Você está na página 1de 166

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

PRÓ-REITORIA DE CULTURA, EXTENSÃO E ASSUNTOS ESTUDANTIS


NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LÍNGUAS VERNÁCULAS
GRUPO DE PESQUISA POESIA CONTEMPORÂNEA DE AUTORIA FEMININA DO NORTE,
DO NORDESTE E DO CENTRO-OESTE DO BRASIL
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1903911612219672

ANAIS DO I SIMPFENNC O
ISBN: 978-65-87128-57-3

Todas as atividades foram transmitidas por meio do canal Grupo de Pesquisa – GPFENNCO
no YouTube:
https://youtube.com/channel/UCqOOVdzKHxWUTTMFA0WP0p
@gpfennco

29, 30 e 31 de outubro de 2020


Porto Velho – Rondônia – Brasil
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR

Reitor
Ari Miguel Teixeira Ott

Pró-Reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis


Marcele Regina Nogueira Pereira
3
Núcleo de Ciências Humanas
Walterlina Barboza Brasil

Departamento Acadêmico de Línguas Vernáculas


Agripino Jose Freire da Fonseca

Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras


Marília Lima Pimentel Cotinguiba

Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Literários


Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina

Grupo de Pesquisa Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, do Nordeste e


do Centro-Oeste do Brasil – Gpfennco
José Eduardo Martins de Barros Melo
Jose Flavio da Paz

COMISSÃO ORGANIZADORA DO I SIMPFENNCO


Auxiliadora dos Santos Pinto
Caren Larissa Rocha de Souza Fernandes
Carolina Lobo Aguiar
Jaquelene Costa de Souza
José Eduardo Martins de Barros Melo
José Flávio da Paz
Lisiane Oliveira e Lima Luiz
Luiz Gustavo Marcolino da Silva
Manoel Messias Feitosa Soares
Márcia Dias Santos.
Marcos Araújo Santos
Maria Elizabete Nascimento Oliveira
Maria Elizabete Sanches
Mônica Maria dos Santos
Néstor Raúl González Gutiérrez
Polyana Gomes da Silva.
Rosana Nunes Alencar
Rute Barbosa da Silva
Valdeci Ricardo Duarte
Walter Brito Bezerra Junior

UNIR Campus Porto Velho - BR 364, Km 9,5


Porto Velho – RO - CEP: 76801-059
Fone:(69) 2182-2100
Copyright © 2021 – Todos os direitos reservados ao organizador.

Todos os direitos reservados – a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por


qualquer meio deste livro só é autorizada pelos organizadores. A violação dos direitos do
autor, conforme Lei nº 9.610/98 é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Coordenação Editorial: José Flávio da Paz & Casa Literária Enoque Cardozo
4
FICHA CATALOGRÁFICA

I SIMPFENNCO (2020: Porto Velho - RO)

Anais do I Simpósio de Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, Nordeste e


Centro-Oeste - I SIMPFENNCO, 29 a 31 de outubro, 2020. Organização José
Eduardo Martins de Barros Melo, José Flávio da Paz ... – Porto Velho:
GPFENNCO/UNIR, 2021.
166 p.

ISBN: 978-65-87128-57-3

1. Literatura. 2. Artes. 3. Interdisciplinaridade. 4. Educação. 5. Cultura - I. Paz,


José Flávio. II. MELO, José Eduardo Martins de Barros.

NOSSO CONSELHO EDITORIAL e CIENTÍFICO:


Dr. José Eduardo Martins de Barros Melo
Dr. Néstor Raúl González Gutiérrez
Dra. Auxiliadora dos Santos Pinto
Dra. Maria Elizabete Nascimento Oliveira
Dra. Rosana Nunes Alencar
Me Mônica Maria dos Santos
Me. José Flávio da Paz
Me. Lisiane Oliveira e Lima Luiz
Me. Manoel Messias Feitosa Soares
Me. Márcia Dias Santos.
Me. Maria Elizabete Sanches
Esp. Jaquelene Costa de Souza
Esp. Marcos Araújo Santos
Esp. Polyana Gomes da Silva.
Esp. Rute Barbosa da Silva
Esp. Valdeci Ricardo Duarte
Esp. Walter Brito Bezerra Junior
Gr. Caren Larissa Rocha de Souza Fernandes
Gr. Carolina Lobo Aguiar
Gr. Luiz Gustavo Marcolino da Silva
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
I SIMPÓSIO DE POESIA CONTEMPORÂNEA DE AUTORIA FEMININA DO NORTE,
NORDESTE E CENTRO-OESTE: VOZES DE MULHER
......................... 07 .........................
5

CAPÍTULO I
LITERATURA FEMININA: METAFORIZAÇÃO, EROTISMO E RESISTÊNCIA NA VOZ DA
POETA ACREANA FRANCIS MARY
PINTO, Auxiliadora dos Santos
NETO, JOSÉ DE Ribamar Muniz Ribeiro
SOARES, Manoel Messias Feitosa
......................... 09 .........................

CAPÍTULO II
LÍRISMO E SENSUALISMO EM HILDA HILST
FERNANDES, Caren Larissa Rocha de Souza
......................... 23 .........................

CAPÍTULO III
UM OLHAR SOBRE MEMÓRIA E IDENTIDADE INDÍGENAS NA OBRA FLOR DA MATA,
DE GRAÇA GRAÚNA
MELO, Carlos Augusto de
SOARES, Laís Cristina
SANTOS, Márcia Dias dos
......................... 33 .........................

CAPÍTULO IV
TRAJETÓRIA MULTICULTURAL NAS PRÁTICAS SOCIAIS: LITERATURA E OUTRAS ARTES
MORAIS, Elaine da Silva
MONTEIRO, Robério Modesto
......................... 53 .........................

CAPÍTULO V
ENTRE A (IN)DOMÁVEL LUBRICIDADE E O SÔFREGO AMORDAÇADO: A
TRANSGRESSÃO DA PALAVRA NA POÉTICA HILSTIANA
ASSIS, Guilherme Ewerton Alves
FRANÇA, Hermano de França
......................... 63 .........................
CAPÍTULO VI
AFROLOGIA TUCUJU: ESCREVIVÊNCIAS NA POÉTICA DE NEGRA AUREA
UTZIG, Ingrid Lara de Araújo
......................... 77 .........................

CAPÍTULO VII
ENTREM! COM RAÍZES E ASAS - DESGUTEM DAS GULOSEIMAS POÉTICAS 89 6
SOUZA, Jocineide Catarina Maciel de
OLIVEIRA, Maria Elizabete Nascimento de
......................... 89 .........................

CAPÍTULO VIII
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM EM CIDA PEDROSA
MELO, José Eduardo Martins de Barros
SANCHES, Maria Elizabete
......................... 103 .........................

CAPÍTULO IX
DE GUTENBERGS À CONCEPÇÃO DE LIVRO NA ATUALIDADE: APONTAMENTOS
SOBRE A (IN)ESTÉTICA DO LIVRO DE ARTISTA
PAZ, José Flávio da
......................... 115 .........................

CAPÍTULO X
RELAÇÃO ÉTNICO - RACIAL NA PRATICA DOCENTE: UM ESTUDO COMPARATIVO
ENTRE ESCOLAS MUNICIPAL E ESTADUAL EM MACAPÁ-AP
ESPÍRITO SANTO, Maria Aurea dos Santos
......................... 123 .........................

CAPÍTULO XI
MULHER NEGRA POETISA: BUSCA POR VISIBILIDADE ÉTNICO-RACIAL NO AMAPÁ
LUZ, Maria das Neves Maciel da
SILVA, Maria de Jesus Leal da
......................... 143 .........................

CAPÍTULO XII
ESSÊNCIA DA LITERATURA: ANÁLISE DA OBRA ―SACI, MOLEQUE SACI‖
SILVA, Rute Barboza da
OLIVEIRA, Altino dos Santos
......................... 155 .........................
APRESENTAÇÃO

I SIMPÓSIO DE POESIA CONTEMPORÂNEA DE AUTORIA FEMININA DO NORTE,


NORDESTE E CENTRO-OESTE: VOZES DE MULHER

7
Este trabalho reúne os artigos e comunicações do I Simpósio de Poesia
Contemporânea de autoria Feminina do Norte, Nordeste e Centro-oeste: Vozes da mulher,
realizado em outubro de 2020 e que reuniu pela primeira vez em nossa história
pesquisadores e pesquisadoras de todo o país, para discutir e apresentar trabalhos
acadêmicos cujo objeto de investigação fosse, prioritariamente, a poesia da mulher nessas
regiões.

Trata-se, portanto, de inciativa pioneira do Grupo de Pesquisa em Poesia


Contemporânea de Autoria Feminina nas Regiões Norte, Nordeste E Centro-Oeste
(GPFENNCO) da Universidade Federal de Rondônia, em parceria com diversas outras
instituições e outros grupos, em especial a UNEMAT que pretende se tornar um evento
constante e anual.

Assim, os trabalhos aqui publicados abrangem estudos sobre farta produção poética
de autoria feminina ao longo dos últimos cinquenta anos, que procuram na competência de
seus limites trazer à luz parte da produção literária de autoria feminina em diversas
situações ignoradas pela crítica colonizadora e feudal. Nesse sentido é um espaço que se
coloca pleno para que tais discussões cheguem a outras esferas e outras instituições, no
sentido de dar visibilidade a esta produção de regiões muitas das vezes ignoradas.

São diversos trabalhos que procuram investigar, preliminarmente, poetas do Norte,


do Nordeste e do Centro-oeste, mas que não se limitam a questão territorial e onde se tem
a reflexão sobre obras de autoras de outras regiões, sem se criar o fenômeno já muito
conhecido da territorialidade.

Neste sentido encontramos textos e apresentações sobre autoras de regiões e


gerações distintas, tais como Cida Pedrosa, Marcia Dias e Hilda Hilst, cujas obras assumem
papel de relevância nos estudos literários atuais, traduzindo-se como expressão da
contemporaneidade da poesia, em especial.

Desta forma entregamos a você, leitor, a produção deste I SIMPÓSIO na esperança


de realização de muitos outros que este grupo possa realizar e colocar efetivamente a
produção literária de autoria feminina dessas regiões em posição de destaque.

COORDENAÇÃO GERAL E COMISSÃO ORGANIZADORA DO I SIMPFENNCO


8
CAPÍTULO I
LITERATURA FEMININA: METAFORIZAÇÃO, EROTISMO E RESISTÊNCIA NA
VOZ DA POETA ACREANA FRANCIS MARY

PINTO, Auxiliadora dos Santos 1


NETO, JOSÉ DE Ribamar Muniz Ribeiro 2
9
SOARES, Manoel Messias Feitosa 3

RESUMO:
Este artigo apresenta resultados de um estudo sobre a metaforização e o erotismo como elementos estéticos
composicionais que marcam a resistência na obra da escritora Francis Mary. Para compreender a poesia de
autoria feminina produzida por Francis Mary, poeta acreana que nasceu e viveu a maioria de sua vida nos
espaços amazônicos, é necessário considerar que na Amazônia existe uma cultura e uma literatura próprias
da região, conforme propõe Loureiro (2000).A pesquisa, do tipo bibliográfica, de natureza descritiva e com
abordagem qualitativa será desenvolvida a partir da leitura e análise de poemas das seguintes obras: O dia em
que a lua caiu no Açude (1996 e 2021) e Pré-Históricas e outros livros (2004). As análises estão sendo
fundamentadas pelos estudos de: Reis (2013); Bosi (1997); Dalcastagné (2018), Zolin (2009), Lopes (2006);
Loureiro (2014), Bataille (1996); Priore (2012) e outros. Os resultados da pesquisa evidenciam que a poesia de
Francis Mary apresenta como uma das linhas de força a metaforização e o erotismo, recursos estes que se
mesclam também com o uso de elementos de amazonicidade.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura feminina, Francis Mary, Metáfora, Erotismo, Resistência.

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma pesquisa cujo objetivo foi discutir sobre o uso da
metaforização e o erotismo como elementos estéticos composicionais que marcam a
resistência na obra da escritora Francis Mary, destacando-se, também, alguns elementos da
poética e da poemática.

1 Doutora em Letras- Literaturas de Língua Portuguesa, pelo IBILCE/UNESP/SJRP. Mestre em Linguística, pela
UNIR/Campus de Guajará-Mirim. Especialista em Educação Superior, pela UNIR/Campus de Guajará-Mirim, Graduada em
Letras, pela UNIR/Campus de Guajará-Mirim. Professora Adjunta do Departamento Acadêmico de Ciências da Linguagem
do Campus de Guajará-Mirim, da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Vice-líder do Grupo de Estudos
Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas - GEIFA. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Poesia Contemporânea do
Norte, Nordeste e Centro Oeste - GPFENNCO. Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-6955-7849. E-mail:
auxiliadorapinto@unir.com.br.
2 Mestrando em Letras: Literatura, pela Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Graduado em Letras, pela UNIR/

Campus de Guajará-Mirim. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas - GEIFA. Membro
do Grupo de Pesquisa sobre Poesia Contemporânea do Norte, Nordeste e Centro Oeste -GPFENNCO. Orcid ID: ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7172-3383. E-mail: netoletras2015@gmail.com
3 Doutorando em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade Federal do Acre/UFAC. Mestre em Letras: Linguagem

e Identidade, pela Universidade Federal do Acre/UFAC. Especialista em Psicologia Educacional e Escolar, pela UNINORTE.
Graduado em História, pela UFAC/Campus de Rio Branco. Professor Mediador na Rede Municipal de Ensino de Rio
Branco/AC. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas - GEIFA. Membro do Grupo de
Pesquisa sobre Poesia Contemporânea do Norte, Nordeste e Centro Oeste - GPFENNCO. Orcid ID:
https://orcid.org/0000-0002-1024-2455. E-mail: messiasfeitosasoares@gmail.com.
O estudo do tema justifica-se porque a literatura de autoria feminina do Acre ainda
é pouco estudada. Nesse sentido, a voz autoral de Francis Mary ecoa em diversos espaços
do universo literário acreano como a representação de uma forma de sentir e compreender
a vida, conforme preconiza Loureiro (2014).
Ao mesmo tempo em que a amazonicidade é um elemento presente no processo
composicional utilizado por Francis Mary, há um diálogo latente com os espaços nacionais 10

e universais e com diferentes campos do conhecimento: epistemológicos, históricos,


sociológicos, biológicos, etc. Ou seja, a autora produz uma literatura que vai além dos rios
e das florestas. A imaginação criativa da poeta busca na floresta e no rio elementos
simbólicos que representam a cultura e o imaginário destes espaços e de suas gentes.
A pesquisa, do tipo bibliográfica, de natureza descritiva e com abordagem
qualitativa, foi desenvolvida a partir da leitura e análise de poemas das seguintes obras: O
dia em que a lua caiu no Açude (1996) e Pré-Históricas e outros livros (2004). As análises
foram fundamentadas pelos estudos de: Reis (2013); Bosi (1997); Dalcastagné (2018), Zolin
(2009), Lopes (2006); Loureiro (2014), Bataille (1996); Priore (2012) e outros.
Os resultados da pesquisa demonstraram que a poesia de Francis Mary apresenta
como uma das linhas de força a metaforização e o erotismo. Os espaços de vivências da
autora também permeiam as temáticas dos poemas e representam o ethos amazônico e a
colonização dos espaços, evidenciando uma construção discursiva que objetiva o
reconhecimento da subjetividade e da alteridade da mulher em um contexto,
historicamente, marcado pela dominação masculina e pelo apagamento da identidade
feminina.

FRANCIS MARY: UM DISCURSO DE RUPTURA

Neste tópico, apresentamos uma breve biografia da poeta Francis Mary,


destacando, principalmente, a formação da trajetória da escritora na poesia, até a produção
de seus livros de poemas.
Francis Mary Alves de Lima, Francis Mary, ou apenas ―bruxinha‖, como é
conhecida no meio literário do eixo Norte e Nordeste, nasceu em Rio Branco/AC em 1958,
onde seus primeiros contatos com a poesia ocorreram ainda na infância por influência
direta de seus familiares e amigos. Por conhecer e vivenciar a realidade da mulher e do
povo amazônida e expressá-la em suas composições poéticas, é considerada, pela crítica
especializada da Região Norte, como uma das mais importantes poetas do cenário acreano,
pois sua obra abrange diversas temáticas que ganharam voz na atualidade: poesia de
autoria feminina, exclusão das mulheres da história dos seringais, das desigualdades sociais,
da violência no processo de colonização e descolonização entre outros.
A sua obra é composta pelos livros: Akyri, um grito no meio da mata (mimeógrafo
em 1982), Gota a Gota (mimeógrafo em1982), Antologia Língua Solta: poetas brasileiras 11

dos anos 90 (1994), A noite em que a lua caiu no açude (1996), Antologia de Escritas
(2012), Pré-Históricas e Outros Livros (2004), Gogó de Sola/Flor do Astral (2006), e
diversos poemas avulsos esperando publicação. A noite que caiu no açude – 2ª edição,
(2001) Atualmente, está produzindo um novo livro de poemas intitulado ―Poemas do Ser.‖
Nesse contexto, podemos afirmar que - o europeu, o africano, o japonês, o
paraibano, o acreano, etc. - são referências que têm o significante do espaço social, político
e econômico de suas vivências e, são relações sentimentais estabelecidas e sentidas pelos
sujeitos com o local, conforme menciona Gama-Khalil (2010, p. 16): "[...] o espaço
desempenha relevo capital para os efeitos de sentido gerados pela obra literária." A partir
desse excerto, podemos afirmar que os sentidos literários não estão desvinculados das
vivências do escritor/escritora.
Francis Mary utiliza o espaço amazônico para a composição de suas poesias,
mostrando as relações que os sujeitos estabelecem com o espaço de vida e de memória.
Nesse sentido, a autora utiliza a expressão "Descer e subir barrancos", para expressar a
relação dos sujeitos com o espaço dos fazeres diários, onde se constrói a alteridade desses
sujeitos. Nesse sentido, em suas análises, Lopes (2006), afirma que os poemas da autora,
"[...] se articulam em torno da vida na floresta e das tradições indígenas". Ela tece seus
textos em um processo lírico a partir do qual faz total imersão nos espaços naturais de suas
vivências, corroborando com outros autores que expressam a ideia de que o autor não está
imune às influências dos espaços/tempos de relações, pois são nessas nas tramas sociais que
nascem as narrativas literárias em suas variadas formas.

A POETA E A SUA ESTÉTICA: METAFORIZAÇÃO, EROTISMO E RESISTÊNCIA

A estética de Francis Mary evidencia um discurso que rompe diversas barreiras


impostas às mulheres amazônidas que, historicamente, não fazem parte da história oficial
desta região. Esse aspecto pode ser identificado no poema ―Lavadeira‖, que apresentamos a
seguir:
Lavadeira

Descer e subir barrancos,


Lata d‘água na cabeça,
Roupas para quarar, 12
Marido bêbado na cama,
Filhos na escola da rua,
E a vida deixada
Na beira do rio.

(Fonte: na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021.)

No poema ―Lavadeira‖, a autora representa as relações de estar e existir em dois


espaços de convivências. Isso nos leva a inferir que o espaço do rio/barranco é um lugar
imaginário, das imagens do sentir outras vidas sentidas com as narrativas e lendas tecidas
das e sobre as águas e rios, como a lenda da Iara, do boto, tecendo emoções e sentidos
eróticos que esta não tem na vida real, nesse sentido, a autora apresenta uma ruptura com
as estruturas interceptadoras dos devaneios amorosos com o amante e/ou esposo. Outro
sentido que podemos inferir ao espaço apresentado no poema é o local das relações
conjugais, das ―obrigações‖, dos fazeres matrimoniais e/ou materno, o qual pode ser
caracterizado pelas obrigações domésticas: limpeza da casa, lavagem das vestimentas e
roupas dos filhos irem para a escola e/ou as roupas de cama e do esposo que "bêbado na
cama", representando, assim, o reflexo da vida social de muitos casais de nossa sociedade
patriarcal e capitalista.
O poema é construído em apenas um bloco estrófico composto por sete versos
livres e de leitura corrente. A voz lírica expressa no poema parece contar a história destas
mulheres e denunciar a situação de submissão e opressão a elas impostas, pois, em muitos
contextos, essas mulheres necessitavam trabalhar em casa, no corte de cana, na coleta do
látex e em outros espaços. Sobre esse aspecto, Lopes (2006, p. 4) afirma que:

A mulher nos poemas de Francis Mary tem imagem variada, seja a


migrante nordestina, as filhas de nordestinos ou filhas da terra. A
mulher é, acima de tudo, uma mulher integrada com as forças da
natureza, parte da floresta e da vida ao ar livre, que sabe desfrutar da
liberdade que somente a selva pode proporcionar. Não é a mulher
cristã, seguidora do catolicismo, mas sim a filha de Tupã.
Quanto aos recursos estéticos utilizados, destacamos o jogo metafórico dos dois
versos finais. Estruturalmente falando, a metáfora é associação de uma característica de um
elemento de um paradigma cultural a outro de outro paradigma, ou seja, uma operação de
analogia. [...] funções das metáforas: suprir a necessidade de expressar sentidos para os
quais não há expressões específicas e costumeiras na língua. Segundo Ferrarezi Jr. (2012, p.
71): 13

Metáfora é um tipo de construção linguística que permite a atribuição


de um sentido construído dentro de um paradigma cultural definido a
outra palavra (ou construção multivocabular) que, em seu sentido
costumeiro, isto é, no sentido usual dessa palavra ou expressão na
comunidade de falantes, pertencia a outro paradigma cultural
estabelecido.

Segundo o autor, a metáfora é uma espécie de ―depósito cultural‖, cuja


temporalidade marca os valores culturais de um povo. Na poesia de Francis Mary, o
processo de metaforização, que expressa questões culturais. Logo, podemos afirmar que a
utilização das metáforas e de elementos do ethos amazônico, conforme propõe Loureiro
(2014), no trabalho com o texto poético, somados à subjetividade da escritora que conhece
esta realidade, são a base para a construção dos poemas que discutem sobre a devastação
dos espaços, sobre a dizimação dos povos e sobre as relações estabelecidas entre os
participantes desta história. Mas esses espaços e sentidos não têm compromisso com o real
vivido e sentido pelos sujeitos que vivem e transitam nos espaços/tempos de referências,
como afirma Brandão (2007, p. 216):

[...] Assim, interessa não o modo como certo espaço ficcional é


percebido por uma personagem, mas como se dá a distribuição, em
níveis (os quais podem, em textos não ―realistas‖, se misturar,
colocando em xeque seus limites), dos elementos que identificam o
que é a personagem como espaço, o que é o espaço no qual a
personagem se desloca (pressuposto, assim, como espaço da não-
personagem), o que é o espaço referido ou gerado pelas
manifestações de tal personagem, o que é o espaço que refere ou
manifesta a personagem (o espaço, por exemplo, da fala de um
narrador que relata as ações da personagem). [...].

As imagens que surgem dessa estética construída a partir da metáfora e do erotismo


como elementos de resistência, dos mundos e seres em constante processo de
transformações e mudanças, permanências e deslocamentos, evidenciam, também, a
mudança do espaço geográfico, político e econômico dos sujeitos que se deslocam em
busca de melhores condições de ser e estar no mundo, o qual também transforma os modos
de sentir, de se expressar e de se relacionar. Nesse contexto, a autora trata,
principalmente, do deslocamento de milhares de seres humanos que se aventuraram a
construir novas possibilidades de vida, recorrendo à categoria de espaço/tempo para falar
sobre a migração de nordestinos para a região amazônica. Podemos identificar essa 14

mudança espacial no poema intitulado ―Eu nortista‖, publicado no livro O dia em que a lua
caiu no açude:

Eu, nortista

Com essa sede


Do nordestino
Eu subi o rio
Eu vim parar aqui,
Trazida nos sonhos
Dos meus ancestrais,
Brotada na terra verde
No seio da Amazônia.

(Fonte: na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021.)

O poema retrata elementos da migração nordestina. Os primeiros versos falam de


uma ―sede do nordestino‖ e abre campo para pensarmos sobre os elementos motivadores
dos processos migratórios, em especial: o 2° ciclo de 1943 à 1945, o qual ficou conhecido
como A batalha da borracha, conforme foi apresentada por Pedro Martinello (1988), na
obra ―A batalha da borracha na segunda guerra mundial‖. Pode-se, também, fazer uma
aproximação com a obra ―Os degredados filhos da seca‖, de autoria de Itamar de Souza e
João Medeiros Filho (1986), na qual há uma análise sócio-política das secas do Nordeste.
O eu-lírico, expresso pela voz feminina, denuncia a invisibilidade da mulher que
sempre trabalhou ao lado dos homens, porém, nunca foi reconhecida como seringueira . Ela
foi ―trazida‖ (verbo flexionado), marcando que essa voz no poema é uma voz feminina,
que foi trazida como semente por seus ancestrais e que brotou no seio amazônico.
Já no poema ―Amazônidas‖, essa presença feminina não representa a mulher
submissa, apagada, silenciada e sim uma mulher que tem visibilidade, que resiste e que luta
pela sua terra, mas, que também luta por liberdade e pelo protagonismo. A partir deste
poema, podemos pensar nas relações de poder existentes nestes espaços amazônicos, nessa
diversidade que reúne os povos indígenas, os seringueiros e colonizadores. Contudo, desta
vez, a mulher vai na frente ―levando sua bandeira.‖

Amazônidas

Vem abrindo varadouros


A multidão de índios, 15

Seringueiros e colonos.
Das lendas do rio
Saem os botos
Que se encantam
Em guerreiros.
À frente cavalgam amazonas,
Lavando nas mãos
Os estandartes da libertação!

(Fonte: na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021)

Neste poema podemos inferir que estão presentes o espaço/tempo das relações
sociais, políticos e econômicos. A autora apresenta as trajetórias dos sujeitos que se
deslocaram de um espaço de vivência para constituírem outros espaços, nos quais
estabelecem novas relações histórico-sociais com os espaços, rios e com os construtos
imaginários e imaginados desse novo local, tais como: os botos, que se transformam em
seres humanos e desfrutam com as virgem donzelas nas noites de festas.
A estética utilizada pela poeta Francis Mary na construção dos poemas também
mescla elementos singulares do imaginário amazônico, tais como: a floresta tropical, os rios
com suas volumosas águas - ora límpidas, ora barrentas- , os povos nativos e os migrantes, a
extração do látex da seringueira e outras simbologias, conforme podemos observar no
poema ―O rio‖:

O rio

Foi na margem do rio


que eu te encontrei.
Foi nas águas do rio que eu te lavei.
Foi nas lendas do rio
que eu me enlevei
e adormeci.

(Fonte: Na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021)


Vale ressaltar que no contexto amazônico, ―os rios comandam a vida‖, conforme
afirma Tocantins (1964). Ou seja, os rios são as vias de acesso, os caminhos para as
ocupações dos espaços vazios, são os relógios e calendários dos povos que vivem nas suas
margens, o regime das águas ditam os ritmos da vida dos povos que vivem nas florestas. Os
rios são, também, fontes do misticismo, pois alimentam o imaginário desses povos.
(LOUREIRO, 2000). 16

Os produtos da floresta amazônica, tais como a semente do açaí, e a semente da


jarina, o marfim vegetal da Amazônia, os quais são utilizados na confecção de biojóias por
alguns povos da Floresta Amazônica, também são representados na poesia de Francis Mary,
conforme podemos observar no poema intitulado ―Sementes‖, publicado na obra A noite
em que a lua caiu no açude (2021), no qual a poeta representa valores culturais do
imaginário, presentes nas lendas e mitos e, também, expressa a materialidade de elementos
da natureza:

Sementes

Menina,
Dança para mim
A cantiga
Que descobri
No colar que te enfeita:
De semente da açaí...

Vem cá, morena


Depressa me seduzir
Com a brancura da jarina:
Da floresta, o marfim!

A floresta presenteia

(Fonte: na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021.)

Outro recurso estético-composicional ao qual a poeta Francis Mary recorre, com


frequência, para composição de suas obras é a utilização do erotismo. E que é o erotismo?
Segundo Bataille (1987, p. 20): ―O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem.
[...] O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele
põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe
nele o ser em questão.‖ De acordo com Beauvoir (1967), o erotismo e a sexualidade estão
presentes na constituição do amor verdadeiro, mas, nas mulheres, este sentimento aparece
como sedução ao outro, "[..] Num movimento complexo, ela visa a glorificação de seu
corpo através das homenagens dos homens a quem se destina esse corpo, [...]‖
(BEAUVOIR, 1967, p. 70). Segundo a autora, o erotismo é uma manifestação de um
sentimento passivo para a mulher e para o outro, o homem, a mulher e/ou o amante. ―O
erotismo é um movimento para o Outro; nisso reside seu caráter essencial.‖ (BEAUVOIR,
1967, p. 192). 17

Na obra de Francis Mary, os mitos e lendas amazônicos são representados, de


forma erótica e metafórica. Esses elementos simbólicos povoam o imaginário e dialogam
com a realidade dos povos amazônicos, a qual se constitui em um universo rico de
possibilidades e significações, conforme afirma Loureiro (2000). No poema ―O boto‖, o
fazer o poético de Francis Mary é destacado pelos elementos de amazonicidade e pelo
erotismo.

O Boto

Mergulhou em meu cio


Deslizando em meus seios
Suas mãos de rio.
E eu, serei seduzida,
Revelei meu segredo
A matrichãs e tambaquis
Ainda guardo
Seu cheiro barrento
Que em noites de lua
Deságua dentro de mim.

(Fonte: na obra A noite em que a lua caiu no açude, 2021.)

Neste sentido, o discurso poético que estamos analisando transgride de forma sutil
essas convenções e reclama os seus direitos, ainda que estas sociedades hipócritas se
escandalizem.
Podemos depreender segundo Beauvoir (1967), que o erotismo é a manifestação de
sentimentos agradáveis, mas sem a manifestação do desejo sexual, é uma manifestação
narcisista do prazer de si para si mesmo, sem a paixão ou o ato sexual presente. Como
podemos depreender na passagem onde a autora afirma que "o erotismo só aparece em sua
imanência, sem presença real do Outro. Sendo assim, o erotismo é a manifestação de
emoções interiores ao objeto ou ser amado. Em se tratando da manifestação do erotismo
no ser feminino, este é considerado, "[...] mais complexo e reflete a complexidade da
situação feminina. Vimos que, ao invés de integrar as forças específicas em sua vida
individual, a fêmea submete-se à espécie cujos interesses se dissociam dos fins singulares
dela; [...]. (BEAUVOIR, 1967, p. 110).
O erotismo feminino busca colocar em xeque os valores masculinos e patriarcais
presentes, hegemonicamente, na sociedade fundamentada no sistema capitalista
masculinizado. Os sentimentos presentes no ser feminino são construídos através dos 18

valores culturais de cada sociedade e não estamos aqui generalizando esses valores, mas
queremos enfatizar que, na atualidade, eles estão sendo problematizados por grupos sociais
que não se sentem representados pelos valores sociais, eticamente, fundamentados nos
valores capitalistas colonizadores do saber/poder ocidental.
Nesse contexto, podemos inferir, a partir dos estudos de Bataille (1987) e de
Beauvoir (1967), que o erotismo surge na psiquê dos sujeitos como algo da subjetividade
em relação ao outro, o objeto do desejo, um sentimento platônico, mas aos poucos esse
desejo toma sua forma concreta, através de manifestações de sensualidade, ternura,
admiração pela pessoa amada, demonstrando todos os sentimentos e emoções de forma
concreta ao objeto ou ao ser amando, que estimula os desejos e emoções na pessoa que
ama. Segundo Lopes (2006, p. 11).

De um modo geral, a poesia de Francis Mary se articula em torno da


vida na floresta e das tradições indígenas, que se traduz em um
discurso com alto teor de afetividade, de indiscutíveis vínculos com os
rios, seres lendários, e todos os elementos que façam parte do mundo
amazônico. Os poemas, obedecendo ao livre curso da corrente lírica,
deixam fluir ao mesmo tempo a racionalidade e a força instintual, que
se sobrepõem à censura, aos interditos do sistema capitalista.

Na obra de Francis Mary, esses sentimentos internos são expressos, também, por
metáforas e, quando a autora afirma: "suas mãos de rio", nos coloca a possibilidade de
múltiplas percepções de análise. Podemos inferir que o ser amado acaricia todo o seu corpo
como se fosse águas lhe banhando e escorrendo sobre sua pele, mas também nos coloca em
um contexto analítico espaço/temporal, pois não temos como descontextualizar a obra nas
vivências de seus criadores (as). Por outro lado, apesar de utilizar imagens dos
espaços/tempos de experiências, a autora não tem o compromisso de representá-los de
forma realista, para que possamos identifica-los, contudo, a partir da verossimilhança esses
espaços/tempos aparecem na composição dos versos.
De acordo com Gama Khalil (2010, p. 224), ―[...] Muito além de uma simples
geografia física, proliferam dos espaços a geografias humana, a social, a psicológica, a
ideológica e a geografia literária, que se esquiva de toda possível topografia. Dessa forma,
podemos contextualizar o espaço do rio com suas águas barrentas, seus seres encantados e
sua grande variedade de peixes, quando ele revela seus segredos: "A matrichãs e
tambaquis", apresentando uma interação sentimental com a natureza e a fauna aquática. 19

Segundo Zolin (20019, p. 14):

[...] Trata-se, em sínteses, de a literatura de autoria feminina pós-


moderna representar mulheres ―possíveis‖ que refutam as imagens
tradicionais, historicamente, a ela imputadas pelo pensamento
patriarcal, como aquela marcada pela fragilidade excessiva e/ou
delicadeza, pela santidade ou perversidade extrema, e, [...] capaz de
se multiplicar para dar conta de tudo o que se espera dela: competir
no mercado de trabalho, honrar com as responsabilidades de mãe, de
esposa e de dona-de-casa e, além de tudo isso, manter-se linda, magra
e desejável.

Dessa forma, se nos enveredarmos por outras nuances, podemos inferir que, neste
poema, a autora tenta romper as barreiras sociais que valorizam a submissão das mulheres
aos valores religiosos, patriarcais e capitalistas; que reserva a mulher ao espaço do lar, que
deve ocultar seus sentimentos e desejos. Enquanto o ser manifesto no poema é uma
personagem que se desnuda no rio, e deixa este lhe invadir com seu líquido barrento, lhe
toca sem pudor, no sentido de lhe proporcionar prazer e gozo, o que para as mulheres é
algo interditado pelos valores religiosos, que lhe relegam a dádiva da maternidade e
procriação.

CONSIDERAÇÕES FINAS

A partir da leitura e análise dos poemas de Francis Mary, constatamos que a poesia
militante, a poesia lírica e a poesia amorosa produzida pela autora coloca em destaque a
posição e o comportamento da mulher, mostrando fissuras e reminiscências da dominação
masculina e demonstrando que é necessário dar visibilidade às vozes que ao longo dos anos
foram silenciadas.
A floresta e o rio são representações do ethos amazônico com suas sensibilidades e
multiplicidades de sentidos e traduzem lirismo, misticismo e subjetividades. Para a autora, a
Amazônia não é o paraíso perdido e intocável representado por muitos poetas e escritores,
mas um espaço de trabalho, de encontros entre os humanos e não humanos, local de
embates.
Verificamos que a metaforização e o erotismo são importantes recursos estético-
composicionais utilizados pela poeta para marcar a resistência, a luta e o protesto contra o
comportamento preconceituoso e hipócrita das sociedades patriarcais que são atravessados 20

pelos interditos das convenções sociais e normas impostas.


Por fim, ressaltamos que a produção literária da poeta Francis Mary, contribui, de
forma significativa para a constituição e difusão da literatura de autoria feminina produzida
no Norte.

REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: L &PM Editores, 1996.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
DALCASTAGNÉ, Regina; LICARIÃO, Berttoni; NAKAGOME, Patrícia. (Org.). Literatura e
resistência. Porto Alegre/RS: Zouk, 2018.
FERRAREZI JR. C. Metáfora e função de registro: a visão de Mundo do falante e sua
interferência nas Línguas naturais. Linha d‘Água, n. 25 (1), p. 67-86, 2012.
______. Semântica para educação básica. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
LIMA, Francis Mary Alves de. A noite em que a lua caiu no açude. Rio Branco/AC: 3
Serpentes Edições, 2021. (Ebook).
LOPES, Margarete Edul Prado de Souza. Motivos de mulher na Amazônia: produção de
escritoras acreanas do século XX. Rio Branco/AC: Edufac, 2006.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica. 4ªed. Belém/PA: Cultura Brasil, 2015.
MARTINELLO, Pedro. A Batalha da Borrachana Segunda Guerra Mundial e suas
consequências para o Vale Amazônico. Tese de Doutorado em História Econômica,1985.
IN: Cadernos UFAC (Universidade Federal do Acre). Série C. Estudos e Pesquisas, nº 1,
1988.
SARDINHA, Tony Beber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. 1. ed. Rio
de Janeiro: Editora Valer, 1964.
SOUZA, Itamar de; MEDEIROS FILHO, João. Os degredados filhos da seca. 2ª Edição.
Petrópolis: Vozes, 1983.
ZOLIN, Lúcia Ozana. Literatura de autoria feminina. In: ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria
literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: UEM, 2009.

21
22
CAPÍTULO II
LÍRISMO E SENSUALISMO EM HILDA HILST

FERNANDES, Caren Larissa Rocha de Souza 4

RESUMO: 23

A poesia de Hilda Hilst compõe um mundo de tensões com vozes dissonantes que dialogam entre si, mas que
formam também um contorno expressivo e sensual. Esse contorno expressivo constitui um discurso produtor
de sentidos que resulta em identidades que dialogam no espaço comum e como reflexão em si, trazendo para
o enunciado poético as similaridades entre essas vozes. Este trabalho investiga parte da obra poética da
autora, pontuando os processos que se desenvolvem como elementos tensivos da linguagem enquanto
representação performática de estilo próprio e de sua sensualidade. Reflete-se aqui sobre algumas questões
levantadas nos estudos da lírica, a partir da hipótese de problematização dos gêneros que se abstrai da poesia
de Hilst, no sentido de concentrar-se na apresentação das obras ―Do desejo‖ e ―Júbilo, memória, noviciado
da paixão‖, que caracterizam bem toda a obra poética em questão no que se refere a constituição lírica, por
meio da presença constante de um interlocutor e os limites da sedução estabelecidos por Hilda Hilst em sua
linguagem. As reflexões de Hugo Friedrich sobre literatura e modernidade e as de Octavio Paz, no que diz
respeito ao amor e ao erotismo, são parte do referencial teórico que utilizaremos aqui. Deste modo, a partir
das discussões propostas a respeito das relações representativas da forma lírica e da sua linguagem, mapeiam-
se os elementos e encaixes deste conjunto de vozes construído enquanto sistema harmônico da expressão do
mundo contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: Hilda Hilst. Poesia. Linguagem. Sensualidade.

INTRODUÇÃO

Com o surgimento de obras inéditas e reedições de obras reconhecidas, quase todas


voltadas a prosa e a outras literaturas que movimentam financeiramente o mercado
editorial, a poesia vem perdendo parte de seu espaço, e vem sendo cada vez menos objeto
Por esse motivo e, por nos interessar a matéria poética, resolvemos refletir aqui
sobre algumas questões levantadas nos estudos da lírica de Hilst, no sentido de concentrar-
se na apresentação das obras Do desejo (1992) e Júbilo, memória, noviciado da paixão
(1974), que caracterizam bem toda a obra poética da autora no que se refere a constituição
lírica, por meio da presença constante de um interlocutor e os limites da sedução
estabelecidos por Hilda Hilst em seu discurso. Traremos a voz lírica de Hilst para um
momento específico de subjetividade, que vem do desejo de si no outro, mostrando a
possibilidade de o sujeito encontrar-se em si, pelo outro, e se tornar sujeito e objeto.

4Graduação em andamento em Letras - Língua Portuguesa - Universidade Federal de Rondônia, UNIR, Brasil. Membro do
Grupo de Pesquisa Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil CV
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9172365879192775.
Tomam-se aqui como corpus investigativo duas obras de representação da poética
de Hilda com o objetivo de pontuar a malha expressiva que ela constrói ao longo dos anos.
Assim, a proposição aqui apresentada aponta apenas para o ponto de partida desse campo
expressivo. Nesse sentido, cabe lembrar um pouco de sua biografia e a trajetória de sua
obra.
Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930, em Jaú, interior de São Paulo. Cursou 24

direito em 1948, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em 1966, mudou-se para
o sítio da família, onde construiu a Casa do Sol, lugar que é aberto até os dias de hoje, e
onde funciona sua fundação, que é mantida por amigos e fãs. Lá passou a dedicar-se
integralmente a escrita, que abrange a poesia, a dramaturgia, a prosa e a crônica. Morreu
em Fevereiro de 2004 e nos deixou, entre outras obras, Presságio (1950), Balada d‘Alzira
(1951); Balada do Festival (1955); Roteiro do Silêncio (1959); Trovas de muito amor para
um amado senhor (1960); Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974); Amavisse (1989);
Via espessa (1989); Via vazia (1989); Alcoólicas (1990); Do desejo (1992); Da noite (1992);
Bufólicas (1992) e Cantares do sem nome e de partidas (1995).
Foi autora premiada na prosa e na poesia. Venceu o Prêmio Cassiano Ricardo
(clube de poesia de São Paulo),1985, com Cantares de Perda e Predileção; Prêmio Jabuti
(Câmara Brasileira do Livro),1994, com Rutilo Nada; Prêmio Moinho Santista Poesia
(Fundação Bunge),2002, e o Grande Prêmio da Crítica para reedição das Obras Completas
(Editora Globo) - Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA),2002, em que toda sua
obra foi reunida.
Como dito, nossos objetos de investigação são os livros Do Desejo (1992) e Júbilo,
memória, noviciado da paixão (1974). Do desejo, inicialmente chamava-se Amavisse (ter
um dia amado), que se juntou em 1989, com Via espessa e Via vazia. Em 1992, com mais
quatro obras, Sobre a tua grande face, Da noite, Alcoólicas e Do desejo, deu nome e corpo
original ao livro analisado. O livro Do desejo passeia entre dois caminhos: um de
representação de um sujeito em conflito e a presença de um outro, onde o sujeito busca
modos de se realizar. Mostra Eros encarnado em desejo, em ato sexual consumado,
levando a uma explosão de sentidos, em seguida, deparando-se com o amado afastado,
distante.
Já o livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, lançado em 1974, por Massao
Ohno, se apresenta dentro dos moldes da tradição lírica, impulsionando a veia da paixão e
do arrebatamento lírico amoroso. Foi relançado pela Companhia das Letras em 2018. É
estruturado em sete partes: ―Dez chamamentos ao amigo‖, ―O poeta inventa viagem,
retorno, e sofre de saudade‖, ―Moderato cantabile‖, ―Ode descontínua e remota para
flauta e oboé. De Ariana para Dionísio‖, ―Preludios-intensos para os desmemoriados do
amor‖, ―Árias pequenas. Para bandolim‖ e ―Poemas aos homens do nosso tempo‖.
Aqui, a voz feminina enfatiza a espera, o lamento pela ausência do amado e a
personificação em Dionísio, Túlio, Amigo e Senhores, destacando-se que esse livro marca o 25

retorno poético de Hilda Hilst, que por um tempo se dedicou à prosa e ao teatro. Nele
encontra-se o discurso sensual e erótico enquanto traço do lirismo amoroso que se
consolida ora na realização erótica sexual, ora como tentativa desse erotismo, ora como
lembrança do mesmo.
Realiza-se esta abordagem por meio do método indutivo-dedutivo com o fito de
visualizar a mobilidade desse discurso sensual/erótico, tanto no sentido do maior para o
menor como na forma inversa. Nesse sentido, as leituras dessas obras se ligam por uma
característica comum, que é a forma sensual-erótica e o lirismo amoroso manifesto em
ambos os casos. Nesse sentido, investigam-se alguns processos que se desenvolvem como
elementos tensivos da sua linguagem enquanto representação performática de estilo
próprio e de sua sensualidade concentrando-se nas obras citadas, que caracterizam bem
toda poética da autora no que se refere a construção lírica, por meio da presença constante
de um interlocutor e da sedução em seu discurso.
O referencial teórico que confere suporte à leitura dos poemas citados tem por base
as reflexões de Hugo Friedrich sobre literatura e modernidade e as de Octavio Paz no que
se refere ao amor e ao erotismo, que é elemento de suporte da poética de Hilda. Separar
no discurso poético, sensualismo, erotismo, e lirismo amoroso exige a delimitação dos
conceitos por suas respectivas fronteiras, que por muitas vezes, se misturam e se confundem
ora com uma visão conservadora e preconceituosa a julgar as expressões artísticas literárias
ora com a ausência de limites na utilização desses conceitos. Sendo assim, colocaremos em
discussão as fronteiras do erotismo e do sensualismo na obra de Hilda Hilst dentro da
abordagem do que traçamos como marcas do seu lirismo amoroso.
Para tanto o trabalho será dividido em quatro unidades e as considerações finais,
sendo a primeira delas esta introdução, a segunda, em que faremos as reflexões sobre amor,
a terceira em que apresentaremos alguns dos vários conceitos de erotismo, sensualismo e
pornografia, em que enfatizaremos algumas reflexões de Octávio Paz e, por fim, o quarto
capítulo em que comentaremos o lirismo Hilstiano, expandindo as ideias do lirismo
moderno de Friedrich e das vozes conceituais de Eliot, discutindo em Júbilo, Memória,
Noviciado da Paixão (1974), e no livro Do desejo (1992) aspectos do sensualismo e do
erotismo enquanto marcas desse discurso da modernidade.

