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BOLETIM I 66

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2014

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITORA
Berenice Quinzani Jordão
VICE-REITORA
Ludoviko Carnasciali dos Santos
DIRETORA DO CLCH
Ronaldo Baltar
VICE-DIRETOR
Elaine Fernandes Matheus
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira
CAPA
Felipe Rostirolla
IMAGEM DA CAPA
The Poet’s Garden
Vincent Van Gogh
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO
Maria de Lourdes Monteiro
CONSELHO EDITORIAL
Sérgio Paulo Adolfo
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Paulo de Tarso Galembeck
Celso Vianna Bezerra de Menezes
PARECERISTAS
Dra. Maria Beatriz Pacca - UEL
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dra. Adelaide Caramuru Cezar - UEL
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49)


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51)
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66, )
1991, (20,21) 2003, (44,45)
1992, (22,23) 2004, (46,47)
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 66

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2014
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 66 – p. 1-220, jan./jun. 2014
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL

Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Lon-


drina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968


1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Periódico. 4.
Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
Sumário

Apresentação................................................................................ 7

E... AGORA... A PREPOSIÇÃO E A CONJUNÇÃO: FUNÇÕES


SINTÁTICAS E SEMÂNTICAS........................................................... 11
Elódia Constantino Roman

FORMAS DA CITAÇÃO EM ARTIGOS CIENTÍFICOS................... 27


Lilian Salete Alonso Moreira Lima; Edina Regina Pugas Panichi

A LÍNGUA DO PODER: INCLUSÃO E EXCLUSÃO NO ENSINO


DE LÍNGUA INGLESA....................................................................... 69
Jefferson Adriano de Souza

QUALIDADE DA EDUCAÇÃO: CONCEPÇÕES DA EQUIPE DE


GESTÃO E DE DOCENTES EM ANÁLISE....................................... 89
Viviani Fernanda Hojas; Aline Manfio

A REPRESENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: CINEMA E


LITERATURA...................................................................................... 105
Tacel Coutinho Leal; Danusia Regina Alves

análise dos discursos midiáticos do edifício joel-


ma e da boate kiss Letícia dos Santos Ribeiro........... 121
Valéria Cristina de Oliveira

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO POR MEIO DA LINGUAGEM:


CONVERGÊNCIAS ENTRE BAKHTIN E VIGOSTSKI................... 151
Simone Lesnhak

O CÉREBRO DA APRENDIZAGEM SOCIAL: UMA VISÃO SITUA-


DA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL......................................... 173
Wagner Ferreira Lima

O ADVÉRBIO COMO ELEMENTO ARGUMENTATIVO.............. 193


Esther Gomes de Oliveira; Lolyane Cristina Guerreiro de Oliveira; Bárbara
Luise Hiltel Venturini

NORMAS.............................................................................................. 219
Apresentação

