cabral vai
seguir viagem. A névoa, as tempestades e os tormentos
são elementos do mar bravio. As tribulações que acometerão
os navegadores portugueses serão muitas. E serão
catastróficas.

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da Gama Kury. Prefácio: Hélio Jaguaribe. Brasília: Editora
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2001.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução: Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo:
Nova Cultural, 2003.

240
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

10

TENSÕES ENTRE FRAGMENTOS DE


EVIDÊNCIA, SUSPENSÃO DO
URGENTE E REALIZAÇÃO ESTÉTICA
NO JORNALISMO LITERÁRIO
LILIAN REICHERT COELHO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UNIR)

O tipo realmente importante de liberdade requer atenção,


consciência, disciplina, esforço e a capacidade de se importar
genuinamente com os outros e de sacrificar por eles inúmeras
vezes, todos os dias, numa miríade de formas corriqueiras e pouco
excitantes. Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ter aprendido a
pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a
“corrida de ratos” – a sensação permanente e corrosiva de ter
possuído e perdido alguma coisa infinita.
(WALLACE, 2012, p. 274)

Das fronteiras em aporia: jornalismo/literatura

Desde a emergência da prática jornalística denominada


penny press, na década de 1830 (cf. SCHUDSON, 2010),
orientada pela vontade de construir um campo autônomo

241
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

para o jornalismo, expansível para além da opinião sobre


política, essa prática social esforçou-se para construir as
próprias bases sobre fundamentos como objetividade,
neutralidade, imparcialidade, quase todos já epistemológica
e ideologicamente desancados. A força motriz dessa
empreitada era a tentativa de construção de um nicho
profissional com traços “próprios”; mas, para isso, era
necessário construir, no discurso e na prática, total
descolamento da literatura, da ficção. Sobre isso, Bulhões
(2007, p. 21) refere que, historicamente, o jornalismo
procurou seguir rígido “(...) percurso de aquisição de
algumas crenças” e as enumera:

a de que é possível ter acesso aos contornos exatos do real


efêmero da vida e transmiti-lo com autenticidade; a de que se
pode captar esse real fugidio do cotidiano, preservando-o de
modo inequívoco; a de que o jornalista é o transmissor legítimo
da realidade dos acontecimentos. E mais: a crença em
ferramentas ou procedimentos capazes de registrar esse real e
remetê-lo sem enganos.

E a tarefa foi tão bem sucedida – em que pesem os


contradiscursos e as práticas de resistência sempre
envolvidas no embate – que não raras fontes costumam
destinar linhas e linhas à argumentação sobre as distinções
entre os dois “campos” (cf. BOURDIEU, 1996). No
entanto, a relação entre jornalismo e literatura revelou
ter raízes mais profundas do que a vontade taxonômica
das propostas de classificação por gêneros e das disputas
por status social entre jornalistas e escritores. No século
XIX e ao longo do século XX, inevitavelmente, o
jornalismo hard news dos jornais diários conviveu com
produções de escritores centradas em questões e
242
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

demandas sociais e com as investidas bem sucedidas das


revistas estadunidenses em trabalhos de não ficção bem,
como posteriormente, a publicação de reportagens em
livro. A discussão avolumou-se no início dos anos 1960,
culminando com o texto-manifesto de Tom Wolfe,
publicado em 1973, proclamadamente contra o
“understatement”, o “tom bege pálido”, “a cabeça prosaica,
o espírito fleumático, a personalidade apagada” do
jornalista (WOLFE, 2005, p. 32).
E, assim, não sem polêmica e criação de míticos e
midiáticos desafetos, nos anos 1960, a expressão Novo
Jornalismo foi adotada, a partir dos Estados Unidos (!),
para se referir a uma prática que incomodou muitos veículos
jornalísticos e “homens de letras” e que Wolfe (2005, p. 41)
define como “uma espécie de excitação artística no
jornalismo”. Jornalistas passaram a adotar técnicas literárias
e a escrever de modo esteticamente sofisticado sobre
questões muitas vezes comezinhas – ao menos na aparência
– sobre personalidades que não valiam um piscar de olhos
para a imprensa “tradicional” ou, ainda, sobre o lado
humano das celebridades, dentre os quais se destaca o texto
publicado por Gay Talese na Revista Esquire, em 1962,
sobre o ex-boxeador Joe Louis (intitulado Joe Louis: o rei na
meia-idade). Paralelamente a isso e não sem extenso debate,
um número expressivo de escritores passou a concentrar-
se em trabalhos de não ficção, como Norman Mailer (2006,
p. 11-21), crítico severo de Wolfe e do chamado Novo
Jornalismo:

Desde que Tom Wolfe começou a escrever, em interesse


próprio, aqueles panegíricos ao Novo Jornalismo, tornou-se
um reflexo literário automático apontar os textos sobre

243
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

convenções aqui editados como espécimes da nova arte, e é


possível que eu tenha recebido mais aplausos como “novo
jornalista” do que jamais recebi como romancista. Isso é uma
ironia que me incita a remar contra a corrente: nunca trabalhei
como jornalista, e não gosto dessa profissão. É um modo
promíscuo de ganhar a vida. (MAILER, 2006, p. 11)

Com o Novo Jornalismo, os embates entre defensores


da manutenção da nitidez das fronteiras tanto de um lado
como de outro se acirraram e, consequentemente, antigas
tensões sobre gêneros foram retomadas. No entanto, em cada
lugar, as discussões se delinearam de acordo com a história
de uso e da recepção de cada gênero. No Brasil, a crônica
sempre foi explorada por escritores e o chamado romance-
reportagem constitui a versão local do assumiu vultos
significativos, sobretudo, no período da ditadura militar.
Mesmo considerando-se as produções de Euclides da Cunha
e de João do Rio como casos paradigmáticos do Jornalismo
Literário (e que também encarnam o fardo aporético que lhe
é intrínseco), verifica-se acento no interesse por tais temas e
pela abordagem jornalístico-romanceada, no contexto
brasileiro, na década de 70 do século XX, portanto, após o
“sucesso” do Novo Jornalismo praticado nos Estados
Unidos, como contextualiza Cosson (2005, p. 60)

Inicialmente título dado a uma coleção da Civilização Brasileira


pelo seu editor Ênio Silveira, o termo “romance-reportagem”
pretendia recobrir apenas um conjunto de obras baseadas em
episódios reais vasados [sic] em uma narrativa que adotava
contornos ficcionais. (...) [Mas] a expressão se vulgariza
rapidamente e passa a ser denominação tanto de um tipo
particular de narrativa que mistura literatura e jornalismo, quanto
uma das tendências dominantes na ficção brasileira da década
de 1970.

244
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Apesar das acaloradas discussões alicerçadas em antigas


dicotomias como real x ficcional, verdade x invenção, o
chamado Jornalismo Literário não apenas sobreviveu como
ganhou ainda mais espaço, seja nos Estados Unidos, seja no
Brasil, ainda que, aqui, seja tímido o número de leitores
proporcionalmente ao número total de habitantes (cf. BELO,
2006). Mesmo assim, é fato que a procura cresceu, como se
nota pelo lançamento de uma coleção intitulada Jornalismo
Literário pela Companhia das Letras nos anos 2000,
composta por vários títulos, e pelo lançamento da Revista
piauí, além de outros periódicos que passam a investir nesse
tipo de produção. No entanto, mesmo com o aumento do
interesse pelos diferentes produtos do Jornalismo Literário,
vale pontuar que houve resistência – e ainda as há –, pois o
esgarçamento das fronteiras entre campos tão solidificados
não ruiria repentina e facilmente sem oposições pois, como
explica Cosson (2001, p. 100),

(...) literatura, história e jornalismo ocupam espaços distintos


em nossa sociedade e parecem obedecer a distintas convenções.
Seguindo essas convenções, o romance é uma narrativa ficcional,
cuja elaboração artística demanda uma leitura estética e lhe garante
atemporalidade. É também uma recriação do mundo através
da mímesis e da verossimilhança, não tendo, por isso, nenhum
compromisso externo com a referencialidade de seu conteúdo.
O jornalismo e a história, por sua vez, obedecem a critérios de
objetividade, factualidade e verificabilidade em seus textos. Têm
como princípios a verdade e a autenticidade empírica de seus
relatos. O jornalismo quer-se, ainda, pragmático e efêmero e a
história, científica.

Querelas e dissidências à parte, é evidente que tanto


escritores como jornalistas vêm desenvolvendo um
jornalismo/literatura inclassificável de acordo com as
245
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

prescrições de cada campo em convergência e


independentemente do rótulo que se lhe afixe nas estantes
das livrarias. Um dos casos mais profícuos é o do escritor
estadunidense contemporâneo David Foster Wallace (1962-
2008) que, aqui, terá apreciados em sobrevoo três textos
de não ficção alocados na coletânea intitulada “Ficando
longe do fato de já estar meio que longe de tudo” (no
original: Getting away already pretty much being away from it all),
prefaciada por Daniel Galera, que expõe a recepção de
Wallace no Brasil e justifica seu projeto, em parceria com a
editora Companhia das Letras, para publicar a produção
de Wallace, autodeclarado “um escritor brincando de ser
jornalista” (GALERA, 2012, p. 10).

Da acidez de participar de experiências em


coletividades “bovinas”

Escalado pela Revista Harper’s, pela Gourmet


Magazine, pelo New York Times ou convidado como
paraninfo por formandos do Kenyon College, Wallace
adentra em mundos comuns de pessoas ordinárias de classe
média para oferecer ao leitor (ideal, preferencial, modelo,
enfim, àquele dotado das competências e da disposição
anímica necessárias para encarar seus textos) interpretações
sobre a sociedade contemporânea. Contratado como
jornalista, é com a acuidade de um antropólogo que o
escritor percorre feiras lotadas, parques de diversão e
embarcações de luxo para o “relaxamento” das classes
médias. Um escritor-jornalista-antropólogo cuja postura
etnográfica é de um intérprete contemporâneo perscrutador
da própria cultura, na modalidade de Jornalismo Literário
intitulada “the reporter takes the stage” (o repórter assume o

246
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

proscênio, tradução livre da autora), seguindo algumas


“inovações que seriam diferenciadoras do gênero” mais
atual (FERREIRA JR., 2003, p. 285-286), na concepção de
Yagoda (1997).
E, nesse sentido, Wallace pode, sim, ser descrito como
um escritor contemporâneo de não ficção do Jornalismo
Literário, na esteira dos postulados de Geertz sobre a
“confusão dos gêneros” e, por que não, dos campos, pois
o próprio termo Jornalismo Literário “cancela das duas
palavras do par os vícios de cada um(a), descrevendo um
tipo de não ficção no qual artes de estilo e de construção
narrativa sempiternamente associadas à ficção ajudam a
perfurar a rapidez do-que-está-acontecendo – essência do
jornalismo” (KRAMER, 1995, p. 21) [tradução livre da
autora].
As fronteiras revelam-se ainda mais porosas, pois a
produção de Wallace em apreço aqui se intersecta também
com aquilo que se convencionou (como escapar?) como
Novo Novo Jornalismo (BOYNTON, 2005, p. xii), pois,
ao contrário da geração vanguardística de Wolfe, os novos
novos jornalistas concebem sua produção como parte do
gênero não ficção (mais amplo), ao invés de analisar
filosófica, ética e teoricamente a linha que separa fato de
ficção como se fossem antinômicos por natureza. As
margens continuam desbarrancando, mas uns e outros,
escritores e jornalistas, podem muito bem avançar e recuar,
pois a complexidade da sociedade contemporânea não
apenas permite como convoca para interpretações as mais
variadas a partir de seus índices impuros. Embora fosse
escritor, explicitando até, sempre que possível, certo
incômodo em suas aventuras jornalísticas (o que pode ser
mera estratégia retórica), é inevitável o reconhecimento de

247
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

características do Jornalismo Literário sublinhadas por Sims


e Kramer (1995, p. 22-34) na produção de não ficção de
Wallace em tela, a saber:

1. imersão no mundo dos sujeitos e na pesquisa;


2. estabelecimento de pactos implícitos de sinceridade e
exatidão, além de busca por regras éticas tanto com o leitor
quanto com as fontes, sem ficcionalizar o conteúdo;
3. escrever sobre eventos rotineiros e não extraordinários,
como o jornalismo ancorado na factualidade;
4. escrever em “voz íntima”, informal, fraca, humana e irônica;
5. cuidado com o estilo, que tende a ser simples e econômico;
6. escrever a partir de um lugar instável e livre, a partir do qual
contam histórias dirigindo-se diretamente ao leitor;
7. na estrutura, mesclar narrativa primária com histórias e
digressões, a fim de amplificar e reenquadrar os eventos;
8. construção dos sentidos prevendo-se as reações do leitor.
[tradução livre da autora]

A rigor, os elementos apontados funcionam mais como


traços do que como características propriamente. Isso
porque, sob o termo Jornalismo Literário, estão abrigadas
produções demasiadamente diversas, cujo ponto de
similaridade não é facilmente discernível ou passível de
argumentação segura. Ao contrário, o Jornalismo Literário
e a Literatura de não ficção têm sido um “entre” desde que
o termo “novo jornalismo” foi cunhado “(...) por Matthew
Arnold em 1887 para descrever o estilo da Pall Mall Gazette
de Stead” (FERREIRA JR., 2003, p. 289). Trata-se de uma
atividade que tende a revelar produtos ora mais jornalísticos,
ora mais literários (de acordo com quais critérios?),
mantendo-se sempre num limiar de indiscernibilidade, a
ser apenas parcamente delineado pela coexistência dos dois
termos nessa expressão. O resultado pode ser produzido
248
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

pelo trabalho de jornalistas ou de escritores, mas seus traços


supostamente definidores estão em permanente mutação,
pois “jornalistas literários são cruzadores de fronteiras em
busca de perspectivas profundas sobre nossas vidas e nosso
tempo” (KRAMER, 1995, p. 19) [tradução livre da autora].
Sobre isso, arremata Bulhões (2007, p. 46):

Chegado aqui, é válido reconhecer um campo de realizações


narrativas jornalístico-literárias cujos atributos mostram-se
disponíveis a possibilidades de justaposições, entrelaçamentos
ou afinidades literário-jornalísticas. Se, em uma perspectiva
histórica, de início coube à literatura ser a matriz fornecedora
de sugestões formais à narratividade jornalística, o
desenvolvimento do jornalismo foi aos poucos construindo
uma autêntica e nada desprezível tradição de textualidade que
também se ofertou à realização literária. Com isso, sugestões
e procedimentos típicos de uma vivência calcada na
factualidade podem ser assimilados pelo aparato ficcional da
literatura, o que faz supor uma relação interdependente.