ENTENDO EROS
26

Para falar de amor, falaremos um pouco sobre mito, por onde nos chega a
significação de Eros, a quem devemos, segundo a tradição grega, a relação conceitual com
fala, discurso, diálogo, lenda e fábula. Com o passar dos anos, a palavra mito foi
sobrecarregada de significados, permanecendo ligada ao que é verdadeiro-original, fazendo
pontes com as cosmogonias e teogonias. O mito Eros nos chega em linguagem poética
como significado de paixão, amor, desejo, desejo violento, objeto de amor. Em latim
cupiditas ou cupido traduzem-se como desejo violento e instintivo, carnal, luxurioso,
apaixonado, relacionado ao apetite. O Amor pode tanto significar paixão sexual, amor
sexual ou desejo intenso, quanto amor sentimental, afeição, amizade. É na Teogonia de
Hesíodo que se aponta Eros como divindade:

Nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede


irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo
nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros:
o mais belo entre deuses imortais, solta-membros, dos deuses todos e
dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente
vontade. (HESÍODO, 2003, p.111).

Eros é sem dúvida uma das mais importantes figuras cosmogônicas, mas na
Teogonia existe outra figura ligada ao amor, a deusa Afrodite, para os latinos ‗A Vênus‘,
que significa prazeres do amor, graça, beleza, ato sexual, apetite, charme.
Já no período Helenístico, a poesia lírica grega liga Eros a um amor romântico
sentimental, com imagem de um menino brincalhão que leva nas mãos um arco com setas
que ferem o coração dos humanos originando a paixão, imagem adotada também pela
mitologia romana. A poesia ocidental, chama Eros por seu nome latino, amor ou cupido,
dando-nos uma visão, através dos trovadores medievais, que o amor está ligado a um
sentimento elevado, puro, que vai além do prazer carnal. Já os cristãos, retomam a
bipolaridade de amor-sagrado/ amor-profano, confrontando a pureza e a sensualidade,
atreladas ao pecado e a luxuria.
No século XX, Eros se sobressai dos mitos, através das manifestações artísticas na
literatura, pintura, cinema, fotografia e chega até a ciência com Freud, através da
psicanálise, como significado de pulsão de vida, cuja realização se dá por meio da libido,
aproximando os deuses dos humanos e dividindo a sexualidade da função genital, o que
nos fará perceber a proposta de Paz, quando afirma que: ―o fogo original e primordial, a
sexualidade, levanta a chama rubra do erotismo e esta, por sua vez, sustem e ergue outra 27

chama, azul trêmula: a do amor. Erotismo e amor: a chama dupla da vida‖. (Paz, 1995,
p.8), como postulado na poesia de Hilda Hilst.

ENTENDENDO CONCEITOS BÁSICOS

Assim, se Eros fere os humanos fazendo arder o rubro fogo da sexualidade e a


chama azul do amor, como acredita Octávio Paz (1995), precisamos observar como essas
chamas se mostram. Mas antes vamos a alguns conceitos sobre literatura erótica (poesia) e
pornografia. Cuddon (1999) define desta forma, os dois elementos:

A poesia erótica diz respeito ao sexo e ao amor sexual; a poesia


amorosa tende a evitar detalhes sexuais (...). A poesia erótica tende a
concentrar-se nos aspectos mais físicos do amor e da paixão,
enquanto a poesia amorosa demora-se mais nas manifestações mais
nobres do amor, os mais elevados sentimentos. (p.284)

Seguindo a mesma linha de conceito definimos Pornografia:

Um trabalho de ficção (no sentido mais amplo do termo) no qual


existe uma ênfase considerável na atividade sexual e que é, via de
regra, escrito de tal maneira a estimular a excitação sexual. Pode ser
engraçado, sério, bizarro ou horrendo, e como qualquer outro tipo
de ficção, pode ser bem ou mal escrito. (p.685).

Podemos entender que a diferença entre um e outro é a abordagem ou não do ato


sexual. O lírico amoroso demonstra o amor e sua nobreza, e o distanciamento entre os
amantes, já a poesia erótica une esses amantes e exala suas sensações. A pornografia
enfatiza o ato sexual em si e o prazer enquanto elemento que se persegue, excitação
despertada no leitor. Assim, o termo obsceno, vem do latim obscenus, ―de mau agouro‖,
de aspecto feio, que se deve evitar e esconder, ou seja, um tabu que excepcionalmente
ousamos ver.
Com todas essas explanações podemos compreender e diferenciar tais aspectos, na
leitura da poesia de Hilda Hilst. No sentido que os amores físicos ou sentimentais são
descritos, como demonstra ser uma possibilidade Octávio Paz:

a sexualidade está ligada à reprodução, o erotismo nega-a, porque ver


o prazer como um fim em si mesmo. Por isso divide a chama da 28
sexualidade, o erotismo é vinculado a parte vermelha, cor do fogo e
do sangue, símbolo da vida. O amor é atração por uma única pessoa,
corpo e alma, é escolha; Mas é preciso haver um outro, como um
espelho em que o amante se reconhece. (PAZ, 1995, p.25).

Assim, das reflexões do crítico mexicano, chega-se ao espelho dessas relações via
amor/erotismo.

A LÍRICA HILSTIANA DE SER

Reconhecemos no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), que o uso do


discurso sensual e erótico por Hilda é recorrente. Noviciado da paixão é uma etapa de
aprendizagem e provação, quando se chega ao júbilo há uma satisfação total, e sempre se
traz a memória algo do amor vivido. Há também, uma ligação ao sagrado, ao amor
divino, Eros. O livro divide-se em sete partes, como dissemos, e em Prelúdios Intensos, há
cinco poemas que tematizam o amor erótico. Prelúdio=preliminares há um convite a um
amante, e uma rememoração das preliminares que antecedem o ato sexual. Objetiva-se
rememorar um desmemoriado, os caminhos do prazer. Usa-se um discurso sedutor para um
convite amoroso, para um encontro de corpos que se desejam. Sob esse aspecto, a poesia
de Hilda espelha-se em um rito de culto ao sensual, ao linguisticamente expressivo,
enquanto exacerbação de um eu que se julga revelador dessa expressão.
Assim, entende-se que a lírica Hilstiana se encaixa na lírica da modernidade tão
falada por Charles Baudelaire, ainda no século XIX em que o subjetivismo romântico se
despersonaliza, como diz Hugo Friedrich (1978, p.36) e sugere mais que identifica,
compondo uma herança da modernidade para a própria modernidade.
T. S. Eliot na obra A essência da poesia (1972), existencializa três vozes na poesia
moderna: a voz do poeta que fala de si para si mesmo, a que se dirige a um auditório e a
que incorpora uma personagem dramática, dialogando com outros seres ficcionais. Em
―Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio‖, a voz lírica
através de Ariana, fala a Dionísio, (ambos elementos fictícios). Essa voz transita na existência
humana e poética, com um sujeito lírico que fala de si, e encena outras vozes. Esse jogo de
vozes, traz ao leitor um ponto de tensão, e existe ainda um caminho que conduz a um
diálogo, ora harmônico, ora desarmônico.
A origem da palavra ―Ode‖ está no grego aidê=hino, poema lírico feito para o
canto, mas em Hilst, a Ode é descontinua e remota. Usa-se na Ode original instrumentos de
corda, como lira e harpa, na Ode Hilstiana usa-se sopro, flauta e oboé. Existe um eu que 29

emana espera e que usa o tom poético amoroso para construir a relação amado/amante,
amante esse ficcional, que se alterna entre personagens denominadas Dionísio, Túlio, o
amado, o amigo, o Pastor, ou os homens de nosso tempo.
Em os ―Dez chamamentos ao amigo‖, no poema de número um, existe uma súplica
e uma evocação, uma voz entre o amado, que o chama, mas que também quer atenção
para si. Vejamos como isso ocorre no poema:

Se te pareço noturna e imperfeita


Olha-me de novo, porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
(HILST, 2004, p.231)

Nos três primeiros versos, há um chamado para uma observação mais atenta,
através da voz lírica. No segundo, há um chamamento de retorno e repetição de memória,
dando a entender que ele já a olhou uma vez, mas não foi atentamente. Há um
impedimento para a junção dessa terra com a água, e existe um desejo desse encontro, por
isso esse pedido de atenção. No terceiro verso ―Olhei-me a mim, como se tu me olhasse‖,
existe uma conciliação sonora equivalente a molhasse, se reportando a fluidez da água, ―do
corpo de água‖ em junção com a terra ―entendo que sou terra‖, propondo uma
transformação em barro, podendo ganhar outras formas, assim como uma construção
estrutural do próprio poema. As imagens fluem a partir de um jogo propiciado por uso dos
elementos visuais. Pastor e nauta, remete submissão ao seu interlocutor, por meio da
sedução, que não se limita ao corpo, mas que avança no sentido do rio, de suas margens e
imagens. Observe-se que os elementos visuais contornam o poema e tornam-se as
metáforas chaves de sua expressão sensual.
Sendo assim, podemos detectar um lírico despersonalizado, como diz Hugo
Friedrich, mostrando ao leitor a voz lírica de Hilst, onde também podemos discutir as três 30

vozes citadas por Eliot. Lugar em que o ―eu‖ se comunica consigo mesma, com um ser
fictício, colocando-se como ouvinte e transformando-se em outros personagens.
Em Do desejo (1992), há um jogo de ausência e presença que é original da obra. O
eu lírico se apossa de um sujeito ausente contornando as imagens de mais sete livros. A
epigrafe ―Quem és? Perguntei ao desejo./Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada‖
aponta características do desejo corpóreo, desfazendo-se no nada, refazendo-se ligação
entre amante/amado. É o que se vê nessa mesma expressão em outra imagem construída no
primeiro poema, o de número um do livro:

Porque há desejo em mim, é tudo cintilâncias,


Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiado, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
(HILST, 2004, p.480)

Analisando o primeiro verso, o eu lírico se dirige para o desejo como condição de


existência do ser. Existe uma métrica que sobrepõe os sentimentos, transparecendo um
desejo que vem de um ‗em si‘ do lírico e se mostra ao outro. O significado lírico da palavra
desejo aciona o ser físico e metafísico, apresentando o desejo como carência e insuficiência,
enquanto não se realiza. No sexto verso, percebe-se os sentidos na forma e nos motivos do
eu lírico: a palavra ‗antes‘ no segundo verso e ‗hoje‘ no sexto, remetem a algo inatingível e
por isso desejável. Nos versos posteriores podemos perceber a realização concretizada do
desejo, ou seja, o ato que tanto se desejava foi consumado.
Percebemos que há uma configuração de lírica onde a concretização do desejo só se
realiza pelo movimento do eu em busca do que falta. Há no livro dez poemas que
concretizam o sentido do desejo para a poeta, poemas esses que se interligam em um
mesmo campo expressivo e que mostra um espírito conflitante e com várias faces, o que
remete a expressão visual totalizante do discurso dessa poesia, em sua multiplicidade de
representações. 31

Desde Platão, fala-se de duas formas de desejo: o desejo aspiração, que está ligado
a alma e o desejo apetite, ligado ao corpo com ânsia de realização. Para Pessanha: ―o
desejo aspiração é o nostálgico anseio de retorno a incorporeidade pura, apontando para
alhures, já o desejo apetite persegue vorazmente na sofreguidão do corpóreo, o aqui e o
agora‖, (1990, p. 91). As definições de Platão se concretizam em Hilst, o desejo é ânsia
daquilo que não se tem. Uma carência que desequilibra o pensamento e engrandece o que
se deseja
Etimologicamente a palavra vem do latim desiderium=esperar, que pode vir a ser,
―esperar pelo que as estrelas trarão, de desidere, ―dos astros‖. Ou do grego hormê,
derivando da expressão latina relíquia desiderantur = falta o restante. Para Hilst, significa
condição da existência humana, sempre cheia de quereres, pois estes sustentam a vida e a
feitura poética (CBL, 1999.p.37). Nos desejos habitam todas as nossas expectativas e
desilusões.
A concretização da palavra desejo, dada como vontade do corpo que se lança na
vontade da alma, é encontrada nos poemas de Do desejo (1992), em que o corpóreo se
sobrepõe ao incorpóreo, mas não o descarta. O discurso de Hilda Hilst está entre o desejo
aspiração incompleta e a celeridade do desejo apetite que procuramos enfatizar em nossas
reflexões ao longo desse trabalho no sentido de criar os caminhos para trazer a luz das
discussões o lirismo e sensualismo enquanto elementos presentes em sua expressão poética,
em sua linguagem. Dessa forma, passamos agora as nossas reflexões finais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme nossas reflexões ao longo deste trabalho, é essencial primeiramente, para


o estudo literário, distinguir o erótico, o sensual e o lírico amoroso que, embora circundem
a questão da sexualidade, são diferentes, no que se refere ao direcionamento do desejo
(libido) de um em relação a outro, tornando-se ora desejos e expectativas, ora exclusivo-
amor, ora dispensado-erotismo.
Em outro momento, faz-se necessária a reflexão sobre esses elementos enquanto
construtos de uma linguagem. Na poética Hilstiana o erotismo se evidencia em um convite
amoroso sedutor implícito e um lirismo que tenta completar-se enquanto imagem poética
da falta na relação amorosa como se fora o próprio amado. 32

Desta forma, nossa discussão permeia os conceitos de alguns teóricos, que refletem
sobre estas questões, especialmente, sobre o erotismo, o amor e a expressão da
modernidade, procurando sempre as marcas expressivas de suas realizações eróticas em
níveis diferentes de sensualismo no âmbito de sua poética, construída sob os signos da
incompletude e a busca de sua superação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUDDON, J. A. The Penguin dictionary of literary terms and literary theory. London:
Penguin Books, 1998.
ELIOTT, T S. A essência da poesia. Maria Luiza Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Arte Nova
S.A., 1972.
ERNOUT, Alfrad; MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire
dês mots. 4. Ed. Augm. Paris: Klincksieck, 2001.
FERRARI, Sandra Aparecida Fernandes Lopes. Lírica e Interlocução em Hilda Hilst - São José
do Rio Preto. Tese (doutorado) – UEP: Júlio de Mesquita Filho. 2016.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da metade do séc.XIX a meados do século
XX. Tradução: Marise M. Curione. SP: Duas cidades, 1978.
HILST, Hilda. 1930-2004. Da poesia. 1° Ed. SP: Companhia das Letras, 2017.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001.
LÉVY, Ann-Deborah. Eros. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Tradução
Carlos Sussekind et al. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 319-324.
PAZ, Octavio. A chama dupla: amor e erotismo. SP: SICILIANO,1994.
PESSANHA, José Américo Motta. Platão: as várias faces do amor. In: NOVAES, Adauto
(Org.). Os sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. P.77-103.
CAPÍTULO III
UM OLHAR SOBRE MEMÓRIA E IDENTIDADE INDÍGENAS NA OBRA FLOR
DA MATA, DE GRAÇA GRAÚNA

MELO, Carlos Augusto de 5


SOARES, Laís Cristina 6
33
SANTOS, Márcia Dias dos 7

RESUMO:
Neste artigo, analisa-se a obra literária da escritora indígena Graça Graúna, com foco no livro Flor da mata
(2014), considerando as construções da memória e da identidade relacionadas às formas de afirmação e
resistência indígenas. Há, ainda, a ênfase às representações poéticas que Graúna constrói sobre os pensamentos
ameríndios dentro do contexto cultural contemporâneo, entrelaçando suas memórias pessoais às práticas
culturais coletivas. As reflexões estarão baseadas em textos da área dos Estudos Culturais e Literários,
principalmente naqueles que se interessam pelas questões indígenas, como Ailton Krenak, Daniel Munduruku,
Rita Olivieri-Godet, entre outros. Desse modo, pretende-se contribuir para a visibilidade da literatura de
autoria indígena, e assim, demarcar um espaço de uma voz literária que fora silenciada e excluída pela história
da literatura brasileira.

Palavras-chave: Literatura indígena. Graça Graúna. Memórias. Identidades.

INÍCIO DAS REFLEXÕES

Escrevivência

Ao escrever,
dou conta da ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.
(GRAÚNA, 2017, s/p.)

Nas últimas décadas, a história da literatura brasileira tem sido, propositalmente,


questionada por meio da ocupação de vozes que têm reverberado de um outro lugar de
escrita, o lugar da margem cujo legado foi forjado pelo pensamento dominante,
eurocêntrico, o qual silenciou, oprimiu e excluiu sujeitos/povos que não estavam inclusos
em um projeto de modernidade, pertencente a uma visão civilizatória e expansionista
defendida pelos colonizadores.

5 Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Núcleo de
Literatura do Instituto de Letras e Linguística (ILEEL) e do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PPLET) na
Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: carlosaug.melo@gmail.com.
6 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia.
7 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do

Departamento Acadêmico de Ciências da Linguagem (DACL), campus de Guajará-mirim, na Fundação Universidade


Federal de Rondônia. E-mail: marcia.santos@unir.br.
Neste lugar de ocupação, de enfrentamento, encontram-se as produções literárias
de autoria indígena contemporâneas que se consolidam, no circuito literário brasileiro,
como modos de expressão das lutas dos povos nativos pela afirmação da
existência/resistência e pela valorização de suas culturas. Os escritores indígenas, portanto,
realizam a apresentação do complexo universo das tradições orais para o contexto –
também complexo – da escrita literária em língua portuguesa. Esse domínio da escrita pelos 34

representantes literários dos povos autóctones brasileiros possibilita que socializem suas
vivências e tradições com um público mais amplo, dando novos significados às suas
histórias, que por muito tempo estiveram subjugadas à posição de ―inferior‖ pelas
perspectivas dos olhares não indígenas:

a literatura escrita pelos povos indígenas no Brasil pede que se leiam


as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação
que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de
outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a
mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na
literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura
nacional (GRAÚNA, 2013, p. 19).

Os escritores indígenas contemporâneos nos apresentam, a partir de suas


experimentações com a literatura ocidental, um modo singular de viver e compreender o
mundo, cujas ferramentas literárias utilizadas são, muitas vezes, as mesmas do outro, como
a escrita, para que possam recontar suas histórias e difundir seus cantos, com os quais os
leitores têm a oportunidade de lançar olhares de experimentação para esses novos espaços
artísticos. Desse modo, de um ponto de vista descentralizado, eles têm friccionado a
narrativa de um Brasil ―conquistado‖ pelos os viajantes europeus dos séculos XVI e XVII, os
quais, pela ordem da exploração colonial, impuseram-na como ―verdades encontradas‖.
Como afirma Ailton Krenak (2019, p. 14), os colonizadores tiveram o objetivo de
―transformá-los [os indígenas] em civilizados que poderiam integrar o clube da
humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas ‗pessoas coletivas‘, células que
conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo.‖ Descreveram ―o
território, a fauna e a flora, os rios e as gentes aqui encontrados, para com isso apresentar
ao público o novo mundo, agora os nativos estão revertendo a história.‖ (ALMEIDA E
QUEIROZ, 2004, p.195)
Estima-se que, no Brasil, em 1500, havia uma população indígena de 5 milhões de
pessoas. Hoje, após todos os tipos de violências sofridas por esses povos, o território
brasileiro possui 375 povos indígenas oficiais, com 275 línguas, o que revela um processo
de sobrevivência e de resistência desses povos que, mesmo tendo passado pelas mais cruéis
formas de exclusão e de ações genocidas, emergem de uma lugar marginalizado, expandem
suas subjetividades (KRENAK, 2019, p. 15) e lutam de todas as formas e com os
instrumentos de luta possíveis para ocuparem os seus espaços que lhes são de direito. Assim,
essa produção literária, escrita pelos indígenas, torna-se uma palavra política, palavra de 35

resistência, palavra de combate, como expressa a voz sujeito lírico, que ecoa as vozes
coletivas de seus parentes indígenas, no texto poético do escritor indígena Tiago Hakiy:

[...] Somos Guerreiros


Guerreiros sem flechas e tacapes
Lutamos com palavras
Defendendo a cultura de nossos povos
Preservando a identidade de ser índio
Ameaçada de extinção
Nascemos para o conto
Para a beleza das histórias
Para a poesia e sua emoção
O tempo não é mais de lamento
O tempo é do ritual das palavras
Em versos
Em sonhos (HAKIY, 2011, p. 5)

Essas palavras literárias revelam possuir uma linguagem de resistência que se faz
espiritual, ancestral, que se faz coletiva, pois carrega as histórias, identidades, memórias e
vivências não só do escritor, mas também do povo ao qual ele pertence, sendo assim, são
versos que visibilizam, trazem em sua expressão toda uma ancestralidade que aproxima aos
que com ela têm contato de um lugar de desconhecido, porém habitado por outros sujeitos
em um processo de alteridade fundamental no contexto histórico-social do século XXI.
Bernd (2003) afirma que essas literaturas de ―minorias‖ estão voltadas para a formação e a
consolidação de um projeto identitário, no qual o sujeito representado procura se
reapropriar de um espaço existencial. As identidades dos povos originários, na história da
literatura brasileira, estiveram sempre associadas diretamente a estereótipos, os quais foram
formados a partir de representações equivocadas construídas pelos autores ―brancos‖, sem
corresponder à maneira como os próprios indígenas realmente se veem, se sentem e se
percebem nas suas vivências. As produções literárias de escritores indígenas têm como um
de seus focos o rompimento com esses estereótipos que ―acabam funcionando como marca
distintiva ou como característica principal na composição de uma imagem‖ distorcida sobre
esses povos nativos (BONIN; SIMM, 2011, p. 89).
Nesse sentido, este artigo propõe estudar a contribuição da escritora Graça Graúna,
pertencente ao povo potiguara, que, no século XXI, principalmente, tem se mobilizado, por
meio do seu inigualável papel subversivo de criação literária, para reverter a ordem do
discurso dominante. O foco será o livro de poesias Flor da mata (2014), uma vez que nele 36

se constata uma busca por uma visão de ―dentro‖ sobre as identidades indígenas, baseando-
se em uma experiência mnemônica na qual os elementos identitários ancestrais são
resgatados de suas memórias pessoais e coletivas, como são os ritos, os mitos, as danças, as
cantigas, os adornos, a alimentação, as narrativas orais e as representações da natureza.

GRAÇA GRAÚNA: A ESCRITA COMO RETORNO À ANCESTRALIDADE

A escritora indígena Graça Graúna, filha do povo potiguara, do Rio Grande do


Norte, é pesquisadora na área de Letras, liderando o Grupo de Estudos Comparados:
Literatura e Interdisciplinaridade (GRUPEC-UPE). Sua atuação profissional está relacionada
principalmente com literatura, direitos humanos e cultura indígena. Em seu registro civil
consta o nome Maria das Graças Ferreira, nascida na cidade de São José do Campestre, no
Rio Grande do Norte, em 1948.
A escritora, como reconhecemos em sua escrita, devido a situações de
sobrevivência, precisou sair de seu local de origem, ainda jovem, entre 1958 e 1959, para
morar em Pernambuco. Tem uma relação com a literatura desde criança, pois sempre se
permitiu experimentar a poesia nas mais diversas as situações. Depois de vencer as barreiras
financeiras que a impediam de cursar uma universidade pública, conseguiu ingressar no
curso de Letras da UFPE, seguindo pelo campo da Literatura e dedicando-se à cultura e à
história indígenas. Pela mesma universidade, obteve os títulos de Mestre e Doutora em
Letras. A Dissertação e a Tese tiveram os seguintes títulos, respectivamente: O Imaginário
dos Povos Indígenas na Literatura Infantil (1991) e Contrapontos de Literatura Indígena
Contemporânea no Brasil (2001). Esses dois trabalhos se destacam na história da crítica
literária brasileira em vários aspectos, principalmente por estarem inseridos no rol dos
primeiros estudos literários brasileiros de autoria indígena.
Atualmente, é professora adjunta em Literaturas de Língua Portuguesa e Cultura
Brasileira na Universidade de Pernambuco - UPE - Campus Garanhuns. Em seu cotidiano,
possui como atividade dar aulas de literatura na universidade, fonte de sua ocupação e
preocupação constante, principalmente ter a possibilidade de abordar em suas práticas a
denominada ―literatura periférica‖, relacionando-a aos direitos humanos. Além disso, Graça
Graúna se detém, entre outras atividades, a apresentar a palavra indígena por meio do
recurso virtual, alimentando constantemente dois blogs: o Art‘palavra 8 e o Tecido de
vozes9: literatura e multiculturalismo. Em 2009, o seu blog recebeu do Topblog 2010, selo 37

dado aos 100 blogs mais acessados e indicados do Brasil.


Graça Graúna vem se destacando no engajamento frente à produção literária
indígena brasileira, produzindo artigos, capítulos, coletâneas e livros teóricos: Contrapontos
da literatura indígena contemporânea no Brasil (2013); Impressões de leitura do texto
(2015) e Direitos humanos em movimento (2011), entre outros.
Além disso, dedica-se à escrita literária. Publicou diversos livros, dentre eles: Canto
mestizo (1999), Tessituras da terra (2001), Tear da palavra (2007), Flor da mata (2014),
Criatura de Ñanderu (2010). Em suas obras, convoca seus leitores à reflexão sobre a
exclusão dos povos indígenas, ajudando a romper estereótipos e perceber os povos nativos
como capazes de produzir textos com valores estéticos e literários, bem como de recompor
e reordenar uma forma própria de fazer literatura.
Em suas produções, há o rompimento com determinadas visões estereotipadas
sobre os povos indígenas e acentuam-se os temas pertinentes ao deslocamento dos sujeitos
indígenas e suas recomposições, promovendo um diálogo entre questões de pertencimento.
Também, os livros da escritora afastam-se da antropologia mais tradicional, apresentando
aos leitores uma nova visão sobre os povos autóctones. Sua obra afeta a realidade social ao
causar reflexão e revela representações das vozes exiladas e não reconhecidas por mais de
quinhentos anos de exclusão na nossa sociedade ocidental.
Dessa maneira, as obras literárias de Graça Graúna são ricas em aspectos
relacionados à preservação da memória cultural indígena, visto que permitem desconstruir
as ―cegueiras‖, culturais que muitas vezes impedem o reconhecimento da presença e da voz
do outro, do diferente. Vale dizer que, de acordo com Guimarães e Melo, as produções da
autora apresentam um projeto literário criativo, sofisticado e complexo, explorando

8 GRAÚNA, Graça. Art‘palavra, 2007. Disponível em: <https://ggrauna.blogspot.com/>. Acesso em: 10 de julho de
2020.
9 GRAÚNA, Graça. Tecido de vozes, 2011. Disponível em: < http://tecidodevozes.blogspot.com/>. Acesso em: 10 de

julho de 2020.
características nas quais se entrelaçam questões de estilísticas, de hibridismos e de
metalinguagem:

Por meio da uma subversão poética que adota a forma e o conteúdo,


Graça busca pela ―reapropriação‖ dos lugares e memórias ancestrais,
reencontrando as matrizes indígenas, a fim de que haja a reconstrução
identitária do indígena em outro espaço. A poética da alteridade 38

baseia-se no ―estrangeiro de dentro‖, no desconhecido de si


(GUIMARÃES; MELO, 2018, p. 189)

A literatura da autora de Criatura de Ñanderu mobiliza as tradições orais, o caráter


performático de tais tradições e reúne a etnicidade das nações indígenas ao ―traduzir‖ para
o universo da escrita poética vozes coletivas, de forma que o leitor as ―experimente‖ e,
dessa forma, recupere-as em suas experiências de alteridade. Os poemas se relacionam às
diversidades das comunidades indígenas, as suas sensibilidade e a todas suas (auto)histórias,
em virtude de que, como afirma a própria autora, ―todo texto indígena de autoria
individual implica um tecido de vozes‖ (GRAÚNA, 2013, p. 88); o que corrobora, em certa
medida, a validação do presente trabalho. Observar os textos literários da autora Graça
Graúna é considerar que a escrita é uma forma de libertação, indispensável para
sobrevivência de suas memórias e identidade indígenas.

EM FLOR DA MATA, MEMÓRIAS E IDENTIDADES DOS POVOS INDÍGENAS

A obra de Graça Graúna, Flor da Mata, foi publicada em 2014 pela editora
Penninha Edições. Ela é relativamente concisa, no total de 48 páginas, considerando os
elementos pré-textuais e pós-textuais. A ilustração da obra foi feita por Carmen Barbi nas
35 páginas de seus (quase) haicais (latinos), como a própria a escritora referencia em ―meus
quase haicais‖ (GRAÚNA, 2014, p. 8) e, também, em ―Dias de sol/distendo as velhas
asas/num haicai latino‖ (GRAÚNA, 2014, p. 13). Eles aparecem um em cada página. A
artista conseguiu traduzir nas imagens visuais em preto e branco as sensações alegres, leves e
cheias de sensibilidade presentes na obra.
A capa e a contracapa trazem o projeto gráfico de Letícia Santana Gomes, com as
ilustrações também de Carmem Barbi. O projeto da capa e a contracapa é o único em toda
a obra que traz um colorido. Trabalhou-se com tons de azul, amarelo, preto e marrom. A
atmosfera, em tons leves de azul, circunda uma indígena jovem, cujos cabelos pretos e lisos
são adornados por três belas flores amarelas. No centro da contracapa, aparece o trabalho
gráfico com o poema ―Utopia é cantar/uma trajetória possível:/Pindorama‖ (GRAÚNA,
2014, p. 29), o qual contrasta com algumas das tonalidades da cor azul, imitando a
atmosfera plena do céu, e das flores amarelas colocadas em três delicados ramos.
Damos destaque à apresentação que Graúna faz de sua obra. A escritora inicia com
um canto Kariki-Xocó, afirmando sua condição de ―deslocada‖, mas que também busca por
um lugar de fala indígena que se faz resistência através de suas produções literárias. Ela 39

expressa sua experiência de estar num entrelugar identitário que, de certa maneira, faz
lembrar um dos poemas do livro Tear da palavra, no qual o sujeito lírico encontra-se num
abismo entre a palavra e o silêncio na condição de estreia em realidades que lhe são
cotidianas:

Entre-lugar

De um lado
a palavra
do outro
o silêncio
estreando realidades conhecidas

A pá lavra o abismo
que vai de mim
ao outro (GRAÚNA, 2007, p. 20)

A autora de Canto mestizo representa sua identidade híbrida, fazendo menção aos
trajes e adereços das mulheres do povo Xukuru que usam flores artificiais, destacando que
isso nãos as impedem ―[...] de usar vestimentas feitas da palha de milho, da palha de coco e
das penas de aves, pois este é o costume que vem dos antepassados. (GRAÚNA, 2014, p.7).
A autora finaliza a apresentação, enfatizando o que Antônio Fernando Viana, seu antigo
professor da Universidade Federal de Pernambuco, escreveu sobre ela, em cujo texto
profético destacou que Graúna mostra-se como um Haijin, que une simplicidade,
sensibilidade e sabedoria em sua escrita, motivando-a a compartilhar suas experiências
poéticas com o leitor.
Outro destaque inicial que fazemos são as flores, na capa e contracapa, que se
relacionam com o título da obra, cujo nome ―Flor‖, não acompanhado de artigo, escapa de
qualquer determinação, generalização ou identificação, como se encontrasse, nesse
elemento natural originário da ―mata‖, ―presentes agora no Toré [...] a leveza e a força da
‗Mãe-terra‘, leveza e força que o ‗hajin‘ (fazedor de haicai) também necessita para o haicai
acontecer‖ (GRAÚNA, 2014, p. 7-8). O vocábulo ―Flor‖ põe em evidência a força e a
beleza que, há diversos séculos, os povos nativos mantêm para conseguir defender a
liberdade indígena vinda de seus ancestrais por meio do canto do Toré.
Como bem escreve na apresentação, a poesia ancestral do Toré é uma ―ciência‖,
―manifestação sagrada [que] está no ser e no viver indígenas da Região do Nordeste‖
(GRAÚNA, 2014, p. 7), ou seja, é uma manifestação de resistência de que há ―quinhentos 40

anos [...] os índios estão resistindo [...] expandindo a [...] subjetividade [...] (KRENAK,
2019, p. 31), protegidos pelos ancestrais, ―mesmo quando o ser indígena se vê meio
deslocado em terra alheia.‖ (GRAÚNA, 2014, p. 7). Associa-se à imagem daquele Toré que,
na brevidade filosófica de um instante poético, característica própria do haicai, Graça
Graúna consegue enlevar o leitor:

Dançar o toré
perto da gameleira
entre os encantados
(GRAÚNA, 2014, p. 43)

Essa manifestação artística, o Toré, é um ritual tradicional sagrado de alguns povos


originários que transcende na dança, na religião, na luta e na brincadeira – variando de
acordo com as culturas de cada povo, pois, como diz as palavras de Krenak, representando
os seus parentes indígenas, ―a gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não
aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250
etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e
dialetos.‖ (KRENAK, 2019, p. 17)
Muitas comunidades indígenas cultuam o Toré, como os Kariri-Xocó, os Xukuru-
Kariri, os Xocó, os Potiguara, os Pankararé, os Pankakarú, os Truká e os Funil-ô. Essa prática
ritualística pode durar várias horas, quando os participantes entram em contato com os
seres espirituais ou, como na voz do sujeito lírico do poema acima, os ―encantados‖,
desfazendo as fronteiras dos planos espiritual e material. A dança do Toré é seguida por
uma música denominada Toante, a qual é expressa por um ―cantador‖ ou ―cantadora‖,
acompanhada pelos fortes gritos e passos ritmados de seus praticantes.
Como no Toré, nota-se que, em sua obra, a escritora potiguar evoca, como forma
de agradecimento nas páginas pré-textuais, Ñanderu, Deus, Tupã e Mãe Natureza,
elementos ancestrais fundamentais que, possivelmente, acompanham-na no seu ritual de
criação literária. Ao escrever, a voz poética da escritora ―distende suas asas‖ e põe em
funcionamento uma memória literária que, embalada nos sensíveis movimentos de uma
reluzente Graúna, compõe o fenômeno de recriação de um tempo que passou, mas que,
revitalizada pelas resistentes experiências ancestrais, impõe-se em um tempo sempre
presente.
A escrita, para os indígenas, é uma forma de libertação, indispensável para
sobrevivência de sua memória ancestral. Ao escrever sobre questões culturais de seu povo, 41

os escritores indígenas põem em funcionamento uma memória literária que funciona como
um fenômeno construído coletivamente. A memória é recriação do tempo passado, é
refazer as experiências do passado e trazê-las para o presente. A lembrança é uma imagem
trazida do passado, mas que vem à tona em razão de juízos de realidade e de valor do
tempo presente (BOSI, 2009).
As temáticas de seus haicais perpassam costumes, crenças, valores e concepções
indígenas, que a escritora de Tear da Palavra desenvolve de acordo com as experiências
vivenciadas em suas peregrinações como mulher, mãe, professora, poeta indígena – a
complexidade da natureza e as diferenças étnicas e sociais envolvem todos os poemas
criados por ela, verdadeiros manifestos de sua luta por um lugar no qual a iniquidade e a
intolerância não se manifestem de maneira alguma. A literatura criada por uma escritora
indígena, de origem potiguara, revela, sob perspectivas bastante sensíveis e particulares, as
culturas e os valores dos povos originários em comunhão, confirmando que a formação das
identidades ocorre por meio da interação entre o indivíduo e o mundo, em diferentes
espaços e instâncias sociais, conforme abordado por Hall (2015).
Nesse sentido, é possível afirmar que a obra de Graça Graúna problematiza as
construções das culturas indígenas, pontuando as distorções e os equívocos sobre elas, no
sentido de colocar em movimento a dinâmica multicultural nacional, reinventando ―a
tradição literária pelo prisma contemporâneo‖ (GUIMARÃES; MELO, 2018, p. 189).
Ademais, a transculturalidade, proveniente dos deslocamentos vividos pela autora, revela-se
na apropriação do gênero haicai, de origem oriental, para expressar os mais profundos
sentimentos de uma indígena latina, de maneira a querer dizer ao leitor que, por meio da
literatura, defende-se a interação cultural entre os povos em suas diferenças.
Em vários momentos, essa poeta potiguar reafirma que o indígena sai de sua aldeia,
mas carrega em si sua indigeneidade. O indígena vai para ―as cidades em busca de novos
horizontes‖ (MUNDURUKU, 2014, p. 176), entretanto ele leva consigo todo seu povo, seus
ensinamentos transmitidos de geração em geração, muitas vezes à espera de um retorno
para sua terra, sua casa, seus irmãos. O poema a seguir sussurra em sua inquietude que:

O tempo de chegada
Transborda o olhar
No tempo de partida
(GRAÚNA, 2014, p. 27). 42

Nesses concisos versos, retoma-se a ideia de que o indígena carrega consigo em seus
deslocamentos o tempo de seus ensinamentos, de suas crenças e de suas vivências. Vê-se
que a identidade cultural na literatura da escritora de Criaturas de Ñanderu está associada,
muitas vezes, à característica de escritas migrantes, que propiciam os espaços vividos pelos
povos excluídos socialmente a favor de que ocupem outros lugares nas vivências em
trânsito. Tematizam-se, por meio desse poema, a densidade que se encontra na
sensibilidade do olhar, sugerindo um transbordamento – como as lágrimas? - de emoções
instaurado entre os movimentos de chegada e de partida na percepção de tempo dos
povos indígenas. Entre chegar/olhar/partir, a autora conota um movimento que nos sugere
um tempo não circunstancial que pode ser observado no início dos versos se lidos em uma
só estrutura: ―o tempo transborda no tempo‖. Um tempo que transborda e se faz memória
afetiva, embora deslocada. Daniel Munduruku afirma que:

Para o indígena existem dois tempos: o passado e o presente. O


passado é memorial. Serve para nos lembrar quem somos, de onde
viemos e para onde caminhamos. Um povo sem memória ancestral é
um povo perdido no tempo e no espaço. Não sabe para onde
caminha e por isso se preocupa tanto onde vai chegar. O passado é a
ordenação de nosso ser no mundo. É ele que nos obriga a sermos
gratos, a cantar e dançar ao Espírito Criador. É ele que nos lembra o
tempo todo que somos seres de passagem. O outro tempo é o
presente. Para esses povos o tempo que importa é o presente. [...] Os
indígenas são, portanto, seres do presente. Só sabem viver o e no
presente (MUNDURUKU, 2017, p.49-50, grifos do autor).

Há a possibilidade de analisar também que o presente é uma composição de outros


tempos, é uma construção que se faz muito necessária cotidianamente, a qual precisa ser
continuada na afirmação e reafirmação identitárias que, para Silva (2000, p.115), são tanto
simbólicas quanto sociais. Essa continuidade possui nas produções literárias de autoria
indígena a viabilidade de sobrevivência e de atualização do passado no presente. Os
constantes deslocamentos vividos proporcionam, de acordo com Hall, certa crise de
identidade para aqueles que se sentem deslocados de seu lugar, tanto no mundo social e
cultural quanto no de si mesmos:

as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo


social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno até aqui visto como sujeito
unificado. Assim a chamada ―crise de identidade‖ é vista como parte 43

de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as


estruturas centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no
mundo social. (HALL, 2015, p. 9).