O Boletim do Centro de Letras e Ciências Humanas número


66 apresenta temas diversificados em seus artigos, como por
exemplo: análise linguística da preposição e da conjunção; a citação
no discurso relatado; ensino de língua inglesa; processos avaliativos
em escolas públicas; a questão dos direitos humanos no cinema e na
literatura; os textos verbal e visual em discursos midiáticos; a relação
entre subjetividade e alteridade; a visão neurológica da aprendizagem
humana e os advérbios na construção argumentativa do texto.
Elódia Constantino Roman, no artigo “E... agora... a
preposição e a conjunção: funções sintáticas e semânticas”, estuda
a função morfossintático-semântica e pragmática de duas classes de
conectores, a preposição e a conjunção, em diferentes contextos. A
autora salienta, também, a importância da análise linguística desses
elementos no processo de construção textual.
No artigo “Formas da citação em artigos científicos”,
as autoras Lilian Salete Alonso Moreira Lima e Edina Regina
Pugas Panichi realizam uma pesquisa explicativa, por meio dos
procedimentos bibliográfico e documental, cujo objetivo é focalizar
a citação como manifestação do discurso relatado, evidenciando as
formas como esse discurso outro é inserido em artigos científicos
publicados em periódicos da área de Letras/Linguística. O corpus é
constituído por três artigos de revistas com Qualis CAPES A1, A2,
B1, os quais, segundo um dos critérios Qualis, são artigos de alta
qualidade, produzidos por pesquisadores doutores.
Jefferson Adriano de Souza, em seu trabalho “A língua do
poder: inclusão e exclusão no ensino de língua inglesa”, analisa três
slogans de escolas de idiomas para observar como os sentidos são
construídos pela propaganda. Os resultados sugerem que os slogans
valorizam o padrão do falante nativo, o desejo pela fala, ascensão
social, sentidos de pertencimento e construção de identidades
positivas, relacionadas a comunidades poderosas. O autor deseja
contribuir para que algumas representações sejam questionadas,
produzindo imagens mais inclusivas da Língua Inglesa.
No texto “Qualidade da educação: concepções da equipe de
gestão e de docentes em análise”, Viviani Fernanda Hojas e Aline
Manfio estudam as concepções da equipe gestora e de docentes de
duas escolas públicas municipais do interior paulista sobre educação
de qualidade a partir de dois eixos principais: organização do
trabalho na escola e avaliação em larga escala. A pesquisa identificou,
entre outros aspectos, que a maneira como os atores escolares
compreendem e lidam com os processos avaliativos realizados em
larga escala tem influenciado o trabalho desenvolvido nessas escolas.
O artigo de Tacel Coutinho Leal e Danusia Regina Alves
“A representação dos direitos humanos: ciência e literatura” enfoca
a presença desses direitos enquanto representação manifesta em
produtos culturais, a saber, o cinema e a literatura. As obras são
exploradas levando em conta sua possível contribuição para o
fortalecimento, ou o esvaziamento de tal discurso, ou seja, os autores
traçam um paralelo entre a produção do discurso dos direitos
humanos e a produção de um discurso ficcional que reflete, valida
ou nega o primeiro.
O trabalho “Análise dos discursos midiáticos do edifício
Joelma e da boate Kiss”, de Letícia dos Santos Ribeiro e Valéria
Cristina de Oliveira, analisa o discurso midiático sobre dois
incêndios que abalaram o povo brasileiro: o do edifício Joelma,
em São Paulo, e o da boate Kiss, no Rio Grande do Sul. As autoras
fazem uma relação entre os textos verbal e visual, privilegiando a
complementaridade entre eles, isto é, o texto visual não anula o
verbal, eles se completam, sendo a fotografia a prova do que se diz,
uma silenciosa denúncia social, ainda que o enunciado não possa
ser submetido à prova de sua veracidade.
No artigo “A constituição do sujeito por meio da linguagem:
convergências entre Bakhtin e Vigotski”, Simone Lesnhak discute
o processo de constituição do sujeito na relação com o outro, por
meio da linguagem, propondo convergências entre as concepções
bakhtinianas e vigotskianas considerando o entendimento de que,
na interação humana, os sujeitos aprendem e se desenvolvem, e isso
ocorre por meio de instrumentos de mediação simbólica – os signos.
Nesse sentido, as duas perspectivas convergem na compreensão
de aprendizagem como processo que depende da alteridade, da
mediação da linguagem, efetivando-se no encontro da outra palavra
com a palavra outra. A autora considera a constituição da identidade
como uma relação entre subjetividade e alteridade mediada pela
linguagem.
Wagner Ferreira Lima, no texto “O cérebro da aprendizagem
social: uma visão situada do sistema nervoso central”, apresenta uma
visão situada e neurológica da aprendizagem humana, baseada na
tríplice relação ambiente-forma-função. De um lado, esse modelo
defende que o modo como aprendemos é essencialmente por imitação
social; de outro, a fim de conferir um fundamento neurológico a
essa visão, ele questiona os limites dos três modelos existentes do
cérebro (o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo); e
defende uma representação neurológica alternativa, apoiada na
plasticidade dos neurônios. Segundo essa representação, o cérebro
é biologicamente programado para o aprendizado social.
No artigo “O advérbio como elemento argumentativo
em textos midiáticos”, as autoras Bárbara Luise Hiltel Venturini,
Esther Gomes de Oliveira e Lolyane Guerreiro de Oliveira estudam
a importância dos advérbios na construção argumentativa de
dois gêneros midiáticos: propagandas e frases. O advérbio é um
processo muito utilizado nos mais diversos gêneros com o objetivo
de influenciar e direcionar as intenções do enunciador, inclusive,
muitas vezes, enfatiza os demais recursos argumentativos presentes
no texto. As autoras mobilizam como aporte teórico a classificação
do advérbio conforme Neves (2000).
E... AGORA... A PREPOSIÇÃO E A CONJUNÇÃO:
FUNÇÕES SINTÁTICAS E SEMÂNTICAS