Mas, para que a simbiose de fato seja bem sucedida, é


necessário que os jornalistas se habilitem a suspender a
urgência que tanto envolve a prática profissional em sua
vertente noticiosa e também uma certa ideia predominante
sobre o tempo presente. Muitas vezes, a possibilidade de
compreensão do presente é descartada automaticamente,
como se fosse um campo de fluidez quase absoluta, marcada
pela ausência de relações com o passado e com o futuro,
considerado mero painel de sucessões de eventos
desconectados. Logo, inapreensíveis na sua duração. Assim,
ao menos, tem sido o jornalismo noticioso, uma coletânea
de “fragmentos de evidência”, termo emprestado a Peter
Gay (2010).

249
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Deslocado o ângulo, o olhar tende a se expandir,


exigência basilar do Jornalismo Literário, problematizado
também pela produção de escritores de não ficção que se
aventuram pelas pregnâncias do mundo concreto imbuídos
da tarefa de interpretar algum aspecto da realidade, de um
grupo social ou mesmo a vida de um indivíduo,
estabelecendo conexões com a complexa trama do entorno.
E isso não é prática exclusiva da contemporaneidade nem
uma descoberta do chamado Novo Jornalismo, pois a
fortuna crítica atinente à literatura realista e ao jornalismo
tem por hábito associar os procedimentos empregados na
apuração e na escrita a Daniel Defoe, no século XVIII.
Conforme argumenta Ferreira (2003, p. 288):

Kerrane estabelece a origem da denominação “novo


jornalismo” em ligação com o que seria um desenvolvimento
desse primeiro acontecimento [o texto de Defoe sobre
Jonathan Wild, de 1725], o surgimento de um gênero definido
por ele como the human-interest story as social parable. Trata-se de
uma forma narrativa cujas origens poderiam ser traçadas a
partir de jornalistas do princípio do século XX até o que ele
chama de “repórteres sociais” da era vitoriana. [grifos do autor]

Independentemente da genealogia que se possa


estabelecer, no que diz respeito aos procedimentos que,
talvez, revelem algo sobre o Jornalismo Literário ou a
Literatura de não ficção, parecem ser justamente os
embaralhamentos, as “mesclas” das regras de diferentes
gêneros que são postas à prova, desnudadas em sua
instabilidade, conforme registra Geertz (1980, s/p), para
quem esse tipo de deslocamento “é um fenômeno geral o
suficiente e tão distinto que sugere que o que se vê não é
apenas um redesenho do mapa cultural (...), mas uma

250
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

alteração de princípios do mapeamento. Alguma coisa está


acontecendo no modo como pensamos sobre o modo
como pensamos”. [tradução livre da autora].
Isto posto, verifica-se que, com a “desestabilização dos
gêneros” e o “surgimento do ‘giro interpretativo’”, ainda
de acordo com Geertz (1980, s/p), “os instrumentos de
raciocínio estão mudando e a sociedade é cada vez menos
representada como máquina elaborada ou semi-organismo
e mais como jogo sério, drama de rua ou texto
comportamental.” [tradução livre]. E esse movimento, no
que tange ao Jornalismo Literário, parece fortalecer a aposta
na humanização do relato, na apreensão da
contemporaneidade pelas histórias de vida, como Talese,
Mitchell e Ross já propuseram.
No entanto, agora, passado o momento considerado
de vanguarda pelos próprios propositores, analisadas as
repercussões do “gênero”, os reposicionamentos do
jornalismo e da literatura em seus próprios campos e o
caráter crescente da porosidade das fronteiras, o Jornalismo
Literário ou Literatura de não ficção percorre caminhos os
mais distintos, com valorização da criatividade e menos
discussão sobre o status de “verdade” ou de “invenção”
sobre os fatos narrados. Apesar disso, vale pontuar que,
em diversos países, já existe regulamentação sobre os
parâmetros a serem adotados por sociólogos,
antropólogos, escritores e jornalistas para que possam
trabalhar infiltrados, disfarçados, e para que estejam
afiançados pelo rigor ético postulado como procedimento
padrão.
Além disso, para a boa condução do serviço de
interpretação da sociedade em sua contemporaneidade, o
escritor-jornalista-antropólogo deve estar municiado de

251
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

informações coletadas nas mais diversas fontes – primárias


ou não –, a fim de construir, de fato, para o leitor, uma
leitura fidedigna (instituída por parâmetros também
contemporâneos) sobre a realidade social circundante. De
modo geral, o que se tem, é a construção de um percurso
etnográfico (assumido ou não) sobre os diversificados
modos de existência, os diferentes comportamentos,
movimentos e escolhas dos seres humanos e, até mesmo, a
reação diante da tragédia, como já haviam feito John Hersey
em Hiroshima e Truman Capote em A sangue frio.
Até mesmo a etnografia doméstica está no horizonte
do Jornalismo Literário. Por que não? O próprio também
pode ser matéria de reflexão, de questionamento, pelo fato
de ser a subjetividade entendida, em ampla medida, como
inacabada, processual, portanto, como uma das formas de
alteridade. Interessa não apenas um outro que pode ser
entendido como exótico, mas o próprio pode ser
questionado internamento como “estranho” pelo
Jornalismo Literário, exatamente como procede Wallace em
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo na abordagem
de alguns elementos aparentemente banais da cultura
contemporânea norte-americana e, a partir dela, analisando
o humano, sempre devidamente situado no contexto da
sociedade atual.
O processo de coleta de material para a composição
de textos de não ficção inclui não apenas a identificação e a
localização de fontes profícuas e a entrevista como, de algum
modo, a participação, o envolvimento do jornalista ou do
escritor no estilo de vida ou na questão a ser tratada, seja
por imersão, seja por outro procedimento como a
observação. Apenas para assinalar, é válido notar que a
técnica da imersão temporária na realidade de um subgrupo

252
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ou grupo social não foi uma novidade inventada pelo


Jornalismo Literário e tem como precursores, dentre outros,
escritores como Jack London (O povo do abismo – fome e
miséria no coração do Império Britânico, 1903) e George
Orwell (Na pior em Paris e em Londres, 1933; Os caminhos de
Wigan Pier, 1937) e também jornalistas como Abraham
Cahan e Joseph Mitchell, para citar apenas dois. O
procedimento assumiu contornos radicais no Jornalismo
Gonzo de Hunter Thompson. Na contemporaneidade, o
jornalista Günther Wallraff (Cabeça de Turco, 1985), dentre
outros, descreve detalhadamente a performance, os
sentimentos e as informações de um profissional infiltrado
que julga ser necessário “sentir na pele” o lugar do outro
para ser capaz de interpretar e denunciar determinada
condição. No caso citado, a exploração dos imigrantes
turcos por grandes corporações na Alemanha. Para isso,
Wallraff assumiu identidade turca como disfarce e trabalhou
nas mesmas condições dos ilegais, tendo sido processado.
Já Wallace procede diferentemente. Os percursos
traçados para a composição de textos encomendados por
revistas “classudas da Costa Leste” (WALLACE, 2012),
notadamente a Harper’s, são realizados por um olho que
tudo perscruta, por um corpo que deambula, mas que “não
sai de seu lugar”, apenas participa da cena, testemunha os
episódios narrados in loco, tornando-se uma espécie de
personagem desencaixado. A condição de espectador
crítico é evidenciada de quando em quando, bem como sua
recusa a mesclar-se efetivamente com esses outros de cujas
posturas perante a vida francamente discorda, mas tenta
compreender, sempre assinalando sua distância
antropológica, a estranheza que sente como se estivesse
diante de seres de uma cultura exótica, como se percebe no

253
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

trecho extraído abaixo do texto Ficando longe do fato de já


estar meio que longe de tudo (1993):

Os produtos singulares da Exposição têm como alvo um


certo tipo do Meio-Oeste do qual eu já havia me esquecido
quase completamente. Por algum motivo não reparei na
ausência dessas pessoas nos acessos e exposições. Isso vai soar
não apenas típico da Costa Leste mas também elitista e esnobe.
Mas fatos são fatos. A comunidade especial de fregueses do
Prédio de Exposições pertence a um subfilo do Meio-Oeste
conhecido normalmente, por mais maldoso que isso seja,
como o Povo do Kmart. Mais ao sul, eles seriam um tipo
periférico de white trash. O Povo do Kmart é geralmente gordo,
vestido de poliéster, tem a cara amarrada e carrega crianças
infelizes e sem vida. As perucas são daquele tipo brilhoso
com corte quadrado e de uma obviedade comovente, e a
maquiagem das mulheres é berrante e não raro aplicada de
maneira assimétrica, conferindo uma aparência meio demente
a muitos rostos femininos. Frequentei o ensino médio com o
Povo do Kmart. Eu os conheço. (WALLACE, 2012, p. 76-
77) [grifos do editor]

A leitura crítica, politicamente incorreta, sarcástica e,


de certa forma, preconceituosa é sustentada pela recorrente
assertiva do narrador, ao afirmar “eu estive”, “eu conheço”,
e não apenas “eu vejo de longe”, embora mantenha a
distância ética necessária para construir sua análise. Tal
procedimento enunciativo e retórico constrói um efeito de
sentido de autoridade ao narrador pois, do ponto de vista
da apuração jornalística, ter sido “testemunha ocular” dos
fatos narrados e transitar por onde circularam as
personagens, é fundamental. A veracidade conferida pela
apuração in loco é reforçada pela minúcia nas descrições,
que o Jornalismo Literário e a Literatura de não ficção

254
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

carregam, genealogicamente, do realismo social no


“gênero” romance (cf. WATT, 2007).
As descrições do narrador de Wallace adota postura de
turista em seu próprio ambiente cultural, social,
configurando-se como uma espécie de sujeito para quem as
experiências narradas, na verdade, experienciadas como
sofrimento à custa de um compromisso profissional, causam
repulsa tal que resulta numa espécie de incômodo, revertido
na linguagem por meio de associações de imagens, criação
de analogias e exposição de aspectos sensoriais que têm
como efeito o sarcasmo. A impaciência do narrador revela-
se pelo recurso à estratégia narrativa de uma espécie de diário,
que estabelece uma cronologia progressiva linear, como a
informar ao leitor: esse tormento tem dia e hora para terminar.
As ações narradas transcorrem entre as 8 horas do dia 5 de
agosto e a noite de 15 de agosto de 1993, com intervalos.
O narrador antevê as reações do leitor, antecipando
logo que o que diz sobre os outros pode parecer “elitista e
esnobe”. Não há, portanto, empatia. Nem do escritor-
jornalista-antropólogo pelos outros nem dele para com o
leitor. Sequer com a amiga que o guia pela feira
agropecuária, a quem chama com sarcasmo de
Acompanhante Nativa, pois

Nenhum antropólogo digno do nome dispensaria os doutos


conselhos de um pitoresco habitante local, portanto trouxe
uma Acompanhante Nativa para passar o dia comigo (posso
botar gente de graça para dentro da Feira usando minhas
Credenciais de Imprensa) e estamos em pé quase no fundo.
(WALLACE, 2012, p. 32).

No entanto, não é apenas sarcástico o olhar lançado


à feira agropecuária caipira no Meio-Oeste dos Estados
255
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Unidos e aos seus participantes em Ficando longe do fato de


estar meio que longe de tudo. Na medida em que pode ser visto
como interpretação, a literatura de não ficção de Wallace
provoca no leitor reflexões que se orientam para além
dos fatos narrados, das informações aspergidas ao longo
do texto por descrição ou por associação de imagens e
ideias, ou seja, para além de facticidade verificável no
mundo concreto. Sob a crítica à sociedade do consumo, a
uma maneira de viver compreendida como alienada e
alienante, prenhe de subterfúgios para impedir que o ser
humano seja capaz de questionar, de se libertar, Wallace
força o leitor a verticalizar o entendimento sobre os temas
tratados, como se as experiências das quais participou e
ora compartilha fossem a fagulha que se conecta com
tantas outras cuja compreensão concederia uma chave de
acesso à complexidade do entrançado social
contemporâneo.
Em Ficando longe do fato de estar meio que longe de tudo as
disparidades entre a Costa Leste e o Meio-Oeste são
evidenciadas pelo sarcasmo do narrador que, mesmo
qualificando como negativa a experiência, não conduz o
leitor a pensar que um modo de ser é, necessariamente,
melhor do que o outro, mas estabelece de modo
explicitamente marcado as diferenças regionais. Basta
localizar um único elemento que faça disparar o dispositivo
da comparação entre os dois mundos, tão diversos. Nota-
se isso no trecho destacado abaixo, logo após
Acompanhante Nativa ter descido de um dos brinquedos
do parque da feira cujos operadores manobraram a
engenhoca maliciosamente para ver suas roupas de baixo.
Ela diz não se importar, pois “Babacas não passam de
babacas. De que adianta eu ficar braba e aborrecida? Só vai

256
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

arruinar minha diversão” (WALLACE, 2012, p. 48). Ele


argumenta para ela, em discurso direto:

‘Pode ser exatamente o tipo de contraste político-sexual


regional que interessa à revista classuda da Costa Leste. O
valor essencial que conforma uma espécie de estoicismo
político-sexual voluntário da sua parte é uma compreensão
da diversão prototípica do Meio Oeste –’
‘Me compra uns torresmos, seu bosta.’
‘– enquanto na Costa Leste a indignação político-sexual é a
diversão. Em Nova York, uma mulher que tivesse sido
pendurada de cabeça para baixo e comida com os olhos
reuniria um monte de outras mulheres e haveria um frenesi de
indignação político-sexual. Elas confrontariam o cara que
comeu a outra com os olhos. Ajuizariam uma ação. A gerência
se veria envolvida num litígio custoso – violação do direito
de uma mulher à diversão livre de assédio. Estou falando
sério. Para as mulheres, a diversão pessoal e a diversão política
se misturam em algum ponto ao leste de Cleveland.”
Acompanhante Nativa mata um mosquito sem nem olhar
par ao bicho. ‘E naquelas bandas todas tomam Prozac e enfiam
o dedo na goela, também. Deviam tentar simplesmente subir,
girar e ignorar os babacas, dizendo Eles que se fodam. É o
máximo que se pode fazer a respeito de babacas.’