As identidades não se constituem fixas e imutáveis, coerentes e estáveis, sendo assim


possibilitam aos indígenas, a libertação da condição de manter-se etnicamente ―puro‖ para
validar sua indigeneidade. Os sujeitos nativos não devem ser imaginados como sendo
compostos de uma identidade social, mas de inúmeras delas, que podem ser, algumas vezes,
contraditórias, e em outras, não resolvidas, o que possibilitam a transformação e
surgimento de novas formas de representação cultural. Nesse dinamismo dos
deslocamentos, tem-se o sujeito lírico que afirma sua identidade deambulante:

Mais uma viagem:


nesse vai e vem a utopia
me faz andarilha
(GRAÚNA, 2014, p. 12)

Esses versos trazem a revelação de um sujeito lírico feminino, impulsionado pelas suas
aspirações utópicas, que transita entre espaços, físicos ou espirituais, em constantes
movimentações, construindo suas trajetórias errantes. As presenças das consoantes ―m‖ e
―n‖ oferecem a sensação de que esse ―vai e vem‖, como acontece com as ondas da água
dos rios de água doce, é sempre contínuo e duradouro. Essas ideias se aproximam das
vivências pelas quais a poeta Graça Graúna tem passado ao se propor andar por diversas
regiões nacionais e internacionais, em congressos, conferências e eventos acadêmicos, com o
propósito – talvez, em uma concepção ainda utópica - de tornar os saberes indígenas
visíveis ao mundo e respeitados por todos e todas não indígenas, desconstruindo, então, o
modelo epistemológico hegemônico da ciência moderna que rejeita e anula a diversidade
epistemológica do mundo, ou seja, a epistemologia do Sul, que ―é aqui concebido
metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos
e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo
(MENESES; SANTOS, 2009, p 12).
Em Flor da mata (2014), percebe-se a articulação entre tradição e memória que, por
meio da contação das histórias, as identidades indígenas possam resistir na
contemporaneidade, como refletido no haicai abaixo. Nele, Graúna leva a crer que, na
prática mnemônica da tradição indígena, existe a potente essência poética de recriação do 44

mundo encontrada na palavra contada/cantada:

Em volta da fogueira
memória, história
o mundo se recria
(GRAÚNA, 2014, p. 14)

Toda a base da formação educacional indígena tradicional se mostra viva pela


palavra, que se constrói por meio da transmissão dos saberes dos velhos e adultos aos
jovens e às crianças. Os pais, por exemplo, utilizam-se da oralidade para transmitir os
ensinamentos da vida material (cultivar os alimentos e transformá-los em comida, cuidar da
casa). Por outro lado, conforme reflexão de Daniel Munduruku, os anciãos vão ensinar a
alimentar o espírito, contando ―aos pequenos e [às] pequenas que somos parte da natureza
e que devemos nos comportar dignamente com ela para que a harmonia prevaleça e todos
possam viver a alegria da fraternidade. De geração a geração, reavivando e atualizando as
memórias ancestrais, esses saberes espirituais serão repassados pelos velhos em suas
contações de histórias ao redor das fogueiras, ―protegidos pelo véu da noite‖
(MUNDURUKU, 2014, p. 177), resistindo às sucessivas tentativas de apagamento por parte
do violento discurso hegemônico ao longo dos períodos históricos. Conforme Costa e
Melo:

a reafirmação da tradição e da memória torna-se ato de resistência


cultural por promover o fortalecimento dos indivíduos e de suas
comunidades e possibilitar tanto um retorno simbólico às origens
quanto o reencontro com a identidade indígena primitiva. Esse
reencontrar-se com a identidade primeira – obscurecida pela mescla
cultural resultante dos processos diaspóricos nos contextos colonial e
global – fortalece as subjetividades e as noções de pertencimento
desses indivíduos oprimidos na dinâmica das movências humanas.
(COSTA; MELO, 2018, p. 368)
Nota-se que as literaturas indígenas sempre existiram e se efetuaram nas vozes
ancestrais, nos grafismos, nos cantos ritualísticos, nas danças, os quais foram sendo
registrados nas memórias de seus descendentes; agora, na contemporaneidade, são
continuadas nas palavras escritas. Segundo Daniel Munduruku, os indígenas representam a
persistência de uma linhagem, nascida há tempos atrás, oriunda de lugares diversos iniciado
―por outras pessoas... Complementado, remendado, costurado e... Continuando uma 45

ancestralidade, um passado uma tradição que precisa ser continuada, costurada, bricolada
todo dia‖. (MUNDURUKU, 2002, p. 41). No poema abaixo, o sujeito lírico resgata da
memória a atmosfera artística que se verifica em um dos modos de transmissão da tradição
indígena: as cantigas de roda. As cantigas, transmitidas de mãe para filha, aparecem como
garantia de que as identidades dos povos indígenas só se preservem no cultivo da arte
ancestral:

No cerrado à tardinha
cantigas de roda
de mãe para filha
(GRAÚNA, 2014, p. 22)

Em registro escrito, essa experiência cultural torna-se um mecanismo poético


fundamental que permite compreender as relações afetivas familiares em espaços naturais
acolhedores como o ―cerrado à tardinha‖.
Em Flor da mata, percebe-se, muitas vezes nas entrelinhas poéticas, a caminhada
identitária de Graça Graúna em busca de resgatar, no espaço contemporâneo, as
lembranças silenciadas, apagadas, esquecidas de suas origens nativas, como estratégia de se
deslocar do incômodo entrelugar das movências culturais e sociais, permitindo que se
construa identidades fluidas de seus ―eus‖ enquanto mulher, professora, poeta mãe, vó,
pássaro, natureza, matriarca, cuja linhagem que as tece encontra-se exatamente nos valores
mnemônicos indígenas. A escritora potiguar faz desse entrelugar o ―espaço para os sonhos,
as criações, os teares, as tessituras diante do eu e do outro, dos afastamentos e
aproximações‖ (GUIMARÃES; MELO, 2018, p. 197) entre as culturas indígenas e as culturas
hegemônicas.
É considerada a sensível busca da indigeneidade perdida pela selva de suas
memórias, as quais foram apagadas no contexto histórico e social de completa violência
contra os povos nativos brasileiros. Esses movimentos configuram o que Rita Olivieri-Godet
considera como:
poética da alteridade, característica das escritas migrantes, nas quais a
experiência do espaço ocupa um lugar central. É através da
experiência do espaço, frequentemente tomado como metonímia da
nação ou do Ocidente, que o personagem do ameríndio, o
―estrangeiro de dentro‖, questiona seu lugar. (OLIVIERI-GODET, 46
2017, p. 101)

De certo modo, sempre com respeito e licença poéticos, a escritora apropria-se da


cultura, de seus parentes, mais especificamente a dos povos indígenas da região Nordeste,
como os Potiguara e os Xucuru de Orubá, colocando em funcionamento a recriação do
tempo passado, refazendo as experiências no presente em construção como um processo de
reconfiguração das emoções identitárias. De acordo com Durigan e Guerra, ―a identidade
vai sendo tecida a partir da memória que emerge em determinados momentos, sempre
lembrando que em cada emergência ocorre a produção de um novo sentido‖. (DURIGAN e
GUERRA, 2008, p. 150) Assim, a memória não é sonho, é exercício poético.
A lembrança é, portanto, uma imagem trazida do passado, mas que vem à tona em
razão de juízos de realidade e de valor do tempo presente (BOSI, 2009). Legitimando o
imaginário em prol de construir sentidos, sensibilidades, sentimentos identitários, como
afirma Lucas, a ―memória funciona como espaço [...] que atualiza e reorganiza o
imaginário‖. (LUCAS, 1998, p. 96)
Nos poemas da autora de Canto Mestizo, os elementos identitários indígenas,
como os elementos naturais, instrumentos de trabalho, os costumes (como danças,
brincadeiras, produções artesanais) e os valores tradicionais são valorizados. A natureza é
sempre lembrada, ainda mais por estar intimamente ligada aos fundamentos do gênero
Haicai:

Ipê amarelo,
sonho de primavera
o sol espelha
(GRAÚNA, 2014, p. 22)

Com a leitura do poema, percebe-se o florescimento do Ipê, em seu momento


florido, que representa beleza, vitalidade, força interliga-se à potência do sol, elemento
natural muito presente nas cosmovisões indígenas, principalmente pelas suas fortes relações
com as divindades, uma vez que pode ser considerado como um Deus. Tudo indica que se
propõe a desconstrução da hierarquia entre esses dois elementos naturais, descartando a
soberania do sol (grafado com iniciais minúsculas), como se eles fossem parentes a se
complementarem com o ―sonho de primavera‖. Já no haicai abaixo os elementos da
natureza são reflexos dos vários planos de existência do ser humano no tempo:

Água, terra, fogo e ar 47

Labirintos do ser
Em todos os tempos
(GRAÚNA, 2014, p. 16)

Os quatro elementos da terra são trazidos à medida que podem compor a


existência humana: a água está relacionada às emoções e aos sentimentos; o elemento fogo
associa-se à energia, à intuição, ao plano espiritual; o ar associa-se à mente, aos
pensamentos, ao entendimento e ao conhecimento; e a terra ligada à materialidade, à
perseverança, à vitalidade e à força necessária para sobrevivência humana. Na tradição dos
povos indígenas brasileiros é possível encontrar uma relação direta com os elementos da
natureza, como observa Jekupé:

É da natureza do índio reverenciar os ancestrais, os antepassados. Faz


isso em sinal de gratidão, pois foram eles os artesãos modeladores e
moldes do tecido chamado corpo, feito de fios perfeitos da terra,
água, fogo e ar, entrelaçando-os em sete níveis do tom que somos,
assentando o organismo, os sentimentos, as sensações e os
pensamentos que comportam um Ser, parte da Grande Música
Divina.‖ (JECUPÉ, 1998, p. 14)

Com base na leitura do poema e do excerto acima, observa-se que existe na


literatura indígena a evidência de que, nos valores ancestrais, há a complexidade da
natureza, como campo de aprendizagem, assim, ocorre a construção dos conhecimentos
míticos sobre a origem dos povos nativos. Por isso, para os indígenas, mais do que símbolos
ou conceitos abstratos, os quatro elementos referem-se às forças vitais que se manifestam
em toda a criação e que podem ser percebidas pelo sentido físico.
Flor da Mata, assim como a obra completa de Graúna, compreende um exercício
literário profundo que pode alterar a perspectiva oblíqua do ―outro‖ sobre os povos
originários, oferecendo novos conceitos para uma educação que respeite a multiplicidade
das identidades do Sul, como querem Meneses; Santos (2009). Trata-se de um texto que
aciona no leitor a atenção para questões que perpassam o passado, de opressão vivida
pelos povos nativos, o presente, com os inúmeros desafios apresentados, e o futuro
imprevisível; três elementos temporais que sensibilizam a todos e todas (indígenas e não
indígenas), para a constatação de que, copiando as palavras de Ailton Krenak:

Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um


de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato
de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando
não significa que somos iguais; significa exatamente que somos 48

capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam
guiar o nosso roteiro de vida (KRENAK, 2019, p. 33)

Os poemas da Graça Graúna impressionam ao trazer, em suas entrelinhas, histórias


vividas ou sentidas as quais servem como ensinamentos sobre o passado e repertório
cultural para enfrentar o futuro, permitindo, na linha de pensamento de Krenak (2019),
―adiar o fim do mundo‖. É um exercício identitário instigante que organiza as memórias em
uma materialidade de escrita literária que fortalece as identidades fragilizadas ou apagadas
no percurso da história, pelo Outro, o não indígena, por quem esteve e ainda está do lado
de fora. Encara-se, portanto, uma prática legítima de se cultivar as tradições indígenas e de
se praticar a necessária denúncia contra as violências sofridas pelos povos originários.

(ÚLTIMAS) PALAVRAS

Considerando as discussões apresentadas e as já levantadas sobre o tema deste


trabalho, pode-se depreender que as produções literárias indígenas ainda buscam um lugar
de reconhecimento frente aos espaços ocupados pelas vozes literárias no Brasil. Essas obras
trazem uma possibilidade de autoexpressão, autorrepresentação e por isso, são vozes
político-literárias que promovem um encontro entre ―mundos‖ diferentes, marcando um
lugar de memória e identidade dos povos aos quais os autores pertencem. O escritor
angolano Manuel Rui corrobora a força dessa escrita quando afirma que:

Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a
arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto.
Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir
do instrumento escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os
personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro
texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma temos de ser nós. ―Nós
mesmos‖. Assim reforço a identidade com a literatura (RUI, 1987, p.
310).
Essa prática de afirmação promove uma conexão entre culturas, tradições e dos
saberes outros, evidenciando uma quebra, uma fricção ou ruptura com o discurso
hegemônico. A partir desta perspectiva, este artigo procurou evidenciar, na obra Flor da
mata, esses aspectos de afirmação e da construção da memória e da identidade indígenas na
escrita da poeta Graça Graúna que é uma autora ―em trânsito‖, num entrelugar poético,
potencializada pela enunciação do discurso de alteridade, que não nega sua relação com o 49

outro, mas que busca uma força motriz, sobretudo na literatura, para redefinir, retomar,
discutir e apresentar uma voz literária, a qual emana de um lugar de pertencimento,
embora permeado pelas opulentas imagens de saudade e de perda.
Desse modo, Flor da Mata, de Graça Graúna, promove esse encontro das raízes à
flor como um sujeito (gentes) que: ―[...] pousa na árvore do mundo clandestina‖
(GRAÚNA, 2014, p.41) e que mesmo assim, canta: ―[...] uma trajetória possível:
Pindorama‖, um lugar sonhado, lugar de encontro, lugar este em que a autora busca
evidenciar como uma possibilidade que os indígenas têm de despersonalizarem e
reescreverem suas histórias silenciadas e deturpadas por outras vozes.
Assim, podemos concluir que Flor da Mata é um instrumento de luta literária de
Graça Graúna, uma flecha escritural que tem sido lançada junto com outras produções, tais
como, as de Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Márcia Kambeba, Olívio Jekupé, Denízia
Cruz, Ailton Krenak, Shirley Djukurnã Krenak, Lia Minapoty, Yaguarê Yamã entre outros
escritores e escritoras. Eles e elas têm reafirmado e problematizado a condição do sujeito
indígena na sociedade contemporânea de modo que essa literatura se faz, a partir de uma
voz legítima, reivindicatória, testemunhal, memorialística e, também, simbólica, um ato
político, o qual ocupa um lugar de crítica, luta e resistência. Em resumo, a autora de Flor da
Mata parece representar a própria Graúna, personagem de outro livro da escritora
potiguara, Criaturas de Ñanderu, a qual, sob as energias ancestrais do caboclo velho,
consegue, em pensamento, mergulhar ―nos rios e gralha forte um canto que tem a força da
flecha que atinge certeiro o coração dos malfeitores.‖ (GRAÚNA, 2010, p. 22)

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da narrativa oral
no Brasil. Belo Horizonte: Autência; FALE/UFMG, 2004, p. 195.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2003.
BONIN, Iara Tatiana; SIMM, Verônica. Imagens da vida indígena: uma análise de
ilustrações em livros de literatura infantil contemporânea. Revista Historiador, v. 4, p. 87-
95, 2011. Disponível em:
<http://www.historialivre.com/revistahistoriador/quatro/veronicas.pdf>. Acesso em: 29
maio 2017.
BOSI, Éclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das 50

Letras, 2009.
COSTA, Heliene Rosa da; MELO, Carlos Augusto de. Identidades femininas em movimento
na poética de Eliane Potiguara. Letrônica, Porto Alegre, v.11, n. 3, p. 361-374, 2018.
DURIGAN, Marlene; GUERRA, Vânia Maria Lescano. Entre o "Estatuto do Índio" e a "I
Conferência Regional": o processo identitário do indígena de Mato Grosso do Sul. In:
POSSENTI, Sírio; BARONAS, Roberto Leiser (Orgs.) Contribuições de Dominique
Maingueneau para a Análise do Discurso do Brasil. São Carlos: Pedro & João, 2008, p. 150.
GRAÚNA, Graça. Canto mestizo. [prefácio Leila Miccolis]. 1ª ed., Maricá RJ: Editora Blocos,
1999.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 19, 88 e 89.
GRAÚNA, Graça. Criaturas de Ñanderu. [Ilustrador José Carlos Lollo]. Barueri: Manole,
2010, p. 22.
GRAÚNA, Graça (org.); ALMEIDA, Magdalena (org.); SANTOS, E. M.. (org.); LEÃO,
Waldenia (Org.). Direitos humanos em movimento. 1ª ed., Recife PE: Edupe, 2011. v. 1.
188p.
GRAÚNA, Graça. Flor da mata. Belo Horizonte: Penninha Edições, 2014, p. 7,8,12,13, 14,
16, 22, 27, 29, 41 e 43.
GRAÚNA, Graça. Escrevivência. Art‘Palavra. 28 set. 2017, s/p. Disponível em:
https://ggrauna.blogspot.com/2017/09/escrevivencia-indigena.html. Acesso em 23 fev.
2020.
GRAÚNA, Graça (org.). Impressões de leitura do texto literário. São Paulo: Editora Todas as
Musas, 2015.
GRAÚNA, Graça. O imaginário dos povos indígenas na literatura infantil. (Dissertação
Mestrado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, 1991.
GRAÚNA, Graça. Tear da Palavra. Belo Horizonte: Coleção Mulheres Emergentes, 2007, p.
20.
GRAÚNA, Graça. Tessituras da terra. [prefácio Tânia Diniz]. 2ª ed., Belo Horizonte MG:
Mulheres Emergentes/ Coleção Milênio, 2001.
GRAÚNA, Graça. Art‘palavra, 2007. Disponível em: <https://ggrauna.blogspot.com/>.
Acesso em: 10 de julho de 2020.
GRAÚNA, Graça. Tecido de vozes, 2011. Disponível em:
< http://tecidodevozes.blogspot.com/>. Acesso em: 10 de julho de 2020. 51

GUIMARÃES, Ana Rosa; MELO, Carlos Augusto de. Graça Graúna e o ―entrelugar‖: sobre o
tear da resistência e da resiliência. Kiri-Kerê: pesquisa em ensino, Vitória, ES, n. 1, p. 189-
197, 2018.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015,
p. 9.
HAKIY, Tiago. Awyató-Pót: histórias indígenas para crianças. São Paulo: Paulinas, 2011, p.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019, p. 14, 15, 17, 31 e 33.
JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos. São Paulo: Editora Peirópolis, 1998, p. 14.
LUCAS, Clarinda Rodrigues. Os senhores da memória e do esquecimento. Transinformação,
Campinas, v.10, n. 1, p. 87-96, 1998.
MENESES, Maria de Paula; SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almeidina, 2009, p. 12.
MUNDURUKU, Daniel. Em busca de uma ancestralidade brasileira. Revista Fazendo Escola,
Alvorada, v. 2, p. 40-42, 2002.
MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando 2: sobre vivências, piolhos e afeto: roda de
conversa com educadores. Lorena/SP: UK‘A Editorial, 2017, p.49-50.
MUNDURUKU, Daniel. Literatura Indígena e as Novas Tecnologias da Memória. In:
MARTINS, Maria Sílvia Cintra (org.). Ensaios em interculturalidade: literatura, cultura e
direitos de indígenas em época de globalização. Vol. 1, Campinas/SP: Mercado de Letras,
2014, p. 176-177.
OLIVIERI-GODET, Rita. Graça Graúna: a poesia como estratégia de sobrevivência.
Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis, Pelotas, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 101-117, 2017.
RUI, Manuel. Fragmento de ensaio. In: MEDINA, Cremilda de Araújo. Sonha Mamana
África. São Paulo: Epopéia; Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1987. p. 310.
SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 115.
52
CAPÍTULO IV
TRAJETÓRIA MULTICULTURAL NAS PRÁTICAS SOCIAIS: LITERATURA E
OUTRAS ARTES
MORAIS, Elaine da Silva 10
MONTEIRO, Robério Modesto 11

53
RESUMO:
Pretende-se refletir em torno da linguagem textual e de imagem, espelhar sucintamente a relação da literatura
com a arte, desvencilhar-se do discurso tradicional para edificar temas transversais a partir da literatura e artes
digitais em diferentes novos formatos e espaços. Qual olhar? Impresso ou digital? Qual leitura? Cânone ou
marginal? Preconceito ou parceria? Autonomia ou dependência que a internet revoluciona no mundo à
Covid-19? Norteia-se por De Souza da invenção da imprensa por Gutenberg, resgatar um ponto histórico à
criação do livro impresso envolto ao códex na sua expressiva arte renascentista, rodeado também por uma
pandemia e para dialogar com o texto digital contemporâneo, conforme Kirshof na literatura digital, Chartier
nas práticas de leitura e escrita histórico-cultural, Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido, Antônio Cândido
que articula a literatura como direito à pessoa humana, Bauman na modernidade líquida. O assunto é
instigante, saberes vários interligados à internet que a fortalece, pois, hoje, torna-se peça fluida indispensável à
trajetória multicultural nas práticas sociais na literatura e outras artes na história da humanidade, cercada pela
doença que se repete com muita dor no entorno da vida e da morte, e a busca de significados à pessoa
humana que somos, em harmonia com a Criação Divina. O que a doença quer nos mostrar na/e pós
pandemia mundial?

PALAVRAS-CHAVE: literatura, arte, mídias digitais, peste negra, covid-19.

INTRODUÇÃO

Parafraseando Paulo Freire que a leitura do mundo precede a leitura da palavra,


pensamento esse que nos remete às histórias das civilizações remotas da humanidade, que
distantes do progresso atual, almejado em um tempo longínquo, talvez, não podemos
afirmar, assim e tão somente assim, imaginar das primeiras impressões deixadas nas histórias
desses registros, que vez por outra, um pesquisador, professor e um apreciador amante da
literatura procura ler, estudar, exprimir. Assim, descrever dos desenhos e símbolos, àquela
visão de mundo de nossos antepassados e corroborar com a leitura de nós e entre nós, a
partir de um olhar individual pessoal vivido intrinsicamente relacionado ao coletivo da
humanidade. Entre tantas invenções e revoluções das sociedades humanas, frisa-se da
importância capital do alemão Gutenberg,1397-1468, que impulsionou a tecnologia com a

10 Graduanda em Letras Português e Inglês -EaD, Centro Universitário Cesumar-UniCesumar. Especialista em Metodologia
do Ensino Superior, Centro Universitário São Lucas. Graduada em Administração, Universidade do Vale do Itajaí-SC.
Membra do Grupo de Pesquisa em Poesia Feminina do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil - Universidade
Federal de Rondônia-UNIR. E-mail: elainefirstname@gmail.com e endereço do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6751567594475960.
11 Graduando em Pedagogia - Universidade Federal de Rondônia-UNIR e membro do Grupo de Pesquisas em Literatura e

Modernismo da UNIR. E-mail: roberio.unir.pedagogia@gmail.com e Endereço do CV Lattes:


http://lattes.cnpq.br/4368846547977301.
invenção da imprensa, dos tipos móveis, a tipografia, difundindo o conhecimento através
da escrita impressa em um pedaço de papel. De acordo com Barbie citado por de Souza
(2018), a invenção foi uma inovação da prensa que já era utilizada para cunhar moedas,
espremer uvas, fazer impressões em tecido e acetinar o papel.

LITERATURA, ARTE E EDUCAÇÃO 54

Construir e descontruir, ouvir, contar, recontar, olhar, sentir, apreciar para


reproduzir a beleza do Criador da vida, para buscar o sentido da nossa vida, ouvir o
coração para encontrar o nosso propósito, aí está o nosso tesouro, quando as palavras são
belas, tentamos reproduzí-las. Então, literatura eu quero, para alimentar-me e desenvolver
o melhor em mim, para que eu vibre com a vontade de Deus, para encontrar e sintonizar
as energias que sintonizem com o melhor de minha consciência, para fortalecer minha voz e
desencontrar-me com os ―ecos‖ em minha volta, olhar o outro como espelho em suas
virtudes e defeitos, para refazer minha trajetória na queda que me impulsiona para o alto. E
a literatura e as artes têm essa força criativa que potencializa o que está dentro de nós, nos
molda e educa o instinto para nascer os belos sentimento e alcançar o transcendente. E esse
está sendo o meu momento, com certeza, o seu também, caro leitor de descobertas de
caminhos, talvez, caminhados, mas não vistos porque não foram sentidos por alguma razão
consciente ou inconsciente, isso não importa, porque ―é preciso chuva para florir, é preciso
paz para poder partir‖, que, por algum motivo, estamos seguindo em mundos paralelos...
O Renascer das ideias na formação da pessoa humana germina quando o solo é
fértil para semear e colher as melhores colheitas seja na literatura, seja na arte, na
tecnologia e em outros saberes, em um ponto de nossa trajetória individual e coletiva em
um determinado contexto. E o referencial que tento buscar é um ponto no período
Renascentista na Europa que é fascinante, por ser ao mesmo tempo recheado de invenções,
de glória, de alegria, pois a dor estava também presente na vida e morte em massa de
pessoas, em função da pandemia da peste negra. Logo, partindo desses pressupostos é que
sintonizo e direciono meus pensamentos em afinidades daquele dado momento, para
refletir, em pequenas linhas, do ambiente político, econômico e sócio-cultural daquela
época, para o encontro com o nosso período contemporâneo banhado também de dor e
glória, que gira envolta da vida e da morte, em sentido global da pandemia devido ao vírus
fatal da Covid-19, bem como da era revolucionária tecnológica com a invenção da internet,
que também estamos mergulhados no século XXI, nos exatos anos do início de 2020
quando a pandemia se alastra no mundo até o corrente ano de 2021. Dessa maneira, como
suporte e reforço, transcrevo um pequeno trecho, logo abaixo, as palavras de Barbie apud
de Souza (2018) sobre outras revoluções das mídias:

Se os anos 2000 com a banalização das telecomunicações e da 55

informática, são, sem dúvida, a era de uma espetacular revolução das


mídias, (...). No que se refere à comunicação escrita, os momentos
mais importantes são o século XV, com a invenção da imprensa (a
tipografia de caracteres móveis), e o século XIX, com os progressos da
Revolução Industrial na esfera do livro e da imprensa periódica, além
da invenção da biblioteca pública. (...). A imprensa poria fim aos
tempos góticos para inaugurar um período diferente, que
chamaremos de Renascimento, caracterizado ao mesmo tempo por
sua relação privilegiada com a Antiguidade clássica e por sua
modernidade – o próprio termo ―modernidade‖ aparece em francês
exatamente no século XV. (BARBIER apud DE SOUZA, 2018, p. 21,
22).

Percebemos, então, uma ligação com o passado, sim, laços fortalecidos nas relações
sociais e multiculturas das sociedades em desenvolvimento social, econômico e cultural na
história humana das sociedades passadas com a sociedade corrente e vindouras, quando nos
agarramos ao saber da história literária dos grandes feitos das antigas civilizações,
solidificada com a fala humana e o meio de comunicação, que progridem à medida que
evoluímos na diversidade de saberes científicos, tecnológicos etc. da humanidade.

A COMPOSIÇÃO DO LIVRO IMPRESSO E SUA PRÓPRIA ARTE

À época de Gutenberg, presume-se, um momento propício e fértil, para gerar na


literatura e na arte o seu mais expressivo esplendor no período renascentista alicerçada com
seu passado. E essa trajetória de mudanças e transformações com a forma de viver
modernas, consolida-se com o fim feudal e o nascer da burguesia na Europa. Segundo
(Barbier apud Souza 2018) vem junto com a pandemia da peste negra, entre 1347 e 1350,
na idade média, com a morte causada da doença de pelo menos 30% da população
europeia, fora outras causas, por exemplo, como a guerra.
Passo em revista, diga-se de passagem, uma breve história dos Livros de como os
pergaminhos escritos à mão passaram para a publicação digitalizada (tradução minha livre)
retirado do (GOOGLE.com arts&culture), que em um clic entramos no passado real e agora
imaginário das antigas civilizações, para folhear com os nossos dedos não mais a página
física do livro da nossa história, e sim tocar os dedos do teclado do computador, laptop
celular na internet, e mirar ao encanto das páginas que flutuam aos nossos olhos e se
adentram a outras entradas e leituras dinâmicas sem começo e fim, uma leitura contínua
não linear que se interage com a multiplicidades de linguagens fluidas, que encontramos no
site sobre a criação do livro, que remonta a uma hipótese de 4 milhões de anos antes de 56

Cristo. Os textos escritos à mão, sua evolução ao impresso da arte da escrita e da confecção
da capa desenhada e pintada por ilustres artistas e novos profissionais que surgem como
suporte na trajetória do livro manual, do impresso e do digitais desenhados
detalhadamente, ao gosto do cliente leitor e financiador de tal empreitada visionária, que
impactam ao primeiro olhar na tela do computador, pela beleza da arte antiga das
primeiras civilizações, por sua perfeição artística tanto na escrita das letras quanto na parte
externa que reveste os textos em rolo do antigo pergaminho, em uma leitura longa e
contínua, limitada na escrita, em seu manuseio e difusão, mas uma evolução extraordinária
para o conhecimento de poucos na época, que sofre, ao longo do tempo, mudanças
extremamente significativas no conteúdo, leitura, forma e espaço veiculados
tradicionalmente em direção ao novo espaço virtual, o da internet, em função da produção
de inovação da técnica da escrita e com o objeto livro físico, dos antigos manuscritos ao e-
books de nossa era. Podemos dizer um pouco mais democrático e acessível ao público culto
e popular até?
Partimos para descrição sucinta da composição da inovação do livro impresso pelo
gênio da imprensa em seu processo, a seguir:

Uma vez preparado um número suficiente de páginas, em função das


fontes disponíveis, passa-se a imposição. A folha de papel, mais
raramente de pergaminho, que serviu para impressão será dobrada
para formar um caderno tantas vezes quanto menor for o formato. É
preciso, portanto, para que o texto se apresente em sequência
contínua, que as composições das páginas sucessivas sejam colocadas
na ordem correta, que não é a ordem das páginas: sua disposição é
determinada pela estrutura dos cadernos. (...). Uma categoria
particular de correções é constituída pelo cartão (folha avulsa
suplementar) um processo que será empregado até o século XIX,
(BARBIE apud SOUZA, 2018, p.199 e 202).

Digamos que foi um processo difícil que o período Renascentista vivenciou - houve
outras pandemias que a humanidade viveu - não intenciono comentar aqui, assim como
outrora, as sociedades no mundo hoje experienciam, no caso, o vírus da Covid-19,
impregnado de terror, medo, angústia, para talvez, nos ensinar sobre a vida solidária entre
nós, com a natureza, com Deus e sua multiplicidades de vidas no universo, quem sabe ao
encontro de um novo sistema de governar. Como não pensar num sistema tipo
cooperativismo, distantes do capitalismo selvagem, da ―mão invisível‖ que tão bem Adam
Smith (WIKIPEDIA.org, 2021) enxergou retirados de fatos conflituosos e contraditórios que 57

motivam e continuam sendo o palco no teatro das relações humanas, na economia de


mercado livre em plena pandemia no mundo?!
A educação na visão de Paulo Freire (Entrevista, UNICAMP, 1990) alia-se a ética e a
estética que emergem da natureza artística de sua unidade. Reitero que a educação é
reconhecer a necessidade de cada um, de cada uma, dizer a sua palavra, como sujeitos
protagonistas da sua própria história, tecer laços educativos através da literatura e arte para
transformar a pessoa em um ser humano melhor, para viver em um mundo mais humano.
Corroboro ainda o pensamento de Freire (1990) deixados em seu fazer educar à pessoa
humana, quando a educação se reconstrói a partir de um diálogo e esforço coletivo com
uma proposta libertária. Segue a entrevista em um pequeno texto, do seu livro pedagogia
do oprimido:

(...)Venho sendo desde minha juventude um professor educador, (...)


há um pouco de diferença entre o educador e o pedagogo, é mais
sem ser apenas, o pensador que se distancia da prática educativa para
conhecê-la teoricamente, enquanto que o educador que precisa
também de um afastamento de sua prática para conhecê-la
teoricamente, se dá menos ao pensar, sem deixar de se dar. (...) Na
Pedagogia do Oprimido, o que medeia a distância entre a prática e a
teoria é a própria compreensão crítica da prática e da teoria, (...)
quando eu penso sobre a prática (...) penso a relação contraditória,
processual que há entre as duas, nesse sentido para mim, não há boa
teoria que não seja a prática, e não há prática verdadeira que não
esconda, (...) no seu corpo, (...) são tensas e contraditórias. (...) Há
uma inconstância entre o que fazemos e o que falamos. (...).
Precisamos convencer, fazer um trabalho pedagógico no Brasil,
implica numa fascinação ao sonho que você faz, (...) sem
autoritarismo, como educador democrático. O ser da educação tem
que ver com conhecimento, com política, com ética e com estética,
(...) A arte é algo tão necessário (...) para a vida, a escola como
respeito a expressividade do aluno. (...) A natureza artística também é
de novo a unidade entre estética e ética(..). (Conversando com Paulo
Freire sobre arte e educação aos 21 anos da Pedagogia do Oprimido
(UNICAMP, 1990).
Quando a mudança parti do vivido, do experimentado, o processo de refletir
criticamente sobre a prática, supera o homogêneo ao encontro heterogêneo nas relações
dos sujeitos em seu contexto, porque permiti o fazer democrático, com respeito a harmonia
nas diferenças, potencializa o melhor na pessoa com respeito e ética de si no outro.

CULTURA, SOCIEDADE E INTERNET 58

Confesso que a pandemia da Covid-19 está sendo a mola propulsora desse


desabrochar literário dentro de mim, dentro de cada um de nós, por estarmos vivendo
juntos também, em um mundo paralelo através da internet, socializando experiências das
manifestações culturais na literatura e arte, confinados dentro de casa, interagimos pela tela
do laptop, do celular, do tablet etc., despertando potencialidades latentes em cada um de
nós, um pouco mais liberto e emancipado em nosso trajeto, com um pouco de fraqueza do
olhar à pessoa humana em harmonia com a natureza, mas ainda distantes como co-criadore
e responsáveis pela manutenção e bem-estar social e natural da vida do globo terrestre.
Quando presenciamos o poder econômico das Nações desenvolvidas nessa nova
ordem social nas relações meramente comercial, efêmero, aonde o outro vira apenas
conveniências, consumo, o sujeito como produto pelo produto, a forma em detrimento da
essência, a marca vira a relação e identificação midiática nas relações sociais, a roupa que
vestimos nos identifica na sociedade líquida defendida pelo sociólogo Bauman
(OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, DINES ENTREVISTA BAUMAN, ON-LINE, 2015). Nessa
sociedade da era digital denominada hoje de ―Novo Normal‖ em função da pandemia,
novas formas de relações sociais começam a predominar, em tempo real, o físico com o
virtual aproximam-se, fundem-se e escapam rapidamente. Relações essas que emergem de
manifestos socioculturais no mundo híbrido do planeta terra, que perpassam o tempo e
espaço, e nos tira a noção conceitual de tempo e espaço preconcebidos pela ciência oficial
humana, migra, transita e se faz presente e necessário em nossas vidas diária, em um tempo
volátil vivido, sentido, amedrontado e esperado.
O desenvolvimento econômico e político junto com o desenvolvimento cultural
das sociedades, impulsionam o progresso científico e tecnológico no mundo, em um
determinado contexto. O pesquisador Chartier (2002) com o intuito de reflexão e
compreensão às práticas complexas múltiplas e diferenciadas das sociedades que constroem
o mundo como representação, ele se apoia em dois saberes, os sociológicos e os filosóficos
em um espaço de trabalho entre textos e leituras. Notório, pensar que a economia da mídia
influencia a economia dos textos, na recepção de uma determinada obra literária inserido
nos cânones e inclusive na definição desses cânones. Retomo, assim, Chartier (2002) que
aplicação da leitura nos leva a uma perspectiva de observar quão insatisfatórias as teorias
que abordam o ato de ler, pende a uma relação transparente entre o texto inserido como
abstração, preso ao conteúdo semântico fora do objeto a decifrar. Ele afirma ainda, é como 59

se as práticas através das quais o leitor se apropria do texto, não fossem histórica e
socialmente variáveis. Pensemos e questionemos juntos: O livro impresso de leitura
contínua fechada, rotulado de saber enciclopédico universal está ameaçado, então? É uma
ruptura ou uma continuidade de progresso das invenções humanas?! Pois o livro digital
apresenta leituras fluidas e não sequenciais, configurados nos hipertextos, em espaços e
formatos variados, com autores e leitores que se apropriam da leitura dos textos, na
própria recepção de criação livre em que os textos, leitor e autor se enquadram, para dar
vez e voz as pessoas à margem do cânone, práticas e relações que se configuram e ganham
cada vez mais liberdade e espaços no ciberespaço, temos hoje, por exemplo, entre outros,
o blog e as redes sociais onde texto, leitor e produção convergem para novas roupagens
intertextuais e hipertextos que se configuram na apropriação, produção e divulgação
instantâneas e múltiplas.
Kirchof em seu artigo destaca narrativas como Afternoon a story afirmando que a
mesma é a primeira obra hipertextual de que se tem notícia, produzida em 1987 por
Michael Joyce. Segundo ele, o leitor é convidado a interagir em certos links por escolhas
aliatórias da narrativa. Assim, o enredo, segundo o mesmo autor, varia a cada leitura.
A literatura impressa parece enfraquecer-se, a cada dia, diante da digital, real ou
imaginária dos escritos literários e outras artes, que provém de discursos do olhar
observado, lido das variáveis do indizível visto, mas nem todos sabem como reproduzir
essas pessoas dos discursos ditos do singular e plural observados, sentidos e vividos. Antônio
Cândido, sensível da importância da Literatura como valor educativo e de direito à pessoa
humana em transformação, defende que:

(...) humanização (...) o processo que confirma no homem aqueles


traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o
afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e
dos seres, o cultivo do humor. A Literatura desenvolve em nós a
quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
(CÂNDIDO, p. 182).
60

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, com base em tudo escrito em busca de reflexões para nos inserirmos um
pouco protagonista e participantes da história nossa, de uma coisa, estou certa, de que tudo
é incerto e efêmero desde a descoberta do fogo, bem como o uso da razão de um povo
predominando perante outros animais, criando hábitos e costumes, gerando a cultura
peculiar e que se integram nas relações sociais entre esses e àqueles outros povos, com
domínio entre seus iguais do poder e glória que também passam, contados e escritos em
diferentes formatos e em diferentes contextos históricos, em função do próprio
desenvolvimento intelecto-moral, social, cultural, político, econômico, tecnológico e o
espaço geográfico do planeta. Será que podemos conceber que existe outro jeito de encarar
e ver mundo, estamos abertos para um menos individualista em direção a um mundo mais
humano, com todo o potencial de criatividade que possamos alcançar?! Termino com uma
frase que li e dizem ser de Gutenberg, não posso precisar tal informação, mas deixo aqui a
essência dessas palavras como útima reflexão: ―O que é a verdade? A verdade é algo tão
nobre que se Deus pudesse me desviar dela, eu manteria a verdade e me afastaria de Deus‖.

REFERÊNCIAS
BARBIER, Frédéric; Tradução DE SOUZA, Gilson César Cardoso. A Europa de
Gutenberg_Capítulo 6_compressed.pdf. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5129411/mod_resource/content/2/A%20Europa
%20de%20Gutenberg_Cap%C3%ADtulo%206_compressed.pdf>. Acesso em:27abr.2021.
BAUMAN, Zygmunt. O Observatório da imprensa apresenta uma entrevista de Alberto
Dines com o sociólogo Zygmunt Bauman. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kM5p8DqgG80>. Acesso em: 11abr.2021
CÂNDIDO, Antônio. Direito a literatura
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3327587/mod_resource/content/1/Candido%20
O%20Direito%20%C3%A0%20Literatura.pdf>. Acesso em: 11abr.2021.
Disponível em: https://www.dicio.com.br/houaiss/>. Acesso em: 26abr.2021.
FREIRE, Paulo. Conversando com Paulo Freire sobre arte e educação aos 21 anos da
Pedagogia do oprimido. UNICAMP, 1990. Disponível em: 61

<https://www.facebook.com/watch/?v=452676278647760>. Acesso em: 11abr.2021.


O ensaio reflexivo. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4174573/mod_resource/content/1/O%20ensaio
%20reflexivo%202012.pdf>. Acesso em: 29abr.2021.
WIKPEDIA.org. Adam Smith. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Adam_Smith
Acesso em: 29abr.2021.
A Brief History of Book. Disponível em: https://artsandculture.google.com/story/OAXR-
SPrQmOCew?hl=en Acesso em: 27abr.2021.
KIRCHOF, Edgar Roberto. Identidades de leitor na era digital: o ciberleitor infanto-juvenil.
Disponível em:
http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/app/webroot/files/file/Trabalhos%20em%20PD
F/GT10-6197--Int.docx.pdf Acesso em: 29abr.2021.
62
CAPÍTULO V
ENTRE A (IN)DOMÁVEL LUBRICIDADE E O SÔFREGO AMORDAÇADO: A
TRANSGRESSÃO DA PALAVRA NA POÉTICA HILSTIANA

ASSIS, Guilherme Ewerton Alves 12


FRANÇA, Hermano de França 13
63

RESUMO
Não é dos dias hodiernos que as veredas eróticas são seladas nos textos literários. ―Descarto-me da tronga,
que me chupa/ Corro por um conchego todo o mapa/ O ar da feia me arrebata a capa /O gadanho da limpa
até a garupa‖, versos como esses já foram cunhados pelo (in)devoto boca do inferno, Gregório de Matos,
causando horror e ojeriza pelas ruelas da Bahia setecentista. Inobstantes às forças moralizantes, as canetas
carregadas de libido insurgem, à revelia das convenções civilizatórias, na arte, deixando às escâncaras os
desejos abjetos de eus-poéticos "imorais", sedentos e inebriados pelo doce aroma do sexo e da carne.
Seduzidos pela palavra, apossam-se física e metafisicamente do seu objeto amado, de tal sorte a lhes auferir a
espúria condição de mortais. Assim, o presente trabalho escrutinizará os veios eróticos, ora desvelados ora
taciturnos, dos textos "proibidos" de Hilda Hilst, em especial, as obras Poemas malditos, gozos e devotos
(1984) e Do Desejo (1992), no intento de atinar as profusões tesas de uma poética sitibunda, que orbita pelas
voluptuosidades sígnicas, agonias semânticas e euforias sintáticas. Para tanto, recorrer-se-á ao aporte
psicanalítico, entremetendo-se pelas descobertas freudianas sobre as pulsões, o amor e as fantasias, diluídos na
tessitura de seus principais artigos, quais sejam: Além do Princípio do Prazer (1920), Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade (1905) e Sexualidade feminina (1931).

PALAVRAS-CHAVE: Literatura feminina, Poesia, Erotismo, Psicanálise.