As diferenças são tratadas em vários trechos,


acentuadas pelo fato de ser o narrador um “nativo” também,
mas alguém que saiu do seu local de origem e, se algum
modo, se “aculturou”, por assim dizer. Do incômodo dessa
relação, pautada pelo retorno e pelo olhar estrangeiro
lançado à feira e até à amiga, é que ressaltam as qualidades
da apuração e a perspicácia do narrador. O tom pessoal e
sarcástico da narração colore a narrativa e conduzem o leitor
à reflexão sem deixar de entretê-lo, de permitir que se
diverta com as agruras do escritor-jornalista-antropólogo
257
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

pela feira agropecuária. E, ao lado das estratégias narrativas,


retóricas e estilísticas, seguem sempre os “fragmentos de
evidência” (nomes de pessoas, localizações precisas, fatos
comprováveis), para que não haja dúvida sobre a
“veracidade” do relato, conectando o presente da feira à
simultaneidade de outros acontecimentos midiáticos
externos a ela, como se depreende do trecho abaixo:

13/08/9H25. Abertura Oficial. Cerimônia, apresentações,


verbosidade, chavões, tesourona metálica para a fita do Portão
Principal. Tempo seco e aberto, mas um calor de franzir a
testa. Ao meio-dia estará um forno. Membros da Imprensa
com camisa de malha e Visitantes fanáticos de primeira hora
formam uma massa que vai do Portão até a Sagamon Avenue,
onde moradores com bandeirinhas de plástico convidam você
a estacionar em seus jardins por $5.00. Observo que “Little
Jim” Edgar, o Governador, não é muito respeitado pela
Imprensa, que em sua maior parte fica cochichando que o
carro do pai de Michael Jordan foi encontrado enquanto o
pai segue desaparecido. (WALLACE, 2012, p. 32).

Dessa forma, um evento “real” ancora o outro,


atribuindo-se mutuamente e ao texto que se apresenta uma
facticidade não passível de dúvida. Este é o efeito
primordial do jornalismo informativo: o efeito de verdade,
fundamentado na referencialidade da linguagem e na
possibilidade de comprovação de fatos e informações por
qualquer um que queira refazer o percurso traçado pelo
jornalista. Assim, a concretude acompanha a leitura crítica
apresentada por Wallace, conferindo ao texto o “peso” do
“real”.
O segundo texto da coletânea, intitulado Uma coisa
supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer (1999), refere-

258
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

se a uma viagem de cruzeiro feita por Wallace, também


sob encomenda para a Revista Harper’s. Além do
detalhamento antropológico (pois no cruzeiro são
identificadas diversas classes e tipos de seres humanos),
destaca-se a configuração espacial, que resulta de um estilo
quase cinematográfico adotado para a descrição de
ambientes e personagens, tendo como efeito a visão
panorâmica como se proporcionada pelo olhar ciclope de
uma câmera. E é justamente esse o procedimento: ao poder
descritivo de Wallace, fruto de perspicazes e sarcásticas
observações previamente pesquisadas e/ou detectadas na
experiência-enquanto-acontece, agrega-se a capacidade de
interpretação, fruto de um posicionamento político
contraditório e nada autoindulgente, descortinador da
estetização da vida cotidiana por um viés crítico não
moralizante e sem propostas alternativas.
Do texto em apreço, pululam associações de imagens,
construídas pela crítica social causticante a um elemento
do estilo de vida das classes médias e altas, ideológica e
discursivamente construído sob o signo da “felicidade”,
do “relaxamento”, da “diversão” que o narrador associa à
palavra exaustivamente repetida nas peças publicitárias dos
navios a que tem acesso. Publicidades que não apenas são
detalhadamente descritas, mas criteriosamente analisadas.
Inclusive, sob o viés do gênero textual, estabelecendo, ao
que parece, uma reflexão sobre o próprio trabalho, que
não se enquadra facilmente nos gêneros literários
jornalísticos nem nos literários:

A brochura do 7NC [tipo do navio de cruzeiros] da Celebrity


usa a segunda pessoa o tempo inteiro. Isso é bastante
apropriado. Porque nos cenários da brochura a experiência

259
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

do 7NC não está sendo descrita, mas evocada. A verdadeira


sedução da brochura não é um convite à fantasia, mas uma
construção da fantasia em si. É publicidade, mas com um
toque estranhamento autoritário. (...) E esse tipo autoritário
– quase paternal – de publicidade faz uma promessa muito
especial, uma promessa diabolicamente sedutora que na
verdade até chega a ser um pouco honesta, pois promete
que um Cruzeiro de Luxo gira em torno de honrar
expectativas. Não se promete que você pode experimentar
um imenso prazer, mas que isso vai acontecer. Que eles vão
garantir que isso aconteça. Que eles vão microgerenciar cada
bocadinho de cada opção prazerosa de modo que nem
mesmo a ação terrivelmente corrosiva de sua consciência,
agência e pavor adultos possa mandar sua diversão à merda.
Suas incômodas capacidades de escolha, erro,
arrependimento, insatisfação e desespero serão removidas
da equação. Os anúncios prometem que você será realmente
capaz – finalmente, desta vez – de relaxar e se divertir,
porque você não terá outra opção além de se divertir.
(WALLACE, 2012, p. 117) [grifos do autor]

O narrador demonstra desprezo pelo ideal hedonista


e alienado das classes médias, que sonham descansar de
trabalhos igualmente alienantes nas férias em um cruzeiro
em alto mar. O traço fake das revistas e peças publicitárias,
facilmente associado às próprias pessoas, é denunciado
pelo narrador como “construção da fantasia” pelos
passageiros e não para eles. Ao notar que os consumidores
não percebem o estratagema, o mau humor do narrador
aumenta, alastrando-se pela análise do comportamento
de todos ao seu redor, não se identificando com ninguém.
Dos “colegas” de cruzeiro à tripulação, passando pelos
“terceiro mundistas” da limpeza, nada escapa à crítica
sobre a vida temporária no microcosmo que é um cruzeiro

260
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

de luxo. Microcosmo que reproduz a configuração social


dos Estados Unidos na contemporaneidade, como salta
do texto.
O ser turista é tratado pelo narrador de Uma coisa
supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer como uma
das for mas existenciais da “modernidade líquida”
(BAUMAN, 1998, p. 115), cuja ideia de liberdade ancora-
se na mobilidade absoluta, na ausência de enraizamentos,
o que, na verdade, não procede para todos, sobretudo
em razão das exigências do mercado de trabalho. Assim,
o cruzeiro, na narrativa em questão, simboliza uma
heterotopia, o locus da liberdade do turista em sua própria
cultura, em sua própria vida, que sente a compressão da
transitoriedade, da precariedade, e se deixa levianamente
seduzir, divertir-se momentaneamente, fantasiar, por
agências de publicidade e corporações de turismo,
conforme explica Bauman (2008, p. 200):

Nesses tempos de incerteza e precariedade, a transitoriedade


adquire uma “vantagem estratégica” sobre a durabilidade. Já
não é tão claro qual é a causa e qual é o efeito. Será que a
fragilidade e a vulnerabilidade da condição humana são o
resultado sumário das políticas de vida comuns, que não
reconhecem os objetivos e valores de longo prazo que são
difíceis de ganhar e preservar? Ou, para ser mais exato, será
que as pessoas tendem a preferir satisfações breves porque
pouca coisa no mundo é de fato durável e por isso podemos
esperar que poucos objetivos durem mais do que o esforço
necessário para atingi-los? Ambas as suposições são
parcialmente verdadeiras e cada uma delas transmite uma parte
da verdade. Um mundo saturado de incerteza e a vida fatiada
em episódios efêmeros, requeridos para proporcionar
satisfação instantânea, ajudam-se de maneira mútua.

261
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

A porção fatiada e efêmera da vida “bovina” no


cruzeiro é apresentada pela experiência de um narrador
que funciona como a voz de um guia às avessas para o leitor,
como se dissesse e, muitas vezes, dizendo abertamente,
aconselhando: “se você não foi, não vá!” O suposto lugar
da alegria e da diversão infinitas aparece como o lugar mais
sem-graça, em cores lustrosas e falsas, assim como é
entendida a experiência adquirida nos meganavios: basta
pagar os altos valores para ser “mimado” como nunca
enquanto durar o cruzeiro, numa falsa suspensão da vida
“real” e do enfadonho mundo do trabalho.
Pense na lagosta (2004), texto encomendado pela
Gourmet Magazine, resultou da “cobertura” do 56º Festival
da Lagosta do Maine, que ocorreu entre 30 de julho e 3 de
agosto de 2003, sob o tema “Faróis, Risadas e Lagostas”
(WALLACE, 2012, p. 237). O texto segue uma lógica
similar à “cobertura” da feira agropecuária, abordando
também o desconforto etnográfico do narrador ao se
deparar com a estranheza de tudo o que percebe como
mega, eixo condutor da sua crítica. E, da mesma forma
como estranha os cruzeiros e a concepção estadunidense
contemporânea de lazer, férias, diversão, turismo,
novamente apresenta uma reflexão que sublinha como
pessoal, sobre o status paradoxal do turista na cultura, como
destacado da nota 6:

Minha experiência pessoal não é a de que viajar pelo país seja


relaxante e amplie os horizontes, ou de que mudanças radicais
de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas sim de que
o turismo intranacional é radicalmente constritivo e humilhante
da pior forma – hostil à minha fantasia de ser um indivíduo
genuíno, de viver de algum modo fora e acima de todo o
resto. (Agora vem a parte que meus companheiros julgam

262
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

especialmente infeliz e repelente, um modo garantido de


arruinar qualquer diversão em uma viagem de férias:) Ser um
turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano
contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca
poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir.
É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade
que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em
todas as formas não econômicas, seriam melhores e mais
verdadeiros sem a sua presença. É confrontar, em filas e
engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de
si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de
turista você se torna economicamente significativo mas
existencialmente detestável, um inseto sobre uma coisa morta.
(WALLACE, 2012, p, 243)

A imagem criada ao final da nota parece condensar a


intencionalidade dos três textos em estudo aqui, reiterando
outras imagens que a ela facilmente se associam e que
constituem o fio condutor dos ensaios-reportagens-
crônicas, qual seja: a estrutura desnudada do ethos
estadunidense contemporâneo, marcado pela hipocrisia
ideológica da pausa para uma vida feliz, na feira
agropecuária, no cruzeiro ou no festival da lagosta. Desde
tempos imemoriais, os grupamentos humanos reúnem-se
para festas, para comemorações coletivas, mas Wallace
percebe a conversão dos antigos rituais em algo não apenas
superficial, mercadológico, mas pretensos desvios da
morte, a alienação em sua forma mais brutal, como se fosse
possível não perceber a insatisfação, a corrosão da alma e
do corpo, as lacunas abissais que as diversões programadas,
na visão do narrador, são incapazes de preencher ou
camuflar.
A isso, segue a identificação de que o hábito de
consumir lagostas não é tão antigo e tradicional quanto o
263
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

festival pretende divulgar, na tentativa de estabelecer uma


identidade regional através da festa. Para expor essa ideia,
o narrador vai ainda mais longe, ao propor que se “pense
na lagosta”, o que ninguém é capaz de fazer, justa e
contraditoriamente, no seu próprio festival, conforme
alfineta logo no início do texto: “Para fins práticos, todo
mundo sabe o que é uma lagosta. Como de costume,
todavia, existe muito mais para saber do que a maioria de
nós se importa em descobrir – é tudo uma questão de
interesses pessoais.” (WALLACE, 2012, p. 238). E ele se
propõe a “ajudar” nesse sentido, apresentando uma série
de “fragmentos de evidência” pelo texto, como
informações etimológicas sobre o nome lagosta, como
identificar uma boa lagosta, como preparar lagostas, os
processos migratórios do crustáceo e, até, o mais
impactante do texto, informações científicas contraditórias
sobre a sensibilidade da lagosta à fervura, já que o animal é
torturado para que seja consumido comme il faut, de acordo
com as prescrições gastronômicas mais elegantes, que
contrasta com as cenas descritas do festival, onde tudo é
praticado pela lógica do mais absoluto excesso.
O escrutínio ético sobre a morte das lagostas é o ponto
alto do texto, ainda mais se se considerar a revista que o
encomendou e o público a quem se destinava, em primeira
instância. Mais do que se apiedar pelas lagostas, Wallace
constrói uma crítica ao ser humano, do mesmo modo nada
empático como nos outros textos abordados. E, para isso,
adota o recurso de dirigir-se diretamente ao leitor,
questionando-o de modo incisivo sobre os aspectos éticos
abordados, colocando-se retoricamente na posição de
alguém confuso, sem opinião formada. Após o
encadeamento de uma série de perguntas sobre o fato de

264
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

se pensar na morte e na tortura dos animais para o desfrute


humano do paladar, o narrador afirma:

Não estou tentando importunar ninguém – minha curiosidade


é genuína. Afinal de contas, ser muito consciente, atencioso e
cuidadoso a respeito do que se come e de todo o contexto
englobante não é parte do distingue um verdadeiro gourmet?
Ou toda atenção e sensibilidade extraordinárias do gourmet
devem se limitar ao sensorial? Tudo poderia realmente ser
resumido a uma questão de sabor e apresentação?
(WALLACE, 2012, p. 261).

É desse modo que a questão ética perpassa todo o


texto, com o mesmo tom sarcástico e pouco indulgente
característico de Wallace. No entanto, ao contrário dos
outros textos em foco aqui, em Pense na lagosta o sarcasmo é
construído por um narrar quase pedagógico, explicando o
que é a lagosta, a história da utilização do crustáceo como
alimento e a lógica da Feira da Lagosta do Maine. Ele
mesmo acentua, no parágrafo final, a necessidade de se
pensar, por meio de algo aparentemente banal como o
hábito de pescar e comer lagosta, na complicada relação
entre estética e moralidade, principalmente no caso dos
leitores de uma revista centrada na apresentação de uma
ideia sobre o que seria a “boa vida”. O sentimento durante
a leitura não é do sorriso partilhado pelo sarcasmo, mas a
compreensão de que a condenação da lagosta à tortura e à
morte constitui uma das faces negativas da vida
contemporânea mascarada pela ideologia da pujança da
festa, pautada pelo excesso, pela eterna diversão que um
festival desse tipo pode – falsamente – proporcionar.
Dos três textos sob leitura, depreende-se a ideia
segundo a qual a suspensão do tempo rotineiro

265
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

proporcionada por férias ou eventos culturais jamais é um


mero descanso numa sociedade cujos valores se sustentam
axiologicamente por dicotomias facilmente reversíveis em
discursos de eterna alegria, de satisfação garantida, sem
trabalho, sem esforço, sempre alcançadas à custa do
sacrifício de outrem, seja de trabalhadores “terceiro-
mundistas”, seja de porcos, cavalos ou mesmo lagostas. E
tudo isso sem incorrer em discursos politicamente corretos
prontos; pelo contrário, problematizando-os também.

(In)Conclusões

É evidente que o enfrentamento dos textos de David


Foster Wallace não se esgota numa leitura como a aqui
apresentada, quase inspecional, considerada a riqueza da
produção do escritor-jornalista-antropólogo em estudo. No
entanto, mesmo essa mirada preliminar, mais curiosa do
que propriamente analítica, permite vislumbrar o
esgarçamento das fronteiras, das margens entre gêneros,
campos, profissões e posicionamentos estético-políticos.
Do olhar dispensado aos três ensaios-reportagens-narrativas
de Wallace ressalta a importância de se discutir, na esteira
das propostas teóricas contemporâneas, o status das
classificações genéricas e as vontades nomeadoras, cujas
forças tentam se impor a todo custo mesmo num tempo
cuja marca parece mesmo ser a impureza, a aporia, a
indecidibilidade.
O que cabe, talvez, perguntar é, justamente, para que
servem as classificações de gênero para além de fomentar
disputas que as ultrapassam, pois funcionam apenas como
pretexto, e para além da funcionalidade didático-
pedagógica? Em que medida a defesa das regras de

266
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

constituição de textos a partir de constrangimentos de


gênero afiança garantias efetivas de melhor comunicação
com o leitor? Não pode cada texto estabelecer o próprio
pacto fiduciário, a partir da medida entre expectativas
previamente construídas e novidade?
Enfim, infinitas questões podem ser interpostas sem
respostas definitivas. O romance é considerado gênero, mas
as possibilidades de exploração estética são infinitas. O
mesmo ocorre com as produções sem amparo em
categorizações de gênero pré-fixadas, orientando-se, ao
contrário, pela extrapolação, pela “confusão dos gêneros”,
a depender quase exclusivamente da criatividade de
jornalistas e/ou escritores e do tipo de contrato que são
capazes de estabelecer com seus públicos. A
experimentação parece ser a marca sem ser uma convenção.
Como destaca Ferreira Jr. (2003), a partir de diversos
autores que se debruçaram sobre as relações entre
jornalismo e literatura, o traço desse tipo de produção de
fronteira tem sido a inovação, o que quer que isso signifique.
O escritor David Foster Wallace destaca-se como um
caso sintomático, dentre tantos outros. Sua capacidade de
percepção dos ambientes, com descrições sensoriais
minuciosamente construídas, conseguem quase transportar
o leitor. Por outro lado, a narração dos episódios dos quais
participou não aparenta grandes inovações técnicas, a não
ser no que diz respeito ao estilo e à mescla entre reportagem,
ensaio e crônica, permanecendo os textos e as experiências
de lê-los numa zona limítrofe entre todos esses tipos de
texto sem causar estranheza, a não ser desconforto, efeito
da sinergia entre reportagem e ensaio.
Assim, pelo atendimento à “borragem” entre os
gêneros, favorecendo uma experiência diferente ao leitor

267
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

do que proporcionariam os textos caso seguissem as


convenções de cada gênero mesclado, poder-se-ia dizer
da produção de Wallace em foco que são objetos culturais
contemporâneos elaborados por procedimentos também
contemporâneos. No entanto, uma assertiva como essa
pareceria um contrassenso por natureza, já que se afirma
aqui a impossibilidade de categorizações cabais. E também
porque, sob alguns aspectos, ao final da leitura, tem-se a
impressão de que o olhar lançado à sociedade reproduz
um posicionamento mais moderno do que
contemporâneo, pois a crítica negativa se evidencia na
superfície, assim como um certo posicionamento
distanciado, algo pedante, das realidades com as quais
Wallace se deparou.
Disso conclui-se que as tensões que dão título a este
texto ultrapassam as regras de gênero ou os campos
profissionais e/ou discursivos em suas pretensas
autonomias, assumindo contornos ainda mais sofisticados
em termos de “confusão”, sempre no sentido apontado
por Kramer (1995, p. 12), segundo quem “o objetivo do
jornalismo literário é cruzar campos, casar, reconectar
nossa experiência moderna compartimentalizada”. Se são
outras as experiências, a manutenção dos padrões não se
justifica mas, se um escritor-jornalista-antropólogo
pretender identificar as idiossincrasias do presente e
plasmá-las na confluência entre jornalismo e literatura,
mesmo assim, não se trata exclusivamente de uma questão
de linguagem, mas de posicionamento discursivo, que
envolve tensões de ordem ética, estética e política. E os
problemas permanecem, assim como a “configuração
padrão natural” (WALLACE, 2012), em tensão com as
forças que insistem em resistir.

268
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

REFERÊNCIAS

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YAGODA, B; KERRANE, K. (eds.). The Art of Fact – a historical
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270
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

11

O ASSOMBRO COMO ORIGEM DA


LITERATURA MEXICANA
MARÍA EUGENIA FLORES TREVIÑO
UNIVERSIDAD AUTÓNOMA DE NUEVO LEÓN – MÉXICO (UANL-MX)

Este capítulo pretende oferecer algumas ideias,


sumamente esquemáticas, sobre o surgimento e a essência
da literatura mexicana, de suas primeiras expressões, para
brindar um panorama sobre as raízes culturais da palavra
no México, de um enfoque transdiciplinar que abarca a
historia, a literatura e a sociedade.
Propõe-se, com base nas ideias de César Fernández
(1984), o assombro como a gênese da expressão literária
271
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

mestiça no México, pois se considera que o insuspeitado, o


insólito e o inesperado geram no ser humano capacidades
verbais estéticas inéditas, que o levam ao emprego da
linguagem, da língua de maneira original e extraordinária.
Cada época encontra seus próprios motivos para
assombrar-se. O homem primitivo o teve com o fogo, o
da Idade Média com a pólvora, o homem do Renascimento
com a bússola e o astrolábio, o da modernidade com a
penicilina, com a eletricidade, com a estrutura do átomo,
com o cinema; enfim, o gênio do homem assombra ao
próprio homem. Interessa deter-se especificamente num
acontecimento como ponto de partida: o chamado
Descobrimento da América. Independentemente do debate que
o termo “descobrir” suscite. Pois, no México dos anos 80,
graças ao estudo de Edmundo O´Gorman (1984), assistiu-
se à discussão sobre “descobrimento” versus “invenção”.
É indubitável que a chegada dos espanhóis a terras
caribenhas em 1492 e a chegada às costas mexicanas de
Hernán Cortés em setembro de 1519 geraram uma profunda
transformação cultural e linguística em ambos os povos.
Igualmente deram lugar a uma riquíssima geração de textos
cujas características se localizam na fronteira entre o
histórico e o literário, e é precisamente esse caráter de textos
limítrofes que permite situá-los nas origens da expressão
estética mexicana. Já que o homem, admirado, aturdido e
às vezes espantado com o que testemunha ou vive, elabora
fábulas, lendas e narrativas de índole sumamente singular.

Contexto histórico

A partir de 1492 a concepção de mundo para os


europeus se modifica (O‘GORMAN, 1984). As viagens

272
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

de Colombo e a sua façanha posterior do “descobrimento”


da América trouxeram como consequência a reestruturação
da ideologia que predominava no hemisfério oriental:
destruíram-se as ideias cosmogônicas até então aceitas e
validadas pela igreja (como a teoria ptolemaica das sete
esferas); um fato que se, por um lado, ocasionou a comoção
da igreja, por outro, também colocou em crise o até então
estabelecido conceito da ecumene. Havia uma corrente que
sustentava a teoria do orbis terrarium, oposta ao orbis alterium,
pela qual se afirmava que só o mundo conhecido,
cristianizado e civilizado era possível. Tudo que fosse
estranho a esse mundo familiar não se considerava da
mesma qualidade e nem possuía a mesma essência. Ao
“aparecer” o homem americano, surgiram varias discussões
nos campos do saber conhecido. Entre elas, uma de natureza
filosófica: eram eles por acaso homens? Porque as
expectativas estavam orientadas em outra direção, como
se vê em um fragmento da carta escrita pelo almirante
Colombo (1493):

En estas islas fasta aquí no he hallado ombres mostrudos como


muchos pensauan, mas antes es toda gente de muy lindo
acatamiento, ni son negros como en Guinea, saluo con sus
cabellos correndíos, y no se crían adonde ay ímpeto demasiado
de los rayos solares […]1

À pergunta sobre a condição humana ou não do natural


da América responde Francisco Vitoria, articulando a
filosofia e a jurisprudência, em sua obra De indiis
(BURILLO, 1988), onde propõe os direitos dos naturais
americanos tão somente por sua condição humana. E com
1
COLÓN. Carta de Colón a Luis de Santángel, 1493.

273
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

a aceitação da existência de outros seres, surge uma nova


missão religiosa para a igreja: os homens das novas terras
eram por acaso filhos do Deus único? Não eram. Havia,
portanto, que evangelizá-los. A corrente evangelizadora é
outra fonte de expressões estéticas sobre o México, chamada
pelos europeus de “A Nova Espanha” (O mesmo nome
assignado é semanticamente transparente!)
Graças a esses fatos e a cartas, relatos e relatórios que
tanto Colombo como os outros atores de evento dirigem
aos monarcas e conterrâneos espanhóis, vai-se narrando,
descrevendo, recriando e mesmo criando esta nova
realidade, esta imensa possibilidade de dar matéria ao não
concebido.

Yo miré todo aquel puerto y después me volví a la nao y di a


la vela, y vide tantas islas que yo no sabía determinarme a cuál
iría primero. Y aquellos hombres que yo tenía tomado me
decían por señas que eran tantas y tantas que no había número, y
anombraron por su nombre más de ciento […] 2

Uma realidade para a qual não havia equivalente. É


assim que os fatos que acompanharam o surgimento de
outra inusitada fração do mundo, e dos quais se tem a
evidência graças à historia, funcionaram à maneira de
incentivo, tanto para desatar o imaginário europeu, como
para dar rédea solta ao espírito de aventura do
Renascimento.
Segundo César Fernández (1984), como fatores que
influenciaram como incentivo ao “descobrimento”,
colonização e domínio do Novo Mundo, podem-se
considerar os seguintes:
2
COLÓN. El diario de Colón, 1492, p. 33).

274
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

1 - O espírito guerreiro: a hegemonia imperialista, a


influência que predominou entre os viajantes do desejo de
possuir domínios, cada vez em número maior.
2 - O espírito evangelizador: a crença na designação
da nação espanhola como a eleita pela divindade para
estender o conhecimento da religião cristã.
3 - A cobiça: sustentada na imagética dos
descobridores e conquistadores; a promessa de mulheres,
ouro, posses e nome, um patrimônio que não era muito
fácil de obter no lugar de origem.
4 - É pertinente esclarecer que, ainda que este conjunto
de fatores tenha sido determinante ao ímpeto conquistador
espanhol, não teria sido ele suficiente para alcançar o triunfo
que obtiveram os colonialistas espanhóis, se o pensamento
religioso dos indígenas mexicanos tivesse sido diferente.
No Códice Florentino (1580) elaborado a partir dos
testemunhos dos informantes de Bernardino de Sahagún,
assim como na Historia de Tlaxcala de Diego Muñoz
Camargo, contam-se oito presságios funestos que viveram
os povos mexicanos antes da Conquista, e que foram signos
proféticos que predispuseram seu ânimo antes da chegada
dos espanhóis:
- A aparição de uma aurora no céu em pleno dia.
- O incêndio espontâneo, sem causa alguma, do templo
de Huitzilopochtli.
- O raio que consome o templo de Xiutecuhtli, sem
haver chuva ou trovão, e a chuva fina repentina que cai
somente sobre ele.
- A aparição de seis enormes cometas em pleno dia,
cruzando o céu.
- Sem vento algum, o lago mexicano ferve, espuma e
transborda, inundando a cidade.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

- A voz de mulher, sem corpo, que às margens do lago,


noite após noite, se ouvia chorando com alaridos e
lamentando a sorte dos mexicanos.
- A aparição de um pássaro com um espelho na cabeça,
onde, ao olhar-se nele, se viam as hostes espanholas e
mexicanas em guerra. Uma ave que logo desapareceu.
- A manifestação de homens com duas cabeças que,
ao serem levados ante Moctezuma, desapareciam sem
deixar rastro.
Cada um dos textos dessas profecias constitui por si
mesmo um fato de ficção matizado de religião e cosmologia.
Na teogonia indígena mexicana, os nativos acreditavam
numa embaixada celestial (homens brancos e barbados) que
viria para determinar a rota que haveria de seguir sua cultura.
A embaixada profetizada encontra sua encarnação na
comitiva espanhola, liderada por Hernán Cortés que é
tomado pelo deus Quetzalcóatl, e seus soldados, por deuses
como ele. Seguramente a dominação estrangeira teria sido
menos fácil, se o imaginário asteca, se os mitos messiânicos
que existiam não tivessem criado uma aura divina ao redor
dos primeiros espanhóis que se propuseram conquistar o
México. Um exemplo disso se encontra no processo da
conquista da cultura maia do sul de México: um reino
estruturado e com uma grande hegemonia semelhante à do
reino mexica, que acreditava no mito de retorno do deus
Kukulcán - equivalente ao deus Quetzalcóatl dos toltecas y
astecas ou mexicas - mas já se sabia que os espanhóis eram
seres humanos e não deuses. A comprovação da
predisposição originada pelas profecias nos mexicas é que
aos maias, pelo contrário, tal conhecimento os levou a resistir
valentemente à conquista espanhola, tanto que se viu
consumada até vinte anos depois de seu início. Um aliado