INTRODUÇÃO

A intersecção entre o polo divino e o mortal, realizada pelo erotismo, não se


encontra plasmada apenas na literatura moderna e contemporânea. Diante disso,
preliminarmente, imergindo na mitologia grega, Psique era uma das três filhas de um nobre
rei grego. A sua beleza era tão esplendorosa que atraía milhares de olhares de todos. Dessa
forma, a princesa passou a ser adorada como uma divindade e as homenagens que eram
destinadas à Afrodite, passaram a ser destinadas à Psique. Consequentemente, esses cortejos
à mortal despertaram inveja na deusa do amor, fazendo-a elaborar um castigo. Afrodite
pede para que Eros, com o seu arco e fechas, faça com que Psique se apaixone por uma
criatura horrenda. Então, durante à noite, Eros se dirige aos aposentos reais da princesa, que

12 Graduando em Letras – Português pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Graduando em Filosofia pela
Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL).
guilhermeewerton10000@gmail.com e http://lattes.cnpq.br/8606450392344888
13 Doutor em Letras – Português pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Psicanálise – Teoria e Prática

pelo Espaço Psicanalítico: Estudos, Clínica e Consultoria. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL), na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
hermanorgs@gmail.com e http://lattes.cnpq.br/7615268087421599
se encontrava dormindo. Eros, enquanto fazia a pontaria, ficou admirado com a radiante
beleza de Psique, nesse tempo, contudo, a princesa se revira inesperadamente de seu sono e
tal movimento desconcentrou Eros, fazendo-o se ferir com sua própria flecha. Por fim, o
deus ferido se apaixona imediatamente pela jovem e bela mortal (BRANDÃO, 1987).
Posto esse preâmbulo mitológico, a metafísica do filósofo grego Platão é a
metafísica de Eros. Este deus, como a alma, pertence à hereditariedade de seres 64

intermediários entre o mundo sensível e inteligível, cuja sua missão consiste em comunicar
os dois mundos postulados pela teoria platônica. O amor platônico, no que lhe tange, é
esse amor transcendental, entre dois mundos, dois seres, dois polos – divino e mortal. É o
amor impossível, entretanto o que o torna possível é a sua impossibilidade. Apesar da
graciosidade da teoria filosófica, o deus Eros, em sua essência, não é apenas um amante
bondoso e gentil, mas sim é uma divindade cruel que usa suas flechas de forma
imponderável – inclusive, atingindo sua mãe e Zeus (PAZ, 1993). Já o arquétipo de Psiquê,
é percorrido pela busca da sua imortalidade14, obtida apenas com a união com um deus.
Não à toa, o amor e o mundo inteligível – metafísico, divino –, sempre estão unidos
pela corrente do erotismo. Mesmo os indivíduos, como freiras e monges, que tentam se
distanciar dos prazeres da carne, (in)conscientemente infringem o interdito e a castidade,
através das frenéticas e contínuas imagens lúbricas que aparecem nos sonhos e em suas
poluções noturnas. Ao contrário, a figura libertina passa por fases de abstenção sexual, em
decorrência de vários fatores, como a saturação e impotência (PAZ, 1993). Destarte,
afastando-se, timidamente, do contexto greco-filosófico, na religião judaico-cristão, apesar
da tentativa de se afastar dos prazeres mundanos, almejando uma vida celestial, os ritos e
procedimentos do cristianismo também contêm elementos com um certo teor erótico, que
realizam também a ponte entre a religião e a sexualidade, confirmando o dilema
batailleano (1987) do erotismo religioso.
Por conseguinte, o universo literário não poderia se afastar da dubiedade entre o
erótico e o religioso. O irreverente escritor português Eça de Queiroz, em O Crime do
Padre Amaro (1875), aproxima esses cernes (des)semelhantes ao incutir em um padre o
desejo de ter relações sexuais com uma fiel de sua paróquia. Logo, não apenas nos textos
prosaicos, a poética também recorre a essas temáticas controversas e perturbadoras para a
cultura ―moral‖ e ignóbil dos dias hodiernos, a fanopeia e, concomitantemente, a logopeia

14Essa busca pela imortalidade e/ou continuidade é intrínseca nos seres humanos. Porém, para atingir esse fim, valem-se do
ato sexual e erotismo como um meio. (BATAILLE, 1987)
(POUND, 2013) proporcionam aos leitores reflexos da realidade, a rima sendo o coito dos
sons; assim, a poesia é uma forma de erotizar a linguagem, pois, em seu âmago o poema é
erotismo. A poesia está para a linguagem, assim como a erotismo está para a sexualidade
(PAZ, 1993).
Diante disso, direcionar-nos-emos a uma das mais célebres escritoras brasileiras, Hilda
Hilst, que traz consigo temas místicos, insanos, eróticos, libertinos. Apresenta-se também, 65

em suas obras, uma realidade fraturada e com figadal fluxo de consciência, proporcionando
um complexo (i)lógico nas personas por ela cunhadas. Por esse veio, é latente o traço de
sua pena dicotômica e vacilante, enveredada por vieses ora sagrados, ora profanos,
apresentando um Deus semelhante ao Eros – ambos transpassados pela flecha da
carnalidade e atravessados pela perversão e crueldade para com os seres mortais –, e um
eu-poético feminino amante desse deus, semelhante à Psiquê, que anseia à imortalidade,
continuidade.

O AMOR DE UMA FREIRA VOLUPTUOSA POR UM DEUS (IM)PIEDOSO

Hilda, em sua poética, plasma, em especial na obra Poemas malditos, gozosos e


devotos (1984), um claudicante invólucro de pureza santa, o qual cobre o desejo libertino
de um eu-lírico feminino devoto a um ―[...]Deus/ um sedutor nato‖ (HILST, [1984] 2017, p.
410. Esse deus-poético é paradoxal ao ponto de ser criador do bem e do mal, da pureza e
da profanação. Diante disso, o ser humano não tem culpa dos desejos sexuais que sentem,
uma vez que o próprio Criador quem os fez e são sabidos por ele: ―Mas tu sabes da delícia
da carne/ Dos encaixes que inventaste. De toques‖ (HILST, [1984] 2017, p. 415). Contudo,
apesar da (im)possível relação entre: sacro e erótico; sagrado e profano; santidade e
pecaminosidade; Ágape e Eros, etc., todo erotismo também é sagrado (BATAILLE, 1987), e,
tal postulado batailleiano fica (des)ambiguado no livro apócrifo de Hilst:

Já o mecanismo da transgressão deflagra a violência e, nessa lógica, o


sentimento de pavor, próprio do interdito, convive em paralelo com
o fascínio, capaz de instaurar no ser a transgressão. Pode-se aqui,
então, aproximar o sentimento religioso do erótico, pois ambos
associam o desejo e o medo, o prazer intenso e a angústia. Tanto no
religioso quanto no erótico, o interdito molda a razão e rejeita a
violência [...] (SAMPAIO, 2015, p. 180)
Por esse viés, os poemas são carregados de uma sacralidade profana e de uma
profanidade religiosa dardejadas a um Deus – ou um Outro. Essa figura divina não é, em
sua essência, o Deus do cristianismo, todavia, o eu-poético feminino imiscui encalços e
rastros (in)diretos de símbolos da narrativa bíblica cristã, relacionando-os com a eroticidade.
Portanto, esses poemas são atravessados pela ideia da carne, do sangue, do martírio, da
súplica, do gozo, da devoção, do desejo, etc.; o Sagrado caminha lado a lado com o 66

mundano (SAMPAIO, 2015). Destarte, o primeiro poema já transparece o que será


abordado nos demais; a mescla de um devocional blasfemo postulado por um eu-lírico
feminino sedento pelos prazeres carnais proporcionados pelo amado ―santo‖. Assim, é
possível ver a (des)contrução do Deus idealizado pelo eu-poético:

I
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne


Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Pés burilados
Fino formão
Dedo alongado agarrando homens
Galáxias. Corpo de homem?
Não sei. Cuidado.

Vive do grito
De seus animais feridos
Vive do sangue
De poetas, de crianças

E do martírio de homens
Mulheres santas.

Temo que se aperceba


De umas misérias de mim
Ou de veladas grandezas.

Soberbas
De alguns neurônios que tenho
Tão ricos, tão carmesins.
Tem esfaimada fome
Do teu todo que lateja.
Se tenho a pedir, não peço.
Contente, eu mais lhe agradeço
Quanto maior a distância.
E só por isso uma dança, vezenquando
Se faz nos meus ossos velhos.

Cantando e dançando, digo: 67


Meu Deus, por tamanho esquecimento
Desta que sou, fiapo, da terra um cisco
Beijo-te pés e artelhos.

Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho Ser trespassado
Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado
(HILST, [1984] 2019, p. 408 – 409).

Soldando esses versos, o Deus que aparece é o simbolicamente o Deus judaico-


cristão, posto pela descrição da crucificação de Cristo: ―Pés-burilados/ Luz-alabrasto/
Mandou seu filho/ Ser trespassado‖, todavia, é possível depreender que essa divindade
adquire outros atributos que diferem do Deus soberano e bondoso, comumente colocado
pelo cristianismo. O Deus em questão, por sua vez, é de carne e osso, intercalando entre a
soberania, tirania e subalternidade, visto que ele realiza um ato de crueldade para com o
próprio filho. Essa tirania, por sua vez, também é direcionada para a humanidade em geral
e para a persona poética, levando-a ao sofrimento: ―Temo que se aperceba/ De umas
misérias de mim/ Ou de veladas grandezas. Logo, esses deus-poético é sádico e sanguinário
―Vive do grito/ De animais feridos/ Vive do sangue/ De poetas, de crianças/ E do martírio
de homens/ Mulheres santas‖. Esse Deus vingativo, portanto, que criou o homem a imagem
e semelhança, transplanta para ser humano esse ódio e vingança, então o homem não é
apaziguador, mas é um ser que apresenta bastante agressividade (FREUD, [1929] 2011). Tal
característica antagônica e confrontadora entre Deus e o eu-poético também é presente nos
versos hilstianos: ―[...]Tralhas, do teu divino amor/ Coronhadas exatas/ De tuas mãos
sagradas/ Me queres esbatida, gasta [...] / Me devoras/ Com teus dentes ocos/ A ti me
incorporo/ A contragosto.‖ (HILST, [1984] 2019, p. 410).
Tendo em vista esse ambiente caótico causado por um Deus, o eu-lírico alerta
o interlocutor – possíveis vítimas – várias vezes: ―Dedo alongado agarrando homens/
Galáxias. Corpo de homem? Cuidado.‖. Há durante todo o poema uma repetição da
palavra ―Cuidado‖, mostrando dessa forma, o sadismo empregado por essa deidade sob a
humanidade, à vista de que: ―Nos pés de carne/ Nas mãos de carne/ No peito vivo. De
carne‖, ou seja, um Deus que tem suas extremidades – mãos e pés – mortas, carnais e
humanas, as quais foram atravessadas por pregos na crucificação, entretanto o seu coração é
vivo e ávido de um ódio. Todavia, apesar do eu-lírico admitir toda essa crueldade de Deus, 68

o respeito e a devoção acabam deixando-o neutro: ―Se tenho a pedir, não peço/ Contente,
eu mais lhe agradeço‖, tal submissão decorre de que a religião rebaixa o eu-lírico, referindo-
se a ele como pecaminoso e sórdido: ―Meu Deus, por tamanho esquecimento/ Desta que
sou, fiapo, da terra um cisco/ Beijo-te pés e artelhos‖. Portanto, a voz poética vê a carne da
divindade, direciona sua ira, contudo logo mostra devoção, considerando-se um fiapo e um
cisco de terra, que só tem direito de beijar a parte mais suja e inferior desse Deus, os pés.
Ainda nessa perspectiva de rebaixamento do sujeito, Freud discorre acerca do método que
a religião se vale:

[...] Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar


delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto
a intimidação da inteligência. A este preço, pela veemente fixação do
infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião
consegue poupar muitos homens da neurose individual [...] Quando o
crente se vê finalmente obrigado a falar dos ―inescrutáveis desígnios‖
do Senhor, está admitindo que lhe restou, como última possibilidade
de consolo e fonte de prazer no sofrimento apenas a submissão
incondicional (FREUD, [1929] 2011, p. 29 – 30).

Não obstante desse Deus-amante atroz e (des)almado, estes, todavia, atributos por
ele empregados também compõem a dicotomia do jogo erótico – essa a alternância de
interdição e transgressão é fulcral no erotismo. À vista disso, os objetos sexuais são a
representatividade dessa intercalação ininterrupta de rejeição e atração, como frutos do
interdito e de sua cessação (BATAILLE, 1987). O deus-poético é um Deus libertino, pois a
libertinagem é desarrazoada: simultaneamente anseia pela destruição e a ressureição do
outro (PAZ, 1993), tal característica fica visceral nos próximos versos. Por outro lado, o
objeto sexual do eu-poético em questão é esse Deus maléfico e libertino que atiça o desejo
de sua fiel gozosa através dos atos perversos divinos:

VII
É rígido e mata
Com seu corpo-estaca.
Ama mas crucifica.

O texto é sangue
E hidromel.
É sedoso e tem garra
E lambe teu esforço
69
Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.

Tem tríplices caninos.


Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.

É pai, filho e passarinho.

Ama. Pode ser fino


Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.

Quase sempre assassino.


É Deus.
(HILST, [1984] 2019, p. 414)

Enveredando-se por entre esses versos, fica mais conspícuo a dualidade volúvel que
o erotismo se configura, permitindo o objeto amado de amar e crucificar,
concomitantemente; de atiçar o desejo, mas mastigar a realização; de deixar o eu-póetico
sedento, porém dar fel. Há uma figura metafórica no último citado: ―Se tens sedes, é fel‖,
refere-se, (in)conscientemente, à religião judaico-cristã, em um episódio da crucificação:
―Mais tarde, sabendo que tudo estava concluído, para que a Escritura se cumprisse, Jesus
disse: ―tenho sede‖. Estava ali uma vasilha de vinagre. Então embebedaram a esponja nela
[...] e a ergueram até os lábios de Jesus‖ (BÍBLIA, 2018, p. 746). Dessa forma, o fel, com o
seu gosto amargo, vinagrento, ao mesmo tempo em que é vil, permite a consumação do
ato. Há também nesses versos uma (des)categorização da Santíssima Trindade: ―É pai, filho
e passarinho‖, entretanto na narrativa bíblica, a última pessoa da trindade é o Espírito
Santo, o qual é representado por uma pomba. Logo, nesse poema em questão, ocorre a
descaracterização do Espírito Santo, visto que ao colocá-lo como passarinho, deixa-o sem
identificação, podendo ser um corvo ou uma ave de rapina, por exemplo. E, nos últimos
versos, aparece a figura desse Deus que assassina, refreia, interdita e castra 15 os ímpetos do
eu-poético, deixando-o ainda com mais vontade. A fonte motora do erotismo é, portanto,
a ambiguidade de repressão e permissão, sublimação e perversão, morte e vida (PAZ,
1993).
Ainda nessa perspectiva de interdito e castração, a poética de Hilda Hilst é marcada
por um eu-lírico com dubiedade, ora submisso – tendo seus desejos refreados, 70

intensificando-os ainda mais –, ora tentado: ―A mim essa mistura/ De piedosa, erudita,
vadia/ E tão indiferente/ Tu sabes./ Poeta buscando altura/ Nas tuas coxas frias‖ (HILST,
[1984] 2019, p. 413). Essa dualidade do eu-poeta almeja elevar a alma às ―alturas‖, porém,
a forma disso ocorrer encontra-se por entre as pernas do objeto amado, ―nas coxas frias‖,
ou seja, um erotismo visando o sagrado, como já foi posto por Bataille (1987). Assim,
diante do impedimento colocado por esse deus-poético ou pela sociedade – fora da obra
literária –, o erotismo, sendo fundamentado pela atividade sexual, fica sob o domínio
tirânico da proibição – é permitido o intercurso, desde que seja às escuras, em segredo.
Todavia, mesmo diante de tal castração imposta pelo Deus – nos versos –, pela (i)moral
sociedade e pela religião, o eu-poético se sente mais excitado. Isso acontece, devido ao fato
de que: ―O proibido confere àquilo em que toca um sentido que a ação proibida, em si
própria, não continha. O proibido arrasta à transgressão, sem a qual não teria havido no
ato má luz que nos fascina... O que enfeitiça é a transgressão do proibido‖ (BATAILE, 1957,
p. 26 – 27). Esse prazer em transgredir o interdito e, ao mesmo tempo, tanger o
inalcançável, fica marcante nas estrofes hilstianas:

IX
Poderia ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?

Poderia através
Sentir teus dentes?
Tocar-lhes o marfim
E o liso da saliva

15 O mestre vienense da psicanálise, em seus escritos sobre o complexo de Édipo (1913), introduz a noção de que no
passado havia uma horda primitiva. Nesta, existia um pai soberano e possuidor das mulheres, contudo os seus filhos
tenham desejos de ter relação sexual com essas mulheres. O pai, por sua vez, impede a concretização dessa lubricidade dos
filhos e os castra simbolicamente. Portanto, os tabus do incesto e a castração metafórica do filho feita pelo pai na
sociedade hodierna são frutos desse mito primevo, o qual ficou recalcado no inconsciente.
O molhado que mata e ressuscita?

Me permitirias te sentir a língua


Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas humanas delicadas espessuras?

Poderia ao menos tocar 71


Uma fibra desses linhos
Com repetidos cuidados
Abrir
Apenas um espaço, um grão de milho
Para te aspirar?

Poderia, meu Deus, me aproximar?


Tu, na montanha.
Eu no meu sonho de estar
No resíduo dos teus sonhos?
(HILDA, [1984] 2019, p. 415 – 416)

De início, é possível averiguar esse desejo de ter o objeto amado, de se deleitar


com ele, entretanto, sincronicamente, há uma dúvida, um respeito e um temor para com o
Deus-amante: ―Poderia ao menos tocar/ As ataduras da tua boca?[...] Me permitirias te
sentir a língua?‖. Observa-se, portanto, esse aparato erótico de ansiar pelo proibido. A
oposição religiosa frente à libertação dos desejos é representativa, pois atribui valor àquilo
que afasta. Dando, dessa forma, uma maior sensação de prazer e vontade de transgredir a
proibição, a exemplo de Adão e Eva (BATAILLE, 1961). Continuando nesse soslaio religioso,
é possível ver a aproximação metalinguística com alguns elementos bíblicos: ―Panos de
linho luminescentes‖, esse material que são feitos os panos no poema, é o mesmo que José
de Arimatéia enrolou Jesus após sua morte: ―José pegou o corpo, enrolou-o em puro linho
fino‖ (BÍBLIA, 2018, p. 687), a atribuição do adjetivo ―luminescente‖ remonta ainda mais
esse caráter inteligível e soberano desse Deus.
Justificando o fato de que o poema em questão há um tímido afastamento entre o
eu-poético e a divindade: ―Tu, na montanha/ Eu no sonho de estar [...]‖, esses versos
deixam avultado esse distanciamento. A utilização do termo ―montanha‖ dirige o sentido
ao Pentateuco, onde Deus falava apenas com Moisés na montanha do Sinai, enquanto os
demais hebreus ficavam afastados com medo. Todavia, apesar dessa proibição de chegar ao
deus-poético, o eu-lírico, como bom devoto que é, suplica em forma de oração e quer ter
esse objeto amado a todo o custo, nem que seja nos sonhos16. E, por fim, perquirindo os
versos: ―O molhado que mata e ressuscita‖, é possível captar que o ―molhado‖ se refere ao
líquido corporal liberado durante o gozo, este, no que lhe concerne, carrega uma
representatividade de Eros 17 e Thanatos, de matar e ressuscitar, de risos e lágrimas
(BATAILLE, 1961).
QUANDO A OVELHA SE COLOCA NO ALTAR: A MORTE FINAL 72

Em última análise, o poema final é a oclusão de todos os poemas predecessores,


havendo uma síntese das ideias (im)compatíveis de erotismo e religiosidade, bem como a
relação entre o ato sexual e o culto sacrificial das religiões. Neste poema, não ocorre uma
oposição velada de ideias, mas sim uma antítese explícita de palavras. Ocorre também a
despedida entre a persona poética e o Amado:

XXI
Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra

Onde agora canto amor e heresia.


Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas. Meus pares e outros homens


Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui


Serei, e sou agora.
Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira.

Sorri, meu Deus, por mim.


De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d‘água
Rondando o ego. Sorri.
Te amei sonâmbula Esdrúxula, mas te amei inteira
(HILST, [1984] 2019, p. 424 – 425)

16 Segundo Freud (1900), os sonhos são uma forma do inconsciente realizar os desejos recalcados. Como os conteúdos do
inconsciente são muitas vezes perturbadores, existe uma censura que não permite a manifestação de tais conteúdos.
Porém, quando o ser humano dorme, esse censor reduz sua atividade, fazendo com que o inconsciente distorça o sentido
da informação e atravesse a censura, manifestando-se nos sonhos
17 O próprio Eros carrega é dúbio por natureza: luz e sombra; solar e noturno (PAZ,1993)
Nos primeiros versos é possível perceber que o eu-lírico começa a se despedir do
seu Deus e o orienta: ―Não te machuque, a minha ausência, meu Deus,/ Quando eu não
mais estiver na terra‖, ou seja, o eu-poético vai se elevar, contudo Deus-homem e maléfico
continuará na terra, massacrando e maltratando os seres que ficarem ―[...] Meus pares e
outros homens/ Te farão viver destas duas voragens: Matança e amanhecer, sangue e
poesia‖, esses termos aqui escolhidos são frutos do acaso e do cálculo (PAZ, 1956), posto 73

que a morte e o sangue são símbolos do erótico, busca pela continuidade 18 do ser e
rompimento do hímen, respectivamente. Esses dois elementos também são significativos na
religião, a morte e o sangue são representativos em atos de sacrifícios em atividades
judaico-cristãs. Tais atividades de sacrifício ocorrem o assassinato de um animal 19 e o
derramamento de sangue simbolizando a ―expiação dos pecados‖ dos mortais. Levando em
consideração essa imolação dos animais nas práticas cristãs, é possível perceber mais uma
aproximação que o eu-poético faz com o erotismo:

Como o sacrifício, o movimento erótico desagrega os seres. Neste


jogo, a princípio, a parte masculina desempenha um papel ativo,
enquanto a parte feminina, passivo. Encarando o papel da vítima, a
feminina é justamente a parte dissolvida, e a masculina desempenha a
função do grande safrificador. A violência aqui é deflagrada nos
órgãos sexuais e a mulheres, nas mãos do seu amante, não se distancia
muito da vítima nas mãos do sacrificador [...] (SAMPAIO, 2015, p.
184)

Após esse erotismo religioso plasmado no sistema de sacrifícios, é possível ver


também no poema a oposição de palavras paradoxais: ―Teu coração e corpo [...]
mandarim e ovelha, soberba e timidez [...] matança e amanhecer, sangue e poesia‖, tal
oposição demarca ainda mais esse caráter dúbio do deus-poético, ora soberano, ora carnal.
Porém, como já foi falado, o último poema é uma espécie de despedida, de um retorno às

18
Segundo Bataille (1987), a vida é dependente da morte desde o seu início. Para que um humano nasça é
necessário que incontáveis espermatozoides pereçam e somente um espermatozoide sobreviverá. Contudo,
esse que sobrevive também é marcado pela morte, pois, quando o espermatozoide penetra no óvulo e
mistura o seu material genético com o material genético do óvulo, ambos irão perder a sua descontinuidade,
havendo, por fim, uma morte do espermatozoide e uma morte do óvulo, sendo gérmens de um novo ser – é
exatamente isso que os amantes buscam.
19
Na tradição cristã, o animal propiciatório que será morto e, consequentemente, derramará sangue,
geralmente, é uma ovelha: “e trazer perante o Eterno, o Senhor, um animal, como sacrifício para tirar a
culpa do pecado que cometeu” (BÍBLIA, 2018, p. 78)
origens: ―Chora por mim. Pela poeira que fui/ Serei, e sou agora‖, metáfora que o eu-lírico
faz entre ele e o termo ―poeira‖ alude à morte, ao fim: ―Com o suor do seu rosto você
comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó e ao
pó voltará‖ (BÍBLIA, 2018, p. 16, grifo nosso). A saída do eu-lírico de perto do Amado e
sua aproximação com a terra, pó e morte, é a única solução para evitar a descontinuidade
e ser contínuo, pois a continuidade só é ocorre com a existência do ato sexual, porém, 74

como intercurso com o divino não foi concretizado, cabe só a morte dar continuidade a
esse ser descontínuo (BATAILLE, 1987). E, finalmente o eu-lírico feminino declara seu
amor total e (i)rracional pelo amado, um sentimento mortífero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Investidos pela palavra psicanalítica, dispomo-nos a perquirir as irreverentes


arquiteturas literárias de uma das vozes mais irreverentes da poesia contemporânea
brasileira. Em Poemas malditos, gozosos e devotos, Hilda Hilst veleja pelos mares
inavegáveis da sociedade, as águas do sagrado e do profano, criando um arcabouço poético
formado por uma linha claudicante que separa o Deus judaico-cristão do deus-poético e
sedutor dos poemas. Desse modo, o eu-lírico mira desejos eróticos para um Deus perverso
e, em troca, recebe a rejeição, deixando-o mais desejado ainda pela persona poética.
Dessarte, em nosso trabalho, procuramos elucidar as urdiras e interstícios do erótico,
afirmando que este é sagrado e visa a uma continuidade do ser descontínuo (BATAILLE,
1987) do eu-poético. Outrossim, em certa medida, a dialética de Hilst desvela anseios
prementes no inconsciente humano, todavia soterrados em nossa arcádia psíquica. Assim
como a ligação transcendental erótico-religiosa entre Eros e Psiquê, o Deus e o eu-lírico
hilstiano se fundem para a imortalidade, contudo, como todo ato sexual, há uma
vivacidade e matança.
As blasfemas palavras da persona poética hilstiana consistem na intersecção de
dimensões consideradas pela Cultura como paradoxais, erótica e religiosa. O culto ao Deus
poético é visto ora como sagrado, ora como profano, pois o audacioso poeta vale-se de
elementos sacros e os sacrifica como forma de santifica-los e, obviamente, transgredi-los. Os
versos de Hilda, inevitavelmente, são atravessados por entidades encontradas no discurso
bíblico e que, de forma exegética, são imersos nos poemas, tornando a escrita iconoclasta.
Logo, os poemas são atravessados por venábulos do pecado e do prazer e, evidentemente,
profanando entidades, personas e elementos cristãos; esse sacrilégio poético tem por
intento, desnudar os desejos mais abscônditos no arcabouço do inconsciente do eu-lírico,
visto que, historicamente, os prazeres foram interditados por leis divinas e preceitos
moralistas terrenos, encabeçados pela Igreja e a Cultura ―pudica‖.

75

REFERÊNCIAS
BATAILLE, G. (1987). O erotismo. Tradução de Antônio Carlos Viana. 1. ed. São Paulo:
L&PM.
BATAILLE, G. (2012). As lágrimas de eros. Lisboa: Sistema solar.
BÍBLIA (2018). Português. Bíblia leitura perfeita. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil.
BRANDÃO, J. S. (1987). Mitologia grega. Petrópolis: Vozes.
FREUD, S. (2011). O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin.
FREUD, S. (2012). Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e
outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
FREUD, S. (2019). A interpretação dos sonhos. Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed.
São Paulo, Companhia das Letras.
FREUD, S. (2019). Amor, Sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano
Moraes. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica.
HILST, H. (2020). Da poesia. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
PAZ, O. (1982). O arco e a lira [1956]. Tradução de Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
PAZ, O. (1994). A dupla chama amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. 1. ed. São
Paulo: Siciliano.
POUND, E. (2012). Abc da literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paes. 12. ed.
São Paulo, Cultrix, 2013.
REGUERA, N. M. A., BUSSATO. S. (2015). Em torno de Hilda Hilst. Recuperado de:
http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788568334690,em-torno-de-hilda-hilst.
76
CAPÍTULO VI
AFROLOGIA TUCUJU: ESCREVIVÊNCIAS NA POÉTICA DE NEGRA AUREA

UTZIG, Ingrid Lara de Araújo 20

RESUMO 77

Nesta pesquisa, o objetivo principal foi perceber como Negra Aurea absorve e revela todos os elementos
identitários que atravessam o existir do negro na Amazônia, suas escrevivências enquanto mulher e professora
(utilizando o conceito de Conceição Evaristo), além do desejo didático de conscientização na luta antirracista.
Tendo como base os poemas divulgados na página do Recanto das Letras, nos zines e na antologia do grupo
Afrologia Tucuju, o presente artigo buscou fazer um movimento de interpretação e análise de fragmentos que
expressam a lírica engajada proposta pela poeta. Após esse processo, com o subsídio de teóricos como Bernd
(1988), Du Bois (1999), Fanon (2008), Ribeiro (2017) e outros, foi possível perceber que constantes discursivas
de fenômenos como diáspora, memória, ancestralidade, negritude e feminismo se reúnem para representar
uma diversidade de símbolos de resistência, compondo o cenário das relações étnico-raciais e da cultura no
Estado do Amapá.

Palavras-chave: Literatura Negra. Literatura Amapaense. Escrita feminina.

Quebre-se a corrente
Que interfere no presente.
A melanina não será mais
Vitimada pelo feitor.
Porque hoje pele preta
Tem futuro promissor.
(AUREA, 2019)

INTRODUÇÃO

As manifestações da cultura negra no Estado do Amapá possuem uma presença


marcante em diversas localidades. Entre as principais expressões organizadas pelas
comunidades tradicionais e quilombolas, destacam-se o Marabaixo e o batuque, que
ganham força e protagonismo em eventos como o Encontro dos Tambores, que ocorre
durante a Semana da Consciência Negra, ou ao longo da Virada Afro, que já teve a 3 a
edição. As lideranças se empenham em manter ativa a União dos Negros do Amapá (UNA)
e, por isso, a herança é algo muito marcado nas festividades tucujus21.

20Artigo elaborado como requisito obrigatório para a conclusão da disciplina Poéticas afro-brasileiras: ancestralidade,
identidade e resistência, ministrada pelo prof. Dr. Paulo César Andrade da Silva para o DINTER UNESP/UNIFAP. E-mail da
doutoranda: ingrid.utzig@ifap.edu.br.
21 Nome popularmente dado ao povo de origem amapaense, uma vez que a referida etnia habitava as margens da foz do

Rio Amazonas, onde atualmente localiza-se a capital, Macapá.


Nesse contexto, a literatura se constrói com um compromisso social e com um
sentimento de respeito e ancestralidade. Nesta pesquisa, o intuito será de perceber como a
poesia de Negra Aurea absorve e revela todos os elementos identitários que atravessam o
existir do negro na Amazônia, suas escrevivências22 enquanto mulher e professora, além do
desejo didático de conscientização na luta antirracista.
78

ENTRE CANTOS E RECANTOS DA AMAZÔNIA: RECORTES BIOGRÁFICOS23

Maria Aurea dos Santos do Espírito Santo, mais conhecida como Negra Aurea, é
paraense natural de Igarapé-Miri. Nascida em 1971, começou a trabalhar com alfabetização
aos 17 anos. A partir de então começou a escrever pequenas frases para utilizar na leitura
com os alunos. Em 1995, Negra Aurea foi aprovada para cursar Licenciatura em História na
Universidade Federal do Pará (UFPA) - campus Abaetetuba. Porém, no mesmo ano, prestou
concurso público para o Estado do Amapá e em 1996 tomou posse no município de
Mazagão.
Aos poucos, Negra Aurea foi tomando conhecimento sobre Mazagão, mas tinha
dificuldade de encontrar registros escritos acerca de tais relatos. Foi quando resolveu
compilar as narrativas negras da localidade, no intuito de aproveitá-los como estratégias
pedagógicas. O ofício de poeta sempre esteve intrinsecamente ligado ao exercício da
docência. De acordo com ela, uma de suas principais missões é "contar a verdadeira história
dos negros e empoderar crianças na leitura e escrita".
Em 2005, a professora foi transferida para Macapá. Dessa vez, lotada na Escola
Estadual Brasil Novo, em um bairro periférico da zona Norte da cidade. No mesmo local,
em 2017, coordenava o ―Projeto Afrodescendentes‖ e, ao executar uma oficina, convidou o
educador Ivaldo da Silva Souza para ministrar uma palestra sobre relações étnico-raciais.
Ivaldo estava organizando uma antologia de poesia negra junto com Cleia Lacerda. Diante
do convite, Negra Aurea teve sua primeira publicação, contendo cinco produções.
Após o lançamento do livro, o ciclo de amizade se ampliou e Ivaldo Sousa, Negra
Aurea, Marcia Galindo, Arilson Viana e Graça Senna resolveram criar o movimento literário
Afrologia Tucuju, cuja estreia coincidiu com o período da Semana da Consciência Negra em

22 Utiliza-se o termo a partir da perspectiva tomada por Conceição Evaristo (em entrevista concedida ao jornal Nexo em
2017). Para ela, ―[a escrevivência seria escrever a escrita dessa vivência da mulher negra na sociedade brasileira. [...] Difícil
a subjetividade [...] não contaminar a sua escrita‖.
23 Todos os dados aqui expostos foram informados pela própria Negra Aurea em contatos via WhatsApp e e-mail.
novembro de 2018. Atualmente o grupo planeja a publicação do segundo volume da
referida antologia, sempre centrada no combate ao racismo.
Negra Aurea faz parte da Associação Literária do Estado do Amapá (ALIEAP) e
participa ativamente dos eventos literários locais. Além de escrever, também é uma
performer da voz. Alguns experimentos artísticos estão disponíveis na internet.
79

Figura 1: Frame do Vídeo de Declamação de Canoeiro

Fonte: Canal de Negra Aurea no YouTube24.

Em suas participações em palestras e oficinas, comercializa uma coletânea de zines


temáticos. No momento, existem seis edições, a saber:
1. Valorização do Negro;
2. Quilombos Amapaenses;
3. Domínios Amapaenses;
4. Negritude e Identidade;
5. Empoderamento da Mulher;
6. Multiculturalismo.

24 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZUlYJKR9kjo. Acesso em 28 dez. 2019.


Figura 2: Zines de Negra Áurea

80

FONTE: arquivo pessoal.

Tendo como base os poemas divulgados na página do Recanto das Letras 25, nos
zines e na antologia do grupo Afrologia Tucuju, o presente artigo buscará fazer um
movimento de interpretação e análise de fragmentos que expressam a lírica engajada
proposta pela autora.

POÉTICAS ÁUREAS

Nos subitens adiante buscar-se-á definir as constantes discursivas na poética de


Negra Aurea dentro do que será chamado como unidade de seu projeto litero-identitário.
Dois aspectos receberão uma perspectiva analítica mais aprofundada: as questões de
diáspora que formaram a cultura negra amapaense (o que, consequentemente, remete à
ancestralidade e memória), bem como interpretação de sua escrita feminina.

25
Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=197668. Acesso em 29 dez. 2019.
DIÁSPORA E MEMÓRIA: REGISTRO DOS DESLOCAMENTOS E ORIGENS DA CULTURA
NEGRA DO EXTREMO NORTE

A reconstrução da história negra a partir da saída do continente originário surge a


partir de uma necessidade de recuperação de uma existência gloriosa pré-escravidão,
pontapé que levou a um massacre cultural que buscou dizimar a memória dos povos. Em A 81

Saga dos Negros, Aurea (2018) recupera essa narrativa mítica:

Negros dançavam, cantavam e tocavam


Na África, sua terra natal.
Sempre alegres pelas fartas colheitas,
Fertilidade, motivo dos festivais.
Mas um dia, sem esperar, sem direito a questionar,
Foram atacados, capturados
E para várias partes do mundo
Remanejados.
Nos navios negreiros,
Açoites, gritos e mortes.
Legiões de homens e mulheres
Jogados à própria sorte.
[…] Roubaram-lhe a alma,
O direito de viver em clã.
O banzo era placar mortal.
Oh! Saudade da terra natal.
Ao chegarem no Brasil,
Chicote no dorso da negrada.
O capitão do mato não perdoava
E o sinhozinho era quem ordenava.
Tempos difíceis
Pra quem vivia acorrentado.
Quando possível,
Pro quilombo refugiado.
A Lei Áurea no papel
Foi um grande libertário.
Uma ponta do iceberg
Pra formar novos ideários.
Daí pra frente, a resistência
Casou-se com a arte e a ciência
E negros revolucionários
Constituíram novos cenários.
[…] Negro precisa lutar
Pela fala, visibilidade e participação
[…] Pois sempre contribuiu
Para a construção do Brasil.
Vê-se o desenho de uma cosmogonia ―de uma África violada pelo branco‖
(BERND, 1988, p. 134), trazendo singularidade através da marcação da diferença que já se
inicia na própria formação da nação. Citando em ordem, os elementos da época como
―navio negreiro‖, ―açoite‖, ―banzo‖, ―chicote‖, ―capitão do mato‖, ―quilombo‖ e ―Lei
Áurea‖ são enumerados para desenredar um percurso de superação em andamento e para
alertar ―uma ordem social injusta‖ que, por muitas vezes, reproduz os mesmos modelos de 82

antigamente (BERND, 1988, p. 135). Há um objetivo de relembrar para informar e


sensibilizar as gerações mais jovens para evitar a repetição do cometimento de tais falhas.
Em Grito de Guerra (2018), alguns elementos da cultura afro também reaparecem.
Há certa nostalgia e saudosismo da terra ancestral.

Meu grito de guerra é o rufar dos tambores


Minh'alma se enche de paz
Meu torrão tem descendentes em cores
Mama África, meu Amapá.

Capoeira ou marabaixeira,
Foram expressões repletas de dor.
Hoje eu sou feliz, eu canto e danço
Na mãe África do Equador.

Mama África!
Macapaba, Amapá.
Mama África!
Bacaba, Macapá.

O Amapá é tido, no poema, como torrão deslocado do continente africano, uma


parte que se "descolou" até o Equador. Essa reciprocidade é corroborada na última estrofe
("Mama África! // Macapaba, Amapá. // Mama África! // Bacaba, Macapá‖), em que o eu-
lírico recupera uma relação entre glebas: lá e cá, África e cidade das bacabas (origem do
nome da cidade, de etimologia tupi).
O ―rufar dos tambores‖ é referência ao Marabaixo, ritmo musical e dança típicos da
região. Sendo a maior tradição local, acredita-se que tenha sido trazida pelos negros do
Marrocos, explorados para trabalhar na obra da Fortaleza de São José. Pode-se associar esse
deslocamento da população de Marrocos em Mazagão (2019):

Mazagão! Oh, Mazagão!


De Mazagão Africana
Para a Mazagão Brasil.
Mazagão do Amapá,
Mazagão do rio Mutuará

[…] Nome de origem árabe,


Traduz criatividade, coragem.
Líder, pioneiro, independente,
Mazagão dos afrodescendentes.
83
[…] Festa de São Tiago
Pombinhas do Divino
Recital das preces
O tocar dos sinos
O rufar dos tambores
A peleja entre cristãos e mouros
[…]

A Festa de São Tiago, ocorrida em julho de cada ano, é a programação turística que
mais leva visitantes à Mazagão Velho. A celebração teatraliza a disputa entre mouros e
cristãos. Segundo a lenda, o santo apareceu em um momento decisivo da batalha e deu
vitória aos portugueses na guerra contra os muçulmanos. O poema narrativo, em geral,
ilustra um capítulo interessante do Brasil colônia, em que houve uma ―transferência"
geográfica oriunda do traslado de 163 famílias remanejadas da Mazagão africana,
desativada por decisão do Marquês de Pombal (PICANÇO, 1981):

Após a invasão dos soldados mouros e berberes à fortaleza


Portuguesa de Mazagão, em Marrocos, no continente africano,
Portugal decide abandonar a região. Assim, os habitantes da fortaleza
foram enviados para as ―Terras do Cabo Norte‖, hoje estado do
Amapá, em 1770, para fundar uma nova Mazagão (LIMA, 2011, p.
39).

Negra Aurea se dedica a contar a história do Amapá em versos. Cada visita ao


interior do Estado é acompanhada de pesquisa e gera frutos; como um aedo, a poeta recita
essas trajetórias em eventos públicos diversos, transpondo narrativas orais e lendárias em
texto. Outros poemas que se alinham a essa missão temática de valorização dos distritos e
zonas de difícil acesso são Quilombo do Ambé, Guardiãs da Memória, Criaú, Maruanum,
Curralinho e Torrão do Matapi.
IDENTIDADE E AUTOESTIMA: LUGAR DE FALA E QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA

A categoria ―mulher‖ é perpassada por inúmeras outras experiências que são


somatizadas às relações de gênero. Por muito tempo o feminismo universalizante tendeu a
generalizar o movimento com uma perspectiva de unificação que invisibilizava as
interseções de raça, orientação sexual e classe social, por exemplo. Por isso, hoje já é 84

possível falar sobre feminismos de maneira heterogênea, e o feminismo negro se tornou um


recorte que visa a explicitação do que era considerado implícito nas lutas do feminismo
hegemônico, majoritariamente branco, em que o racismo não era visto como um fator a ser
considerado como uma forma de opressão a ser incorporada como pauta de combate
(RIBEIRO, 2017).
Negra Aurea faz um convite: ―vista a minha pele‖. É notável que a poeta traz uma
justaposição de pontos de vista entre ser mulher, negra, professora e nortista:

[…] Sinhozinho, venha ver


O que em Macapá aconteceu.
A tradição nas ruas visibilizou.
Pixaim ou sarará,
Meu cabelo agora é moda,
Entre nessa roda e venha comemorar.
Sou negra! Sou negra!
Negra é a etnia,
Negra é a cor,
Negra de amor.

Em Negra de Amor (2018), o eu-lírico subalternizado dialoga com seu agressor


(sinhozinho), demonstrando uma dialética decolonial em um intuito de confronto, mas
também de reconciliação para uma dinâmica de superação dos erros que institucionalizaram
a desigualdade racial através do legado escravocrata. O chamado ―entre nessa roda‖ é uma
bandeira de paz que cessa a servidão e apaga posições de dominação e poder, exaltando a
liberdade. Nesse sentido, vale lembrar a reflexão de Fanon (2008, p. 187) afirmando que o
desenclausurar-se da Torre do Passado (sem jamais apagá-lo) é uma alternativa de
desalienação. Uma mensagem utópica de conscientização para o futuro ideal desejado.
Percebe-se uma exaltação dos atributos físicos característicos (no caso supracitado, o
cabelo). O que era tido como feio passa a ser reconhecido como belo pelo eu e pela
alteridade (a mesma que dita os arquétipos dominantes). A aceitação do biótipo reforça o
amor próprio e a autoestima da mulher negra, apagados pelos padrões de beleza
arianizados construídos historicamente (AUGEL, 2007). Esse enaltecimento reverte a ordem
simbólica de representações outrora negativas e retornará em outros momentos, como em
Consciência da Mulher Negra (2018):

Fui classificada ao máximo na cor, na aparência, na estatura,


Na fala, no beiço, nariz e cabelo, à custa de pão, pau e pano. 85
A diáspora traçou meu destino, Mama África ficou para trás.
A dor que imperava no ―Tombadilho" era que liberdade eu não tinha
mais.

[…] Mesmo sendo parte do global, pelas conquistas de direitos lutei.


Mas a nomenclatura magistral me resumia apenas aos três pês.
Difícil ser negra ou mulata em plena política do branqueamento.
[…]

Aqui a voz poética fala em um tom de enfrentamento, processo de reconhecimento


dos empecilhos ao tentar acessar certos espaços, inclusive por causa da aparência que
espelha o pertencimento a um grupo minorizado. O poema claramente questiona o olhar
depreciativo sobre esses aspectos do corpo feminino negro; assim, ―o sujeito mulher negra
'retira o véu', 'descobre-se' e desvela-se‖ (SALES, 2012, p. 104). No caso acima,
―conscientiza-se‖ e posiciona-se contra o apagamento da própria cultura, refletida em seu
corpo, que aqui retorna como patrimônio, marca identitária diante da desterritorialização
imposta pelo modelo europeu.
Ao utilizar verbos que denotam a etiqueta do outro sobre si (―fui classificada‖; ―a
nomenclatura magistral me resumia‖; ―difícil ser negra‖), Aurea escancara o véu da dupla
consciência anteriormente explicitado por Du Bois. É evidente aquilo que separa o eu-lírico
da cidadania plena: ―mesmo sendo parte do global‖, ainda há exclusão e segregação, a
necessidade de busca (―pelas conquistas de direitos lutei‖) para se desacorrentar do
estereótipo dos ―três pês‖. Não há, de fato, liberdade na Terra prometida (DU BOIS, 1999).
Por isso, o desânimo frente ao emparedamento26 social. Mas é por meio da autoconsciência
que a autoimagem deixa de se contaminar e distorcer pelo mundo exterior - a visão de
menosprezo -.

26 Referência ao poema Emparedado, de Cruz e Sousa, presente no livro Evocações (1898). ―Essas paredes traduzem uma
situacao causada pelo egoismo, a mesquinhez, os preconceitos e a visao falsa dos outros. [...] sua indignac ao se levanta
imponente contra todos. Porem, para ele, a situacao e irremediavel, porque esta e a sua raca, e o poeta nao pode
desprender-se dela. A raca e um carcere, uma funda prisao negra, onde ele sente-se entrevado sem poder escapar‖ (CESCO,
2011, p. 12). O símbolo da morte por emparedamento revela todos os obstáculos infindáveis que se põem frente à
tentativa de ascensão social do poeta negro.
Existem outros agrupamentos humanos que estão, metafórica e literalmente, à
margem. Negra Aurea não os ignora. Em Rotina: Mulheres do Campo (2019) estabelece o
panorama do labor da roça:

Casa de forno, casa da farinha,


A mulherada se anima. 86
Muitos causos e risadas
Ao chegar da roça
Com paneiro de mandioca.