276
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

mais que tiveram as hostes hispanas foram as epidemias


que dizimaram a biologicamente inerme raça
mesoamericana.
O século XVI marca o período de grande expansão
do imperialismo espanhol na Mesoamérica. Realizam-se
viagens de “descobrimento”, conquista e colonização de
novas regiões, as quais se juntam às já conhecidas e
submetidas à coroa espanhola. Introduz-se a pecuária,
exploram-se a agricultura e a mineração, empregando a
abundante e gratuita mão de obra indígena.
No século XVII, inicia-se um período de decadência
na Espanha e em seus domínios. A falta de mão de obra
moura, a imprevisão econômica da monarquia, a perda do
domínio dos mares e o constante crescimento da população
crioula e mestiça da América que despertava um sentimento
de nacionalismo pelas novas terras, a diminuição de
trabalhadores indígenas pela mortalidade foram os
principais fatores que determinaram a crise no imperialismo
espanhol.
A partir de então, a região mesoamericana
correspondente ao México inicia uma paulatina
independência da tutela espanhola. Esta é um processo
favorecido pela enorme distância que separava Espanha e
suas possessões neste continente assim como pelo crescente
sentido de autonomia dos habitantes das colônias americanas,
que começam a ser executores de suas próprias leis.
Fatores culturais acrescidos a esta nascente
emancipação constituíram o Século de Ouro espanhol, com
auge na arte e na literatura hispânicas; a expansão da língua
castelhana na América colonizada, assim como o auge das
Universidades e seu papel como forjadoras intelectuais da
nova mentalidade americana.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

O assombro como origem da literatura mexicana

A filosofia nasce com o assombro (secundo Aristóteles,


in Metafísica, AZCÁRATE, 1875). Todo insólito é
maravilhoso. O espírito se comove ante o desconhecido,
ante o inesperado e inusitado. É por isso que

O assombro é o que marca, o que inicia e decide. Sem


assombro não se chega a parte alguma. Sem ele se está a
expensas do que nos contam, dos assombros talvez dos
demais, sem construir por nós mesmos, pequenos filósofos
da vida e que somos parte integrante do assombro a que nos
devemos eludir, se é que pretendemos ser protagonistas de
nosso mundo. 3

Segundo Fernández (1984), a fascinação foi o estado


de ânimo comum que experimentaram os espanhóis que
aportaram na Mesoamérica, seja na condição de
descobridores, conquistadores ou colonizadores. É
compreensível a sua circunstância: chegaram a um lugar que,
primeiro, acreditavam inexistente, desabitado por seres
humanos, mas ocupado por entidades inferiores a eles. A
tais expectativas se opõem, de um lado, uma natureza
pródiga e exuberante com uma flora e fauna inimaginadas,
um sistema de governo admiravelmente estruturado e uma
classe de homens e mulheres não concebida por eles; e, de
outro, a possibilidade de exercer o poder sobre extensas
terras e numerosos povos dessa índole. Essas sensações as
expressa o evangelizador:

3
(http://www.filosofia.mx/index.php?/perse/archivos/la_filosofia_comienza_
con_el_asombro)

278
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Otro día por la mañana llegamos a la calzada ancha y vamos


camino de Estapalapa. Y desde que vimos tantas ciudades y
villas pobladas en el agua, y en tierra firme otras grandes
poblaciones, y aquella calzada tan derecha y por nivel cómo
iba a Méjico, nos quedamos admirados, y decíamos que parecía
a las cosas de encantamiento que cuentan en el libro de Amadís,
por las grandes torres y cúes [adoratorios que nuestros
antepasados realizaron con roca]y edificios que tenían dentro
en el agua, y todos de calicanto. Algunos de nuestros soldados
decían que si aquello que veían, si era entresueños, y no es de
maravillar que yo escriba aquí de esta manera, porque hay
mucho que ponderar en ello que no sé cómo lo cuente, ver
cosas nunca oídas, ni vistas, ni aun soñadas, como veíamos
(DIAZ DEL CASTILLO, 1568).

O assombro, porém, não é unilateral.


Os mexicanos também se maravilham com “centauro”
espanhol com capacidade de dividir-se em animal, um cavalo;
ficam surpresos com a admirável confirmação da profecia divina
do retorno, materializada na pessoa dos espanhóis; de seu braço
que é capaz de produzir trovão e fogo simultaneamente; com
sua pele “tão branca como o sol” (recordemos como chamam
a Pedro de Alvarado, de Tonatiuh - quer dizer “o sol”) e de seu
corpo inacessível (sua armadura), que suas flechas não podiam
penetrar. Os naturais mexicanos creem, diz Fernández (1984),
que os cavalos comem cobre, porque os veem mordendo o
freio, e assim, quando os espanhóis lhes pedem alimento para
esses animais ... dão-lhes ouro!
A estupefação é mútua.Havia tantos elementos que se
constituiram em uma fonte constante de admiração, de
maravilha incessante, de assombro contínuo; como também
sucessos que foram causa de horror, espanto e pavor para
os seres humanos que se veem envolvidos nos feitos do
descobrimento e da conquista mexicana.
279
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Assombro e poiesis

“A história do homem poderia reduzir-se às relações


entre as palavras e o pensamento.” (PAZ, 1986, p.29)
O assombro é a marca que acompanhará a jovem
América ao longo de sua história e sua literatura, pois será
motivo de novidade e fascinação cada traço seu ante os
olhos do Velho Mundo.
Tem-se dito que o assombro é a porta do
conhecimento, mas também da criação, da construção... da
poiesi4 através da linguagem. Os espanhóis se encontram com
realidades para as quais não possuem nome; testemunham
sucessos inéditos para os quais se requerem construções
linguístico-literárias quando devem falar deles; os antigos
mexicanos devem buscar modos de nomear o trovão, ao
sol personificado.
Por outra parte, já Aristóteles em sua Arte poética (2000,
p. 17) assinala que o ato de imitação é natural ao homem e
que o prazer que produz em quem o experimenta provêm
do fato de serem inatos; ou seja, ser poeta é natural do
homem, daí poder criar arte intencionalmente ou não, e
fazer desabrochar essa criação em seu desempenho
linguístico cotidiano.
Da mesma forma, a afinidade existente entre a fala e a
poesia tem sido abordada por Octavio Paz (1986, p. 21),
quando afirma que a linguagem falada está mais próxima
da poesia do que da prosa por ser menos reflexiva e mais
natural, de onde ser mais fácil “ser poeta sem sabê-lo que
prosador”. O autor atribui esta aptidão ao fato de que a

4
Platão define n´O banquete o termo poiesis como «a causa que converte qualquer
coisa que consideremos de não-ser a ser».

280
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

fala é produto “de tendências espirituais interiores”. Resulta


daí que a fala é uma projeção do eu emotivo. A palavra é
um instrumento para exteriorizar a concepção de realidades
estranhas e imprevistas.Como falar do nunca visto? Como
dar nome ao desconhecido? Como transmitir a fascinação,
o arroubo, a maravilha, o horror ou a surpresa
testemunhada?
Os homens desse tempo deveriam resolver a
encruzilhada desempenhando o papel de escritores.
Impulsionados pela necessidade de narrar (ao rei, a seus
superiores, a seu país, ao mundo) encontraram a solução
no processo ficcional. O uso estético da linguagem foi o
veículo mediante o qual hispanos e mexicanos deram
testemunho de tão fabulosos sucessos.
E isto porque, como afirma Markiewicz (2010,
p.122), “tratamos como ficção os eventos que estão em
clara contradição com nossos conhecimentos empíricos.”
Este autor propõe que nos assuntos de teoria literária,
como no caso da produção de que se ocupa aqui, pode
acontecer que, nos gêneros conhecidos como ficcionais,
apareçam certas proposições que tendem à veracidade,
mas também à inclusão de personagens e eventos tomados
da realidade. Nesse caso se procede de duas maneiras:
“ou se afirma que no contexto romanesco também eles
[eventos e personagens] têm sofrido ficcionalização, ou
se afirma que os textos em que se encontram devem ser
tratados como híbridos, não homogêneos, encontram-se
como enclaves da história no contexto da ficção.”
(MARKIEWICZ, 2010, p.123). Com os textos produzidos
neste período aqui comentados, está-se ante ambos os
casos pois, assim como são co-criados os fatos e os
indivíduos, existe também uma hibridação que antecipa

281
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

as rupturas do cânone5. Os textos de que se fala são épico-


líricos, épico-dialogados, romances autobiográficos,
histórias romanceadas.
A razão é a ductilidade da escritura criativa; da
possibilidade de ressignificar o evento ou a pessoa no
campo da criação. Esta virtude é declarada pelo autor em
questão: “Graças à ficção, pois, a imagem literária da
realidade desvela as marcas essenciais e tendências do
desenvolvimento desta, mais claramente do que poderiam
fazer a relação fotográfica e a pesquisa científica.”
(MARKIEWICZ, 2010, p.127).
O estudioso explica uma tarefa realizada pela literatura
ficcional contemporânea, mas que, sem nenhum problema,
se poderia comparar ao processo da fabulação do
descobrimento e da conquista, porque os protagonistas foram

Criando seus mundos possíveis, descreve(ndo) de novo e


reinterpreta(ndo) o mundo real, fazia(m) presente o que era
negado ou omitido nas opiniões oficiais, rompia(m) os
estereótipos estabelecidos, explorava(m) domínios ainda não
administrados pela ciência. (MARKIEWICZ, 2010, p.127).

O criador, em seu trabalho, certamente possui uma


liberdade que não se encontra em numa outra atividade:
“aos escritores cabe o direito à conjectura intuitiva, à
hipótese artística, frequentemente descobridora e admirada
pelo cientista.” (MARKIEWICZ, 2010, p.127). O processo
de fabular é apropriado para contar as experiências,
transmitir e compartilhar as emoções vividas, razão pela
qual Fernando Gómez Redondo aponta que a ficção
5
Cf: GARCÍA Berrio, A. e J. HUERTA, J. (2006) Los géneros literarios. Sistema e
historia, (Madrid:Cátedra) cujo estudo sobre gêneros revê em detalhe esse aspecto.

282
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

[…] é razão de que [em] todas as culturas primitivas ou


evoluídas, em todas as línguas [...] o ser humano tenha
construído narrativas com o fim de conhecer-se, de analisar-
se, conseguir, em suma, um modelo explicativo de sua
identidade e das razões que conformam suas existências.”
(GÓMEZ, 2001, p. 127).

Este autor defende que é o processo de ficcionalização


que permite ao homem expressar sua realidade, seu mundo.
Nos assombrados atores do encontro cultural a que se
refere, encontrava-se a alternância entre a realidade existente
e aquela que se conhece pela voz poética:

Y no le parezca a vuestra majestad fabuloso lo que digo, pues


es verdad que todas las cosas criadas así en la tierra como en
la mar, de que el dicho Mutezuma pudiese tener conocimiento,
tenían contrahechas muy al natural, así de oro como de plata,
como de pedrería y de plumas, en tanta perfección, que casi
ellas mismas parecían; de las cuales todas me dio para vuestra
alteza mucha parte, sin otras que yo le di figuradas y él las
mandó hacer de oro, así como imágenes, crucifijos, medallas,
joyeles, collares y otras muchas cosas de las nuestras, que les
hice contrahacer… 6

Dessa maneira, produz-se um vaivém semântico em


que o narrador envolve ao seu receptor e o desloca de um
ponto da realidade a outro coincidente na ficção. Essa
sensação de ir e vir de um plano a outro pode-se explicar,
de acordo com as ideias de Gómez, porque

[…] a ficção não é o contrário do real, mas precisamente a


imagem que do real pode-se constituir-se. É mais: a ficção é a

6
CORTÉS, Segunda Carta de Relación, 30 de octubre de 1520

283
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

única imagem da realidade que se pode conhecer. Ou o que


seria o mesmo; através da ficção, o indivíduo pode pôr-se
em contato com a realidade que o rodeia. (GÓMEZ, 2001,
p. 128)

É por isso que os narradores indígenas, frades,


soldados ou descobridores realizam uma rica tarefa de
nominação, imagética e ficção que vai construindo a imagem
do encontro entre as duas culturas:

Aquí son los peces tan disformes de los nuestros que es


maravilla. Hay algunos hechos como gallos de las más finas
colores del mundo, azules, amarillos, colorados y de todas
colores, y otros pintados de mil maneras; y las colores son tan
finas que no hay hombre que no se maraville y no tome gran
descanso a verlos 7
Yo quise ir a surgir en ella para salir a tierra y ver tanta
fermosura; mas era el fondo bajo y no podía surgir salvo
largo de tierra, y el viento era muy bueno para venir a este
cabo adonde yo surgí agora, al cual puse nombre Cabo
Fermoso, porque así lo es8

Protagonistas de um episódio inesperado, tornam-se


criadores da imagética que guiará as concepções sobre as
terras ao outro lado do oceano:

O globo terrestre, pensa Colombo, não é uma esfera perfeita;


pelo contrário, sua forma é a de uma pera ou de una bola que
tivesse uma protuberância como um seio de mulher cujo
mamilo estaria abaixo da linha equatorial no “fim do oriente”,
diz, e é, esclarece, onde termina a terra e suas ilhas adjacentes,
ou seja, no extremo oriental da Ilha da Terra. No topo desse

7
COLÓN, El diario de Colón, 1492, p. 38
8
COLÓN, El diario de Colón, 1492, p. 41.

284
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

grande monte ou seio, […] em pleno oceano a uma distância


de cem léguas dos Açores, se encontra o Paraíso Terrestre
[…] a conclusão era óbvia: como a terra de Paria estava “no
fim de oriente”, era vizinha do equador e mostrava as
qualidades da região mais nobre da Terra, e como, por outro
lado, as observações celestes revelavam que a frota havia
navegado costa acima a partir do merediano marcado por
aquelas cem léguas dos Açores, parecia natural pensar que
[…]”Eu muito assentado tenho no ânimo que ali, onde disse,
é o paraíso terrestre.” (O´GORMAN, 1984, p. 37).

Experimentam-se novas formas de expressão, com


inovadoras aproximações à revelação da essência do objeto.
Nessa época se encontram, como em toda conjuntura
histórica e sócio-filosófico-cultural, as características
apontadas por Octavio Paz (1998, p. 45) para a
modernidade: a confluência, a sincronia, a conjunção de
tempos, de espaços que “tendem a dissolver e a justapor
as divisões do antes e depois, o anterior e o posterior [...]
o interior e o exterior” .
Com respeito às características da criação através da
palavra, acertadas são as palavras de Fernando Gómez
Redondo (2001,p.129):

É indubitável que o indivíduo somente possui limitadas certezas


daquilo que crê real; a linguagem é o único instrumento com
que pode dominar esse mundo, cheio de aparências em que
vive: as palavras que se conhecem equivalem a conceitos ou
objetos de que se pode servir no processo da comunicação...
as orações de que se é capaz de organizar representam os
esquemas com que se pode transmitir determinadas idéias.
Desta forma, o ser humano está condenado a conhecer
fragmentariamente a realidade, restringido pelas limitações e
as carências linguísticas que o dominam.

285
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

O processo de articulação que se efetua na


ficcionalização da realidade é complexo, e corresponde ao
esquema que propõe Fernando Gómez Redondo, bem
apropriado para ilustrar esta exposição:
O processo da construção narrativa, segundo Gómez
Redondo (2001, p.133).

Na figura se observa a articulação da realidade através


de seu veículo de recriação: a ficção; e igualmente se observa
como por meio do processo de estruturação do discurso
ficcional se produz o vínculo com o leitor e a realidade que
a este concerne, a qual lhe permite interpretar a proposta
do autor.
O que não era é… ressignifica o que existia; os objetos,
os seres, a natureza se vestem com nomes novos:

Hallaron los dos cristianos por el camino mucha gente que


atravesaba a sus pueblos, mujeres y hombres, con un tizón en
la mano, hierbas para tomar sus sahumerios que
acostumbraban9
9
COLÓN, El diario de Colón, 1492, p. 56.

286
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

La cual ciudad es tan grande y de tanta admiración que aunque


mucho de lo que de ella podría decir dejé, lo poco que diré
creo que es casi increíble, porque es muy mayor que Granada
y muy más fuerte y de tan buenos edificios y de mucha más
gente que Granada tema al tiempo que se ganó y muy mejor
abastecida de las cosas de la tierra, que es de pan, de aves,
caza, pescado de ríos y de otras legumbres y cosas que ellos
comen muy buenas. Hay en esta ciudad un mercado en que
casi cotidianamente todos los días hay en él de treinta mil
ánimas arriba, vendiendo y comprando, sin otros muchos
mercadillos que hay por la ciudad en partes. En este mercado
hay todas cuantas cosas, así de mantenimiento como de vestido
y calzado, que ellos tratan y puede haber. 10

Nominação, posse, invenção e mímesis

O ato de nomear implica exercer o poder sobre o


nomeado, portanto envolve coação e coerção. A nominação
tem transcendência social. O fato de atribuir nomes,
adjetivos… designações favorece a taxonomia cognitiva,
mas também sócio-ideológico-cultural.
A questão da nominação conta com uma extensa
tradição na filosofia da linguagem. Esta reflexão se apoia
em Thiebaut (1990, p.35) em seu estudo em que enuncia
(ao referir-se ao nome próprio) que: “com um nome damos
referência a esse alguém que, sem ele, pareceria carecer de
entidade […] buscamos, de entrada, um nome que fixe uma
identidade, uma entidade, um ser-alguém.” Para este autor
“nomear é […] estabelecer a conexão semântica dessa
palavra que é um nome” (THIEBAUT, 1990, p. 36) com
uma realidade ou referente.

10
CORTÉS, Cartas de Relación, Tlascaltecal hoy Tlaxcala, 30 de octubre de 1520.

287
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Este estudioso adverte sobre a necessária discussão


com relação à “possibilidade de que a referência não esteja
corretamente estabelecida por erro ou por intenção”
(THIEBAUT, 1990, p. 36). Este é um assunto que não se
discutirá neste espaço mas que há que considerar por estar-
se ante a designação unilateral efetuada por ambas as partes.
Os dominantes e os dominados nomeiam com “nomes
novos” realidades que já possuíam sua própria designação
antes do olhar de outro: para uns é um novo mundo, para
outros é uma profecia cumprida. Os textos que deste
encontro resultaram diz Todorov (1989, p. 60) que se
aproximam mais “do verossímil que do verdadeiro”
De acordo com Thiebaut (1990, p.36), quando
pretendemos saber quem somos, inquirimos não só sobre
“o nome (‘sou/somos’ ‘x’), mas também [acerca] de uma
identidade em um sistema prefixado de crenças ou de signos
(‘sou ‘x’ - que quer dizer a, b, c’)”. Nesse raciocínio, o autor
destaca a função da nominação que posiciona o sujeito
nomeado não somente como oposto aos que não são como
ele, mas também como referência a outros semelhantes a ele
e igualmente nomeados. Da mesma forma designa ao
indivíduo em relação com o que nessa linguagem possa ser
dito. É necessário considerar estes argumentos, porque senão
só podemos conceber o mundo a partir de nós mesmos.
E o que projetamos a partir da linguagem está de acordo
“com a teoria humboldtiana de que as línguas determinam
as pautas do pensamento, ou a concepção do mundo nas
sociedades que as utilizam” (LYONS, 1980, p. 237).
Vejamos a seguir uma aplicação do antes dito:

A la primera que yo fallé puse nombre Sant Saluador, a


comemoración de su Alta Magestat, el qual marauillosamente

288
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

todo esto an dado; los indios la llaman Guanahaní. A la segunda


puse nonbre la isla de Santa María de Concepción, a la tercera,
Ferrandina; a la quarta, la isla Bella, a la quinta, la isla Juana, e
así a cada una nombre nueuo. 11

De acordo com Todorov (1989, p.35), Colombo se


faz hermeneuta em um paraíso, um mundo virgem em que
tudo devia receber um nome justo - se já o tinha ou não
importava - e os nomes que outorgou, como se observa no
exemplo, correspondem à hierarquia que os objetos
associados a esses termos tinham para um homem de seu
tempo e circunstância: “Deus, a Virgem Maria, o rei de
Espanha; a rainha; a herdeira real”.

A expressão mestiça surgida na conquista e


colonização mexicana

O descobrimento, conquista e colonização do México,


como se tem dito, propiciaram uma recolocação de
múltiplas questões: a filosofia, a cosmogonia, a geografia,
o direito, a religião e outras ideias tiveram que sofrer
modificações radicais.
O processo de aculturação - representado pelos
diversos tipos de contatos, entre os países e povos
envolvidos para impor a cultura de um deles ao outro -
que se impôs ao México foi violento. Levou à desintegração
da identidade mexicana, da religião sustentada e à imposição
de instituições, sistemas de governo, e à expropriação dos
recursos naturais e humanos. Os fatos mencionados
trouxeram como consequência a sintetização dos elementos

11
COLÓN. Carta de Colón a Luis de Santángel, 1493.

289
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

sobreviventes das culturas indígenas com aqueles que o


colonizador europeu tratava de instituir.
A proliferação de uniões entre espanhóis e índias, nas
quais não houve preconceito racial – ainda que, sim, houve
nos resultados delas – trouxe como consequência a origem
de um novo homem americano: o mestiço que reunia em si
não só o sangue indígena e espanhol como também as raízes
de ambas as culturas em confronto. Seu destino estava
marcado pelo impasse de orientar-se para uma das duas
correntes espirituais e culturais. Este novo homem, não sem
sofrimento e desassossegos, deu-se conta de que a solução
era pertencer a ambas.
Ocorria muitas vezes que o mestiço ficava num estágio
intermediário, ou seja, no meio de ambas identidades, sem
conter nenhuma das duas: é o que se poderia chamar, nas
palavras de León-Portilla nepantlismo (1976, p. 18), que
produzia nesta nova raça um estado de insegurança, de
necessidade de identificação, que ainda pode perceber-se em
quem emigra de nosso país ao vizinho do norte (o culto à
virgem de Guadalupe, o bigode, as cores da bandeira e a
exaltação da raça são alguns dos motivos que delatam essa
necessidade). Embora, como já disse, não existissem
preconceitos raciais para as uniões sexuais entre espanhóis e
índias, os havia sim quando se referia ao lugar social que
correspondia aos mestiços naquela sociedade. León Portilla
(1976, p. 118) afirma que na consciência do mestiço estava a
concepção de sua origem como resultado de uma “união
passageira, talvez com violência e não no plano da igualdade”.
Esta é a motivação que levará ao homem da nova raça a
buscar em suas raízes algo que o identifique, que lhe revele a
essência de seu ser, a afirmação de sua existência. Resulta
portanto, uma urgência, a busca de sua própria expressão.

290
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Segundo César Fernández (1984), a literatura, a partir


de Colombo, poderia já contar com elementos mestiços.
Através da linguagem se empreende a busca de palavras,
termos com que expressar o que se percebe, o que se encontra,
o que se observa. Tem-se que acudir ao símile, à comparação,
ao lítote, à hipérbole, à perífrase, à metonímia e à metáfora
para construir a expressão sobre a América. E ainda assim
os símiles resultam às vezes insuficientes, tanto que houve
que adotar termos americanos para nomear os objetos:

Así que mostruos no he hallado ni noticia, saluo de una ysla


que es aquí en la segunda a la entrada de las Yndias, que es
poblada de una iente que tienen en todas las yslas por muy
ferozes, los qualles comen carne umana. Estos tienen muchas
canaus [canoas], con las quales corren todas las yslas de India,
roban y toman quanto pueden […] 12

O tema americano, o assunto mexicano, em vozes


hispanas que fazem referência a ele tratando de sanar as
distâncias geográficas, resolvendo a diferença entre as
realidades que se tomam como referência e as que surgem
ante os olhos, começa a conformar nos europeus o
imaginário sobre nossas terras… Começa o hibridismo
temático-linguístico; semântico-léxico, inicia-se a
mestiçagem linguística, principia a mescla cultural.
Embora neste estudo se tenha discorrido sobre as
primeiras penas europeias, é tempo de comentar como os
mestiços (alguns não o são pela raça, sim o são pela cultura,
pois se educam em colégios de padres espanhóis e escrevem
suas obras em castelhano) nobres, cultos e possuidores da
língua dos vencedores ocupam-se em projetar em suas
12
COLÓN, Carta de Colón a Luis de Santángel, 1493.

291
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

obras esse desejo de exaltação do sangue indígena, que em


seu tempo era denegrido. Viveram situações sócio-culturais
bastante singulares. Eram aceitos com reservas. Eram
aceitos seja por sua ascendência indígena nobre, ou por seu
pai espanhol, mas em ambos casos não deixavam de sofrer
marginalização por sua raça, ou por sua bastardia. Basta
citar alguns exemplos:
Domingo Francisco Chimalpahin (México, 1579): Las
ocho relaciones y el memorial de Colhuacan. (México: CNCA
1998). Escrita em náhuatl.
Hernando de Alvarado Tezozómoc (México: 1520-30):
(1598) Crónica Mexicana, escrita em castelhano e ( 1609)
Crónica mexicáyotl, escrita em náhuatl.
Fernando de Alva Ixtlixóchitl (México, 1578): (1648)
Historia chichimeca, compendio histórico del reino de
Texcoco, Sumaria relación de todas las cosas que han sucedido en
esta Nueva España, Relación sucinta en forma de memorial de la
Historia de la Nueva España y sus Señoríos hasta la llegada de los
españoles. Escritas en castellano.
Entretanto, não é no México onde esta escritura
mestiça vai alcançar sua maturidade, mas no Peru. É na
escritura d´El Inca Garcilaso de la Vega onde encontra sua
plena realização a inauguração da literatura hispano-
americana. Porque a pena desse escritor mestiço - nascido
de princesa inca e conquistador espanhol, crisol onde se
fundem o sangue americano e o espanhol - encontra sua
plenitude, o uso estético do castelhano em suas obras nas
quais projeta o ideal renascentista do humanismo: o homem
é um e igual. Seu trabalho frutífero nos legou algumas obras:
(1659) La florida del Inca; (1609) Comentarios reales; (1617)
Historia general del Perú. É notável como na segunda de suas
obras expressa uma sutil apologia da cultura inca e, com

292
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

ela, do autóctone americano. Realiza esta obra em


castelhano, com estilo e preceptiva esmerados, dirigida aos
espanhóis. É testemunho de quem sincretizou em seu ser
ambas culturas, as duas raças, de quem encarna ao mestiço
por excelência.
Literatura Hispano-americana encontra suas raízes no
assombro compartilhado. O imaginário, o relato, o informe,
o relatório encontram seu veículo de projeção nos textos
híbridos que se encontram entre a fronteira da ficção e a
realidade histórica. Os processos de aculturação e o estado de
nepantlismo determinam a singularidade da expressão estética
do mestiço, pois sua necessidade de definir-se, a busca de sua
identidade e de sua expressão o levam, como a Garcilaso, a
mostrar ao mundo sua mescla cultural através da arte.
A expressão hispano-americana a partir de então se
verá enriquecida com singularidades sincréticas de ambas
as etnias. Estudos mais profundos sobre estas questões
falarão posteriormente de una “cultura de vencidos” e nos
revelam por que é o sincretismo o elemento unificador da
arte literária mexicana deste período.

REFERÊNCIAS

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293
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BURILLO, J. (1988) Vitoria, Los Títulos Legítimos a las indias.