[…] Nas plantações, pastos, lagoas e igarapés


Cada mulher tem seu encanto
No arar da terra, nas pescarias,
Ao conduzir o rebanho
[…]

Assim é a vida no campo


Das mulheres incansáveis
Que lutam pra mudar a história
De quem as vê como escória.

No entrelaçamento das fronteiras invisíveis da quádrupla jornada de diferentes


peles e máscaras, Aurea por várias vezes assume o papel de representação da vida de outras
mulheres em uma situação de esquecimento. A Arte de Partejar engrandece o conhecimento
empírico e tradicional das ribeirinhas, as parteiras. Já o poema acima presta homenagem às
agricultoras habitantes do interior do Amapá que trabalham nas casas de farinha, cujas
tarefas são divididas para uma economia de subsistência e, posteriormente, venda na
capital.
A imagem ilustrada é uma pintura do cenário da zona rural e do ofício passado de
geração em geração para as mulheres da família. Entende-se, portanto, que a casa de
farinha não é simplesmente um local em que se fabrica um produto derivado da mandioca.
Mais que isso, é um núcleo físico e simbólico que desenvolve raízes, bem como o
estreitamento de laços de afetividade entre os presentes (SILVA, 2019). Negra Aurea,
portanto, faz um recorte que também dá protagonismo às caboclas que atravessam os rios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reivindicação de um discurso que não objetifica e coisifica o sujeito é a gênese da


literatura negra. O repertório exposto integra uma complexidade de etapas, desde a
investigação de cunho histórico-antropológico às especificidades da escrita literária e da
criação poética (PEREIRA, 2010, p. 341).
A África clamada é uma África alegórica reinventada, trazida como exemplo de
união e rede de irmandade com anseio de reconquista de alianças perdidas, um lugar de
segurança e amor. Essa África pode ser recriada no Amapá, ou qualquer lugar em que essa
paz seja reestabelecida e onde não exista racismo. Os recantos do Norte do Brasil são 87

embriões desse espaço imaginário.


A representatividade exercida por Aurea dialoga com múltiplas instâncias do
panorama de atuação feminino: a mulher negra militante, a mulher negra que trabalha com
a terra, a mulher negra das comunidades tradicionais e quilombolas, a mulher negra da casa
de farinha, a mulher ribeirinha, a mulher cabocla e sábia, que traz ao mundo muita gente.
Elas se reúnem e compartilham algo em comum: são todas liricamente descritas como
guerreiras que lidam com uma carga de exclusão mais intensa e ainda assim são ícones de
resistência.

REFERÊNCIAS
AUGEL, M. P. E agora falamos nós: Literatura feminina afrobrasileira. In: AFOLABI, Niyi;
BARBOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). A mente afro-brasileira: crítica literária e
cultural afro-brasileira contemporânea. Trenton: Africa World Press, 2007, v. 1, p. 21-45.
AUREA, Negra. Canal de Negra Aurea no Youtube. 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UCoOS8Hd-MexRLs2HLI-xElg. Acesso em 28 dez.
2019.
________. Perfil de Negra Aurea no Recanto das Letras. 2018. Disponível em:
https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=197668. Acesso em 29 dez. 2019.
________. Histórico de Negra Aurea [mensagem pessoal]. E-mail recebido por lara-
chan_ap@hotmail.com em 24 dez. 2019.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CESCO, Andréa. Cruz e Sousa: Emparedado em seu Poema. Revista Literatura em Debate, v.
5, n. 9, p. 01-45, ago./dez., 2011. Disponível em:
http://revistas.fw.uri.br/index.php/literaturaemdebate/article/viewFile/604/1122. Acesso em
8 jan. 2020.
DE LIMA, JULIANA DOMINGOS. CONCEIÇÃO EVARISTO: ‗MINHA ESCRITA É
CONTAMINADA PELA CONDIÇÃO DE MULHER NEGRA‘. NEXO: 26 DE MAIO DE 2017.
DISPONÍVEL EM: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/conceição-
evaristo-‗minha-escrita-é-contaminada-pela-condição-de-mulher-negra‘. ACESSO EM 8 JAN.
2020.
DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro:
Lacerda, 1999.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 88

2008.
LIMA, Wanda Maria da Silva Ferreira. O ciclo do Marabaixo: permanências e inovações de
uma festa cultural. 2011. 131 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História) -
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Pulsações da poesia brasileira contemporânea: o Grupo
Quilombhoje e a vertente afro-brasileira. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Um
tigre na floresta de signos. Belo Horizonte: Mazza, 2010.
PICANÇO, Estácio Vidal. Informações sobre a História do Amapá: 1500-1900. Macapá:
Imprensa Oficial, 1981.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte (MG): Letramento - Justificando,
2017.
SALES, Cristian Souza de. Pensamentos da Mulher Negra na Diáspora: Escrita do Corpo,
Poesia e História. Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana.
Ano V, n. IX, p. 91-110, jul. 2012.
SILVA, Nádia de Sousa. ―Já torrei mei mundo de farinha nessa vida‖: lugar e memória social
no saber-fazer das casas de farinha no povoado de Boa Vista da Tapera - Encruzilhada -
Bahia. 2019. Dissertação (Mestrado em Geografia): Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB).
CAPÍTULO VII
ENTREM! COM RAÍZES E ASAS - DESGUTEM DAS GULOSEIMAS POÉTICAS

SOUZA, Jocineide Catarina Maciel de 27


OLIVEIRA, Maria Elizabete Nascimento de 28

89
RESUMO
Esta abordagem apresenta uma possível reflexão sobre a escrita feminina no âmbito da literatura,
especificamente, na produção poética escrita por mulher em Mato Grosso/Brasil, visando destacar fios que
potencializam o ato da leitura. Neste sentido, enfatiza a importância da pedagogia da pergunta como
potencializadora de relações e de entendimentos das complexidades que envolvem a existência e a vivência
humana. Ao considerar a temática do I Simpósio de Poesia Contemporânea do Norte, Nordeste e Centro-
Oeste do Brasil/SIMPFENNCO- dezembro de 2020, buscamos traçar fios que alinhavam a poesia à formação
de leitores, na tentativa de apontar para a potencialidade da arte na construção de outros olhares sobre as
coisas que conosco partilham do cosmo. Para tanto, apresentamos a poética de Lucinda Persona e Maria
Elizabete Nascimento de Oliveira, destacando três poemas de cada autora, da primeira autora consideramos a
obra Entre uma noite e outra, publicada em 2014, da segunda a obra Asas do Inaudível em luzes de vaga-
lume, publicada em 2019. Produções que dialogam com a nossa experiência como professoras da Educação
Pública, na rede estadual de ensino em Estado de Mato Grosso, assim buscaremos apontar saberes que,
julgamos importantes, sobre a construção do percurso da formação do leitor na educação formal, contando
com as proposituras de Paulo Freire (2002); Miguel Arroyo (2012), Antonio Novoa (2014), Antonio Candido
(1965), Ernst Bloch (2005), Octavio Paz (1956), Nelly Novaes Coelho (1993), entre outros autores que nos
permitem adoecer os olhares com simbioses, com metáforas e com analogias que, de certo modo, trazem para
o universo, a pluralidade, as diferenças e as conexões que nos irmanam; seres humanos e coisas, imersos na
roda viva e pulsante que é o mundo.

Palavras-chave: Mulher; Poesia; Leitura; Experiências; Ensino.

INTRODUÇÃO

Se alguém sonha, nunca fica parado no mesmo lugar. Move-se,


quase a seu bel-prazer, do lugar ou condição em que se encontra
naquele justo momento.

Ernst Bloch

Esta abordagem teve como base a mesa redonda - Literatura da mulher e


formação do leitor na educação básica - trabalhada no I Simpósio de Poesia
Contemporânea do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil – SIMPFENNCO. Onde a
apresentamos, Lucinda Persona, uma escritora que produz em Mato Grosso, nascida em

27 Professora da área de linguagens no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação


Básica/CEFAPRO - município de Cáceres – Mato Grosso/Brasil. Mestre em Estudos Literários pela Universidade do
Estado de Mato Grosso/UNEMAT. Endereço eletrônico: jocineidesouzatga@hotmail.com.
28 Professora da área de linguagens no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação

Básica/CEFAPRO- município de Cáceres – Mato Grosso/Brasil. Doutora em Estudos Literários pela Universidade do
Estado de Mato Grosso/UNEMAT. Endereço eletrônico: m.elizabte@gmail.com.
Arapongas no Paraná, mas residente em Cuiabá desde 1965, portanto, mato-grossense.
Publicou seu primeiro livro em 1995, por Imenso Gosto, seguido de: Ser Cotidiano
(1998), Sopa escaldante (2001), Leito do Acaso (2004), Tempo Comum (2009), Entre
uma noite e outras (2014) e O passo do instante (2019). A autora faz parte da
Academia Mato-grossense de Letras/AML e para além da produção poética, colabora
também com jornais e revistas mato-grossenses na produção de resenhas, de contos e 90

de crônicas.
Especificamente nessa abordagem, trabalharemos com a produção de 2014,
Entre uma noite e outras, com foco em três poemas: Escrevo, Pequeno Lago e O que
dou à fome, traçando alguns fios são fundamentais para refletirmos sobre a produção
escrita, aqui particularmente, por mulher e a formação do leitor. Para tanto, elejo a
pedagogia da pergunta29, construída pelo educador Paulo Freire (1985) e defendida por
outros estudiosos como: Miguel Arroyo (2008), Antonio Novoa (1995), Edgar Morin
(2008), lembrando que o sentir e o sonhar suscitam questionamentos.
O que é a literatura e, sobretudo, a literatura escrita por mulher? E nesse
sentido, acreditamos ser importante que cada um também faça essa pergunta para si,
independentemente das diferenças. Como olho para essa literatura escrita por mulher?
Vejam que é importante observar que o percurso desses questionamentos vão nos
conduzindo a uma perspectiva que considera as subjetividades humanas e a
complexidade de relações existentes na sociedade, como diria Edgar Morin e/ou Nelly
Novaes Coelho (1993), nos direcionam às indefinições traçadas e conduzidas por
experiências e vivências múltiplas que se movimentam, se unem e se separam,
provocam sentidos e constelações que nos assaltam, nos tiram do cotidiano e, ao
mesmo tempo, nos devolvem a ele mais ricos de humanidades.
A Literatura, para nós, é uma necessidade, é uma essencialidade, uma forma de
não nos deixar ir embora, perdida às inúmeras ―imposições‖ da sociedade
convencional. Assim, especificamente a poesia, é um retorno, um caminho de volta, um
acionar de vozes que necessitam ser ouvidas, em um movimento de dentro para fora e
vice-versa. Ela age, em nós, como um escapulário para os sonhos, para acreditar que
outras sociedades são possíveis, tecidas com equidade, com dignidade, com respeito,
com amorosidade e, portanto, aceita todos os corpos, independentemente, das

29 https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/15.-Por-uma-Pedagogia-da-Pergunta.pdf
diferenças sociais, culturais, políticas, entre outras. Relembramos o filósofo francês
Maurice Merleau-Ponty (1995) de que poesia é corporeidade, é vida.
Ao pensarmos a formação do leitor a partir da literatura como forma de
expressão de nós mesmos e do mundo, nossa perspectiva de conceito de leitura é como
uma experiência a ser realizada, logo cabem aos professores à busca contínua de meios
para que a experiência entre autor-leitor aconteça e seja mediada com respeito e com 91

dignidade, buscando aprofundar em reflexões que apontam para a perspectiva


democrática e libertadora da educação. Conforme Cosson (2006, p.17) ―A experiência
literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como
também vivenciar essa experiência‖. Ou seja, ao vivenciar a experiência literária
podemos dialogar com outros seres e com outras identidades que, de certo forma,
dialogam com as nossas identidades e o nosso lugar, neste caso específico, a literatura
produzida em Mato Grosso e escrita por mulheres.
A literatura escrita por mulher foi uma tecitura produzida por e, com muitas
lutas e coragens numa configuração que marca e demarca um lugar de produção, de
experiências, de vivências, de utopias, pois aponta para uma arte que dialoga com as
complexidades da existência humana e estabelece relações à necessária valorização da
diversidade, dos seres humanos e das coisas que compõem o cosmo. Na obra Entre
uma noite e outras (2014), há inúmeros fios da vida cotidiana, sobretudo, da rotina da
mulher em temas distribuídos em dias da semana, como se construído um diário
poético do fazer rotineiro da mulher, assim temos poemas, como: a concha de sopa, os
fios de ovos, a folha de alface, o amor maternal, maço de couve, pêssego em calda,
sacola de pães que transbordam sutilezas e potencialidades poéticas. A poesia, com fios
cotidianos da memória e do imaginário, se constrói forte e encorpada, a partir de
elementos simples e corriqueiro, o eu-poemático apresenta a rotina e seus liames com o
pensar genuíno da mulher. Elementos que ganham uma roupagem de festa pela lente
da poeta e bailam nas páginas, como se estivessem tirando o leitor para a dança. As
palavras da autora são leves e sutis, enredam o leitor nas frestas dos elementos que
compõem o dia a dia e apontam para questões da experiência humana recheada de
inexistências. Nos liames do processo de formação do leitor, pautado na experiência
literária, a escrita de Lucinda permite que esse o leitor da educação básica, se sinta
pertencente a esse universo e, ao mesmo tempo perceba como a linguagem se constrói
a partir de rudimentos que também fazem parte de sua rotina particular, porém
necessitando da figura do mediador para contribuir no entrelace desses elementos com
as ―artimanhas‖ da língua‖ constituída no texto poético de forma metafórica e/ou a
partir de figuras de linguagens que potencializam os sentidos.
Nelly Novaes Coelho (1993) destaca em sua obra A literatura feminina no
Brasil Contemporâneo, a escrita da mulher como um fio de Ariadne onde a mulher
quando fala de si, também fala da outra e/ou de outras mulheres e suas (re)existências. 92

Esta perspectiva da autora sobre a produção da mulher e suas ramificações nos levaram
a refletir sobre os diálogos existentes entre as produções escrita por mulheres. Assim,
fomos instigadas a trazer para o debate, as produções da poeta Maria Elizabete do
Nascimento Oliveira, a autora nasceu em Paranaíba/MS, residente em Mato Grosso
desde 1978, publicou: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos
(2012), Asas do inaudível em luzes de vaga-lume (2019), atua na área de linguagens no
Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica/CEFAPRO-
Cáceres/MT. Nesta conversação com a produção da autora publicada em 2019,
também apresentaremos três poemas, intitulados: Escrita; outras vozes e quereres, no
intuito de traçar fios de diálogos com a escrita de Lucinda e legitimar com a produção
dessas mulheres o pensar de Nelly Novaes quando enfatiza que uma mulher reverbera
em outra. Ou seja, sucessivamente os fios de Ariadne vão construindo a grande obra
que movimenta o existir híbrido do feminino. Nesta perspectiva, apresentamos o
poema Escrevo, de Persona (2014) em diálogo com o poema Escrita de Oliveira (2019):

Escrevo

Posso quase dizer assim:


Nesta sala/de cimento armado/Escrevo
Numa ordem discreta/Que ninguém vê
À luz do sol
À luz de Lâmpadas
Escrevo
Como se nenhum princípio estivesse envolto em trevas
Assim
Ou mais ou menos assim.

(PERSONA, 2014, p. 40)

Escrita

Escreveu-se em versos
Alforria,
Ganhou asas,
Voou,
Virou poema.
Por não caber em si
Desaguou em histórias
De muitos passados.
Eu múltiplo 93
Numa história singular,
Composição de uma música
Com várias melodias.

(OLIVEIRA, 2019, p.65)

O poema de Lucinda apresenta uma trama instigante sobre o universo da


escrita da mulher e/ou sobre o pluriverso da figura feminina. São palavras que nos
impulsionam a refletir sobre as representações da escrita da mulher e a refletir sobre a
configuração que as palavras assumem ao considerar o contexto sociocultural e
histórico da trajetória da escrita feminina em seu lastro sociocultural e simbólico,
envolvido no/pelo poema.
Se considerarmos a leitura acima sobre o poema de Lucinda, também é possível
visualizarmos no poema Escrita, um corpo de mulher líquido que se liberta na medida
em que cada verso é escrito, onde o lugar de poesia é o lugar de transbordamentos e
de multiplicidades identitárias. E, portanto, poderíamos afirmar que há um diálogo
fértil e produtivo entre o exterior e o interior, prolongamentos da escrita que se
arquiteta em essencialidades que conectam por meio de vivências e experiências
diferentes que se completam. O mar de correlações na poesia vai desaguando águas no
leitor atento, pois as palavras poéticas são capazes de lhe provocar desmanchamentos,
ou seja, à medida que o leitor vai colocando em dúvida alguns saberes já constituído,
com base na organização social em que vive, ele vai também se (re)constituindo com
outras águas, tornando-se outro, potencializando seu saber, a partir de outra
organização de texto e de mundo que não o meramente instrutivo e convencional.
Nesse sentido, trago as palavras de outra escritora de Mato Grosso Marta
Cocco (2014) sobre a produção de Lucinda Persona:

Lucinda tem uma dicção própria, uma poesia vigorosa e de


qualidade indiscutível. O que funciona como um fio condutor,
nos poemas, é o comportamento do Eu lírico, que se propõe a
ver o real além da costumeira aparência e valorizar cada detalhe,
sem hierarquizar grandezas; a ver, simultaneamente, com os
olhares da razão e da imaginação (2014, p.117).

Então, ainda nessa perspectiva, a vida humana consiste em cada um se


questionar e atribuir sentidos aos seus questionamentos, ir aos poucos realizando a sua
travessia, ir se constituindo com sua trajetória de vida e experiência, tornando-se
94
leitores para além da codificação dos signos linguísticos. Esta é também uma afirmação
de Nelly Novaes, irmos todos independentemente de gênero e/ou da opção sexual,
política etc., nos constituindo com nossas perguntas, com nossas narrativas, com as
nossas respostas e com as relações que construímos ao longo da nossa trajetória.
Observem que as palavras são organizadas de forma diferentes nos dois
poemas, mas os pontos de aproximações são possíveis. Por outro lado, é importante
visualizarmos também os distanciamentos, tanto nas palavras selecionadas para a
produção dos poemas, quanto às peculiaridades que fazem parte da identidade e
particularidade de cada eu poemático.
Os dois poemas que por ora levantamos possibilitam à reflexão sobre o leitor e
o processo de escrita literária, na reflexão de como a escrita toma seu curso e, de certo
modo, imbrica-se no corpo do leitor. Consoante a Rildo Cosson (2006, p.27): ―Ler
implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a
sociedade onde ambos estão localizados. Os sentidos são resultados de
compartilhamentos de visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço‖, ao
fazer poético enlaça-se elementos que levam o leitor a viagens que lhe apontam para o
compartilhamento de olhares, perspectiva que age em diálogo com o interno e/ou
externo, numa ―conversa‖, muitas vezes, não linear, conforme sugerida pelos poemas.
Portanto, trata-se de um jogo espiralado e continuum da linguagem que brinca com a
identidade do leitor, especialmente daqueles mais convictos de suas posições e de suas
certezas identitárias.
Em uma linguagem essencialmente metafórica, as autoras nos convocam a
questionar o lugar e/ou, como diria Silviano Santiago (2000), o entre-lugar da
existência. Vejamos outros dois poemas das poetas Lucinda Persona e Maria Elizabete
Nascimento de Oliveira:

Pequeno lago

Com gestos calmos


Que nunca chegarão
Ao conhecimento do mundo
A mulher enche a banheira de água
Até os bordos
Sente ter
Diante de si
Um pequeno lago
Seus sonhos não se restringem 95
Somente ao que é possível viver
Ela alarga seus domínios
Devagar
(na condição em que veio ao mundo)
Mergulha até os ombros
Só a cabeça à flor da água
Como se ainda não quisesse algo por inteiro
Levemente recostada no rebordo
Fecha os olhos
Com esse natural impulso
Dado ao corpo submerso

Então
Pertinaz
Orienta-se
Para o que está sepultado
No fundo do lago
Quem poderá dizer
O que é que se move
Suavemente
Para diante
E para trás?

(PERSONA, grifo nosso, 2014)

Outras vozes

Eu que nasci e vivi


Na sela opressora-oprimida.
Eu que carrego milhões de silêncios e vácuos
Em meus interstícios.
Eu que tenho frustrações fundantes
No cérebro e no coração.
Eu que acho a vida insuficiente
Para a resolução de mim
Eu que observo
Milhões de pessoas bem resolvidas
Nas redes sociais.
Eu!
Lendo o mundo.
Abro, a duras penas, a cela
Para desencrostar-me das tintas
E reencontrar minha cor original.
Eu, todos os dias,
Espanto as ‗verdades‘ fundadoras.
Eu, todas as noites,
Aprisiono infinito e vazios.
Eu vejo, na noite e no dia,
Outras de mim apagadas sem justiça. 96
Eu aprendo que nem pés, nem asas
São suficientes para nos preencher
De liberdades.
Seremos, sempre, sujeitas
Ocultas na multidão.

(OLIVEIRA, grifo nosso, 2019, p. 79)

A configuração das palavras no poema de Lucinda incita o olhar para a


inconclusão conceitual da poesia e da figura feminina, ao mesmo, tempo assinala para a
necessária descoberta das coisas que vão continuar encobertas, mas que alimentam
nossas esperanças e devem nos impulsionar à busca por equidade. No livro dicionário
dos símbolos, os autores enfatizam que o lago: ―simboliza o olho da Terra por onde os
habitantes do mundo subterrâneo podem ver os homens, os animais, as plantas, etc. o
pântano simboliza o olho que chorou demais. [...] de onde surgem fadas, feiticeiras,
ninfas e sereias‖. (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 533). Com isto, apontamos para as
possíveis linhas de reflexões no poema Lucinda, que é preciso viver o tempo presente,
pois a vida é mistério, é incompletude. Saliento ainda a maravilhosa analogia criada
pela poeta entre o pequeno lago e o útero da mulher, retomando a ideia de retorno às
origens para (re)conhecer o lugar real, quando ainda não está determinado as
diferenças, pensar o presente e suas ramificações, seus rizomas e seus alcances.
Já no poema Outras vozes, de Maria Elizabete a incompletude da figura
feminina também está expressa no lamento do eu poemático que reforça por meio do
discurso poético em primeira pessoa sua incompletude, inacabamento que está
enraizado em sua condição existencial, mas que por outro lado deixa latente, como em
Lucinda, suas linhas de diálogos com outras figuras femininas, especialmente nos últimos
versos: ―Seremos, sempre, sujeitas/Ocultas na multidão‖. Estes versos trazem ainda para
o debate o lugar da mulher ao longo da história, enfatizando a condição subalterna em
relação à figura masculina, que pode ser lida por diferentes caminhos da história da
humanidade.
Os dois poemas versam para além da alma feminina, em cada verso surgem
questões existenciais que nos fazem pensar de outro jeito a história, especialmente a
que viveu e vive a mulher. Lucinda nos levam à busca interna, enquanto Maria
Elizabete destaca a invisibilidade da figura feminina que, ciente do processo de
construção do ―ser mulher‖, em uma sociedade estritamente patriarcal, assinala como a
violência contra a figura feminina continua crescente e impune em nosso país (Brasil). 97

Neste momento de produção, destacamos o surgimento avassalador do vírus COVID19


e o número cada vez maior de violência contra mulher, a cada nove horas uma mulher
é morta, conforme nos aponta Sheila Oliveira30 (2020). Para além, do apagamento e
da invisibilidade, os dois poemas se convergem na busca pelo ressurgir de novos
campos de batalha contra a injustiça, para tanto, convoca ao mergulho no lago interior
ou à busca da cor original, encampando outro tipo de luta a favor do feminino.
Ao pensar poeticamente o laborioso trabalho dessas artistas da palavra, não
nos permitimos pensar em literatura como pretexto (pretexto para ensinar gramática,
pretexto para vender livros, pretexto para autopromoção, entre outros), mas
potencialidade leitora para pensar e sentir a literatura como essência, como parceira de
existências e de reexistências plurais e interdependentes. As poesias das autoras estão
recheadas de substâncias poéticas que se entrelaçam à vida e por isso são/estão grávidas
de novos repertórios e significações, em movimento (pois os poemas, mesmo trazendo
cenas corriqueiras, abrangem significações outras, de acordo com o leitor que o
devora).
Ler é mesmo sujeitar-se ao risco, mas a aventura faz-se necessária,
pois, assim como para Drummond, (...) O homem revela-se/na
torrente melódica, suplanta/seu escuro nascer, sua insegura/visão
do além, turva de morte e medo. O homem também, e
principalmente, se revela na sinfonia das palavras, no ritmo que
elas estabelecem e, nelas, se conhece, se reconhece e se supera. E a
leitura é a ponte inconsútil, suspensa no ar, sustentada na razão e
no sentimento, que nos conduz ao outro e a nós mesmos
(MICHELETTI, 2006, p. 18).

Precisamos aprender a sentir as pessoas, ver os instantes, encher a existência de


vidas, de trocas, de afetos, mesmo com muita coisa nos dizendo o contrário e, por
outro lado, também deixar que as pessoas nos sintam e decidam se querem ficar ou se

30 OLIVEIRA, Sheila. Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil. Brasil de Fato: São Paulo, 10
de outubro de 2020 as 17:47. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/uma-mulher-e-morta-a-cada-
nove-horas-durante-a-pandemia-no-brasil. Acesso: 13 de dezembro de 2020.
preferem ir embora, mesmo tendo-as sempre como presença porque contribuíram em
nossa constituição à procura do SER integral. Como disse Lucinda Persona: ―de algum
modo/tudo está contido/no maior livro/É tão bom saber que/ o tempo favorável é
agora/Hora de considerar de perto (em cena pontual)/o que temos por claro e certo/o
meio-dia mais autêntico/ dorme de pé em qualquer lugar‖. E com tudo isso afetando os
sentidos perceber/sentir os aromas que pulsam da vida e/ou das vidas que partilham da 98

existência. Formar-se e formar leitor é contribuir para aproximá-los da própria


existência, dado que se não cuidarmos disso a sociedade vai aumentando a distância de
nós mesmos, deixando-nos estranhos. Portanto, somente bons leitores podem formar
leitores, não há como ensinar o que não se aprendeu. Assim, Micheletti (2006, p. 19)
adverte que para que o professor torne-se mediador, é necessário que abstenha do
papel de guardião do saber, sem abdicar de sua condição de leitor maduro.
As experiências obtidas em espaços diferenciados fortalecem-nos às relações e à
leitura de mundo e que essas leituras imbricadas nas redes de con-vivência, muitas
vezes, não nos são muito agradáveis, mas são reveladoras da condição humana e sua
pequenez diante da amplitude da vida. Com essas experiências/vivências sentidas nas
observações e nas trocas, com @s professor@s dos diversos campos de conhecimento, a
quem reverenciamos, com apreço pelo trabalho e com admiração constante pela
(re)existência, nesse sentido vale ressaltar que precisamos nos alimentar de nossas
narrativas, de nossas experiências, de nossas vivências e de outras leituras. Precisamos
ousar a teorizar as nossas práticas, inovar os nossos percursos, criar linhas de diálogos
com as vivências plurais dos que partilham conosco suas experiências e, sobretudo, é
imperioso lutar por melhores condições de trabalho na docência, por direito e acesso às
produções contemporâneas. A leitura pressupõe abertura ao aprender, permissão ao
outro para aproximar de si, disposição para ligar os fios, ousadia para complementar o
universo particular.
Para aguçar um pouco mais os sentidos apresentamos o poema O que dou à
fome, como ideia de que as coisas não finalizam, são sempre passíveis de novas
constelações:

O que dou à fome

Não tenho ainda na boca


O alimento
Mas
Dá-me pressa contar a todos:
Sou um ser
Que devora
Outros seres
Tudo o que dou á fome
(e da vida já passou à morte)
Chega primeiro ao coração
Por um via secreta e tênue 99
Afundo (em alma)
Até a extremidade das raízes
Deste tomate vermelho vivo
Que caiu em minhas mãos.

(PERSONA, grifo nosso, 2014, p. 26)

Quereres

Quero...
Ter olhos de lince
Às insignificâncias.
Degustar a beleza das flores,
Sentir o barulho das cachoeiras,
Perceber a magia da lua,
Delirar com o fascínio do sol,
Sonhar com o canto dos pássaros,
Beliscar a ponta do horizonte,
Decifrar algumas linhas da existência,
Despejar sorrisos nos tropeços dos sonhos,
Ler a poeira das tempestades,
Desvirar as linhas da razão,
Dar água aos bem-te-vis,
Encantar com a música do mar,
Enfrentar sombras e escuridão,
Alimentar o balde da bruxaria,
Galopar com o vento,
Perceber os bons presságios,
Ofertar cambalhotas ao desespero,
Ouvir as gargalhadas do silêncio,
Saltar de trampolim,
Acionar as linhas da loucura.
Acordar como se nunca tivesse dormido,
Viver com intensidade
O inefável
E mesmo assim...
Com todos esses quereres,
No fim...
Eu sei!
Sei que ainda morrerei
De fome e de sede
De viver.

(OLIVEIRA, grifo nosso, 2019, p. 89)

A representação da fome nos poemas está para além do desejo de saciar a


necessidade física, mas aponta a luta em alimentar a própria vida. Notamos nos versos,
a fome de viver, em cada detalhe da natureza, em cada realização pessoal, o eu- 100

poemático aponta essa fome que pulsa no processo das produções poéticas e que de
certo modo, também, destaca a incompletude humana que reverberam nos outros
poemas.
Com esses retalhos de pensares, de dúvidas e de desejos, finalizamos dizendo
que a escrita da mulher vem acompanhada/embaralhada nos tempos vividos. Como
aborda Nelly Novaes Coelho, trata-se de: saberes e sabores dos mais diversos que se
fundem numa escrita seivosa, sinuosa porque a aventura humana está enredada em seus
mil caminhos e veredas que, por sua vez, se cruzam, se entrelaçam e se separam.
Nenhuma vida [existe] de forma independente, mas está enovelada, determinada,
abortada ou frutificada por outras vidas que a ela estão presas por invisíveis e
irredutíveis fios (NOVAES,1993).
Diante do exposto sobre a Literatura da Mulher e a Formação do Leitor na
Educação Básica, o título dessa comunicação - Entrem! Com Raízes e Asas - Degustem
das Guloseimas Poéticas – constitui-se em uma alusão para que possamos nos despir de
concepções ―prontas‖, especialmente quando tratamos de produção de mulher e da
formação de leitor, tudo está por fazer e nós, estudiosos da literatura, professores da
educação básica, estudantes de pós-graduação e/ou do ensino básico, precisamos juntar
nossas raízes e asas na constituição de outros saberes sobre a complexidade de relações
que se estabelecem e/ou que se estabeleceram na história da humanidade, nos
diferentes campos do conhecimento.
Portanto, nossa sugestão é que a arte poética seja expandida pelas mãos de
ourives na construção do mundo (ser humano) agindo de forma atenciosa, cuidadosa e
ordeira e, juntos, possam lapidar caminhos à construção de outra sociedade, tendo
como referencial a poesia e a sua abertura aos diferentes e às complexidades
existenciais. A sugestão prática para as aulas de literatura se dá na procura, na interação
– pesquisadores, professores, alunos e meios de comunicação - que, na interatividade,
criam novas contexturas para a produção literária, construindo diálogos e olhares que
movimentam espaços diferentes e que acionam as reflexões múltiplas e pulsantes do
existir. No entanto, é importante destacar que os elementos para interpretação estão
no próprio texto e, por isso a importância do saber ler com e no texto. Ou seja, a
leitura conduz o leitor ao universo polissêmico das palavras e, quando o leitor volta à
tona da viagem realizada com o texto ele se reencontra, como disse Guimarães Rosa,
em uma terceira margem, capaz de se ver em outro lugar (MICHELETTI, 2006). Ainda 101

nesta perspectiva, Guaraciaba Micheletti (2006, p. 16) enfatiza ainda que: ―[...]
aparentemente preso nas malhas do texto, o leitor salta para a vida e para o real na
medida em que a leitura da palavra escrita pode conduzi-lo a uma interpretação do
mundo‖.
Sugerimos uma novo jeito de aprender e de ensinar, onde a leitura potencializa
uma forma de compartilhar os mundos, o próprio de cada indivíduo e o mundo do
outro e outras, em diálogo com as coisas existentes no cosmo. Entre os vários
sentimentos que a literatura pode proporcionar estão a fruição, a alegria pela
descoberta e o prazer por uma leitura que não apenas decodifica códigos linguísticos,
mas que movimenta o mundo do leitor e potencializa sua identidade na alegre procura
de ser-mais, à busca por um devir ancorado na utopia do esperançar freireano. A
produção poética, quando trabalhada de forma significativa pelo mediador, devolve ao
aluno, sua tinta original e com ela, ele pode desenvolver outras formas de ―pintar‖ o
mundo e de se constituir em humanidade.

REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. Outros sujeitos outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 2005.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 1ª Ed. São Paulo: Companhia Editora.
Nacional, 1965.
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Siciliano, 1993.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: Teoria e Prática. São Paulo: Contexto, 2006.
FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
MICHELETTI, Guaraciaba. Leitura e construção do real: o lugar da poesia e da ficção.
São Paulo: Cortez, 2006. (Coleção aprender e ensinar com textos; v.4).
NOVOA, Antonio (org,). Profissão professor. Portugal: Porto Editora, Col. Ciências da
educação, 2014.
OLIVEIRA, Elizabete. Educação Ambiental e Manoel de Barros: Diálogos poéticos. São
Paulo: Paulinas, 2012 102

OLIVEIRA, Maria Elizabete Nascimento de. Asas do inaudível em Luzes de Vaga-lume.


Cuiabá/MT: Carlini & Caniato Editorial, 2019.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
PERSONA, Lucinda. Entre uma noite e outras. Cuiabá/MT: Entrelinhas, 2014.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano (1971). IN: Uma
literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco,
2000.
CAPÍTULO VIII
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM EM CIDA PEDROSA 31
MELO, José Eduardo Martins de Barros 32

SANCHES, Maria Elizabete 33

103
RESUMO
Há no mundo contemporâneo uma tendência quase unânime de se estabelecer uma linha limítrofe entre as
artes e ao mesmo tempo, a partir dessa linha, mergulhar nas relações entre elas. Diz Étienne Souriau que em
qualquer arte, o artista força a matéria a manifestar seu sonho, mas isso apenas quando esse sonho já tiver
desposado da matéria, que no caso específico de Cida Pedrosa, se manifesta no olhar e na concepção da
imagem como tal. Neste sentido, as nossas reflexões se fundamentam nas bases da discussão herdada do
pensamento de Mikhail Bakhtin no que concerne à concepção dialógica e polifônica dos estudos da
linguagem. Perceber e estudar estes rumos é tarefa inadiável ao investigador da contemporaneidade, seja no
campo das artes ou do comportamento social como um todo. Este artigo é consequência dos estudos que
desenvolvemos sobre a poesia de Cida Pedrosa, referência da escritura da mulher na literatura pernambucana,
cuja cidadania literária está vinculada ao Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco de 1980.
Nosso objetivo, a partir de referenciais teóricos levantados nas obras do pensador russo Mikhail Bakhtin e do
francês Étienne Souriau é revelar como sua linguagem é um construto de emoções que se imbricam no espaço
entre o diálogo das diversas formas de expressão artística, notoriamente as formas literárias e plásticas e o
cenário íntimo do eu a partir de um olhar observador, que recorta da exterioridade o universo imagético da
arte. Discutiremos como em Cida Pedrosa se manifesta uma poesia de marcações visuais, que se apresenta ao
leitor como invariante de uma nova perspectiva da voz feminina diante do universo caótico que nos rodeia,
numa sucessão de quadros polifônicos capazes de atrair pela beleza plástica dos versos que são construídos
com a força do fazer literário do nosso tempo e de nossa paisagem íntima, como demonstraremos nas leituras
de seus poemas publicados no Gume, cujo processo de composição surge pelo desdobramento geométrico das
quatro partes de que se constitui e que dialoga com os cinco livros anteriores da autora, armados como uma
tela projetada em processo de disjunção e conjunção de quadros desmembrados dos primeiros recortes, os
livros Restos do fim, O Cavaleiro da epifania, Cântaro, As filhas de Lilith e Miúdos e o livro que inicia a fase
posterior, Claranã, que formam uma síntese polifônica da paisagem íntima do ser composta pela integração
entre as formas de percepção do mundo e as correspondências da arte.

Palavras-chave : Dialogismo, poética, imagem, olhar.

INTRODUÇÃO

Iniciar a leitura de uma obra literária é transitar por um terreno de múltiplas


direções que interagem no sentido de compor um campo único de mobilização em que se
movimentam diversas vozes dentro de um contexto singular, cuja especificidade se
desenvolve pela relação que este mesmo campo estabelece com diversos outros, tanto no
plano linguístico como no social.
Partindo deste princípio é possível compreender a obra literária como um construto
de um mosaico onde formas linguísticas, gêneros e vozes do discurso interagem no sentido

31 Este texto tem como base o artigo Cida Pedrosa: a poesia que se vê de Eduardo Martins, publicado nos anais do XIII
CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC.
32 Professor Dr. da Fundação Universidade Federal de Rondonia.
33 Professora Ma da Fundação Universidade Federal de Rondonia.
de promover e acomodar diferentes modos de integração entre os textos e suas vozes. Os
fragmentos de elementos visuais e de imagens que dialogam entre si na construção poética,
quase não nos deixam perceber esses limites, isto porque esses fragmentos se imbricam
como para compor uma peça única, um monumento de expressão que se antecipa aos
olhos sobre a imagem. Neste sentido o estudo da análise da linguagem, enquanto
ferramenta que propicia a construção desse mosaico, se faz por meio do processo interativo 104

e dialético pelo qual se relacionam o indivíduo e a sociedade e a diversidade de linguagens


das diversas formas de expressão artística, de onde se extrai grande parte dos estudos de
Mikhail Bakhtin.
Da mesma forma, como nos diz Souriau, perguntamos até ―onde podem ir as
semelhanças, as afinidades, as leis comuns; e quais são também as diferenças que se
poderiam chamar congênitas (1979, p. 13)‖ entre as diversas manifestações artísticas com as
quais se corresponde a obra de Cida.
Nessa perspectiva de análise estudamos a sua poesia e nos deparamos com duas
questões que envolvem diretamente os estudos colonialistas da nossa literatura e revelam
de certa forma a postura da crítica brasileira como um todo: quem é Cida? Quem a lê? E
nos respondemos de pronto: pouco importa, Cida é a "poesia que se vê". Poeta, nordestina
e sertaneja. Combatente das trincheiras da chamada "Geração perdida" dos anos 80 que foi
marcada pela forte presença dos escritores independentes e dos movimentos poéticos de
rua, que tomaram conta da cena literária nos tempos da força bruta que assolava o país,
política e economicamente falando.
Mas... como começar? fomos até os seus livros e como o primeiro deles tem o
título de Restos do fim, resolvemos começar, senão pelo fim, mas pelo último trabalho
poético da autora, para encontrar a plasticidade de sua linguagem e seus movimentos
correspondentes.

A CORRESPONDÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM: O DIÁLOGO E A COR

O foco deste trabalho é o livro Gume, que se constrói a partir de dois grandes
cortes de tensão , falo do rio de estio / e no amor falo agora, que se fragmentam em oito
pequenos recortes (poemas urbanos, poemas da libertação, poemas da passagem,
engenharia da dor, haicais da visitação, amor maior que deus, corpos sob o neon e a
próxima dança) simetricamente distribuídos em quatro quadros para cada lado, revelando
para o leitor duas focalizações imperiosamente distintas, que dialogam entre si, formando
um conjunto polifônico de cenas, que às vezes privilegiam o particular e às vezes o
universal, na distância ou na proximidade do olhar, de acordo com as frestas que a própria
organização estrutural das imagens da obra nos permite perceber.
Aqui temos a movimentação do espaço especializado para o espaço espacializante,
como diria Merleau-Ponty, usada como recurso de ampliação do campo de apreensão do 105

objeto focado.
Bom exemplo do que estamos falando encontramos nos poemas urbanos,
especificamente no texto "passeio pelas ruas do espinheiro", um poema extremamente bem
realizado e de extraordinário nível de compleição poética, capaz de nos propiciar o êxtase
advindo das imagens que saltam e aguçam a nossa visão e que merece a transcrição na
íntegra:

quero
pelos olhos da cidade
apreciar papoulas
abertas de par em par
para deleite dos cãezinhos
e colares de pérola maiorca

(a pressa atropela a solidão do homem


que vende pipoca na esquina
o vento do carro
levanta a saia da moça lilás
para felicidade dos operários
já libertos do andaime
e da rigidez das horas )

quero
pelos olhos da cidade
sentir cheiro de pão e fuligem
de brisa e de cimento
e testemunhar o preciso instantelos
em que o beija-flor afaga
a papoula aberta de par em par

(PEDROSA, 2005)

Nele, constatamos que a presença de elementos formais constrói uma poesia visual
em Cida por diferentes níveis de discurso irmanados de maneira a acomodar a polifonia das
vozes representadas, tanto pelos elementos cotidianos, como pelos fragmentos de
subjetividades que se precipitam diante desses elementos.
As sinestesias e o gosto pelo emblemático, aliado a técnicas de montagem e
remontagem textual constituem, em última instância, a bricolagem das imagens pinceladas
em fluxo contínuo que alterna a horizontalidade da percepção dos elementos externos ao
ser e o seu interior frente a verticalidade que se aloja no uso dos parênteses e parece isolar-
se no meio da paisagem, construto da solidão e do refúgio da "rigidez das horas", um
tempo-mapa, contado, minutado, por meio das cenas recortadas, em que o discurso 106

polifônico se entrelaça e nos faz lembrar de um tela cubista.


Os "olhos da cidade apreciam as papoulas que abertas" a vislumbram e a
embelezam, trazendo à tona, por meio da expressão sensorial, o verdadeiro caráter lúdico
do poema realizado pela comunhão entre o aberto e o fechado, o observável e o recluso, o
íntimo e o revelado, o concreto e o abstrato, o verbal e o não verbal, o comum e o
inusitado, num moto-contínuo que capta contraditoriamente, num rápido relance do olhar
sobre o cotidiano explícito, o processo de desconstrução da realidade factual que neste caso
específico participam da construção da imagem e sua poeticidade formal, sua singularização.
A cidade, enquanto signo poético de visibilidade das impressões do eu, surge em
toda sua dimensão. O sujeito passeia pelas ruas do bairro Espinheiro e o poema se constrói
música suave, que alterna o gosto pelas aliterações e pelo paralelismo com bruscos recortes
de coloração paisagística de cenas inusitadamente rabiscadas do real, onde as múltiplas
vozes do coletivo se anunciam por meio da subjetividade de uma voz única.
Nesse campo a fuligem, metáfora mais rasa do real, parece incrustar-se como rocha,
amálgama de seu olhar, preparando o testemunho da dura realidade que, avessa, se vê
transpassar pela foto sublime do beija-flor sobre a papoula. A tensão aí estabelecida renova
a atmosfera eminentemente lírica da mobilidade que toma conta do texto em sua dimensão
dialógica. Diferentes níveis de discurso se associam para promover o jogo polifônico
expresso por uma segunda voz que se mascara no texto por meio da digressão, situação
que se estende para outros poemas deste corte, como no paisagístico "luaredo", no mosaico
de "um certo sol sobre São Paulo" ou ainda no simbólico poema "fresta", talvez um dos mais
bem realizados do primeiro corte de Gume, em seu terceiro quadro: engenharia da dor.
Eis o espaço onde as marcas expressivas desse processo de construção são o
sofrimento do que se vê e do que se deixa revelar, por meio das interrogações a ressaltar
uma terceira voz que não se cala e incorpora-se a sugestão de inúmeros questionamentos
invariáveis e irresolutos.
a fechadura me sorri
quem segura esta dor
por trás da porta

anjos que andam?


gente que voa?
olhos de cristal?
107
a chave apenas
fecha o olho
a imagem não:
a esta é dada a vastidão.