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296
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

12

LUZIA-HOMEM – UM FEMININO
(RE) SIGNIFICADO
ELISABETH BATTISTA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO (UNEMAT)

À memória de Benilde Justo Caniato

I – Expressão de diferenças

A Literatura e as artes, espaços privilegiados de


representação da vida social e humana são também canal
de expressão de diferenças e tensões que nos desafiam de
forma permanente. Isto pode ser percebido sobretudo, se
nos determos à produção literária representativa de um
determinada época. É desta forma que ao lançar um olhar,
297
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

ainda que superficial na tentativa de inventariar a tendência


predominante na produção literária de determinado espaço
e determinado período, verifica-se, no final do século XIX,
a vivência de um período de significativas mudanças no
cenário histórico e cultural do contexto europeu.
É assim que, para historiador francês Remond (2002:
13), o século XIX é um dos mais complexos, mais cheios
que existem. Notadamente o aspecto mais marcante do
século é a “freqüência de choques revolucionários”. Para
Remond não se tem registro de outro século que tenha sido
tão fértil em insurreições e levantes, assim como de ataques
à ordem estabelecida, quer política, quer social.
Movimentos vários, tanto no Brasil como em Portugal,
eclodiram em favor da liberdade, da democracia, da
sociedade, da independência nacional. Constitui-se talvez,
espaço fértil e propício à captação de diferenças, tensões,
discursos e contra-discursos.
Em Portugal, os últimos anos do Romantismo já
denunciavam uma sociedade em crise. O descontentamento
era geral mas fazia-se sentir com maior peso no campo. A
revolta de camponeses da região do Minho, a Maria da
Fonte (1840), bem como, a rebelião de soldados
denominada Patuléia (1847) são exemplos da crise
portuguesa de meados do século XIX. Os movimentos
político-militares portugueses representaram uma válvula
de escape para os grupos frustrados com os rumos
tomados pela revolução industrial.
No Brasil, o massacre de Canudos – 1897, cujo
registro literário dá-se na obra Os Sertões (1902), de Euclides
da Cunha é o canal de expressão dos conflitos e da crise
que assola o país em seu período de transição do regime
monárquico para o regime republicano. Nessa mesma

298
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

altura, entretanto, verifica-se no âmbito da literatura


européia, a produção textos narrativos envolvendo a figura
do vampiro – o conde Drácula. Precisamente, no final do
século XIX, em 1897, o autor irlandês Bram Stoker traz, à
luz do fim de um século desassossegado pelas as profecias
de Nostradamus, pelas teorias filosóficas de Comte, Marx
e Darwin, aquela que viria a ser a representação estética do
monstro medieval que havia rondado a Europa.
É assim que a vivência de um período de significativas
mudanças no cenário histórico e cultural é possível verificar
que a Literatura captou certas nuanças dos reflexos oriundos
dos conflitos revolucionários, o que se constata nos modos
de sentir e pensar o mundo na iminência do imprevisto.
Novos temas passam a ser centrais em obras lançadas na
época, que discutem os conflitos e as relações humanas na
tentativa de explicar o mundo que os circunda, sobretudo,
nesse período de transição.
Nesse percurso verifica-se, entre outros aspectos a
enunciação de um certo modo de representação da mulher
na literatura de autoria masculina e a (des)construção de
um certo estereótipo do feminino no âmbito da
representação literária na inauguração do Século XX. Um
exemplo emblemático é a obra de Domingos Olímpio –
Luzia-Homem (1903).
Considerada pela crítica como uma das mais
eloquentes expressões da cadeia do regionalismo na
Literatura Brasileira, a obra Luzia-Homem, apresenta como
cenário o drama dos retirantes nordestinos que sofrem com
a escassez da chuva e perdem seus bens devido à seca que
assola a região.
Ao longo do romance, o narrador descreve de forma
minuciosa a triste realidade sofrida pelas famílias de

299
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

fazendeiros, que assistem suas propriedades serem


consumidas pela seca, e sem alternativa também passa a
perambular pelo sertão a fora em busca de sobrevivência:

O sertão ressequido quase deserto: campos sem gados,


povoações abandonadas. E a constante, a implacável ventania,
varrendo o céu e a terra, entrava, silvando e rugindo, as casas
vazias, como fera raivosa, faminta, buscando e rebuscando a
presa, e fazendo, com pavoroso ruído, baterem as portas de
encontro aos portais, num lamentoso tom de abandono
(OLÍMPIO, 2003, p.41).

Juntamente a esse triste cenário de abandono e miséria,


descrito pelo narrador, aparecem horripilantes criaturas
vestidas com trapos sórdidos, que causavam efeito
nauseante. Durante toda a narrativa, o narrador menciona
ou descreve a dura realidade enfrentada pelos retirantes
nordestinos, de modo que o leitor, mesmo envolvido e
ansioso com o desfecho da tríade amorosa, que se cria ao
longo da narrativa, se recorda do cenário e das
circunstâncias na qual ele ocorre. Nesse contexto, a seca se
torna uma grande vilã ao longo do romance, transformando
a vida dos pobres retirantes, dia após dia, em um penoso
martírio. E de maneira envolvente, o autor embevece o seu
interlocutor, pois faz com que todas as suas personagens
sofram de algum modo com a escassez da chuva e vivam
em busca de sobrevivência pelo sertão afora. A espera pela
chuva é constante no desenrolar da narrativa, chegando a
ser considerada pelos retirantes, como privilégio de poucos.

Eram pedaços da multidão, varrida dos lares pelo flagelo (...)


esquálidas criaturas de aspecto horripilante, esqueletos
automáticos dentro de fantásticos trajes, rendilhados de trapos

300
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

sórdidos, de uma sujidade nauseante, empapados de sangue


purulento das úlceras, que lhes carcomiam a pele, até
descobrirem os osso, nas articulações deformadas (...) E o
céu límpido, sereno, de um azul doce de líquida safira sem
uma nuvem mensageira de esperança, vasculhando pela viração
aquecida, ou intermitentes redemoinhos a sublevarem bulcões
de pó amarelo, envolvendo, como um nimbo, a trágica
procissão de êxodo (OLIMPIO, 2003, p.26).

É nesse triste cenário de miséria e abandono, que


Domingos Olímpio, apresenta sua protagonista Luzia-
Homem, jovem de extrema força, que para garantir a sua
sobrevivência e a da mãe enferma ocupa lugares dantes
reservados somente aos homens. O autor ao apresentar
Luzia surpreende o leitor, pois coloca no cenário romanesco
uma personagem polêmica para os padrões da época em
que a mulher deveria ser submissa ao pai e depois ao
cônjuge. Este procedimento estético permite identificar
semelhanças e dissonâncias nas formas de representação
da figura feminina e os modos de sua concretização no
interior do texto.
Apelidada de Luzia-Homem, pelas demais
personagens, devido a inexplicável força adquirida desde
criança e as características masculinas que se sobressaiam
aos seus traços femininos, chegando muitas vezes, a ser
confundida com um homem faz com que a protagonista se
torne o principal assunto dos operários da construção da
penitenciária, na qual era funcionária.
A forte personalidade e a força física da protagonista
chama a atenção do misantropo francês Paul, personagem
secundária que transita pelo romance a recolher
“documentos da vida do povo”, pois Luzia-homem
contrariava as características usuais da figura feminina, que,

301
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

até então, era vista como ser dócil, angelical e submissa.


Durante uma visita que o Francês faz à construção da
penitenciária de Sobral, o mesmo fica fascinado ao passar
pela figura de uma jovem operária, no caso a protagonista
do romance, e escreve em seu caderno de anotações “Passou
por mim uma mulher extraordinária, carregando uma
parede na cabeça” (OLIMPIO, 2003, p.20). Nessa passagem
é possível perceber impressão causada no espírito
observador da personagem que emerge por meio da
manifestação do francês, onde se refere à força descomunal
da personagem. Assim, o leitor testemunha a entrada da
protagonista na cena do romance, que após ser notada com
uma “parede” na cabeça recebe a atenção do narrador
onisciente que esclarece dizendo que “era Luzia, conduzindo
para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinqüenta tijolos”
(op. cit. 20), mas que aos olhos do misantropo Francês
parecia ser uma parede.
Domingos Olímpio surpreende o público leitor,
acostumado com as personagens histéricas presentes no
estilo naturalista do século XX, coloca em relevo a
constituição de uma personagem feminina incomum aos
padrões estabelecidos para a época, onde a mulher
desempenhava a função de cuidar da casa e dos filhos,
conforme prevê o regime patriarcal.
Luzia-Homem diferentemente das personagens
histéricas, que viviam sempre em um espaço fechado, que
muitas vezes, eram representadas pela casa, transita
livremente por todos os espaços do romance. E enquanto
às histéricas era permitido conviver apenas na companhia
do pai, marido ou médico; a protagonista de Olímpio
acompanha o pai em todos os lugares, chegando até a ser
exibida por ele em uma ocasião a um grupo de vaqueiros,

302
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

como um troféu: “Vejam rapaziada!... Isto não é rapariga,


é um homem como trinta, o meu braço direito, uma prenda
que Deus me deu...” (2003, p.62).
Olímpio ao trazer para o espaço da representação
artística uma figura feminina surpreendente, povoa a cena
literária brasileira com tema impactante. Isto porque a
construção da personagem protagonista constribui para a
produção do impacto, pela proximidade de seus atributos
ao topos do mito da donzela guerreira. É assim que, o autor,
promove o mais completo rompimento com o horizonte
de expectativa do leitor. Tal opção estética retira da cena
literária, ao menos em Luzia-homem, figuras histéricas que
constituíam o cenário romanesco da época.
A esse respeito é possível evocar figuras femininas com
tal perfil, citando como exemplo modelar o caso particular
de personagem do romance naturalista de Aluísio Azevedo.
É assim que, por limitações de ordem fisiológica, a
personagem Pombinha do romance O Cortiço de Aluísio
Azevedo, torna-se uma emblemática referência. Como se
sabe, a protagonista vivia cercada de atenção e cuidados
médicos, pois de acordo com Sussekind (1984) “convulsões,
choro, ânsias de vômito, tosse, desmaios e paralisias” eram
as ações a elas atribuídas, para que mediante tais sintomas
apresentados reunir condições favoráveis à atuação da
figura do médico, que exercia grande influência na vida de
suas pacientes.

O médico dos romances naturalistas possui traços que o


aproximam dos intelectuais brasileiros da virada do século.
Enquanto um possui poder de intervenção no espaço familiar,
a ponto de ordenar internações e casamentos, o outro desejaria
estar investido de idêntica possibilidade de transformar a vida
nacional (SUSSEKIND, 1984, p.130).
303
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Nota-se que o estilo naturalista apostava na construção


de personagens histéricas que viviam cercadas por
limitações, num ambiente que, na maioria das vezes, se
resumia no espaço da casa e, restritas apenas ao convívio
familiar e na de seus doutores. Aos quais eram atribuídos o
poder de, possivelmente, contribuir para a transformação
da sociedade. Porém, a obra ficcional de Domingos
Olímpio publica a narrativa que se distingue das referidas
características, mostrando outro cenário, permeado pela
dinâmica local e humana.
O romance Luzia-Homem, surge assim, como diz
Sussekind, como lâmina afiada, pois rompe com o
determinismo da estética naturalista, primeiramente ao
substituir o lugar das figuras femininas histéricas por Luzia-
Homem, personagem com características paradoxais. E,
posteriormente, ao dar credibilidade em seu texto a um
contador de histórias, Raulino, e uma vidente, Rosa Veado,
visto que este lugar era reservado, em outras obras
naturalistas, aos médicos e cientistas.
Raulinho Uchoa ocupa no romance a posição de
personagem secundária, este é apresentado pelo narrador
como “sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que
chibanteava em pitorescas narrativas” (OLIMPIO, 2003, p. 20).
O narrador não mente ao descrever as características da
personagem, pois Raulino transita por todo o romance,
contando suas histórias que de acordo com Sussekind (1984,
p. 143) é a qualidade que o destaca como personagem,
“narrativa pitoresca das façanhas inverossímeis de
amansador de animais bravios”.
Dentre todas as narrativas de Raulino, a que mais se
destaca, é a que a sabedoria de um burro prevalece sobre o
métido e a experiência científica. Seria uma ironia à

304
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

pretensão de interpor um explicação científica para todos


os fenômenos? O contador de histórias se recorda do fato,
ao encontrar Terezinha, outra personagem secundária do
romance cuidando do burro de estimação da família e
resolve contar a moça sobre a astúcia de semelhante animal.
Esse acontecimento, segundo o próprio se deu “por volta da
era de sessenta”, quando um grupo de cientistas andavam a
coletar amostras de pedras, barro, ervas, matos, borboletas,
besouros e outros. Toda a história aconteceu, segundo
Uchoa, na fazenda de um velho, que hospedara a “comissão
de doutores”. Após o jantar, os hóspedes armaram suas
redes no alpendre da casa e antes que dormissem foram
alertados pelo senhor que se recolhessem porque choveria
mais tarde, mas devido à noite clara e sem nenhuma nuvem
no céu, não acreditaram no aviso do anfitrião.
A comissão de doutores, que ousaram dizer que “o
velho estava sonhando com chuva, mania de sertanejos, que não pensam
noutra coisa (OLÍMPIO, 2003, p. 191) “acordaram debaixo
d’água” e surpreendidos, com o gesto de leitura e
interpretação acerca dos sinais emitidos pelo animal, uma
habilidade do velho, quiseram logo saber como fora capaz
de fazer tamanha adivinhação. A resposta veio sem demora,
pois o velho nem ao menos refletiu para responder que a
adivinhação da chuva veio de um velho burro que vivia em
seu quintal.

Tenho ali, no cercado, um burro velho que, quando está


formando chuva, rincha de certo modo: é aquela certeza. A
chuva vem sem demora. Foi por isso que avisei a vossa
senhoria (...) “Estamos numa terra, onde burros sabem mais
que astrônomos”. Foi gargalhada geral. Aí está – concluiu
Raulino – de quanto é capaz um burro velho (OLÍMPIO,
2003, p. 192).

305
A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Domingos Olímpio, ao criar uma personagem com


enorme presença de espírito, dota-o de habilidade crítica
para narrar a história com certa ironia acerca do
cientificismo, na qual, a sabedoria popular se sobressai ao
saber científico. E segundo Sussekind (1984, p. 143):

Dessa narrativa sai vitoriosa a sabedoria popular em


detrimento da ciência dos doutores “que sabiam tudo e
adivinhavam pelas estrelas as mudanças do tempo”. Daí, a
conclusão da história, frase que segundo Raulino, teria sido
exclamada por um dos cientistas: Estamos numa terra, onde
burros sabem mais que astrônomos.

Raulino Uchoa, como é possível perceber, tendo em


conta as suas habilidades como exímio prosador, além de
interagir de forma magistral com o meio e os animais, toma
para si o papel de porta-voz dos sinais que o animal emite
e, sem pretensão, evidencia a falibilidade do método
científico da previsão do tempo.
Domingos Olímpio após dar espaço em sua obra a
figura do “sertanejo afamado”, também favorece em sua
escrita simples e criativa, as características prosódicas de
outra personagem popular, que recebe o nome de Rosa
Veado. Esta é conhecida pelas demais personagens pelas
habilidades em fazer encantamentos e pelos partos que
realizara por toda a redondeza. Deste modo, o autor
deposita em sua personagem a incumbência de realizar
algumas proezas por meio da manipulação de energia
anímica e dos fluidos vitais, que nos romances naturalistas,
os considerados “casos clínicos”, eram confiados à figura
dos médicos.
A presença da personagem desempenhando a dupla
função – parteira e feiticeira, além de remeter ruptura com
306
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

a tendência de reduzir os problemas do feminino a casos


clínicos, tão presentes no estilo naturalista, ao retirar de
cena, a presença da ciência simbolizada pela imagem do
médico, a personagem transita livremente pela narrativa
realizando suas façanhas. O poder conferido à Rosa Veado
de realizar adivinhações, desvendar enigmas por meio de
seus trabalhos de premonição, a torna uma das peças
fundamentais do romance, pois é dada a ela a
responsabilidade de desvendar o caso do roubo, cujo delito
fora inputado ao Alexandre, personagem que compõe a
tríade amorosa do romance, que mesmo sendo inocente
foi preso. A liberdade da referida personagem veio após a
intervenção da Rosa Veado. E que de acordo com
Sussekind (1984, p.143-144):

Não é apenas nos “Causos” de Raulino que sai vitoriosa a cultura


do povo. Também a personagem Rosa Veado, adivinha e parteira,
vem de encontro à série de doutores que costuma desfilar pelos
romances naturalistas (...) Não só o saber como a religiosidade
popular enlaçam-se à narrativa de Domingos Olímpio.