Assim, ainda no primeiro bloco do livro, se chega ao corte inusitado de poemas de


passagem, estrutura que por si só encerra uma profunda reflexão sobre o ato de escrever.
Aqui, o que grava com seu stilus parece atingir grau máximo de compleição e silêncio.

esta poesia não te cortará


já nasceu partida
como choro de quem perdeu a mãe

existe o corte de outra faca


palavra
fina ferida fervente
ferinafacadorlírica

corte de rio cinza


cano cratera carvão
cão vidro pluma

a garrafa corta a água


gavião do mangue

toca de caranguejo
puçá de siris
tetéia de goiamuns

a adaga corta a veia


singra a solidão do branco

partidapalavraperdida

mas não se importe leitor


esta poesia corta apenas o papel
já nasceu partida
como a asa do albatroz.
Nele, a criação poética polifônica já nasce fragmentada, embora esta fragmentação
visualmente se aglutine e se traduza em uma unidade como "partidapalavraperdida",
tentativa de unificação do caos em sua configuração multifacetada, produto de uma visão
panorâmica que capta do espaço físico as emoções verticalizadas do eu. É o que teremos no
seu livro Claranã, de 2015, título retirado do nome da pedra Claranão, que deu origem a
um dos distritos do Município de Bodocó, cidade de origem da autora e cujo significado 108

remete a uma enorme e majestosa pedra que de tempos em tempos é iluminada por luzes
azuis e que abrigava um reino encantado. Por isso mesmo, a reconfiguração emblemática e
plástica de que se compõe o livro, manifestação palimpséstica do processo de refazimento
das imagens retidas no processo de criação da autora.
Assim, como no poema, a palavra é o instrumento de recorte que emoldura,
harmoniza e recria seu mundo. As imagens são coladas umas sobre as outras como partes de
um conjunto de vozes mais amplo, a obra. Ao leitor compete captar o voo seccionado no
ícone do albatroz e sua multiplicidade de voos. "É essa, precisamente, aquela posição
radicalmente nova que transforma o objeto, ou melhor, o homem reificado, em outro
sujeito, em outro "eu" que se auto-revela livremente". ( BRAIT, p.194)
Uma poesia que se vê como foto em movimento nas diversas leituras do quadro
real que se refaz ora por via da memória curta e ora por meio de seu alcance mais
longínquo. Um universo em que os tons e sobretons constroem a marca de um desenho,
que também se desfaz para ressurgir enquanto força expressiva das emoções de diversos
tons e cores. Aliás, as cores estão quase sempre presentes nos textos de Cida, ora de forma
clara e facilmente perceptível, ora de forma escamoteada, em sombreamentos que parecem
querer ocultar os segredos de sua identidade.
É o que se pode perceber em "serva das cores", "a passarela", "um certo sol sobre
São Paulo", "vinil, a face e o sertão", "branco sob buganvília" e vários outros textos deste
primeiro corte do livro (e também do segundo), como na passagem impressionista de "o
morto-vivo", em que a cor das uvas, em decorrência de seu estado físico, atua como ícone
de remissão da morte que, por sua vez, dialoga com a fragilidade orgânica do ser:

as uvas apodrecem
na fruteira
tu te perfilas na cadeira da mesa
que cheira a suor de ancestrais
Este constructo plástico, recorrente ao longo do livro, torna-se ritual de marca
estilística, porque moldura a tela a partir da compartimentação do objeto que propicia a
multiplicação de focos e transfere ao observador uma sensação lateral de sua integridade.
Ele também irá aparecer nos livros posteriores, especialmente em Claranã, em que
as tonalidades mais claras, quase brancas ou pouco azuladas, como reflexo de sua poética,
aparecem. É o que se tem no fragmento que transcrevemos do poema sem título publicado 109

no livro:

Vocifera a palavra a céu aberto


E rumina o papel em branca espera
O poeta em busca da quimera
Se bandeia pro inferno do deserto

Este processo de engenharia na construção do campo imagético, que traduz a ideia


de claridade e a clareza necessárias à formatação do poema também resguarda certas
transparências representadas simbolicamente pela opção de imagens de tonalidades brancas
e claras escolhidas por Cida para acentuar o seu clarão no livro como refluxos de uma
memória que ainda alcança de maneira nítida suas recordações, suas origens. Neste sentido,
não só com as artes plásticas, mas também com a música se incorpora à poesia de Cida e se
corresponde de forma harmoniosa e pacífica, de maneira que os fragmentos resgatados se
tornam uma imagem plenamente identificável. Tais procedimentos espalham-se pelo livro
de forma a imprimir suas cores e seus tons. Vejamos:

A manhã retalha o céu


Em duas luzes luzentes
O sim e o não existentes
Os dois jogados ao léu
Nem a leveza do véu
Cobre essa dor abstrata
Uma vive a outra mata
E nesse instante entendo
Eu vi a lua morrendo
Numa agonia de prata.

Um processo artesanal, que o poema estabelece em seus limites para demarcar as


sensações advindas das relações que invoca entre sujeito e universo: a tatuagem de "a
lágrima tatuada", a arte do confeiteiro em "céu de confeiteiro", a geometria em "engenharia
da dor", a recordação no canto esquerdo da memória de "calendário", o mapeamento
espiritual de "absoluto" ou ainda a "urbe", por meio de suas diversas formas de aparição, são
artefatos usados pelas mãos de Cida, para compor as impressões deste primeiro corte do
Gume que voltam a aparecer em Claranã (2015). No plano estilístico-formal, acentuam-se
as extremidades no conjunto polifônico impresso no contexto pela assonância da vogal a,
que abre a perspectiva de visão do observador. Já no poema XXIII de Claranã, Cida parece
ir beber na fonte da poesia popular o que usa de ritmo e de cor para compor o seu quadro.
Estas relações entre a musicalidade e a plasticidade dos seus versos recortam do mote do 110

poeta Jô Patriota, a tonalidade prata que margeia entre o branco e o azul que seguem suas
pinceladas no processo de construção das imagens.
Desta forma, o livro se abre em um segundo corte e volta o seu olhar para a
interioridade do sujeito, alterando muito pouco no que se refere à plasticidade do mosaico
de vozes presentes na construção de sua linguagem. Aqui, a agonia da urbe parece evoluir
para a harmonia no que diz respeito à temática que desta feita posicionará o eu como
elemento-foco de sua percepção, chamando para si a sensualidade, a dor e o prazer de ser e
de se desenhar mulher, notoriamente nos recortes haicais da visitação e amor maior que
deus.
Esta segunda parte é essencialmente feminina, especialmente no que diz respeito à
voz que sussurra e pinta, com as cores do refinamento, os seus segredos mais secretos. Para
se ter uma ideia da dimensão desta atenção ao discurso visual e de sua sensualidade basta
observar no livro as recorrências do olhar em suas diversas formas de aparição e invocações
implícitas, como no poema "van Gogh": são vinte e três ocorrências no primeiro bloco da
obra para quarenta poemas, e quinze também para quarenta poemas, no segundo. No
primeiro bloco, apenas no poema "cinema aos domingos", temos sete recorrências e, no
segundo, no curto poema "olhos de mar", temos seis recorrências. Qual seja, a cada dois
poemas dos dois conjuntos o olhar aparece em pelo menos um, ora caracterizando-se como
perscrutador do outro, ora como voz confidente do próprio eu em seu diálogo com o
mundo exterior. Desta forma, esse olhar desvenda o processo de engenharia na edificação
da imagem. Vejamos:

a primeira vez que vi o mar


fiquei em desmantelo
as ondas iam e vinham
como vinha e ia o meu olhar

a primeira vez que vi o mar


fiquei em desmantelo
os olhos iam e vinham
como iam e vinham as ondas do mar

hoje não consigo apartar


gêmeos estes dois
teus olhos e o mar

Como se pode facilmente perceber, também neste segundo bloco, o uso das figuras
de repetição, usadas muito pouco em seus primeiros livros, parece constituir a novidade 111

formal deste Gume, posto que articuladas para gerar um efeito muito mais provocativo do
sujeito para quem se dirige o poema, já que se aliam a outras nuances plásticas e sonoras da
linguagem e se unificam no labirinto forma/fundo que, em última instância, é a própria
essência poética, o complexo de seus lados e de seus tons.
É o que ocorre em "senda", um desses poemas laterais que nos deixa perplexos pelo
contorno e pela multiplicação das formas que vão sendo reveladas umas sobre as outras a
medida em que se justapõem e embaralham o conjunto sonoro do coro subjetivo:

a senda aberta
acende a sanha
a senha acende
a sanha aberta
a sanha lava
a lava acende
a senda aberta

O universo da sensualidade beirando ao erotismo evoca das cores e dos sons a


necessidade de se tatear a alma. Os lados que compõem o objeto se harmonizam como
elementos figurativos e nos dão a exata dimensão do campo imagético sob o qual repousa
o diálogo entre escritura e quadro.
A senda acende-se, torna-se clarão, desnuda-se para abrir-se lava e iluminar o eu.
Aliás, em Gume, a luz ou sua ausência, o contraste, o sombreamento, também rondam os
procedimentos visuais da poesia de Cida. Não raros momentos o vermelho, o rosa, o azul e
o branco aparecem para compor o desejo do eu de reafirmar sua relação com o olhar
observador do lado de fora, impondo-lhe limites, tornando-se parâmetro fronteiriço das
duas faces do livro. Por esta senda é possível se observar o diálogo entre o plástico e o
sonoro, que em última instância se configuraria na fusão de formas distintas das artes visuais
e da arte poética.
Estes limites se marcam no segundo corte da obra pela extrema unção do corpo em
poemas que servem como campo geométrico da sensualidade, num verdadeiro convite ao
leitor para um banquete de sensações visuais irmanadas num universo extremamente
erótico e, às vezes, místico, não raro como elemento representativo da fusão de gêneros
distintos. Observe-se o "flordapele" :

teus olhos
são mais azuis 112
sobre este chão de flamboaiã
o que dizer do céu
que espia e espelha
o teu desejo

ante teu dorso nu


as nuvens ficam rubras
o vento
cúmplice do fogo
atiça meus dedos entre teus pelos

no horizontal instante
entre a flor e a pele
um pássaro paira

ao som
do canto do teu corpo
alça um vôo
verticalmente azul

Essa fusão se dá pela introdução de cenas corriqueiras que evocam elementos da


prosa cotidiana para o centro do campo poético onde pulsa o desejo do eu. Mas o olhar de
Cida não é só sensualidade e observação, é também um profundo diálogo com a edificação
do sofrimento (engenharia da dor), um sofrimento que se ameniza e oportunamente se
ofusca pela luminosidade oculta de outras vozes reificadas de seus versos, aqui se
destacando a insuperável presença do sol que, em uma ou outra ocasião, divide de forma
sombreada o lugar com a escuridão, como no poema "porto". Aí, o diálogo com o espaço
vazio se dilui na relação com o tempo da modernidade e refaz a história do segundo ou a
ausência de sentido de sua própria história, porque, como bem observou Zygmunt Bauman
em Modernidade líquida (2001, p.120 ), neste caso, "os espaços vazios são antes de mais
nada, vazios de significado".
E, em assim sendo, Cida parece traduzir este diálogo como estranho e indiferente a
si mesmo, se conhece no plano da racionalidade mas não consegue preencher as lacunas de
seu próprio mapa mentalizado. Por isso, como nos diz o filósofo na mesma obra, para ela,
"o vazio do lugar está no olho de quem vê " ( p, 120) ou não vê, por distinção da natureza
humana ou social.

PERCEPÇÕES FINAIS

Desta forma a leveza da modernidade está plotada nas incongruências e 113

deformidades do próprio espaço do sujeito em sua dinâmica especializada, lugar onde a


velocidade das transformações do outro otimizam a variação do olhar sobre o mapa do
não-sujeito, donde o esvaziamento compõe a imagem da ressurreição de emoções
estilhaçadas advindas de um passado contínuo que se reflete sobre as paisagens mais fundas,
os lugares invisíveis, aqueles que só a matriz da sensação é capaz de desvendar ou de excluir
da mente. Isto é o que se percebe na produção inicial de Cida, inaugurada por Restos do
fim e a sua segunda fase, que tomo como referência inicial a publicação de Claranã.
O universo erótico da boca, das mãos, do falo, da língua, da pele, dos ouvidos, dos
peitos, recorrente em toda esta segunda parte do livro Gume, expõe-se como desejo
limítrofe do eu de tudo registrar sob o prisma de um desenho obscuro e duvidoso que,
mágico, haverá de perguntar sempre, ao outro e a si mesmo, assim como o faz a autora ao
questionar: "o que os olhos transportam para além do azul?"
Esboçamos aqui pelos caminhos das incertezas comuns ao desvendamento do
discurso poético a construção dos elementos plásticos como marca da pintura poética da
autora, processo de construção da imagem que talvez transporte a cor do espírito, seu
devaneio artesanal ou, em último caso, a imensa preocupação íntima e humanística, que de
maneira multifocal, se revela nos processos imagéticos e em toda escritura de Cida.

REFERÊNCIAS:
I. Livros da autora

PEDROSA, Cida e Martins, Eduardo. Restos do fim. Recife: Edição independente, 1982.
PEDROSA, Cida. O cavaleiro da epifania. Recife: Edição independente, 1986.
_________. Cântaro. Recife: Edição Independente, 2000.
_________. Gume. Recife, Edição independente, 2005.
_________. As filhas de Lilith. Rio de Janeiro: Caliban, 2009.
_________. Miúdos. Recife: Editora edições, 2011.
II. Textos sobre a autora
CAMAROTTI, Marco. Apresentação. In: O cavaleiro da epifania. Recife, Edição
independente, 1987.
CARRERO, Raimundo. Uma faca de dois gumes. In: Gume. Recife, Edição independente,
2005.
ESPINHARA, Francisco. Movimento de escritores independentes. Recife: Editora 114

Universitária, 2000.
GUIMARÃES, Marco Polo. Poesia de carne e vida. In: Cântaro. Recife, Edição
independente, 2000.
MELO, Alberto da Cunha. A têmpera de Cida. In: Gume. Recife, Edição independente,
2005.
MONTEIRO, Ângelo. Epifania poética. In:O cavaleiro da epifania. Recife, Edição
independente, 1987.
NOGUEIRA, Lucila. Cida Pedrosa: uma poética em ascensão. In: Gume. Recife, Edição
independente, 2005.
II. Textos teóricos

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. A. de P. Danesi. São Paulo: Martins


Fontes, 1996.
__________. A poética do espaço. Trad. A. de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. R. Gama. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. SIQUEIRA. M. M. de. São Paulo: Iluminuras, 1999.
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Trad. J. Dufilho e T. Tadeu. Belo
Horizonte:
Autêntica Editora, 2010.
SOURIAU, Etienne. Chaves da estética. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
_________,______. A correspondência das artes. São Paulo: Cultrix, 1969.
ZYGMUNT, Bauman. Modernidade líquida.Trad. Plínio Dentzien.Rio de
Janeiro:ZAHAR,2001.
CAPÍTULO IX
DE GUTENBERGS À CONCEPÇÃO DE LIVRO NA ATUALIDADE:
APONTAMENTOS SOBRE A (IN)ESTÉTICA DO LIVRO DE ARTISTA
PAZ, José Flávio da 34

115
RESUMO
O livro: suas origens e seus conceitos. A modernidade trouxe transformações que mudaram a forma de ler,
ver e pensar o mundo, o conceito de livro como suporte das memórias humanas também sofreu adaptações e
deu origens a outras formas de expressões artísticas. O livro de artista é um bom exemplo disso. Seria livro ou
seria um objeto de arte? Um diário? Um livro para colorir, recortar e colar? É realmente um livro ou a ideia
de um livro? Produzido para a massa ou para um pequeno e seleto grupo social? São inúmeras as indagações,
como muitas e infinitas são as respostas. O objeto deste ensaio e refletir sobre a história do livro a partir da
imprensa de Gutenbergs, passando pelo reconhecimento do livro como objeto de registo das memórias,
histórias e lembranças, mas destacando o grande desfalque ocorrido com a chegada das tecnologias da
informação e da comunicação até compreendamos que o conceito de livro não cabe apenas na obra impressa,
mas nas dinâmicas atuais que o livro de artista começou a produzir e provocar pós-ditadura, no século
passado. A metodologia adotada é a social-dialógica e analítica em obras de livro-objetos e teóricos que
refletem sobre a importância do livro, sua história e as suas funções sociais. Espera-se, portanto, contribuir no
processo de disseminação de valores e sentidos do livro de artista na atualidade.

Palavras-chave: História do livro. Livro e tecnologia. Livro de artista. Estética. Gutenbergs,

A ESCRITA E O LIVRO: BREVÍSSIMA HISTÓRIA E IMPORTÂNCIANA HISTÓRIA DA


HUMANIDADE

A escrita, o processo de contagem e a arte impressa têm suas origens ainda na pré-
história ocasião que o homem começou a se preocupar com os registros diversos utilizando-
se de pedras, da argila e outros recursos vegetais e animais, sendo estes os primeiros
suportes utilizados, objetivando esclarecimentos as gerações futuras, pelo menos é nisto que
acreditam os pesquisadores.
Inicialmente, um texto pictográfico nos foi apresentado, ocasião que a escrita se
utilizava apenas das imagens para comunicar:

(...) não representava a linguagem verbal. Representava antes objetos,


figuras e ideias, independentemente da lógica temporal do discurso.
(...) Os pictogramas não tinham uma relação motivada com a
linguagem fonética. Eles eram esboços da realidade, permitindo
reconhecer o que está representado. (Maduro, 2020)

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários-PPGEL, Universidade do estado de Mato Grosso-


34

UNEAMT, flavio.paz@unemat.br.
Depois, surgiu à escrita ideográfica que, como o nome sugere, sustentado na
representação da ideia por meio de imagens e símbolos, ou seja, um sistema de registro
escrito que nos foi apresentado por meio ―de ideogramas como símbolos gráficos ou
desenhos (signos pictóricos), formando caracteres separados e representando objetos, ideias
ou palavras completas, associados aos sons com tais objetos ou ideias são nomeados no
respectivo idioma.‖ (LUCAS et al, 2017, p. 3). 116

E em seguida, a escrita alfabética e fonológica como a temos na atualidade,


obviamente melhorada e aperfeiçoada séculos após séculos por culturas e civilizações
inumeráveis. Pesquisas apontam a sociedade fenícia como os inventores desse sistema, que
maneira reduzida apresentara os caracteres representativos do

(...) som consonantal, característica das línguas semíticas encontrada


hoje na escrita árabe e hebraica. Em seguida, os gregos adaptaram o
sistema de escrita fenícia agregando as vogais e criando assim a escrita
alfabética. (...)
Posteriormente, a escrita grega foi adaptada pelos romanos,
constituindo-se o sistema alfabético greco-romano, que deu origem ao
nosso alfabeto. Esse sistema representa o menor inventário de
símbolos que permite a maior possibilidade combinatória de
caracteres, isto é, representação dos sons da fala em unidades menores
que a sílaba. (MERCADO, 2020, p. 2)

ARTE, SUPORTE E LINGUAGEM

Como todo produto ou serviço resultante de um esforço físico ou intelectual, a


escrita passou a se constituir em misto resultante da arte de escrever e de se apresentar ao
mundo, em especial e, inicialmente uma ação manual que se utilizara de carvão, o fruto do
urucuzeiro, entre outras da família das bixáceas, além de vários recursos que pudessem
registrar, por meio da escrita, sendo atualmente, com caneta, lápis, gizes, mas sempre com
as mãos.
Todavia, o cenário mudaria com a chegada das tecnologias da informação e da
comunicação que ―facilitariam‖ a reprodução e, portanto, a socialização dos saberes, da
informação e do conhecimento.
De certo modo, as escritas manuais, como a tinhamos, pedeu em estilo e
subjetividade, uma vez que estudiosas afirmam cada pessoa tem uma maneira única,
particular e diferente, não sendo possível encontrar dois seres humanos com as mesmas
perspectivas de escrita entre si.
Logo,

A escrita seja ela qual for sempre foi uma maneira de representar a
memória coletiva, religiosa, mágica, científica, política, artística e 117
cultural. A invenção do livro, e, sobretudo da imprensa são grandes
marcos da história da humanidade, depois, e claro da própria
invenção da escrita. Esta foi passando do domínio de poucas pessoas
para o do público em geral e seu consumo é mais significativo na
forma de leitura do que na produção de textos. Os jornais e revistas
são hoje tão comuns quanto à comida. Para a maioria das pessoas,
além de aprender a andar e a falar, é comum aprender a ler e a
escrever (CAGLIARI, 1989, p. 112).

Desse modo, o livro, enquanto arte impressa, surgiu para o registro das nossas
memórias, abrigar ideias possibilitando (re)visitar e sequenciar o estado da arte que tal
fenômeno ou situação se encontra e como podemos projetá-la e aperfeiçoá-la positiva e/ou
negativamente; apreender, socializar e transcender o conhecimento que também é
sinônimo de poder em uma sociedade capitalista como a que vivemos, além de ampliar a
imaginação e conduzir a um pensamento crítico e criativo.
Pode-se afirmar que, no Ocidente, em especial, após o desenvolvimento da
imprensa aconteceu a maior revolução que se possa imaginar. E não poderia se diferente se
considerarmos que a imprensa de Gutenbergs (1439) surgiu em meio a grandes revoluções,
sendo objeto de desejo de muitos, mas de custo altíssimo e acessível apenas pela elite da
época. Sua confecção envolvia outros profissionais, como joalheiros, mecânicos, químicos e
outros, não bastando somente produzir um livro pelo livro, era preciso acrescentar mais
valores que o próprio conteúdo, tornando-o, em muitas ocasiões, inclusive na atualidade,
um instrumento artístico.
Desse período renascentista (era de Gutenbergs) até o fim do século XIX quase nada
de novo acontece à história e ao modo de se confeccionar um livro, seja no seu formato,
forma de coloração, letras, técnicas de produção, designers gráficos, enfim, nada.
Este cenário mudaria radicalmente, como dito anteriormente, na primeira metade
do século XX, a partir do momento que o Electronic Numerical Integrator And Computer -
ENIAC, o primeiro computador do mundo foi mostrado ao mundo em 14 de fevereiro de
1946 e com o surgimentos de profissionais como o design gráfico, antecedidos pelos
tipógrafos, letristas e retocadores, também denominados de ―artistas comerciais‖, oriundos
das exigências da Revolução Industrial.
Todavia, acredita-se que existam equívocos nesta história, pois, para o designer
gráfico norte-americano, professor, historiador e autor de livros sobre o tema, Philip Baxter
Meggs, ―… a crítica de design e a (investigação da) sua história já existe desde o século
XVI‖. O que significa dizer que, 118

Desde a pré-história, as pessoas têm procurado maneiras de


representar visualmente ideias e conceitos, guardar conhecimento
graficamente, e dar ordem e clareza à informação. Ao longo dos anos
essas necessidades têm sido supridas por escribas, impressores e
artistas. Não foi até 1922, quando o célebre Designer de livros
William Addison Dwiggins cunhou o termo "Designer gráfico" para
descrever as actividades de um indivíduo que traz ordem estrutural e
forma à comunicação impressa, que uma profissão emergente recebeu
um nome apropriado. No entanto, o Designer gráfico
contemporâneo é herdeiro de uma ancestralidade célebre. (SKAZIS,
2020)

Frente ao exposto, o livro no seu formato inicial e seguido por mais de cinco
séculos a forma física e engessado deu origem a outros formatos, incluindo os e-books, em
especial, nas últimas décadas do século XX aos dias atuais e, dentre estes, aliados aos
movimentos artístico-literários e da promoção da leitura e da escrita, bem como do
incentivo à leitura e as artes pós-ditadura militar – 01 de abril de 1964 a 15 de março de
1985, o conceito e a missão do livro impresso parece ter chegado ao fim.
Sobre este assunto, os escritores Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, no
livro/entrevista, intitulado ―Todos os livros que não lemos‖ refletem e respondem quando
indagados sobre as possíveis causa do (não) desaparecimento do livro impresso na
sociedade e a sua importância na memória e nas outras artes literárias ou não.
Ubiratan Brasil, entrevistando Umberto Eco, em 13 de março de 2010, para o
Jornal Estadão, na apresentação do entrevistado afirma que ―(...) o livro é uma invenção
consolidada, a ponto de as revoluções tecnológicas, anunciadas ou temidas, não terem
como detê-las.‖. Na sequência pergunta: ―O livro não está condenado, como apregoam os
adoradores das novas tecnologias?‖ Tendo como resposta de Eco:

(...) O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma


tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda
jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído. O livro ainda
é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos
chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos.
Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia
afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de
ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que
sobrevivem há mais de cinco séculos? Conversei recentemente com o
diretor da Biblioteca Nacional de Paris, que me disse ter escaneado
praticamente todo o seu acervo, mas manteve o original em papel, 119
como medida de segurança. (BRASIL, 2010).

Assim, podemos afirmar que o livro cumpriu e ainda cumpre a sua missão,
delegando aos novos tempos, cenários e técnicas a possibilidade de se ver, tatear, imaginar
e criar livros, independentemente do seu formato e fins.

O LIVRO COMO ARTE E O LIVRO DE ARTISTA

Nesse contexto e frente à repressão vivida pelo movimento ditatorial militar


porque passava o Brasil na segunda metade do século passado e sustentado nas teóricas
artístico-literário no início do século XX, surge um movimento denominado de Livro de
Artista, que tinha como base o formato livro, mas era e, ainda o é, confeccionado por
artistas envolvidos com aa artes verbi-visuais.

Durante esse período inicial da produção de livros pelos artistas,


o objetivo era subverter o sistema do mercado de arte imposto pelos
museus e galerias, permitindo que o trabalho artístico atingisse um
público mais amplo com valores acessíveis. O que possibilitou esse
alcance foi a opção de utilizar materiais de baixo custo e de
equipamentos tecnológicos acessíveis, como a reprodução
eletrofotográfica ou xerográfica (quando se referindo à empresa
Xerox), que permitia a fotocópia de documentos em papel comum.
A arte, mais do que nunca, na contemporaneidade tem se
mostrado como uma forma de revolução e de resistência a qualquer
sistema em desacordo com a liberdade de expressão. Em sua
exposição Raízes (2018-2019) ocorrida na Oca do Parque Ibirapuera,
em São Paulo, o artista chinês Ai Wei Wei exibe a frase adesivada na
parede: Tudo é arte. Tudo é política. (ROSENBERGER, 2020, p. 334)

Na concepção do inglês, historiador de arte e bibliotecário-chefe da Andrew W.


Mellon da Frick Art Reference Library, de Nova York, Stephen Bury:
Livros de artista são livros ou objetos em forma de livro; sobre os
quais, na aparência, final o artista tem um grande controle. O livro é
entendido nele mesmo como uma obra de arte.
Estes não são livros com reproduções de obras de artistas, ou apenas
um texto ilustrado por um artista.
Na prática, esta definição quebra-se quando o artista a desafia,
puxando o formato livro em direções inesperadas. (BURY, 1995)
120
Nesse sentido, o formato livro é reinventado, dando ênfase ao artístico do objeto
livro de artista. A intenção obviamente não é a substituição, mas encontrar um suporte para
o armazenamento da arte, visto que há interesse (ou não) na manutenção do formato livro,
embora se reveja o seu designer a cada nova edição que, dado o seu caráter, muitas vezes
acabam por ser produzido apenas um exemplar.
Logo, o livro de artista como produto da arte está classificado como uma prática
contemporânea, portanto vanguardista e inovador, em especial por apresentar expressões e
traços livres, também, por dialogar e transitar com/no formato livro tradicional.
E, como toda subjetividade das artes unindo-se ao poder criativo do seu autor ou
da sua autora, o livro de artista narra histórias e constrói lembranças e memórias,
utilizando-se dos mais diversos recursos vegetais, minerais e animais, como no caso do Livro
de Carne (1979) de Arthur Barrio, artista plástico luso-brasileiro que vive no Rio de Janeiro
desde 1955, cujas concepções de arte perpassam pela arte interativa e conceptual,
performance, et cetera.
Em síntese, a

leitura deste livro é feita a partir do corte/ação da faca do açougueiro


na carne com o consequente seccionamento das fibras;/fissuras, etc.,
etc., – assim como as diferentes tonalidades e colorações. Para terminar
é necessário não esquecer das temperaturas, do contato sensorial (dos
dedos), dos problemas sociais etc. e etc .................................................
Boa leitura ......................... (BARRIO in: CANONGIA (org.), 2002, p.
56)

O livro de artista tem muito mais a ver com a expressão do artista que com a
preocupação entre o dizer e o não dito. Nas palavras de Marcia Ronsenberger: ―Gosto de
pensar no livro como uma plataforma de experimentação artístico-sensorial sem limites,
que dialoga com o corpo do artista e abre uma infinitude de possibilidades dialógicas com
sua poética.‖ (ROSENBERGER in: PAZ, 2020. p. 63)
Na produção do livro de artista, o autor ou a autora, constitui um verdadeiro faz-
tudo. Assume-se as funções poeta, escritor, editor, ilustrador, encadernador, distribuidor,
vendedor e muitas outras inerentes aos percursos de editoração e comercialização da obra,
pensamento decorrente dos movimentos artísticos e literários das décadas de 50, 60 e 70
do século passado que vendo as artes e a cultura para poucos privilegiados, abraçaram as
causas de acesso ao universo artístico por todos, indistintamente das classes que
pertencessem.
Em suma, como defendeu o poeta visual concretista e artista mexicano, Ulises 121

Carrión, referência mundial para os estudiosos e artistas do livro de artista, autor da obra
―A nova arte de fazer livros‖, que afirma, em paráfrase: o escritor escreve textos e o artista
faz livros.
Nesse sentido, compete mais uma vez ao leitor interpretar e atribuir sentido as
leituras e as produções de livros de artistas, derrubando posicionamento estéticos,
caracterizando-se muito mais pelo conceito/movimento, uma vez que o artista quer
subverter as intenções das artes clássicas, pois ela está muito além dos espaços e galerias,
além das curadorias.
Assim, faz opção pelo contato direto com o público, afinal, a arte só faz sentido se
houver um apreciador, neste caso, um leitor que terá a oportunidade de manusear o livro-
objeto e folheará menos, além de não mais se prender as palavras ou mesmo as figuras,
pois no livro de artista não há apenas esses elementos.

REFERÊNCIA
BRASIL, Ubiratan. ‗Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 século‘, diz Umberto Eco. In: Jornal
Estadão: Caderno Cultura, de 13 de março de 2010. Disponível em:
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos-diz-
umberto-eco,523700. Acesso em 11 dez 2020;
BURY, Stephen. Artists' Books: The Book As a Work of Art, 1963–1995. Bury: Scolar Press,
1995;
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Linguística, 1 ed., São Paulo: Scipione,1989
CANONGIA, Ligia (Org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Modo, 2002;
ECO, Humberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Tradução de
André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010;
LUCAS, Alan; NOGUEIRA, Daniela; SILVA, Jaine; BRAZ, Michele; JERUSA, Nara. A escrita
ideográfica. Campanha: UEMG, 2017;
MADURO, Daniela. Escrita pictográfica: um texto feito de imagens. In: DigLitWeb: Digital
Literature Web. Disponível em
http://www1.ci.uc.pt/diglit/DigLitWebCdeCodiceeComputadorEnsaio27.html#:~:text=A%
20escrita%20pictogr%C3%A1fica%20n%C3%A3o%20representava,da%20l%C3%B3gica
%20temporal%20do%20discurso.&text=Os%20pictogramas%20n%C3%A3o%20tinham
%20uma,reconhecer%20o%20que%20est%C3%A1%20representado. Acesso em 23 122

dez.2020;
MERCADO, Luis Paulo Leopoldo. A História da Escrita. In: Disponível em
http://webeduc.mec.gov.br/midiaseducacao/material/impresso/imp_basico/e1_assuntos_a1-
4.html. Acesso em 26 dez 2020
PAZ, José Flávio da. Entrevista com a autora Marcia Rosenberger. In. Revista Conexão
Literatura, São Paulo, nº 65, p. 61-68, nov.2020.
ROSENBERGER, Marcia. Histórias para ouvir antes de dormir: a poética nos livros de
artistas no Brasil. In: VILALVA, Walnice (Coord.); PAZ, José; MATA, Josimeire; FERREIRA,
Lucinea; GONZÁLEZ, Néstor (Orgs.). Literatura, cultura e subjetividade. 1ª ed. Joinville:
Clube de Autores Publicações S/A, 2020;
SKAZIS, Crazy. História do design gráfico. Disponível em:
http://disparitybydesigners.blogspot.com/p/historia-do-design-grafico.html. Acesso em 30
dez 2020.
CAPÍTULO X
RELAÇÃO ÉTNICO - RACIAL NA PRATICA DOCENTE: UM ESTUDO
COMPARATIVO ENTRE ESCOLAS MUNICIPAL E ESTADUAL EM MACAPÁ-AP
ESPÍRITO SANTO, Maria Aurea dos Santos 35

123
RESUMO
Este trabalho científico apresenta-se com o título relação étnico - racial na pratica docente: um estudo
comparativo entre escolas municipal e estadual em Macapá-Ap. Assim foi necessário estabelecer objetivo a
alcançar quando se sistematizou Analisar a Relação Étnico - Racial na Pratica Docente realizando um estudo
comparativo entre a Escola Estadual Brasil Novo e a Escola Municipal Lucia Neves Deniur na Zona Norte de
Macapá/Ap. Como metodologia da investigação científica se fixou com enfoque qualitativo e quantitativo, de
desenho não experimental, de nível exploratória descritiva, na modalidade de estudo comparativo, onde
utilizou-se de entrevista e questionário como instrumentos de coleta de dados. A pesquisa permitiu constatar o
quanto é superficial o trabalho nas escolas em evidencia acerca da educação das relações étnico-raciais nas
escolas. Mesmo com as leis determinando e as diretrizes orientando tal trabalho nas escolas há anos, na
atualidade se faz muito pouco a esse respeito e quando se faz é de maneira isolada. No entanto, ao realizar a
comparação entre as instituições escolares, a Escola municipal Lúcia Neves Deniur apresenta-se com maior
feito no trabalho desenvolvido na sala de aula, mas que precisa de muito mais para o respeito as diferenças no
que tange aos afro-brasileiros no País.

Palavras-chave: Escola. Educação. Relação. Étnico. Racial. Docentes. Discentes.

INTRODUÇÃO

Atualmente, a relação étnico racial na prática docente, vem ganhando novas


interpretações. Por muito tempo o professor passou por um processo de assimilação de
uma ideologia superior, imposta no ambiente escolar. Hoje com a criação das Leis
10,639/03 e da 11.645/08, esta realidade visa desativar o equívoco, que por muito tempo
deturpou as culturas de origem indígena e africana, analisar os esquemas de violência que
perpassam a inter-relação entre indivíduos de diferentes grupos, visa também vivenciar a
cultura como realidade dialética que passam por constantes mudanças, como um jogo social
contendo em seu bojo as contradições, desafios e processo de reinterpretação de si mesma.
Em face ao título sobre as relações étnico-raciais na escola, direcionou-se então a
investigação sobre o comparativo entre a Escola Estadual Brasil Novo e a Escola Municipal
Lucia Neves Deniur, ambas em Macapá no Estado do Amapá, sendo a primeira da Rede
Estadual de Ensino e a segunda do Sistema Municipal de Educação de Macapá, onde se

35Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Amapá (2007). É Especialista pela Faculdade Atual-Ap.em
Gestão do Trabalho Pedagógico: Supervisão Escolar e Orientação Educacional (2010) e Lato Sensu em Educação de Jovens
e Adultos na Diversidade e Inclusão Social pelo IFAP. (2016). É Mestra em Ciências da Educação pela UNINTER- PY. Além
de desenvolver suas atividades como poetisa e cordelista. CV lattes: http://lattes.cnpq.br/0671553050130644.
pudesse ampliar o conhecimento da experiência dessa realidade, quando se esbarrou na
vivência dos coordenadores pedagógicos, professores e alunos do Ensino fundamental, no
ensejo de verificação da ocorrência das relações étnico-raciais, o que vem sendo exigido
legalmente por vários e longos anos na educação brasileira.
O presente trabalho é um resumo da tese de Mestrado em Ciência da Educação,
cursado por Maria Aurea dos Santos do Espírito Santo no Paraguai entre julho de 2017 a 124

janeiro de 2019. A mesma, baseou-se nas seguintes questões: Concepção de relação Étnico
racial nas escolas; Aplicabilidade das Diretrizes Curriculares Nacional, estadual e municipal
para a relação Étnico racial nas escolas; A efetivação da relação Étnico racial nas escolas
nos Componentes Curriculares; Quais mecanismos utilizados para garantir relação Étnico
racial nas escolas e finalmente como acontece a relação Étnico racial no convívio escolar
entre docente e discentes?
De acordo com o exposto, acredita-se piamente, que a mudança nessas dimensões
pode estar ligada ao investimento com afinco, na formação profissional dos educadores,
que ao exercerem seu profissionalismo podem cambiar o espaço escolar em um ambiente
de socialização da diversidade.
Tarefa árdua para os professionais de educação, que em sua formação precisam ter
em mente que não basta só o domínio do conteúdo. A educação vai bem além, é um
processo de transformação, valores sócio - culturais capazes de mudar o mundo e para
tanto, é necessário que estes estejam antenados com as modificações, com a aceitação
étnico racial e a busca de estratégias inovadoras. Ações afirmativas que proporcione a
comunidade escolar conhecer as diferenças.

MARCO TEÓRICO

O que dizer sobre relações étnico - raciais? Antes de tudo é preciso desenvolver
estes conceitos, a fim de entender, que a compreensão ao longo do tempo está sendo
construída paulatinamente.
Segundo o professor Munanga a partir do sec. XV, quando os grandes
navegadores, passaram a ter contato com diferentes pessoas, entre elas os aborígenos da
Oceania, os africanos, os ameríndios, com diferenças morfológicas e culturais, aos quais lhes
foram imposto a convecção ao Cristianismo, questão está resolvida pelo campo da teologia
que tinha o monopólio do conhecimento.
Os iluministas contestavam e mostravam o caminho com racionalidade (razão),
onde apontam os povos diferentes como raças, enfocando mais a cor da pele.
Com o avanço das ciências, além da cor da pele, apresentaram outras formas de
classificá-los, pelo formato do crânio, elementos químicos, marcadores genéticos que
poderiam ser encontrados em vários grupos. A maioria dos autores afirma que raça é um
termo não científico que pode ter significado biológico quando se trata de um ser 125

homogêneo, estritamente puro.


Mas a partir do século XX, descobriam que a classificação da humanidade não era
operante. Algumas condições não eram encontradas em seres humanos, o genoma humano
é composto de 25 mil gens, as diferenças mais aparentes como textura do cabelo, formato
do nariz, cor da pele... São determinados por um grupo insignificantes de genes, sendo que
as diferenças em negros e um branco a 0,005% do genoma humano.
Munanga ressalta que os antropólogos e geneticistas concordam que raças humanas
não existem, por não haver uma diferenciação biológica entre negros, índios e brancos. O
que ocorre é a diferença de fenótipos. E fenótipos, não define distinção de raça. Logo,
pode-se afirmar que só existe uma raça entre nós homo sapiens, a raça humana. Sendo
impossível dizer que existe raça branca, negra e indígena.
O conceito de raça deixa de ser biológico e passa a ser político ideológico devido
cada país ter sua própria concepção, norte americanos, indianos, mestiços, brasileiros...
As Diretrizes Curriculares Nacional das Relações Étnico-Raciais para o ensino de
História e cultura Afro- Brasileira e Africana preconizam que a palavra ―raça‖ será tomada
numa concepção sócio-histórica, política e cultural e para não ser usada com conotação
racista dependerá unicamente da circunstância de como será empregada.
Trata-se de um termo que pode ser usado como quiser, quer seja se referindo aos
aspectos físicos (aparência herdada e transmitida hereditariamente), demonstrando a
dicotomia através das diferenças estéticas, ou ainda por uma perspectiva política, utilizada
pelos os movimentos negros e recentemente indígenas, nas lutas contra todas as formas
pejorativas na sociedade brasileira. Hoje, a realidade da terminologia ―Raça‖ pode-se dizer
que assume uma concepção histórica, política e social, não biológica.
Enquanto que o termo ―etnia‖, trata-se de uma relação social entre indivíduos que
se reconhecem possuidores de uma origem comum. É o reconhecimento, o pertencimento
como parte integrante de um grupo. Deriva do grego ―etno‖ que significa povo, representa
a consciência de um grupo de pessoas que se diferencia de outros. Tal nomenclatura pode
ser empregada de forma ampla e restrita, tornando – se de grande destaque na atualidade
por meio das literaturas relacionadas à temática.
Logo, o termo ―Etnia‖ implica em posicionamento, pertencimento,
autodenominação de indivíduos, numa perspectiva que garante a seguinte compreensão:
Envolvidos que fomentam uma determinada identidade étnica a fim de colocarem-se num
jogo de força, conquista social, política, econômica, legais, etc. Ou seja, compreende-se 126

num caráter dinâmico e processual, não sendo definido, nem estático mais dependendo da
inter-relação entre os envolvidos. Um processo simbólico que adquire valores, conteúdos
significativos e compartilhados a partir das especificidades e vivencia do grupo.
Agora, que já se conceituou os termos ―raça‖ e ―etnia‖, podemos partir para a
concepção da nomenclatura ―Relação Étnico-racial‖. Para Nilma Lino Gomes no site Cor da
Cultura, as relações étnico raciais,

São relações imersas na alteridade e construídas historicamente


nos contextos de poder e das hierarquias raciais brasileiras, nos
quais a raça opera como forma de classificação social,
demarcação de diferenças e interpretação política e identitária.
Trata-se, portanto, de relações construídas no processo histórico,
social, político, econômico e cultural. (GOMES, 2011)

No decorrer da pesquisa, encontramos vários conceitos de etnia. Cashmore adverte


que: ―...um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da
população, mas uma agregação cônscia de pessoas unidas ou proximamente relacionadas
por experiências compartilhadas‖ (CASHMORE, 2000, p. 196). Bobbio, enfatiza que ―a
etnia se refere a um grupo social cuja, identidade se define pela comunidade de língua,
cultura, tradições monumentos históricos e territórios‖ (BOBBIO, 1992, p.449).
Outro aspecto é entender o termo ―etnia‖, adotado nos meios acadêmicos, pelo
poder político e pela sociedade está relacionada a dimensão político-cultural, um povo em
detrimento do outro gerando assim, uma trégua mundial, tal realidade fora vivenciado
durante a segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha, através de seu ditador Hitler, em
seu apogeu de dominação política e cultural, acabou penalizando vários grupos sociais e
étnicos
Tais práticas contribuem de forma significativa para a formação ativa de uma
educação multirracial e pluriétnica. Multirracial por tratar das muitas heranças, legados de
várias gerações e pluriétnica, devido a mestiçagem entre diferentes grupos, em maior ou
menos grau.
Todos os dados até aqui apresentados, estão diretamente ligado ao acesso de uma
educação inclusiva, destacando a relevância na participação do educador, este por sua vez,
precisa ter uma subjetividade moldada pelas concepções de uma educação voltada à
aprendizagem que vise, trabalhar o aluno no contexto escolar de forma integral,
considerando suas peculiaridades enquanto cidadão pluricultural.
As facetas são mais visíveis no campo racial, envolvendo os grupos étnico – raciais, 127

os mais prejudicados são os indígenas e os negros. Motivo pelo qual, torna-se necessário
que o ideário educacional integre a diversidade cultural brasileira em seu programa, como
acervo de valores, postura e ações afirmativas para contemplar as especificidades de grupos
marginalizados.

No início do século XXI, quando o Brasil revela avanços na


implementação da democracia e na superação das desigualdades
sociais e raciais, é também um dever democrático da educação
escolar e das instituições públicas e privadas de ensino a
execução de ações, projetos, práticas, novos desenhos
curriculares e novas posturas pedagógicas que atendam ao
preceito legal da educação como um direito social e incluam
nesse o direito à diferença. (GOMES, 2001).

De acordo com a colocação de Gomes, cabe ressaltar a urgência de uma nova


postura do educador frente a concepção educacional vigente, visando em sua práxis uma
nova abordagem, voltada às ações afirmativas.
Apesar do Brasil, ser um país multirracial e pluriétnico, percebe-se com clareza a
supremacia de um grupo sobre os demais, impondo uma
política de superioridade, como enfrentar e desmitificar essa situação dentro do
ambiente educacional?
A escola é o cenário perfeito para se trabalhar as relações étnico - raciais, por se
tratar de um ambiente ―de todos‖, lugar que agrega diversidades, com as mais variados
divergências, e que para os profissionais de educação esse campo tem se tornado palco de
varias reflexões.
A contextualização da relação étnico racial na prática docente, torna-se um grande
instrumento de combate às práticas pejorativas mais infames que é o racismo, preconceito e
discriminação. O educador de posse desse conhecimento certamente fará diferença em sala
de aula, ou seja, na vida de seu alunado.
A Lei 10.639/03, referência ao povo negro, torna-se como principal atuante na
formação da população brasileira. Ela veio para formar novos cidadãos, fomentar a
formação de professores, aquisição de novas ferramentas de trabalho, reestruturar
conteúdos programáticos. No entanto, tal dispositivo legal, não garante sua consolidação,
sua realização (SOUSA. 2013.pag.36), dando a entender que alguém precisa executar.
Mais tarde em 2008, percebe-se que a população indígena, também através da Lei 128

11.645/08, vem garantindo sua legitimidade, reconhecendo que embora em diferentes


proporções, índios e negros vivenciam situações-problemas de mesma natureza,
combatendo a discriminação, preconceito e racismo. Suas reivindicações promovem o
respeito pelas diferentes culturas, produzindo novos sentidos e valorização.
É na escola que as diferenças se encontram e debatem sobre conhecimentos,
procedimentos pedagógicos, relações sociais, valores e o processo identitário de cada
indivíduo.
O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro brasileira e africana, é
responsável por implementar a institucionalização da educação das relações étnico-racial
sobre a Resolução CNE/CP 01/2004 e do parecer CNE/CP 03/2004. O PDE Plano de
Desenvolvimento da Educação enxerga a educação como um todo e contempla um
conjunto de ações voltadas para garantir o acesso, a qualidade e a equidade da educação
brasileira em todas as modalidades de ensino. Em seu bojo, uma política voltada para a
construção de uma escola plural, democrática, de qualidade que combata toda forma
pejorativa, aspirando uma sociedade nova, onde a diferença é uma riqueza e não pretexto
pra justificar as desigualdades. (SEPPIR, 2009)
As Diretrizes Curriculares Nacionais são um conjunto de definições doutrinárias
sobre princípios, fundamentos e procedimentos na Educação Básica que orientam as
escolas na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas
pedagógicas, elas podem atuar a nível Federal, Estadual ou ainda, Municipal.
Através da criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (SECAD), em 2004, o Ministério da Educação enfrenta a injustiça nos sistemas
educacionais do país, forjando um novo desenvolvimento com inclusão, norteando para a
educação decisões inovadoras.
Os três períodos da história brasileira, a saber Brasil Colônia, Império e República
foram os responsáveis pelo descaso com a população negra e indígena. Com a eminencia
de reparar esse erro, somente em março de 2003, o governo federal sancionou, a Lei nº
10.639/03-MEC, que altera a LDB (Lei Diretrizes e Bases) e estabelece as Diretrizes
Curriculares para a implementação da mesma. Esta Lei, instituiu a obrigatoriedade do
ensino da História da África e dos africanos no currículo escolar do ensino fundamental e
médio. Essa decisão resgata historicamente a contribuição dos negros na construção e
formação da sociedade brasileira. 129

Do mesmo modo, fora criada, em 21 de março de 2003, a Seppir (Secretaria


Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) que instituiu a Política Nacional de
Promoção da Igualdade Racial.
Em 2006, também fora formulada as Orientações e Ações para a Educação das
Relações Étnico – Racial, é uma coletânea de aproximadamente 150 colaboradores
estudiosos, especialmente educadores. Foram formados grupos de trabalhos em diferentes
Estados brasileiros, reuniões entre 2004 a 2005, passando por revisões e sistematizações dos
conteúdos.
O Governo Estadual, em especial o Governo do Amapá baseando-se na Lei Maior
que reges os ditames educacional, também tem Diretrizes Curriculares da Educação Básica
que traz uma concepção pluralista e humanística em que se garanta espaço de
desenvolvimento e habilidades cognitivas e relacionais, com respeito à cultura e a
diversidade dos povos que partilham significados e sentidos de experiências e práticas de
valores essenciais à convivência humana.
Não dá para colocar professores como inimigos das reformas. Neste contexto é
importante a construção de um Plano Curricular que provoque o senso crítico na busca da
compreensão da realidade em que o educando está inserido, auxiliando-o para a
construção de sua cidadania.
O Município de Macapá, também tem suas normas para a educação das Relações
Étnico-raciais para o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana da educação
básica do sistema municipal de ensino.
O Conselho Municipal de Educação do Município de Macapá – CMEM, no uso de
suas atribuições legais, sistematiza o parecer Processo nº 013/2012 – CMEM e Parecer nº
03 /2012 – CPLN/CMEM, em função da necessária regulamentação da alteração ocorrida
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96, referente ao atendimento
da aplicabilidade da Lei nº 10.639/03, assim como da Lei nº 11.645/08, no que tange a
obrigatoriedade da Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro–brasileira, Africana e Indígenas a serem cumpridas pelas instituições de ensino
públicas e privadas que atuam nas etapas e modalidades da Educação Básica do Sistema
Municipal de Ensino de Macapá, no Estado do Amapá. Tal efetivação foi visualizada na
busca do cumprimento do estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5, I, Art. 210,
Art. 206,I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79B na Lei
9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade 130

de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e


culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da
cultura nacional a todos brasileiros. A segurança legal está ainda vinculada na Lei Estadual
nº 1.196/08 – AP e Lei Municipal n° 1.696/09 – PMM, resgatando fundamentação ainda no
Parecer nº 003/04 – CNE/CP, Resolução nº 101/04 – CNE, observando os preceitos da
Resolução nº 075/09 do Conselho Estadual de Educação do Amapá.
Para que esses educadores tenham conteúdos significativos e aportes teóricos que os
auxiliem na formação de um conhecimento autônomo a respeito do tema, é preciso antes
de tudo, desconstruir o aprendizado constituído naturalmente durante esses longos anos,
começando pela valorização da diversidade, partindo da aceitação individual e
posteriormente, coletiva. Só assim, seja possível encarar os desafios, lutando por políticas
afirmativas e atuando com práticas que possam tornar um currículo dinâmico e construtivo.
Quanto ao currículo, sabemos que sempre fora elaborado segundo a política
eurocêntrica, compete também ao educador incluir ou excluir aspectos que tenham como
propósito formação de criança ou do jovem, para a eficácia da educação. Ivaldo Sousa
ressalta a importância dos PCNS, estarem atrelados ao currículo no sentido de possibilizar o
desenvolvimento integral dos alunos, oportunizando seu ingresso na vida social, com
preparo emocional, cognitivo e físico. (SOUSA. Pag.58,2013)
É relevante que nesse currículo esteja inclusa a história e a cultura dos afro-
brasileiros e indígenas, daí o motivo pelo qual o educador deve assegurar uma boa
formação baseada nesse novo olhar.
A formação é importante, desde que o educador saiba dela fazer uso, sabemos que
a escola, é local mais desafiador, por receber a maior diversidade e por ser o local de
maiores índices de discriminação. Oliveira, traz essa afirmativa em seu artigo intitulado
―Identidade, intolerância e as diferenças no espaço escolar: questões para debate‖.

A escola é o espaço onde se encontra a maior diversidade


cultural e também é o local mais discriminador. Tanto é assim
que existem escolas para ricos e pobres, de boa e má qualidade,
respectivamente. Por isso trabalhar as diferenças é um desafio
para o professor, por ele ser o mediador do conhecimento, ou
melhor, um facilitador do processo ensino - aprendizagem. A
escola em que ele foi formado e na qual trabalha é reprodutora
do conhecimento da classe dominante, classe esta, que dita as
regras e determina o que deve ser transmitido aos alunos. Mas,
se o professor for detentor de um saber crítico, poderá 131
questionar esses valores e saberá extrair desse conhecimento o
que ele tem de valor universal. (OLIVEIRA, 2001, p. 67)

Grandes são os desafios encontrados pelos educadores, porém se atentarem para


adquirir saber crítico, certamente terá embasamento para transformar a educação
dominante em uma prática social que contribua direta e intencionalmente no processo de
construção histórica das pessoas.
No Brasil, após surgimento das Leis que amparam a educação das relações étnico
raciais, a saber a 10.639/03 que se refere aos negros e da 11.645/08 que se refere aos
indígenas. Que em seus ditames regem uma obrigatoriedade nos espaços escolares. No
entanto para que as mesmas venham ser consolidadas faz-se necessário incorporá-las na
formação dos educadores. A prática pedagógica é o liame que irá definir se as escolas estão
priorizando a aplicabilidade legítima.
Junto com essa percepção, são necessários suportes teóricos - metodológico como
afirma a Resolução nº1 de 17/06/2004 em seu artigo 3º, observa-se que nem todas as
escolas recebem tais materiais. Logo, são poucos professores que se empenham em
apropriar-se de tais dispositivos.
Pode-se afirmar que a partir do surgimento das Leis, houve planejamento em todas
as esferas educacionais, para que as mesmas fossem implementadas. Entretanto, resta saber
o verdadeiro panorama atual, se as escolas estão se adequando a essas novas demandas e se
os professores têm recebido devida formação?
E é justamente aqui que entra o papel do professor, em discutir as estruturas
tradicionais para ressignificar o ato de aprender, despertando a mente para a aceitação de si
mesmo e do outro, através de representatividades
Também sabe-se, que são vários os fatores que interferem na ação do ensino-
aprendizagem, seja na metodologia pedagógica equivocada ou ultrapassada, na falta de
recursos didáticos e tecnológicos, espaço físico inadequado... Além disso, temos a carga
emocional que se materializam na desestrutura familiar, que acabam apontando o aluno
como detentores de situação problemas, desconsiderando os fatores afetivo.(ARRUDA, pag.
63 a 65, 2006)
Segundo a Constituição brasileira, todos são iguais perante a Lei, embora sejamos
diferentes na cor da pele, religiosidade, gênero, etnias, não nos dá o direito de
reafirmarmos as práticas pejorativas, impedindo que tenhamos ou construamos num
processo dialético, uma identidade subjetivamente coerente, crítica e criativa. 132

O professor deve obter uma visão holística contemporânea, desafiadora, confrontar


ideias, construir conceitos, ressignificar sua prática e refletir como cidadão que forma
sujeitos para atuarem na vida secular. Levando sempre em consideração, o relacionamento
professor e aluno, ao se estabelecer uma boa convivência, o aprendizado se torna mais
eficiente e passa a existir um maior engajamento de ambas as partes.
Acredita-se que o educador deve ter em mente que seu processo de avaliação deve
ser uma construção social, com pessoas de diferentes contextos. Daí a importância de
atentar para a realidade do aluno e pra natureza do conteúdo que pretende avaliar e obter
suas intenções, lógica, cosmo visão própria. Que sua avaliação não seja só pra classificar,
selecionar e sim, fundamentar processos de aprendizagens nos aspectos cognitivos, afetivos
e relacionais, pois tais iniciativas culminam numa aprendizagem significativa. (MORAIS,
p.278 e 279,2017).

METODOLOGIA

O estudo aqui definido por sua natureza se organiza então no enfoque de


investigação qualitativo e quantitativo, ou seja, misto. O aspecto qualitativo se vislumbra
nas subjetividades, por meio das ações dos sujeitos investigados e o quantitativo representa-
se a explanação dos tratamentos estatísticos. Assim se faz uma ampliação dos estudos.
O desenho da investigação se dá por uma investigação não experimental, a qual
exige maneiras de se manipular elementos voltados ao comportamento humano,
fenômenos que ocorrem por sujeitos sociais, devido as relações sociais.
Trata-se inicialmente do nível da pesquisa, a qual foi definida aqui um estudo
exploratório descritivo. A análise da forma que se impõe na escola as relações étnico-raciais,
onde se tem como alvo a Escola Estadual Brasil Novo e a Escola Municipal Lucia Neves
Deniur, se trata então da modalidade de um estudo comparativo da temática entre as duas
escolas.
Uma dada investigação abrangendo todos os sujeitos aptos a serem investigados,
universo esse que compõe o estudo, os quais devem oferecer respostas consistentes e
referentes ao foco, assim, a população registrada na E. E. Brasil Novo acontece com 04
coordenadores pedagógicos, 10 professores e 250 alunos. A população registrada na
E.M.L.N. Deniur se faz com 04 coordenadores pedagógicos, 08 professores e 350 alunos.
Neste sentido a amostra investigada na Escola Estadual Brasil Novo ocorreu 133

com 01 coordenador pedagógico, com 05 professores e com 50 alunos. A amostra na


Escola Municipal Lucia Neves Deniur se fez com 01 coordenador pedagógico, 04
professores, e com 70 alunos
O instrumento utilizado para a coleta de dados na investigação foi a entrevista,
fora realizada uma organização sistemática dos dados, num procedimento de análise que
visava obter os resultados objetivos do estudo, numa formatação clara e compreensiva.

RESULTADOS E DISCURSSÃO

Quanto a concepção de relação étnico racial nas escolas:

A coordenação pedagógica da Escola estadual Brasil Novo respondeu com a


afirmativa que é o respeito que se deve ter com as diferentes culturas. Já a coordenação
pedagógica da Escola Municipal Lucia Neves Deniur afirmou que é o respeito as diferenças
trabalhando sempre a igualdade. Percebe-se então as respostas não muito completas sobre
relações étnico-raciais e sem o teor na escola nesse contexto.
Os professores da E.E. Brasil Novo enfatizaram cada um com respostas muito
pessoais que buscam no contexto escolar enfatizar as questões raciais com naturalidade por
ser importante na reeducação e valorização; que conduzem o tema sem fazer distinção de
raças dentro e fora da escola. Enquanto que os professores de E.E.L.N. Deniur dizem que
todos são iguais diante de raça e etnia; \ser importante a abordagem para que haja
compreensão da igualdade; Que a principio se deve conhecer as diferenças e um ambiente
que estimule o respeito e a diversidade.
Os 50 alunos da E.E.Brasil Novo, 30 alunos afirmaram ter conhecimento e 20
alunos responderam não ter tal conhecimento. Sobre 70 alunos da Escola Municipal Lucia
Neves Deniur, 36 alunos responderam que sim, que tem conhecimento a respeito, mas 34
alunos informaram que não sabem nada do assunto.
Gomes declara que:

... ―o conceito de etnia traz elementos importantes, porém, ao ser


adotado de maneira desarticulada da interpretação ressignificada de
raça, acaba se apresentando insuficiente para compreender os efeitos
do racismo na vida das pessoas negras e nos seus processos
identitários‖. (GOMES, 2005). 134

A concepção de Relações étnico-racial deve ser uma temática conhecida por todos
os seguimentos escolares, mas de maneira adequada.

Quanto as Diretrizes Curriculares para a Relação Étnico Racial:

A coordenação pedagógica da E.E. Brasil Novo respondeu que no início de cada


semestre é realizada com atividade relacionadas ao tema na semana pedagógica, por meio
de formação continuada com a participação de técnicos da secretaria de educação. E a
coordenação pedagógica da E.M.L.N. Deniur afirmou que acontece nos planejamentos
mensais na escola onde os professores discutem as diretrizes e organizam as atividades
mensalmente.
Os professores da E.E. Brasil Novo, responderam de várias formas, sendo: assegura
o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com a história;
citaram as leis 11.639/03 e 11.645/08 bem como o que preconiza as demais legislações
amapaenses; enfatiza o desenvolvimento do educando preparando-o para o exercício da
cidadania. Já os professores da E.M,L.N. Deniur se manifestaram assim: citam a lei 9.394/96
art.26A permite que se valha da colaboração das comunidades e que a escola serve de
apoio dos estudiosos do movimento negro; enfatiza as 6 diretrizes curriculares nacionais
gerais para a educação básica em sala de aula; falam das atividades curriculares e
complementares além de cursos e serviços.
Aos alunos, suas respostas, registraram se os professores trabalham algum assunto
sobre afro-brasileiros nas aulas. Na E.E. Brasil Novo, 02 alunos responderam que nunca é
trabalhado; 23 alunos afirmaram que sempre é trabalhado e 25 alunos afirmaram que as
vezes é trabalhado algum assunto sobre afro-brasileiro nas aulas. Na E.M.L.N. Deniur, 03
alunos disseram que nunca, 12 alunos afirmaram que sempre e 55 alunos responderam que
somente as vezes os assuntos sobre afro-brasileiros os professores trabalham nas aulas.
Mostra-se aqui a superficialidade do trabalho dos professores nesse sentido,
chegando a necessidade de maior aprofundamento do assunto em aula.
O educador precisa estar ciente das leis e dos parâmetros que regem a
educação, sua gestão, estratégias e organização. Importa, também,
apropriar-se das políticas e ações afirmativas que se referem às
relações étnicas e raciais no cotidiano escolar. (SANTOS, 2008) 135

Quanto a Relação étnico Racial nos Componentes Curriculares:

A coordenação pedagógica da E.E. Brasil Novo responde dizendo que utilizam a


produção de textos, pesquisas relacionadas a temática, teatro, produção de cartazes e
vídeos. E a Coordenação pedagógica da E.M.L.N. Deniur enfatiza que é por meio da leitura
de livros, exposição de objetos tais como: roupas, figuras, imagens, historinhas e mapa
continental africano.
Quando os professores da E.E. Brasil Novo por unanimidade afirmaram que
concordam que é de fundamental importância, uma vez que vivemos em um país de
origem afrodescendente, ainda muito racista. E os professores da E.M.L.N. Deniur
destacaram respostas individuais assim descritas: diz ser por obrigação como educador
formar cidadãos críticos e respeitadores das culturas e etnias de cada indivíduo; cita o dever
de fazer com que os alunos entendam que a educação e a socialização é para todos e todos
tem direitos e deveres; enfatiza a importância de um conhecimento mais amplo da relação
étnico-racial e falam ser um tema indispensável na formação do cidadão.
Aos alunos da Na E.E. Brasil Novo, 02 responderam que nunca é trabalhado; 23
alunos afirmaram que sempre é trabalhado e 25 alunos afirmaram que as vezes é
trabalhado algum assunto. Já na E.M.L.N. Deniur, 03 alunos disseram que nunca, 12 alunos
afirmaram que sempre e 55 alunos responderam que somente as vezes. Mostra-se aqui a
superficialidade do trabalho dos professores nesse sentido, chegando a necessidade de
maior aprofundamento do assunto em aula

O educador precisa estar ciente das leis e dos parâmetros que regem a
educação, sua gestão, estratégias e organização. Importa, também,
apropriar-se das políticas e ações afirmativas que se referem às
relações étnicas e raciais no cotidiano escolar. (SANTOS, 2008)
Quanto os mecanismos pedagógicos para a relação étnico-racial:

A coordenação pedagógica da E.E. Brasil Novo responde afirmando que construir


relações racionais e sociais sadias, em que todos cresçam como cidadãos críticos. A
coordenação pedagógica da E.M.L.N. Deniur afirmou que é com discussões sobre as
relações sociais. 136

Os professores da EE. Brasil Novo responderam da seguinte forma: disseram que


seria rodas de conversa falando da diversidade e a importância de aceitação da diversidade;
falam ser importante compartilhar histórias/textos informativos sobre o tema; citou os
projetos afrodescendentes que abordam as culturas e hábitos dos mesmos. Enquanto que os
professores da E.M.L.N. Deniur trataram a questão assim: trabalha a igualdade de direitos e
deveres entre a sociedade de incentivar através de atividades variadas o respeito mútuo;
mostrar aos alunos a cultura de cada povo e sua etnia racial, ex. Dança, religião, costumes;
falam que é uma lição que deveria ser ensinada desde os primeiros anos na escola; passa
através de textos e vídeos.
Na E.E. Brasil Novo, 24 alunos responderam que nunca acontece, 02 alunos
responderam que sempre e 24 alunos responderam que as vezes acontecem palestras sobre
relações étnico-raciais na escola. Na Escola Municipal Lucia Neves Deniur, 10 alunos
responderam que nunca acontece, 13 alunos afirmaram que sempre acontecem e 47 alunos
disseram que as vezes acontecem palestras sobre relações étnico-raciais na escola.
Constata-se então aqui as formas pedagógicas que abordam tal assunto em salas de
aula.

Partindo da tomada de consciência dessa realidade, sabemos que


nossos instrumentos de trabalho na escola e na sala de aula, isto é, os
livros e outros materiais didáticos visuais e audiovisuais carregam os
mesmos conteúdos viciados, depreciativos e preconceituoso em relação
aos povos e culturas não oriundos do mundo ocidental. Os mesmos
preconceitos permeiam também o cotidiano das relações sociais de
alunos entre si e de alunos com professores no espaço escolar. No
entanto, alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos
neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de
discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico
privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre
a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa
identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p.15)
As coordenações pedagógicas não apresentaram respostas concisas, claras e
objetivas a respeito do planejamento de ensino que trabalham com os professores sobre as
relações étnico-raciais. Há necessidade de ser adotada com urgência mecanismos, estratégias
inovadoras para o bom desempenho pedagógico.

4.4 – Quanto ao convívio escolar baseada numa Relação étnico Racial: 137

A coordenação Pedagógica da E.E. Brasil Novo tratou da questão respondendo que


as manifestações são feitas com atividades em sala de aula, pesquisas, produções de textos,
poesia, seminários e cartazes. Já a coordenação pedagógica da E.M.L.N. Deniur acredita
que as manifestações acontecem na medida que crescem o respeito entre eles.
Os professores da E.E .Brasil Novo responderam diversificadamente, sendo: nunca
tiveram problema com a turma, pois sempre enfatizaram a importância do respeito ao
próximo; trabalha em história as questões étnico-racial e a cultura afro-brasileira; realiza
debates e seminários a respeito do assunto; falam que existe sempre o respeito entre todos;
Enquanto que a E.M.L.N. Deniur afirmaram da seguinte maneira: tratam os alunos de forma
igual, independentemente de sua raça, cor ou religião, respeitando sempre o outro, assim
incentivo os alunos a fazerem o mesmo; dizem que através da troca de experiências gera
um conhecimento e aceitação das particularidades de cada; diz que é através de debates e
produção de textos.
Nesse contexto, é importante que o professor atue como um verdadeiro gestor de
conflitos, a fim de estabelecer, da melhor forma possível, um equilíbrio entre todas essas
personalidades. No caso, repreender atitudes desrespeitosas, garantir voz aos alunos mais
tímidos e também estimular o convívio saudável entre eles passam a configurar tarefas
precisas, para o crescimento pessoal de cada um. Em sala de aula, tanto professor, quanto
o aluno, devem estar abertos à interação, pois em todo relacionamento, a empatia é uma
questão necessária e eficaz para que haja uma aproximação entre ambos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada mostra entre os agentes pesquisados, um conhecimento


superficial sobre a concepção da relação étnico racial. O que nos parece primordial pensar
em investir na formação de professores no combate ao racismo. Há necessidade de
mobilização constante e cotidianamente das discussões sobre a temática, desconstruindo
paradigmas e enfrentar inevitável conflitos na sala de aula para articular e promover uma
perspectiva intercultural, baseada em negociações culturais, favorecendo um projeto
comum, onde as diferenças sejam patrimônios comuns da humanidade, porque se trata de
um coletivo com suas especificidades.
Quanto a aplicação das ideias na prática, os estabelecimentos de ensino terá a 138

responsabilidade de acabar com o costume de tratá-los de forma superficial e reduzida.


Fiscalizando as incidências de racismo dentro das dependências da escola. Todo o aparato
educacional brasileiro tem Diretrizes que norteiam segundo os princípios básicos a serem
seguidos. Os quais, serão a base filosófica e pedagógica nas esferas Federal, Estadual e
Municipal.
A abordagem sobre os componentes curriculares, torna-se primordial nesse
universo de discussão sobre as relações étnico racial. A maneira mais eficiente de trabalhá-
los seria considerando a realidade do aluno, sua condição humana e ensinando por meio da
interdisciplinaridade e transversalidade como nos apontam os Parâmetros Curriculares
Nacionais.
Ao fazermos uso de dispositivos, instrumentos de trabalho que possam auxiliar o
educador, devem-se atentar para suas intencionalidades, se estão contribuindo contra o
racismo ou reforçando ideais pejorativos.
O método aplicado deve proporcionar aprendizagem contínua e significativa por
considerar a realidade e valorizar a diversidade, provocando incitação para criarmos novos
cenários de aprendizagens que garantam um futuro promissor aos educandos.
É primordial o investimento na formação de educadores, pois são eles que ficam na
linha de frente com os educandos, são eles que devem enxergar novas estratégias que
colabore no desenvolvimento de sua comunidade, desafiando, quebrando paradigmas,
revitalizando a educação em prol da harmonia entre pessoas, numa visão humanística
O ser humano vive num nicho repleto de valores, ritos, crendices hábitos, que de
acordo com os preceitos dos grupos, acabam incorporando comuns comportamentos,
hábitos, atitudes, ideias, que moldam sua identidade cultural. Acredita-se que tais fatores,
exercitados cotidianamente, chegam a serem considerados como ―natural‖. E aqui estão
desafio do educador, derrubar estereótipos, não é tarefa fácil, é luta árdua que requer
técnica e tática, prática e teoria, conhecimento e humanização.
A sala de aula é o campo de conflito mais diversificado, os ataques são constantes,
a cada espaço trava-se uma guerra, seja por um olhar, falácia, pensamentos negativos,
insinuações, gestos.
O educador é o explorador desse campo com uma dinâmica imprescindível, deve
ter a consciência que ele é o único que pode abordar as diferenças como exercícios
paulatinos. Sem se tornar enfadonho, desacreditado, repetitivo, mas conduzindo cada 139

situação à luz da liberdade convivência do respeito ás condições humanas dos seres


envolvidos.

AGRADECIMENTOS

A Deus pela vida, saúde e esperança em dias melhores; dando-me força para
prosseguir;
Aos meus filhos, esposo, familiares, que de alguma forma me apoiaram para o êxito
desse mestrado;
A Coordenação do Curso e a meu orientador Prof. Dr. João Valdinei Corrêa Lopes
pela colaboração e orientação para que alcançasse com sucesso os objetivos desse trabalho.

REFERÊNCIAS:
ALVARENGA, Estelbina Mirandade. Metodologia da Investigação Qualitativa e
Quantitativa: normas técnicas de trabalhos científicos. 2ª edição. Assunção, Paraguai: Cesar
Amarilhas, 2012.
ARRUDA. Jorge. Educação pela diversidade afro brasileira e africana. João pessoa – PE.
Dinâmica,2006.
BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1992.
BRASIL. Resolução nº 3399 – GS/SEED
Resolve compor Equipes Multidisciplinares nos Núcleos Regionais de Educação – NREs e
Estabelecimentos de Ensino da Rede Estadual de Educação Básica.
BRASIL. Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília:
2009.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena‖. 2008.
BRASIL, Superando o Racismo na escola. 2ªedição revisada/ Kabengele Munanga, 140

organizador. – Brasilia: Ministério da Educação, Secretaria de Educação, Alfabetização e


Diversidade.2005.
Brasil, Parecer CNE/CEB nº 3, de 27 de janeiro de
Consulta sobre o Estatuto do Magistério Público Municipal e plano de carreira. 2004.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SECAD/ME,2004.
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
Brasília: MEC, 2004.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-brasileira", e dá outras providências.2003.
CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro,2000.
CANDAU, Vera Maria; MOREIRA, Flávio. Multiculturalismo–Diferenças Culturais e Práticas
Pedagógicas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.
GOMES, Nilma Lino et al. Experiências étnico-culturais para a formação de professores.
Autêntica. 2018.
GOMES, Nilma Lino. Lei 10.639/03, Educação, relações étnico-raciais. Brasil, 2003.
KLEIMA, Angela. B. & MORAES, Silvia. E. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos
projetos da escola. Campinas-SP: Mercardo de Letras, 1999.
Lopes, Uma Utopia Real: Olhares com novos paradigmas para a educação do século XXI –
Práticas inclusivas e educação para todos. Iolanda Martins Texeira (org.).. Goiania.
Kelps.2018.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. DOSSIÊ TEMÁTICO Currículo e Diversidade - eventos
ocorridos em escolas das redes pública do Rio de Janeiro. 2006.
Seppir, (2009), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SOUSA, Ivaldo da Silva. As relações étnico-raciais em sala de aula: Preconceito invisível,
porém concreto. Pará de Minas, MG: Editora Virtual Books, 2013.
http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/cursos/323-secretarias-
112877938/orgaos-vinculados-82187207/12989-relacoes-etnico-raciais
https://www.uninter.com/intersaberes/index.php/revista/article/download/929/563
http://www.brasilescola.com - Fabiane Lucimar da Cunha Gonçalves - o papel da escola e 141

da formação do educador na desconstrução do racismo, preconceito e discriminação.


https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/educacao/o-papel-escola-na-desconstrucao-
racismo-preconceito.htm
https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/educacao/o-papel-escola-na-desconstrucao-
racismo-preconceito.htm
142
CAPÍTULO XI
MULHER NEGRA POETISA: BUSCA POR VISIBILIDADE ÉTNICO-RACIAL NO
AMAPÁ
LUZ, Maria das Neves Maciel da 36
SILVA, Maria de Jesus Leal da 37
143

RESUMO
Este artigo apresenta uma narrativa sobre a mulher negra poetisa: busca por visibilidade étnico-racial no
Amapá. Cujo objetivo é analisar a perspectiva da mulher negra e suas contribuições enquanto força motriz
diante do racismo étnico-racial e construção do seu papel para sociedade diante do contexto contemporâneo.
Para tanto, a metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, a partir de leituras de artigos, livro e
contribuições de fala com base em entrevista autorizada pela escritora Maria Aurea dos Santos do Espirito
Santo 2018. O artigo parte do pressuposto de muitas narrativas históricas de mulheres que lutaram em busca
de reconhecimento e que hoje, nos alimentam com suas memorias canônicas. Muitas dessas mulheres
vivenciaram tempos sombrios, devido inferiorização do seu papel diante da figura patriarcal, mais mesmo
assim, lutaram por espaço e autonomia, enfrentado todas as formas de racismo por ser mulher, em seus mais
distintos papéis então com muito engajamento e luta, por meio, de movimentos feministas no Brasil por volta
de 1827, constrói – se direitos feministas. Diante, desses aportes teóricos trago como contribuição uma análise
do Movimento Literário Afrologia Tucuju, Historicidade, Religiosidade Autoestima e Subjetividade do negro
no Amapá, como foco destacar a literatura escrita por mulheres elencando a teoria e critica feminista.

Palavras-Chaves: mulher, poetisa, visibilidade, étnico-racial.

INTRODUÇÃO

As reflexões que escrevemos aqui são fruto de uma proposta de avaliação do Curso
de Pós-Graduação em Estudos Culturas e Políticas Públicas 2019, correspondente à disciplina
Seminário Avançado de Pesquisa cuja temática intitulada ―Mulher Negra Poetisa: busca por
visibilidade étnico-racial no Amapá‖. Que ora desenvolvemos. A proposta a principio é
elencar a voz feminina em especial à feminilidade negra e sua busca por espaço
representativo no Amapá.
Nessa perspectiva, busca-se primeiro entender o feminismo. Num contexto, mas
geral compreende-se não apenas como um movimento articulado de mulheres em torno de
determinadas bandeiras, como o voto, por exemplo. Prefere-se pensar em ―feminismo‖ em
um sentido mais amplo, como toda ação realizada por uma ou mais mulheres, que tenha
como objetivo a ampliação dos direitos civis e políticos ou a equiparação de seus direitos

36 Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais – Universidade Federal do Amapá (2018). Pós-Graduanda no Curso de Pós-
Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas da UNIFAP. Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos sobre
Etnopolítca e Territorialidades na Amazônia - NETTA. Email: nevesunifap@gmail.com.
37 Pedagoga com Especialização em Educação Especial e Inclusiva. Instituto de Ensino Superior do Amapá. Pós-Graduanda

no Curso de Pós-Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas da UNIFAP. Email: marieleal1@hotmail.com.


com os do homem. Somente assim será possível valorizar os momentos iniciais desta luta —
contra os preconceitos mais primários e arraigados. (DUARTE, 1995, p. 01).
Segundo Duarte 1995 nesse engajamento de lutas e alto reconhecimento a partir da
segunda década do século XIX, arraigado por mulheres brasileiras, que viviam enclausuradas
em preconceitos e imersas em uma indigência cultural inacreditável. A herança moura
trazida nas caravelas resistia e impunha uma vida de reclusão, ignorância e submissão. A 144

figura feminina era considerada pessoa mulher que servia para ser dona de casa, saber
bordar, cozinhar, tocar piano. Motivos estes que impulsionaram uma luta por
independência e libertação em favor do direito feminino brasileiro.
Não obstante, com a primeira legislação que permite a criação de escolas públicas
femininas em 1827, abrindo caminho para um novo horizonte a liberdade de expressão do
universo feminino, segundo Duarte as primeiras ‗mulheres educadas‘ na escola desde então
que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais
companheiras, abrindo escolas, publicando livros, enfrentando a opinião corrente que
insistia em dizer que mulher não necessitava aprender ler e muito menos escrever.
(DUARTE, 1995, p. 02).
Em relação à feminilidade Floresta mesmo com pensamento que possa revelar
contrariedade, seus pensamento não demostram – se um clamor por revoluções, mas por
necessárias mudanças no comportamento masculino com relação à mulher. [...] na
defasagem cultural, social e política existente entre Europa e no Brasil. Na Europa as
vindicações eram feitas numa educação consolidada já existente, enquanto que no Brasil
por volta de 1832, às reivindicações por mudanças de pensamentos patriarcais eram ainda
as primarias, pois mesmo a alfabetização mais superficial esbarrava em toda sorte de
preconceitos. (DUARTE, 1995, p. 154).

CONJECTURAS DA EXPRESSÃO FEMININA NO FORTALECIMENTO E FIRMAÇÃO POR


DIREITOS.

Com essas conjecturas expressam – se mesmo que de forma tímida as mulheres


foram se fortalecendo e com muita luta conseguindo firmar conquistas de outros direitos,
não somente da escrita, por exemplo, ao voto, liberdade de expressão e cidadania.
Considerando, assim um aspecto com efeito norteador no subsidio das políticas
contemporâneas, sob a representação do espaço feminino na sociedade Brasileira nos dias
atuais.
Certamente, pensar o papel da mulher hoje, é outra ―realidade social‖ mesmo
depois de muita opressão e discriminação, essa realidade ganha novos contornos no sentido
de inferiorizar o gênero feminino na sociedade moderna racista em que vivemos, porém
não podemos negar os avanços conquistados pró-público em questão. 145

Nesse contexto, seleto de mulheres escritoras não canônicas que vivenciam uma
nova realidade contemporânea na sociedade moderna busquemos citar a poetisa Maria
Aurea dos Santos do Espirito Santo: nascida em 23/09/1971 em Igarape-Miri, município do
Pará. É concursada do Governo Estadual no Amapá, cursou Magistério com Licenciatura em
Pedagogia na UNIFAP/AP. Especialista em Gestão do Trabalho Pedagógica: Orientação e
Supervisão pela Faculdade Atual no Amapá e Educação de Jovens e Adultos pelo Instituto
IFAP/AP, Mestra em Ciências da Educação no Paraguai pela Faculdade UNITER. Atua como
professora do Ensino Fundamental I na Escola Estadual Brasil Novo. Mulher negra,
defensora das causas relacionada as relação étnico – raciais, na inclusão, na diversidade, no
combate ao racismo, discriminação e preconceito. (SANTO, 2018, p. 24).
Por ser mulher e negra, a autora sofreu muitos preconceitos na sociedade dentro
espaço cultural de sua vivência, entretanto, diante dos estigmas sofridos o maior
preconceito, não era do outro ser em si, mais da sua própria identidade, por não
―reconhecer-se como negra primeiramente‖ no seu Estado de origem que é o Pará, pode –
se considera este um fator racista da própria identidade do negro, o ―o não vestir sua pele‖,
Santo quando chegou ao Amapá em (1996) deparou – se com um horizonte de perspectiva
e possibilidades e transformou suas dificuldades enquanto negra numa luta por visibilidade
destacando não apenas quanto a sua cor negra, mas também outras camadas não
―invisíveis‖ aos olhos da sociedade moderna com pensamento ocidental eurocêntrico.
Santo, na sua vontade e perspicácia por reconhecimento e visibilidade étnico racial
social se apoia em um trunfo que é o melhor caminho na desconstrução do pensamento
racista ocidental em relação aos sujeitos étnico-raciais38 e demais sujeitos não visibilizados
ou vistos como inferiores de alguma forma. No que tange sua inquietude, Santo não se
priva ao conformismo de ser mulher dona de casa e pedagoga mestra de formação

38 Étnico-Raciais conceito: é toda e qualquer forma de expressão que discrimina uma etnia ou cultura por considerá-la
inferior ou menos capaz. www.significados.com.br/
universitária queria algo mais, não apenas produzir conhecimento que aprendera na
academia, e ficar guardado em meras gavetas fechadas com teoria não compartilhada.
Para Santo sua garra e força de vontade eram incessantes precisava dar voz ao
mundo de suas produções literárias. Com experiências em sala de aula, começando sua
jornada em sala de aula no município de Mazagão durante dez anos ministrando aula no
espaço rural e construindo poesias, fruto das vivencias históricas e memorias de si mesma, 146

enquanto sujeito humano e dos aspectos territoriais do Amapá.


Assim, como Nísia Floresta Santo também busca inspiração no enfrentamento
contra a qualquer violência estigmatizam-te nas políticas educacionais para dar voz a suas
escrituras, o tema educação é o mais recorrente encontrado ao longo da produção
intelectual de Nísia Floresta, veiculada tanto em discursos e novelas como em ensaios e
colaborações jornalísticas. A utopia feminista que moveu inúmeras mulheres no século XIX,
na Europa e nas Américas, e via a educação como a condição primeira e fundamental para
a libertação da mulher. (FLORESTA, 2010, p.15).

A BUSCA POR VISIBILIDADE: CONSTRUÇÕES DE TEORIAS MODERNAS CONTRA


PRECONCEITOS ÉTNICOS – RACIAL E DEMAIS POVOS.

Na linha de pensamento e narrativas de Santo esses predomínios expressam um


incentivo na conjuntura de poesias literárias no Amapá. São poesias que retratam
historicidades e vivencias relacionada com questões de preconceitos étnico-raciais. Então,
por meio, do Movimento Literário intitulado, ―Afrologia Tucuju Historicidade,
Religiosidade Autoestima e Subjetividade do Negro‖. Composto por cinco autores cujos
nomes são: Ivaldo da silva Sousa, Márcia Cristiane da silva Galindo, Maria das Graças Senna
Ramos, Arilson Viana de Souza e Maria Aurea dos Santos do Espirito Santo (2018). A qual,
elenco como sujeito de reflexão da voz negra mulher na temática em analise.
Contrário, de mulheres vistas como canônica39 e viril, por exemplo: Nísia Floresta,
(1810-1885) Maria Lugones, (2014) Bell Hooks, (2015) citadas e sendo referencias na

39Mulheres Vistas como Canônica: São mulheres que escreveram uma historia em defensa dos princípios feministas, diante
de um sistema político que se opõe a toda e qualquer forma de domínio ou autoritarismo e racismo contra mulheres. E,
mulheres não canônicas são consideradas mulheres que vivenciam uma nova realidade da historia da luta por objetivos
das mulheres contemporâneas.
elaboração desse artigo, como instrumentos norteadores nas contribuições e fortalecimento
dessa construção enquanto cidadão, sobretudo, para o gênero feminino que lutaram para
valorização social, consideradas mulheres referencias nas construções teorias modernas.
Santo é um, exemplo, de mulher não canônica da modernidade encorajada e de
força capaz de vencer seus próprios medos e preconceitos diante de uma sociedade racista
que impõem um padrão ideal de ser humano. E, hoje ela diz ―Me reconheço como negra‖ 147

―antes não‖, enfrentar seus medos, sair de uma bolha vedada a um mundo obscuro irreal,
fantasioso, e abrir - se a realidade de fato. Hoje, poço dizer ―Sou negra com orgulho‖. No
poema intitulado Vista a minha pele, de 2018, além do posicionamento da autora a
respeito da visibilidade étnico-racial tem também uma visão de superação e reconhecimento
de luta, como os transcritos abaixo:

De uma terra muito distante, vieram os negros para o Brasil.


Deixando famílias, riquezas e amigos, pra construir um novo país.
Destruíram seus mocambos, negro morreu de banzo, despojaram seus
ideais, abafaram sua cultura demais. Aqui neste País, terra de encantos
mil. A luta de Zumbi, valeu pra mim e pra ti. Mas o rufar dos
tambores, e a sinfonia do berimbau, tornou meu quilombo ideal. E
com lei 10.639, minha escola ficou forte, do currículo escolar, vou
então participar. Hoje tenho felicidade, em poder declamar minha
identidade. Sou negra! Sou negro! Vista a minha pele! Vista a minha
pele e venha comigo sambar. Vista minha pele e capoeira vamos
gingar. Vista minha pele e vamos todos marabaixar. (SANTO, 2018, p.
25).