Domingos Olímpio, ao colocar em destaque


personagens tão populares, que fazem parte das histórias
de crendices e sabedorias populares, que giram em torno
de seu romance, valoriza os saberes populares do povoado
e abdica dos casos clínicos. Simbolizando, deste modo, de
maneira extraordinária e singular, o lado da “lâmina afiada”
que rompe com a ideologia das representações naturalistas.

II - Do lar à guerra - intinerâncias do feminino

O ambiente e o espaço que dão suporte ao enredo


ficcional do romance Luzia-Homem, juntamente com suas
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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

personagens secundárias, fazem parte do cenário criado por


Domingos Olímpio, para colocar em cena uma personagem
de personalidade marcante, que transita livremente pela
narrativa e tem seu nome presente em quase todas as
passagens do romance. Vale ressaltar que, apesar do autor
descrever os transtornos vivenciados pela sociedade
nordestina de maneira minuciosa, o destaque aos problemas
da estrutura social do país não constitui o seu único foco.
A publicação de Luzia-Homem colocou em relevo a
constituição de uma personagem incomum, revelando os
hábitos que permeiam a formação cultural de determinada
região brasileira, onde os atributos da força masculina, da
virilidade e a autoridade paterna prevalecem. A obra
simbolizou, portanto, certo rompimento com a estética
naturalista da época. Domingos Olímpio utiliza o ambiente
de sofrimento do sertão nordestino para colocar em cena
uma protagonista, que se contrasta em todos os aspectos
às personagens dos chamados romances clínicos, que eram
predominantes ao estilo em questão.
Enquanto as personagens histéricas eram mantidas
em casa e afastadas do convívio com pessoas que não
fossem da família, Luzia-Homem era exibida pelo pai a
todos como um verdadeiro prêmio recebido de Deus.
De acordo com Antonio Candido, a personagem é parte
fundamental no desenvolvimento da narrativa, pois ela
“(...) vive o enredo e as idéias, e os torna vivos”
(2000.p.53-54). Podemos verificar que a criação de uma
personagem que se destaque aos olhos do leitor é um
dos fatores principais para o sucesso de uma obra, pois
é ela quem vai fazer com que o enredo germine aos olhos
do interlocutor.
Domingos Olímpio ao elaborar um enredo fascinante

308
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

e trazer uma personagem com características renovadoras


e personalidade irredutível faz com que seu trabalho seja
considerado de acordo com Sérgio Milliet como uma obra
que “tem seu lugar na história do romance brasileiro”, pois
se destaca através de traços singulares.
O enredo ficcional da obra Luzia-Homem comporta a
tríade amorosa que se forma entre a protagonista, uma
retirante nordestina dona de uma força incomum, que após
perambular sertão afora encontra trabalho na construção
da penitenciária de Sobral; Alexandre, rapaz de bom caráter
“cuja alma impetuosa e forte parecia adormecida sob
aparências de mansidão e doçura” e ao lado do moço de
características tão brandas estava Capriúna, com sua fama
de soldado “mal afamado” com o “ativo de três mortes e
outros crimes menores”.
A força adquirida pela protagonista pode ser atribuída
às condições de produção do seu percurso que, sendo filha
única de um casal de classe média baixa, trabalhadores
braçais em uma fazenda e, que na ausência de um filho varão
tão desejado pelo pai, toma para si tal papel no núcleo
familiar. Desde muito nova Luzia passa a acompanhar o
pai em todas as tarefas e a trabalhar em serviços pesados,
inclusive no roçado, assim como narra a própria
personagem ao promotor, numa ocasião em que tentava
provar a inocência de Alexandre que estaria supostamente
envolvido no roubo do dinheiro do armazém: “Pastorava
o gado; cavava bebedouros e cacimbas; vaquejava o cavalo
com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até o de
foice e machado na derrubada dos roçados (2003.p. 51)”.
O desejo do pai de realizar o sonho de transmitir o
legado do seu conhecimento adquirido ao longo de seus
anos na criação de gado e trabalho em fazenda, ao filho

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

varão, fez com que Luzia se tornasse literalmente seu


aprendiz. Ao ocupar tal posição, a menina passa a conviver
constantemente na companhia do pai, realizando todas as
tarefas da fazenda. Estas atividades fizeram com que ao
longo dos anos seus traços de menina fossem substituídos
por características masculinas. Desta forma, a protagonista
além de adquirir os hábitos e a fisionomia de rapaz, passa a
se vestir como tal, sendo confundida, muitas vezes, com
um homem de verdade, assim recebe o apelido de Luzia-
Homem.

III “...não se nasce mulher, torna-se mulher...”

Pelo território ficcional Domingos Olímpio antecipou


aquilo que Beauvoir viria teorizar em sua obra ensaística O
Segundo Sexo (1967), na qual dedica-se ao estudo da condição
feminina afirmando que a mulher é culturamente preparada
para a subalternidade, para a inferioridade – “Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher.” A máxima filósofa, parece
sintetizar aquilo que o percurso e a construção da
personagem Luzia-Homem, em sentido oposto, constitue-
se emblema significativo. O pensamento de Beauvoir define
a mulher e dá a noção de sua condição histórica: “Nenhum
destino biológico, psíquico, econômico define a forma que
a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto
da civilização que elabora esse produto intermediário entre
o macho e o castrado que qualificam de feminino.” Ao
colocar em cena uma personagem feminina tão forte e capaz
quanto um homem em força de trabalho e produtividade,
Domingos Olímpio, no polo da produção, com o seu gesto
inesperado, impacta o leitor, no polo da recepção.
É assim que, após a morte do pai, torna-se arrimo de

310
Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

família. A protagonista assume para si a árdua missão de se


tornar responsável pelos cuidados da mãe doente e de
trabalhar para manter o sustento da casa, pois se via
obrigada a lutar contra o fantasma da fome que aterrorizada
inúmeras famílias abastadas que perdera tudo com a seca.
Entretanto, devido a sua força e coragem, características
que herdara do pai, Luzia-Homem não se sentia intimidada
com as condições adversas em que se encontrava, contudo,
a despeito de toda a bravura, ocultava atrás dos modos
másculos, a sensibilidade e a ternura de mulher. Vejamos
no fragmento abaixo como o narrador descreve a
feminilidade da personagem: “Sob os músculos poderosos
de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada
no sofrimento que não transbordava em pranto, e só
irradiava, em chispas fulvas, nos grandes olhos de luminosa
treva” (OLÍMPIO, 2003, p. 29).
O narrador além de descrever as características físicas
da protagonista evidencia seus sentimentos femininos, é
como se tomasse para si a incumbência de não deixar de
evidenciar em Luzia-Homem toda a feminilidade que
adornara o seu espírito, a despeito das dificuldades.
Ao ocupar o lugar de operária na construção da
penitenciária de Sobral posição antes destinada a homens,
Luzia-Homem se destaca dentre os demais operários, ao
demonstrar sua tamanha força na realização de tarefas que
nem os operários mais fortes conseguiam realizar.
A extrema força e o comportamento reservado da
protagonista, que cumpria sua jornada de trabalho com
dedicação extrema entretanto, não se esforçava para se
socializar, fez com que ela se tornasse objeto de inveja das
mulheres e deixasse ferido o orgulho dos homens, ao
responder com grande recusa a seus galanteios.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse


uma senhora dona - murmuravam os rapazes remordidos
pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas
insinuações galantes. – Aquilo nem parece mulher fêmea -
observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão.
Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece
bigode de homem... (OLÍMPIO, 2003, p. 21).

Enquanto Luzia-Homem, era observada com certo


desprezo e hostilidade por seus companheiros de trabalho,
que só conseguiam enxergar seu lado rústico e a
desprezavam através de grandes insultos, o narrador a
defende dizendo que, seu comportamento se deve a criação
que recebeu em sua infância. E complementa dizendo que
ela sempre se esforçara nas atividades e dedicação ao
trabalho, sendo assim, merecedora do salário dobrado que
era pago com alimentos:

Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada


dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava
com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável
calma, a sua tarefa diária, que se excedia à vulgar para fazer
juz à dobrada ração (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Além do narrador, Luzia-Homem recebe também a


proteção de Terezinha, que nutre grande admiração por
ela, e sempre a defende nos momentos em que é difamada
pela maledicência das fofoqueiras que se dedicacam a cuidar
da vida alheia. Porém, após adquirir para si o cargo de
protetora da protagonista, Teresinha se torna sua fiel aliada,
ajudando-a nos cuidados da mãe enferma, e nos afazeres
domésticos, passando, deste modo, a se tornar também uma
personagem de destaque dentro da narrativa.

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

Terezinha ficou. Passou a fazer parte da família, pois não tinha


ânimo de abandonar as duas criaturas, repassadas de amargos
sofrimentos, sozinhas naquela casa, sem uma alma condoída
que as consolasse. (...) Era quem cuidava da doente nas ausências
de Luzia (...)Tomara a seu cargo os serviços da casa, menos
os braçais, como rachar lenha e pilar café, porque era aberta
dos peitos e cuspia sangue sempre que abusava dos seus
delicados músculos (OLÍMPIO, 2003, p. 55).

Terezinha conseguia perceber, por trás de toda a


rusticidade da amiga, a alma generosa que possuía sonhos
como todo ser humano.
As díspares informações fornecidas acerca da
personalidade de Luzia-Homem, tanto pelo narrador
onisciente, quanto pelas personagens secundárias que
compõem o pano de fundo da narrativa, nos legitima a
concordar com Antonio Cândido quando este descreve que
a referida personagem se enquadra às personagens esféricas
em que “suas características se reduzem essencialmente ao
fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto
organizadas com maior complexidade e, em conseqüência,
capazes de nos surpreender”. (2000, p.63).
Totalmente contrária as personagens histéricas que, na
maioria das vezes, pertenciam a famílias de classe social
elevada, e apareciam sempre bem vestidas e sem nenhuma
ocupação a fazer, reservando seu tempo para ataques de
histerias, sem sair do ambiente familiar; Luzia-Homem,
possuidora de enorme força e coragem, transita livremente
por todos os espaços do romance, realizando inúmeras
façanhas sempre na companhia de homens e fascinando
todos a sua volta. Deste modo, podemos dizer que a mulher
representada na Literatura do início do século XX, em
especial a personagem Luzia-Homem, produz efeito de

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

leitura dialogando com outros textos que coloca em


destaque a figura da mulher guerreira, que ocupa o lugar
do filho varão para realizar o sonho do pai de ver a honra
da família ser defendida na guerra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O romance Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, goza


de grande popularidade, sendo visto pela crítica como um
romance de qualidade exemplar. No entanto, como se sabe,
tal reconhecimento não se verificou de imediato. O seu valor
junto à crítica especializada foi envolvido por uma aura de
silêncio que quaser beirou ao ostracismo. Já é do
conhecimento também que Luzia-Homem, recebeu também
homônima interpretação cinematográfica, e atualmente
encontra-se à disposição nas locadoras de videocassete e
dvd´s. O romance tem ser tornado título obrigatório nas
escolas, objeto de estudos por parte dos colegiais.
Ao trazer para o cenário romanesco a realidade
vivenciada pela população nordestina, que sofria cruelmente
com os efeitos da seca, o autor de Luzia-Homem, porém na
constituição de seu enredo e na construção de suas
personagens faz emergir aspectos do contexto histórico e
social do país e chama a atenção para a débil estrutura social
do Brasil no estágio inicial da instalação do regime
republicano. Desta forma, para além do aspecto político, a
vida social ganha contornos de significativo impacto.
No âmbito do projeto estético delineia-se, em meio
ao ambiente de sofrimento, personagens que vão
representar um grande corte ao estilo naturalista da época,
pois, na maioria das vezes, os romances giravam em torno
da narrativa de protagonistas histéricas, que representavam

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Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras

a classe média da sociedade, na qual se evidenciava o amplo


crédito facultado aos saberes científicos. É assim que no
cenário romanesco testemunhamos a presença de figuras
como: Rosa Veado, que ocupa a posição de parteira e
vidente, Raulino Uchoa, sertanejo afamado e considerado
um grande contador de histórias e a protagonista Luzia-
Homem, que se distingue das personagens histéricas, e
representam uma realidade totalmente distinta.
Dentre os vários aspectos que simbolizam os
rompimentos do romance em questão com a estética
naturalista, o que cumpre mais fielmente esse papel é a
performance da personagem principal, que luta bravamente
contra as adversidades da seca para garantir a sua
sobrevivência e a da mãe enferma, que necessitava de seus
cuidados.
O lugar que antes era ocupado por personagens
enfermas, passa a ser ocupado por uma jovem que desde
criança tivera que se submeter a trabalhos destinados aos
homens e ao invés de representar a figura feminina histérica
recebe a incumbência de tratar das enfermidades da mãe.
A força física, os atos de bravura, e as características
másculas adquiridas ao lado do pai, que sempre a ensinara
a ser um verdadeiro varão, a faz se enquadrar ao topos de
donzela-guerreira. Luzia-Homem ao dialogar com outras
donzelas guerreiras pertencentes a certas rapsódias da
Europa do século XIX, representa a renovação do topos,
pois para que receba tal atributo, não é preciso que vá a
guerra e nem ao menos que se disfarce de homem, como
seria o previsível.
A obra Luzia-Homem, presenteia Domingos Olímpio
ao ser considerada uma produção criativa que goza de
significativo espaço na história do romance brasileiro. Ao

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

construir uma personagem feminina, canal de expressão


de diferença e tensão que nos desafiam de forma
permanente, o autor dá vida a uma donzela-guerreira
renovada, que assume sua posição de mulher em meio a
sociedade considerada patriarcal. No entanto, ganha de
presente o elogio da crítica especializada ao mostrar o perfil
de uma donzela-guerreira, que luta contra todos os
empecilhos impostos a ela na narrativa, mas que não
consegue se libertar totalmente do seu fado, enquadra-se
ao topos a ela destinado e morre ao lutar contra o inimigo.

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A ROLDO JOSÉ A BREU PINTO - BENJAMIN A BDALA JUNIOR - A GNALDO R ODRIGUES DA SILVA (O RGS.)

Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - PPGEL


UNEMAT - Campus de Tangará da Serra
Rodovia MT - 358, Km 07, Jardim Aeroporto
Tangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000.

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