Certamente, muitos foram os caminhos tortuosos que Santo percorreu até chegar
aqui, mas, apesar disso demostra – se ―um produto de si mesma‖, concebe hoje o gosto da
escrita, e do ensinar, a seus alunos ministrando teorias que poderiam ser impensadas pela
sociedade moderna de certa forma, mas não Santo já lançou três exemplares como
ferramenta pedagógica de ensino com leituras e poesias regionais, por meio de seus escritos.
Para a poetisa não tem melhor receita, do que a visibilidade e reconhecimento da sua
produção científica.
No pensar de Santo suas composições visam contribuir com ensino público do
Estado e que seu maior desejo é atingir esse seleto segmento de professores educadores do
sistema de ensino, já em fase de consolidação, através do movimento literário afrologia
tucuju40, que apresenta – se como instrumentos de ensino em sala de aula, pois para autora
acredita – se que, por meio, das poesias os alunos conseguem assimilar com mais facilidades,
o conhecimento é algo que encanta os alunos. Para a autora é também uma forma de
facilitar e desviar um pouco a tensão dos alunos de outros instrumentos tecnológicos,
porém o uso dessa metodologia ainda apresenta resistência.
Floresta, (2010) já dizia, 148

Apenas a educação era capaz de tirar o gênero feminino da submissão


a que estava relegado, e de dar às mulheres as condições necessárias
para serem donas de seus destinos. [...] de nossa história que revelam
a difícil trajetória que foi preciso cumprir na busca e na construção da
identidade e dos direitos da mulher brasileira. (FLORESTA, 2010,
p.78).

No discurso de Floresta, a educação era das únicas formas de fuga para liberdade
independente do gênero feminino, não tanto diferente assim, Santo defende uma luta além
do enfrentamento racial não somente com a mulher ou pele negra, mais também com
outras descendências étnicas-raciais e de que forma a sociedade pode estar a par, das
histórias por meio da leitura sobre os conhecimentos da região do Amapá na educação, e a
poesia torna – se um instrumento capas de mostra sua representação histórica etnocultural
no âmbito escolar em seus múltiplos tons.
Santo no poema intitulado ―Diga não a discriminação‖, de 2018, autora enfatiza o
quão discriminadamente os povos ―vistos‖ como inferiores sofrem tanta discriminação, a
escola prega uma política de que ―somos iguais‖, entretanto, a contrapartida dos enfoques
teóricos afirma olhares de Brasil racista, e que a igualdade do ―todos‖ confere – se muito
bem nos escritos legais. Então a vem mostra que deve – se combate essas formas
preconceituosas com transcritos abaixo.

Estou aqui de boa e venho pra te dizer, que a discriminação não tem
que acontecer [...] índio, brancos e negros, são irmãos pra valer, o
não à discriminação, só depende de você. Devemos respeitar a todos,
para então ser respeitada, a escola nos ensina sermos alunos
educados. Minha força é de ferro, minha pele é de cor, minha alma é
de valor, minha fala é puro amor. Sou uma negra destemida, prego

40Afrologia Tucuju: é a arte das palavras capaz de sensibilizar o ser humano e tocar no mais íntimo do seu ser e em sua
alma, emocionar, esclarecer, educar, amar. É o que promete o livro de poesias ―Afrologia Tucuju: Historicidade,
Religiosidade, Autoestima e Subjetividade do negro‖, escrito por um grupo de escritores, doutores e mestres. Escrita pelos
autores SOUSA, Ivaldo da Silva, GALINO, Marcia Cristiane da Silva, SANTO, Maria Áurea dos Santos do Espirito, RAMOS
Maria das Graças Senna, SOUZA, Arilson Viana de.(2018).
paz e harmonia. Diga não a discriminação, esse é meu lema, todo dia.
Preconceito e burrice! Discriminação é tolice! E O racismo o quê que
é? E falta de consideração. Com qualquer nação. Nada de
preconceito! Tenha todo respeito! A lei áurea fez sua parte, zumbi foi
um grande marte. Pra quê bullying meu irmão? Somos todos
cidadãos. Toque em minha mão e me de um abraço, vamos fazer uso
deste pequeno espaço. Respeito meu black power! Respeite o meu
falar! Respeite a minha cor! É amigos vais encontrar. Somos todos 149
iguais, com diferentes ideais, somos só uma nação. Diga não a
discriminação! (SANTO, 2018, p.53).

Para Hooks um dos preceitos centrais do pensamento feminista moderno tem sido
a afirmação de que ―todas as mulheres são oprimidas‖. Essa afirmação sugere que as
mulheres compartilham a mesma sina, que fatores como classe, raça, religião, preferência
sexual etc. não criam uma diversidade de experiências que determina até que ponto o
sexíssimo será uma força opressiva na vida de cada mulher. O sexíssimo, como sistema de
dominação, é institucionalizado, mas nunca determinou de forma absoluta o destino de
todas as mulheres nesta sociedade. Ser oprimida significa ausência de opções. É o principal
ponto de contato entre o oprimido (a) e o opressor (a). Muitas mulheres nesta sociedade
têm escolhas (por mais inadequadas que possam ser); portanto, exploração e discriminação
são palavras. (HOOKS, 2015, p.194).
Nas narrativas de Santo a mulher representa um papel de empoderamento, mulher
guerreira, que busca alcançar ideais muito além de uma simples mulher oprimida, submissa
a um lar de dona de casa, ou qualquer outra questão da realidade contemporânea da quais
muitas mulheres são submetidas, Santo não tira seu mérito de mãe mulher, pedagoga e
mestra de formação enfatiza que por ser negra poderia ficar frustrada, mas não com força e
determinação venceu e estar vencendo muitas formas de racismo no mundo atual.
Conforme, seu poema intitulado ―Consciência da mulher negra‖, de 2018, transcrito
abaixo.
Fui classificada ao máximo na cor, na aparência, na estatura. Na fala,
no beiço, nariz e cabelo, à custa de pão, pau e pano. A Diáspora
traçou meu destino, Mama África ficou para traz. A dor que imperava
no ―Tombadilho‖, era que liberdade, eu não tinha mais. Ao avistar a
terra do novo mundo, apesar da beleza natural. Foi me imposto,
costumes e um nome, me distanciando de meus ancestrais. Mais não
poderão calar minha voz, meu tambor, meu afoxé, meu berimbau
[...] meu jeito, meu credo, minha dança, incomodava destemidas
rivais. Muitas lutas eu resisti, no quilombo me refugiei. Pus em pratica
o que de raiz, pois esse chão era minha nova grei. Regado com
sangue fraternal, liberdade no papel alcancei. Pura demagogia racial,
não foi inclusa no social. Mesmo sendo parte do global, pelas
conquistas de direitos, lutei. Mas a nomenclatura magistral me resumia
apenas aos três ps. Difícil ser negra ou mulata, em plena politica do
branqueamento. Ainda bem que ―casa grande & senzala‖,
reinterpretou-me triunfantemente. Hoje com as conquistas vindouras,
tenho meu livro arbitrário. De mostrar, o que sou e o que faço,
afirmo-me do pó ao aço. A minha identidade, reflete pura beleza.
Que rufem os tambores, pois quero dizer: ―viva a consciência da
mulher negra‖!(SANTO, 2018, p.51). 150

Essa experiência pode moldar nossa consciência de tal maneira que nossa visão de
mundo seja diferente da de quem tem um grau de privilégio (mesmo que relativo, dentro
do sistema existente). É essencial para a continuação da luta feminista que as mulheres
negras reconheçam o ponto de vista especial que a nossa marginalidade nos dá e façam uso
dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar
e criar uma contra hegemonia. (HOOKS, 2015, p.208).

COMPREENDER O OPRIMIDO NUMA PERSPECTIVA DE DÊS-COLONIAL IDADE DIANTE


DO COMPLEXO PROCESSO DE DISCRIMINAÇÃO ÉTNICOS-RACIAL.

Considerando – se assim a trajetória de vida de Santo um processo desconstruído


da colonial idade em sua conjuntura e historicidade.
Restrepo e Rojas (2012) definem colonialidade como um fenômeno histórico
complexo que se estende para além do colonialismo, referindo-se a um padrão de relações
de poder que opera pela naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais, de
gênero e epistêmicas. A naturalização é o que possibilita a reprodução das relações de
dominação. Esse padrão de poder mantém e garante a exploração de uns seres humanos
sobre outros e subalterniza e oblitera os conhecimentos, experiências e formas de vida do
grupo que é explorado e nominado. (TONIAL, F. A. L. MAHEIRIE K. GARCIA, C. 2017,
p.18).
Dentre tantos, entendimentos a colonialidade é um fenômeno que busca cércea
uma política de domínios e padrões seguindo conceitos aos moldes do eurocentrismo
ocidental.

A colonialidade do gênero permite-me compreender a opressão como


uma interação complexa de sistemas econômicos, racializantes e
engendrados, na qual cada pessoa no encontro colonial pode ser vista
como um ser vivo, histórico, plenamente caracterizado. Como tal,
quero compreender aquele/a que resiste como oprimido/a pela
construção colonizadora do lócus fraturado. Mas a colonialidade do
gênero esconde aquele/a que resiste como um/uma nativo/a,
plenamente informado/a, de comunidades que sofrem ataques
cataclísmicos. Assim, a colonialidade do gênero é só um ingrediente
ativo na história de quem resiste. [...] O longo processo da
colonialidade começa subjetiva e intersubjetivamente em um
encontro tenso que tanto constituía normatividade capitalista,
moderna colonial. (LUGONES, 2014, 941). 151

Sob um olhar da epistemologia da construção do conhecimento do período


colonial até o atual mundo contemporâneo. Muitos povos considerados hoje
―tradicionais‖ foram violentamente estigmatizados, vivenciaram e convivem com várias
tentativas do racismo epistêmico, com tentativa de inferiorização das múltiplas diversidades,
sobretudo, quando trata – se do gênero feminino e em especial mulheres negras.
Nesse bojo, Santo demostra – se, que mesmo diante de muitas formas de resistência
imposta pela racionalidade eurocêntrica, busca forças num mecanismo capaz de transformar
uma realidade social, por meio, do conhecimento da educação. Santo compreende que se
não tivesse seguindo o caminho do conhecimento dificilmente estaria sendo uma voz negra
ouvida sociedade moderna, sendo assim mais uma ―vítima‖ da própria negação de sua
identidade étnico-racial em especial povos do Amapá. Numa, seleta lista de poesias Santo
descreve em seu poema intitulado ―Discriminação, preconceito e racismo‖, de 2018,
transcrito abaixo.

Preconceitos e descasos. Preconceitos e descasos. Provocam maus


pensamentos. Nos domínios desta terra, negro cai no esquecimento.
Negro também tem amor. Quem conhece esse povo, reconhece seu
valor, negro também é nação. Somos todos mestiços, mestiços de
coração. Responde-me amigo, esclareça-me irmão. Se na sua
comunidade, ainda tem discriminação? Para ser igual aos outros, o
negro tem possibilidade. Só depende de você, garantir-lhe
oportunidade. (SANTO, 2018, p.52).

CONSIDERAÇÕES

Diante do exposto, elencamos que a trajetória de vida sobre a poetisa Maria Aurea
dos Santos do Espirito Santo. Enfatizada nesse artigo, cujo tema intitula ―Mulher Negra
Poetisa: busca por visibilidade étnico-racial no Amapá‖. Elencamos, por meio, de seu
depoimento e contribuições teóricas que a escritora poetisa dedica – se o máximo para
desenvolver uma metodologia com enfoque histórico sobre os povos étnico-raciais, bem
como também, destacando outros povos que só poderiam ser vistos em livros didáticos,
reproduzindo sempre a perspectiva dos conceitos eurocêntricos, ou seja, reproduzindo uma
historia de submissão e escravidão servil.
Nesse entendimento, a professora mestra Santo nos possibilita um instrumento
literário como forma de dar voz aos povos tão marginalizados e suprimidos de suas
possibilidades com muita garra e força. Santo mostrar em seus escritos o ―quão à evolução 152

da mulher negra, do negro e outros povos tem alcançado uma dimensão intelectual das
quais só eram alcançáveis em livros didáticos como o subalterno sem voz ativa‖. Nessa,
―angustia de só ler e reler‖, ―o tempo todo de sua formação vendo a negra, o negro
parado no tempo e também trabalhando na educação e seguindo a mesma perspectiva,
continua e sempre via aquela mesma história do negro parado no tempo como se não
houvesse evolução‖.
Nessa perspectiva, Santo nos premia com a desmitificação de uma realidade em
que ―o negro não pudesse ser um Doutor, um cantor, uma poetisa escritora, ou
representante da própria cultura‖, por exemplo: ―só olhar esses povos étnico-raciais de
forma subalterna na visão ilusionista do quilombo escondido, a negra na cozinha‖, o não
compatível à convivência na sociedade moderna, então isso era angustiante para autora,
por ser negra, isso serviu de gás impulsivo na elaboração da escrita dos seus textos poéticos
literários, ―para mostrar essa evolução do negro livre que somos, e que hoje torna – se
primordial trabalhar essa exaltação da comunidade negra, da religiosidade dos povos
subalternos, nas escolas para levantar até mesmo autoestima da comunidade étnico-racial
das novas gerações‖. Escrever para autora é uma forma de destacar a sua visibilidade e de
outras mulheres ou povos supridos ao eurocentrismo, como forma de combate ao
preconceito na sociedade moderna no Amapá.
Outrossim, de Santo como contribuições e aprendizagens literárias ―é oferecer aos
professores do sistema de ensino do Estado textos com narrativas históricas da realidade
local, sobretudo dos povos étnicos-raciais, como efeito marcante em suas poesias‖.
Consideram – se também ―uma ferramenta pedagógica, em que o professor possa usar para
transmitir conhecimento nas suas didáticas de ensino aprendizagem, por meio, das
narrativas com enfoque das vivencias culturais, históricas, territoriais da sociedade
amapaense‖. Além disso, Santo enfatiza que ouvia muitos discursos sobre a escassez de
matérias didática com temáticas locais.
Por esse, olhar negativo do público do sistema educacional sobre teorias
metodologias locais no ensino? Santo nos oferece hoje materiais com escritas propicia ao
sistema de ensino. Não pode – se manter uma discursão da inexistência de materiais
didáticos na região, eles existem e o que podemos fazer é abraçar a ideia e valorizar as
potencialidades das produções teóricas locais de fato. Nesse sentido, as produções literárias
de santo é um instrumento muito relevante na contribuição do conhecimento para 153

compreendermos e trabalhar a cultura, identidade, visibilidade, reconhecimento em especial


à evolução dos povos étnico-raciais dos povos tradicionais como formas dialogais com
ensino no combate aos preconceitos étnicos-raciais no Amapá.

REFERENCIAS
DUARTE, Lima Constância. Feminismo e Literatura no Brasil. Estudos avançados 17 (49),
2003.
FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 4 ed. São Paulo: Cortez
Editora, (1989).
HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência
Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, p. 193-210.
LUGONES. M. Rumo a um feminismo descolonial.
SOUSA, Ivaldo da Silva, GALINO, Marcia Cristiane da Silva, SANTO, Maria Áurea dos
Santos do Espirito, RAMOS Maria das Graças Senna, SOUZA, Arilson Viana de. Movimento
Literário Afrologia Tucuju: Historicidade, Religiosidade, Autoestima e Subetividde do
Negro. 1 ed- São Paulo: Produções Editoriais Anjo Ltda. 2018.
TONIAL, F. A. L. MAHEIRIE K. GARCIA, C. A. S. A resistência à colonialidade: definições e
fronteiras. Revista de Psicologia da UNESP 16(1), 2017.
154
CAPÍTULO XII
ESSÊNCIA DA LITERATURA: ANÁLISE DA OBRA ―SACI, MOLEQUE SACI‖
SILVA, Rute Barboza da 41
OLIVEIRA, Altino dos Santos 42

155

INTRODUÇÃO

A obra de arte literária é a organização verbal significativa da experiência interna e


externa, ampliada e enriquecida pela imaginação e por manipulação para sugerir as virtudes
desta experiência. A modalidade específica do discurso literário, imaginativo, ambíguo,
irônico, paradoxal, alusivo, metafórico, etc., tende a fazer da obra uma estrutura de
significados autônoma que divergem profundamente do discurso cientifico, referencial,
racional, cognitivo e puramente instrumental. Portanto a meta do discurso literário e a
comunicação direta e intensa vivida na experiência que nela se organiza. A língua nesse
processo tem uma função fundamental, pois ela não só media, mas constrói. A obra literária
apresenta-se em vários planos tais como enredo, personagens, relações e conflito de
valores, portanto língua representa apenas um desses planos, assim a totalidade desses
planos é quem transmite a experiência e interpretação da realidade, graças à organização e
composição especificas, no sentido total da obra.

DEFINIÇÃO DE LITERATURA

Historicamente o conceito de literatura remonta a Platão e Aristóteles. Platão


descreveu a literatura e a pintura em termos depreciativos, como imitações duplamente
afastadas da realidade. Tudo o que há neste mundo e, em particular qualquer coisa feita
pelo homem, nada mais é que cópia de uma cópia já afastada da realidade. Aristóteles,
entretanto, caiu no sentido negativo da imitação, ele não considerava esse mundo, simples
sombra do outro. Acreditava que o instinto de a imitação é importante, implantado no
homem desde a infância é o que faz diferenciar-se dos animais irracionais. Aristóteles

41 Graduada em Pedagogia pela Faculdade Interamericana de Porto Velho-UNIRON; Especializações em Psicopedagogia e


Gestão Escolar - Faculdade Porto – FGV; Cursando Especialização em Libras - UNIRON. Cursando Letras, habilitação em
Libras-Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Atualmente, é professora da rede municipal de Porto Velho-RO. CV
Lattes http://lattes.cnpq.br/8399278196508977.
42 Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Rondônia-FARO; Especialização em Metodologia do Ensino Superior e

EAD - Faculdade Educacional da Lapa-FAEL. Atualmente é professor de ensino fundamental da SEMED/Prefeitura


Municipal de Porto Velho. CV: http://lattes.cnpq.br/2261605260623391.
qualificou como ―modos de imitação‖ (mimeis), a poesia épica, a tragédia, a comédia, a
poesia lírica, a música de flauta, apenas quis dizer para termos mais positivos,
representações ou recriações da vida. A teoria da imitação aponta dois importantes pontos
ao avaliar a interpretação da literatura. O primeiro ponto é em seu valor aparente, sugere
que a literatura imita e reflete a vida, ou seja, consiste nas múltiplas experiências dos seres
humanos, em suas vivencias. E o segundo ponto é que a vida está sendo imitada no sentido 156

de ser reinterpretada e recriada. O conceito de literatura não é matéria pacífica entre os


estudiosos que a ela se dedicam. Há os que entendem que a obra literária envolve uma
representação e uma visão de mundo, além de uma tomada de decisão diante dele. Tal
posicionamento centraliza-se suas atenções no criador de na literatura e imitação da
natureza compreendida como copia e imitação. A linguagem e vista como mero veículo
dessa comunicação e segundo Maurice-Jean Lefebve ―a beleza da obra resulta, então, de
um lado, a originalidade da visão, e, de outro, a adequação de sua linguagem as coisas
expressas‖. É a chamada concepção clássica da literatura.
A luz de novas ideologias que os rodeiam os românticos no século XlX,
acrescentam algo a esse conceito, entendem que ao artista cabe a visão das coisas como
ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente em si mesmas. Algumas
características devem ser levadas como pontos importantes na estrutura total que compõe
uma obra literária. Se a literatura é uma arte, nessa condição ala é um meio de
comunicação de tipo especial e envolve uma linguagem também especial.

O CONTEXTO HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL

A literatura é considerada uma fonte inesgotável de conhecimento e informação,


dispondo aos seus pequenos leitores momento de grande alegria e aprendizado, fazendo
com que esses estejam cada dia mais interessados em ler. Instrumento essencial na sala de
aula, despertando n acriança o gosto por leitura. O objetivo deste artigo é demonstrar que
a literatura tem a capacidade de formar cidadãos que entendam o que leem e quem possam
transmitir, através da sua fala e escrita e o que aprenderam com a literatura. No século
XVlll, a Literatura Infantil se iniciou na Europa, nesse período a criança começava a ser vista
como criança, pois antes desse período ela fazia parte da sociedade adulta, desfrutando da
sua literatura. Entretanto, como tudo progride na evolução da sociedade, a Literatura
Infantil também progrediu alcançando especificamente as crianças, destacando que, os
contos clássicos e folclores tiveram algumas modificações.
A definição de literatura não necessariamente precisa ser uma palavra sem
complemento, nesse contexto não depende do adjetivo que receba, assim dessa maneira, a
expressão infantil que vem junto da palavra literatura não tem o significado dela ser
somente para criança. O surgimento da Literatura Infantil tem específicos o conteúdo e
estudo desta. Portanto no século XVlll a criança passa a ser considerada como indivíduo e
tendo diferença do adulto, com características e vontades próprias a literatura infantil tem 157

por finalidade ser aquela que satisfaz de certo modo, aos desejosos de quem está lendo e
que se iguale com ela.

Desse modo, a Literatura precisa ser usada para instigar a vontade


pela leitura, porque ela tem o poder de favorecer gozo, entusiasmo e
magia quando estudada de maneira expressiva pelo aluno, tem o
poder de desenvolver a imaginação, os sentimentos, a emoção, a
expressão e o movimento por meio de uma aprendizagem prazerosa
(LOPES; NAVARRO, 2014).

A expressão é destacada como sendo um conjunto de publicações relacionado às


crianças com teor divertido e didático. Porém, diversos estudos em relação aos assuntos
prelecionam que essas definições são limitadas, porque destaca que bem antes da produção
de alguns materiais escritos, a literatura para criança fazia parte da tradição falada em
expressões que relatavam e explicavam sua maneira de explicar a realidade. Sempre tem
sido uma necessidade do homem, ter histórias e memórias narradas com o propósito de
marcar, passar conselhos e tornar mais fortes as histórias. Destacando que com tais objetivos
as histórias eram narradas em programa de família diversas vezes preto da fogueira junto
com cantos e danças, numa condição que tinha importância social e cultural. Nos tempos
antigos a literatura, permeada por mitos e fantasias, teve início no Oriente e se expandiu
pela Europa, porém, foi somente na idade média, que ela teve um marco decisivo
revelando nas narrativas uma representação de modo próprio, cheia de imagens opostas,
com o bem se contrapondo ao mal. Essa disposição se materializou na literatura tradicional
refletindo até os dias de hoje. A literatura tem relação estreita com o papel, é destacado
que apesar da criação do papel ter sido feita pelos chineses no início dos primeiros mil anos,
e o processo de impressão caseiro já existisse, foi apenas no século XV, com a idade
moderna, que a imprensa veio como maneira de produção, proporcionando a impressão
de um número grande de livros, (TORTELLA et al, 2016).
A Literatura Infantil no Brasil surgiu no final do século XIX, a literatura oral
permaneceu até esse período, com os mitos e o folclore dos indígenas, africanos e
europeus. Os primeiros brasileiros que escreveram sobre literatura infantil no país foram
Carlos Jansen e Alberto Figueiredo Pimentel, que traduziram os considerados clássicos para
as crianças. Porém, somente em 1917, com Thales de Andrade é que a literatura infantil
nacional se iniciou. Já em 1921, Monteiro Lobato escreveu Narizinho Arrebitado, exibindo
ao mundo a Emília. Entretanto, nesse período, encontrou vários obstáculos para se
confirmar como arte literária própria para crianças, pela razão de estar associada às 158

narrativas populares. No entanto, foi apenas após 250 anos que a literatura infantil teve
impulso, destacando que no século XVIII, obras literárias feitas para o público infantil
começavam a ser vendidas no mercado europeu, feitas a partir das técnicas tipográficas
novas provenientes do procedimento da indústria. Perante o capitalismo que dominava o
livro infantil foi transformado em mercadoria para consumidores infantis, passando a ser
produzido em uma escala maior (TORTELLA et al, 2016).

A LITERATURA INFANTIL E O AUXÍLIO DO PROFESSOR

A Literatura Infantil tem papel importante para o aprendizado da criança, pois


relaciona essa com suas experiências pessoais. Nesse sentido, a criança amplia o senso
crítico, quando, no momento de uma leitura, ela fala, pergunta e aceita ou não a opinião
do autor, também amplia a arte por meio da fantasia alcançando espaço sem fim na sua
imaginação, com resultado de novos textos, pinturas, desenhos, colagens etc. A literatura é
essencial por evidenciar uma visão de mundo, e cria o próprio mundo interagindo com
ambos (BARROS, 2013)

Segundo Mallmann (2011, p.14), ―a literatura infantil é um recurso


fundamental e significativo, para a formação do sujeito, de um leitor
crítico e ainda pode desenvolver os valores morais‖. Considerada uma
grande auxiliadora durante o processo de alfabetização, a literatura
infantil auxilia e facilita o aprendizado, e também desenvolve a
imaginação, a criatividade e o prazer por ler.

Colocar a literatura infantil no processo de alfabetização e aprendizado das letras


tem por significado incluir a criança em um mundo de aprendizado lúdico e com prazer,
onde há um maior estímulo ao aprender a ler e escrever, ela permite que a criança vivencie
situações, que no cotidiano não é possível. A criança precisa habituar com a variedade de
textos e estilos desde o começo da vida na escola, isso acontece porque nessa fase da escola,
a criança se encontra em processo de aprendizado e de desenvolvimento de suas
capacidades, mesmo que não tenha domínio da língua, ela necessita dessa relação com a
literatura para no futuro, serem leitores críticos. Este é o instante de incentivar a habilidade
de compreender e de pensar da criança. A literatura infantil tem a capacidade de trazer um
emaranhado de emoções, sentimentos, sentidos e significados, a partir da sua interação com
o meio em que a criança vive, através dos livros adaptados para o perfil dessa criança.
Nesse instante inicia o encantamento da criança pela literatura, porque estão num período
de mesclar fantasia e realidade, e a nesse sentido a literatura infantil propicia o 159

desenvolvimento da imaginação, pensamentos e valores morais de maneira prazerosa. A


literatura transmite valores positivos como o respeito ao próximo, a solidariedade, o
respeito à natureza e a autonomia, tendo uma contribuição importante para a criação de
cidadãos mais solidários. Para que os alunos criem gosto pela literatura, os professores das
séries iniciais têm como meta incluir os alunos no mundo da leitura, é indispensável que
esses profissionais que ensinam práticas de leitura para crianças tenham conhecimento das
concepções de linguagem e de leitura que se ampliaram com o tempo. Destacando a
influência do meio cultural e o empenho dos professores, é possível que o aluno das séries
iniciais compreenda o quanto é importante o hábito de ler, e assim, ter o entendimento que
a leitura em relação à literatura demanda uma estrutura concentrada de movimentos
contínuos de um texto que estando no seu natural será bem codificado.

A literatura é imprescindível na escola por ser a ferramenta necessária


para que a criança entenda o que verificar ao seu redor, tenha
capacidade de explicar diversas situações e eleger caminhos com os
quais se reconhece. Porém, diversos professores não conhecem como
a leitura e a literatura é importante, resumindo sua prática
pedagógica, diversas vezes, em textos que se repetem com exercícios
direcionados e sem liberdade, nos quais a área de reflexão sobre si e
sobre o mundo dificilmente encontra lugar (BARROS, 2013).

É necessário ao professor ter preocupação com a criança, disponibilizando a ela,


textos e leituras adequadas e diversas para cada idade. É imprescindível que os professores
das séries iniciais se mobilizem em favor das crianças incentivando-as à leitura, através dos
livros adaptados para eles. O professor exerce papel fundamental dentro do processo de
aprendizagem em relação à literatura infantil, ele precisa ser o parceiro, intercessor e
articulador de muitas e diversas leituras, e sabem que a literatura precisa servir como
maneira de enriquecimento. O desejo do professor deve ser o de despertar nas crianças o
prazer e gosto pela leitura, destacando que essa tem necessidade de ser prazerosa e feita por
lazer, sendo um estudo com entretenimento. A atuação do professor com o propósito de
fomentar a alfabetização no ambiente escolar, utilizando várias vertentes oferecidas pela
Literatura Infantil, necessita ser uma ação de maneira a propiciar divertimento e uma leitura
significativa para as crianças, sem dispor do ensino da tradicional gramática ou da ortografia
como ênfase principal, mas sempre dando estímulo ao prazer de ouvir, ver e ler.

Assim, é preciso que no ambiente escolar o professo estabeleça


situações em que a criança tenha capacidade de efetuar sua própria
leitura, mesmo que de maneira não tradicional, desenvolvendo uma 160

maneira crítica e específica de pensar (BARROS, 2013).

FERRAMENTAS DE ENSINO NA FORMAÇÃO DE LEITORES EFETIVOS

O ato de aprender a ler, ou seja, o aprendizado da leitura é uma das mais


importantes conquistas que os professores das séries iniciais têm como meta incluir os alunos
no mundo da leitura, é indispensável que esses profissionais que ensinam práticas de leitura
para crianças tenham conhecimento das concepções de linguagem e de leitura que se
ampliaram com o tempo. Destacando a influência do meio cultural e o empenho dos
professores, é possível que o aluno das séries iniciais compreenda o quanto é importante o
hábito de ler, e assim, ter o entendimento que a leitura em relação a literatura demanda
uma estrutura concentrada de movimentos contínuos de um texto que estando no seu
natural será bem codificado. A literatura é imprescindível na escola por ser a ferramenta
necessária para que a criança entenda o que verificar ao seu redor, tenha capacidade de
explicar diversas situações e eleger caminhos com os quais se reconhece. Porém, diversos
professores não conhecem como a leitura e a literatura é importante, resumindo sua prática
pedagógica, diversas vezes, em textos que se repetem com exercícios direcionados e sem
liberdade, nos quais a área de reflexão sobre si e sobre o mundo dificilmente encontra
lugar. Assim, é preciso que no ambiente escolar o professor estabeleça situações em que a
criança tenha capacidade de efetuar sua própria leitura, mesmo que de maneira não
tradicional, desenvolvendo uma maneira crítica e específica de pensar. É necessário ao
professor ter preocupação com a criança, disponibilizando a ela, textos e leituras adequadas
e diversas para cada idade. É imprescindível que os professores das séries iniciais se
mobilizem em favor das crianças incentivando-as à leitura, através dos livros adaptados
para eles. O professor exerce papel fundamental dentro do processo de aprendizagem em
relação à literatura infantil, ele precisa ser o parceiro, intercessor e articulador de muitas e
diversas leituras, e sabem que a literatura precisa servir como maneira de enriquecimento. O
desejo do professor deve ser o de despertar nas crianças o prazer e gosto pela leitura,
destacando que essa tem necessidade de ser prazerosa e feita por lazer, sendo um estudo
com entretenimento. A atuação do professor com o propósito de fomentar a alfabetização
no ambiente escolar, utilizando várias vertentes oferecidas pela Literatura Infantil, necessita
ser uma ação de maneira a propiciar divertimento e uma leitura significativa para as
crianças, sem dispor do ensino da tradicional gramática ou da ortografia como ênfase
principal, mas sempre dando estímulo ao prazer de ouvir, ver e ler. A estratégia mais 161

importante pode ser iniciada a partir da interação entre professor e aluno, conseguindo
uma relação por meio do ensino. O aluno se encontra frente ao desafio de entender o
conteúdo da matéria dada, e o professor tem a responsabilidade de auxiliar e orientar esse
aluno em sua leitura valendo-se de estratégias disponíveis para auxiliar o aluno na leitura
como:

Atividade antes da leitura


I. Levantamento do conhecimento prévio sobre o conhecimento dos
alunos.
II. Antecipação do tema ou ideia principal como: título, subtítulo, do
exame de imagens.
III. Expectativas em função do autor ou instituição responsável pela
publicação.

Atividades durante a leitura


I. Retificação, confirmação ou rejeição das ideias antecipadas ou
expectativas criadas antes do ato de ler;
II. Utilização do dicionário para consulta, esclarecendo sobre possíveis
dúvidas do vocabulário;
III. Identificação de palavras-chave;
IV. Suposições sobre as conclusões implícitas no texto, com base em outras
leituras, valores, experiências de vida, crenças;
V. Construção do sentido global do texto;
VI. Busca de informações complementares;
VII. Relação de novas informações ao conhecimento prévio;
VIII. Identificação referencial a outros textos.

Atividades para depois da leitura


I. Construção do sentido sobre o texto lido;
II. Troca de opiniões e impressões a respeito do texto;
III. Relacionar informações para concluir ideias;
IV. Avaliar as informações ou opiniões expressas no texto lido;
V. Avaliar criticamente o texto abordado.

Para alcançar êxito nessas estratégias, o leitor entende os níveis mais básicos da 162

leitura, com ajuda e auxílio de um professor que vai orientar como continuar ao longo do
processo da leitura. Portanto, compreender que a função da escola se baseia em criar no
leitor a habilidade de aprender a aprender, dispondo suas práticas pedagógicas pautadas na
formação moral e social do indivíduo, incluindo a construção de um sistema sucessivo de
mudança de assuntos, apoiado por uma biblioteca com uma quantidade abundante de
livros, sendo está apta a prover as buscas da leitura. É importante destacar que o professor é
peça essencial para despertar o interesse da criança em relação à literatura infantil, pois ele
será o responsável por criar um ambiente propício e de interesse para que essa criança
desenvolva seu querer em relação a esse tipo de aprendizagem.

Segundo (LAJOLO, 1981). É a relação que as palavras estabelecem


com o contexto, com a situação de produção da leitura que instaura a
natureza de um texto [...]. A linguagem parece tornar-se literatura
quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação e
subjetividade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que
configura a vida cotidiana.

A palavra mito vem do grego e significa história ou palavra. Assim como as lendas,
os mitos não têm autoria conhecida e explicam a existência do homem e os mistérios da
natureza. Tratam de sentimentos básicos: paixão, amor, ódio e medo. Às vezes, mito e
lenda são confundidos, porque os limites de cada um são tênues (GOMES, 2001).

Segundo Brandão (2000), Apesar dos aspectos fantasiosos, dos


elementos fantásticos e aparentemente ilógicos que o povoam, o mito
é verdade para o povo que o utiliza, está profundamente enraizado
no seu tecido social, distinguindo se, portanto, da lenda e sobretudo
da superstição.

O mito, portanto, é uma "primeira fala sobre o mundo", uma primeira atribuição
de sentido, sobre a qual a imaginação exerce grande papel, e cuja função principal não é
explicar a realidade, mas acomodar o homem ao mundo.
Claro está que mitos são símbolos, e como todo e, quaisquer símbolos
carregam uma mensagem ou uma informação codificada, inteligível
apenas para os que conhecem o código, a decodificação. Alguns são
universais, outros restringem se a uma região, porém, todos são
expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma
descoberta, um conhecimento ou uma lição. (PEREIRA, 2001)

Consideramos, então, mito como narrativa de significação simbólica, transmitida de 163

geração em geração e considerada verdadeira ou autêntica dentro de um grupo. O gênero,


então, é caracterizado como narrativas que explicam a origem do mito. Nessa análise,
especificamente, abordaremos a narrativa do ―Saci Pererê‖, a história tem características
próprias e apresenta diferentes versões pelo Brasil. Esse mito tem em comum além da
característica física própria, uma origem determinada ou uma função, algumas ações
frequentes das quais as pessoas precisam saber certas dicas para quebrar o encanto ou ficar
livre de seus atos. Possui origem indígena, quando não sofreu diretamente sua influência.

MARCAS LINGUÍSTICAS DE NARRATIVAS COM MITO

Ao observarmos narrativa cujas personagens são mitos, podemos identificar certas


regularidades, demonizadas marcas linguísticas, algumas próprias da estrutura narrativa
enunciado de ações, ordenação dos eventos numa sucessão temporal e casual (ordem
cronológica), tempo verbal do mundo verbal, (pretérito perfeito e imperfeito) e presença
do (discurso direto, indireto e direto livre). O nome do autor (ou autores) da maioria das
histórias que envolvem mitos fica oculto, perdendo-se no tempo. Motivo pelo qual os fatos
folclóricos são considerados anônimos. A determinação do tempo e espaço, em geral, não é
relevante. Quanto à indicação de tempo ela é vaga, imprecisa, introduzido por expressões
como ―era uma vez‖, sem dizer com exatidão quando aconteceu o fato. O autor, nesse
sentido, pertence apenas a expor uma situação – fato central, desse rolada pelo mito. As
personagens não são descritas com muitos detalhes, pois a maioria são mitos bastante
conhecidos. Tais narrativas apresentam uma solução ainda que momentânea para
determinadas situações ocasionadas pela personagem mística.

ANÁLISE DA OBRA ―SACI, MOLEQUE SACI‖

O livro ―Saci, moleque Saci‖, de Carlos Jorge lançado da Franco Editora em Juiz de
Fora no ano de 2007, sob o ISBN 978-857671-058-5 tem 16 páginas, uma ilustração bem
viva com cores fortes mostrando as peripécias do Moleque Saci. Sempre sobre um fundo
nas cores (verde, lilás, preto, telha, marrom e bege), onde se destaca as travessuras do
personagem central da trama, o Moleque Saci. O título do livro ―Saci, Moleque Saci‖, com
as letras se misturando entre maiúsculas e minúsculas e por estarem todas em sentidos de
movimento já proporciona um largo horizonte de expectativas deixando a imaginação do
leitor fluir sobre quais peraltices o moleque Saci os espera dentro da obra. O desenho da
capa da obra embala o leitor a adentrar a história com uma expectativa de que a cada
verso e a cada página uma surpresa está por vir. O fundo preto da capa evidencia a noite 164

tenebrosa, o Moleque Saci de sobrancelhas postas para cima, olhos bem atentos, leva o
leitor imaginar um silêncio absoluto ao ponto de se ouvir o mais leve barulhinho por todo
o ambiente, o pé com calcanhar posto ao solo pronto a sustentar o corpo a espreita e estar
sentado no caminho qual vai até a casa, impunha toda a prontidão do moleque Saci e
sustentando em sua mão seu estimado cachimbo que na escuridão solta fumaças coloridas
por suas baforadas mais fortes e mais fracas devido sentir o ambiente da floresta,
proporciona ao leitor a real visão da intimidade do Moleque Saci para com o ambiente da
floresta onde ele se coloca como guardião. A obra traz uma narrativa lúdica, organizada em
15 páginas, com estrofes que varia os versos conforme o momento da narrativa, como
também a da ilustração que fala por si só. A trama vai se desenrolando com rimas que
deixam o texto provocativo a leitura da próxima página, assim, o narrador vai tecendo as
diabruras do Saci Pererê. Com uma linguagem de palavras simples, leve e coloquial o autor
através do eu lírico do texto, conduz o leitor a um espaço de subjetividade e interação com
a personagem central da história a ponto de, se sentir também, integrante do ambiente
ficcional da narrativa.
Na página três, no verso três a expressão (e morrendo de rir) trata-se da figura de
linguagem ―hipérbole‖ corresponde ao exagero intencional da expressão. As características
do moleque Saci vão sendo descritas sem nenhuma intenção pejorativa. No verso ―um‖ da
página quatro (lá vem o Saci), como em outras partes do texto podemos perceber um
narrador observador que vai participando da história como um coadjuvante que vê o que
narra, mas sem ser o centro do enredo. Palavras que o autor usa em sua narrativa como:
(Endiabrado, danado, estabanado, cachimbando, maluco, azucrinar, amuado), vai
descrevendo a cultura popular, contida nas histórias do folclore brasileiro. As imagens da
página ―seis‖ representam com muita fidedignidade como todos vêem e imaginam o Saci.
Expressões de espanto, curiosidade e apreensão explícita o poder de magia o ser ―mito‖
representante do folclore brasileiro. Na literatura infantil as imagens (ilustrações) são de
fundamental importância, pois amplia o horizonte de magia, encantamento e
entendimento sobre a personagem central da trama ou mesmo o texto. Na página ―nove‖,
a não presença da escrita abre um vazio no texto, deixando o leitor fazer suas conjecturas a
respeito da ilustração. O Saci pula para pegar alguém? O pular olhando de lado, alguém o
assustou? O que de fato aconteceu? Na página seguinte 10, esse vazio e quebrado, foi
apenas mais uma estripulia do Saci. Na página ―dose‖ com a expressão ―Hoje descobri
como enganar o esperto saci:‖, percebemos um vazio no texto. Poder pensar que o 165

moleque Saci por mais esperto que seja tem suas falhas e fraquezas e pode ser vencido. Nas
páginas 14 e 15, é possível perceber um outro traço muito forte nas histórias que envolve
mitos, ―a religião‖. Nessas páginas também apresenta outros vazios do texto, deixando o
leitor valer-se da fé para então se proteger do Saci Pererê. E na página 16, (...) existem por
ai milhares de Sacis! Tal expressão induz o leitor ampliar seu horizonte de expectativas.
Afinal existe uma comunidade, família de Sacis? E por fim, a última página mostra um
ambiente de tranquilidade, as cores representando esperança, ternura, onde a vida flui. O
foco da luz do luar sobre a casinha azul permite o leitor pensar que a noite será de paz e
sossego. A fumacinha na chaminé evidência a presença de alguém. Será o Saci? Quem
souber escreva a próxima página para nos contar!!!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a realização das leituras do aporte teórico que pesquisas sobre literatura
Infantil e a análise da obra ―Saci, Moleque Saci‖, para a realização desse trabalho ficou
ainda mais evidente que o professor deve escolher, com muito esmero, as obras que serão
oferecidas, lidas e trabalhadas em sala de aula. O primeiro contato da criança com a obra
literária faz toda a diferença no despertar para o gosto e bom uso da leitura. Muitas
conquistas no campo da literatura infantil deram-se ao longo do tempo, oferta maior de
obras, linguagem apropriada a diversos seguimentos, diversidade de autores e ilustrações
que acompanham as tendências de evolução das sociedades fazer das obras de literatura
infantil uma fonte inesgotável de oportunidades para professores desenvolverem trabalhos
receados de incentivo e motivação a leitura na primeira infância.

REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA< Vitor Manoel de. Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1992.
BARROS, P. R. P. D. A contribuição da literatura infantil no processo de aquisição de
leitura. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Centro Universitário
Católico Salesiano. Lins, 2013.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudo de história e teoria literária. São Paulo:
Nacional. 1985.
DANZIGER, Marlies K.: JOHNSON W. Stacy. Introdução ao estudo crítico da literatura. São 166

Paulo: Cultrix, 1974. Tradução de Álvaro Cabral com a colaboração de Catarina T.


Feldmann.
FILHO, Domício Proença. A Linguagem Literária. São Paulo: Ática, 1986. Séries Princípios.
Jorge, Carlos. Saci, moleque saci. Juiz de Fora: Franco Editora, 2007. Número de páginas.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1981 (col. Primeiros Passos).
LOPES, C. L.; NAVARRO, E.C... A importância da literatura na educação infantil para a
formação de leitores letrados. Interdisciplinar: Revista Eletrônica da UNIVAR. v. 1, n. 11, p.
15-19. Araguaia, 2014.
ROSENFELD, Anatol. |Estrutura e problemas da Obra Literária. São Paulo: Perspectiva,
1976.

Você também pode gostar