Elódia Constantino Roman1

Resumo: Sabemos que, com o avanço dos estudos linguísticos, deve-se levar em
consideração a função morfossintático-semântica e pragmática das palavras em diferentes
contextos, propiciando uma visão mais ampla sobre o uso da língua(gem). Amplia-se
também a leitura quando se compreende a importância da função de alguns conectores
como elementos importantes no processo de produção textual. Neste trabalho discutimos
e encaminhamos sugestões de como conduzir a análise linguística das preposições e das
conjunções. Apontamos questões discutidas por Neves (2000), Ilari et al. (2008) e
Castilho (2010) entre outros estudiosos que discutem o assunto.
Palavras-chave: preposição; conjunção; análise linguística.

Abstract: It is widely known that with the advancement of linguistic studies, it is


necessary to take into consideration the morpho-semantic and pragmatic function of
words in different contexts in order to provide a broad vision of the use of language.
Reading is also considered in a broader sense when the importance of the function of
some connectors is understood as important elements in the process of textual production.
In this paper, suggestions on how to perform linguistic analysis of prepositions and
conjunctions are discussed. Issues studied by Neves (2000), Ilari et al. (2008) and
Castilho (2010) are also presented in this paper.
Key-words: preposition; conjunction; linguistic analysis.

Introdução

Quando nos deparamos com a classificação das palavras,


entendemos que isso pertence mais à Lógica do que à Gramática,
por isso trata-se de classificação. Melo (1984, p.137) afirma que assim
é “porque se trata de um problema filosófico, já há muito tempo,
desde os gregos se cuidou de resolver a questão”. A classificação dos
antigos estudiosos chegou aos nossos dias porque, até o surgimento

1
Professora Associada B do Departamento de Letras Vernáculas e no Mestrado em Linguagem,
Identidade e Subjetividade na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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da Linguística como ciência, a gramática estava pautada no modelo
da gramática latina.
Passa-se a repensar a classificação das palavras, como Vendryes
(1978, p.91-2) as distribuiu, em três grandes classes: nome, verbo
e instrumentos gramaticais. Na classe dos nomes, estariam o
substantivo e o adjetivo, que se flexionam em gênero e número;
podem intercambiar funções, isto é, um adjetivo exerce a função de
substantivo e vice-versa, de acordo com o contexto, como discutimos
em Roman (2011). O verbo figura como um elemento central da
oração, que vai exigir determinados argumentos, e os instrumentos
gramaticais seriam, os conectivos oracionais.

O rico e o pobre caminhavam pela alameda.


Ele ficou onça com sua atitude.

Melo (p.145) comenta que “ a história das formas muitas


vezes nada tem a ver com os conceitos que se lhe apegam neste
ou naquele momento da vida das línguas”. É o caso de alguns
particípios durante, mediante, tirante, exceto, salvo, que passaram a ser
preposições . Diz o autor que a questão da classificação das palavras
pertence mais à filosofia da gramática do que à história das línguas.
No que diz respeito à preposição e à conjunção, pertencem
à classe dos conectivos: conectivos coordenantes e conectivos
subordinantes. Os coordenantes seriam as conjunções coordenativas
e os subordinantes a preposição, a conjunção subordinativa e
o pronome relativo. Possuem papel e valor idênticos, mas se
distinguem formalmente. Ambas subordinam, em exemplos como:
casa de mármore; lutar contra a morte; desejar que ele vá; sorriu
quando chegamos; o livro que comprei é interessante.
É importante atentarmos para o fato de que, se uma função
subordinada tem um verbo no modo infinitivo, seu conectivo será
uma preposição, como em: João fez de tudo para o pai lhe conceder
privilégios; se o verbo estiver flexionado em função subordinada, o

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seu conectivo será uma conjunção: João fez de tudo para que o pai
lhe concedesse privilégios.

Algumas considerações teóricas

Reportamo-nos à origem do nome preposição, das palavras


latinas prae e positivo, praepositione(m) “posicionar à frente”. É sempre
a primeira palavra de um sintagma preposicional (SP): vender [para
mim]; ontem [de manhã]; diferente [de mim]; começar [a andar];
texto [em verso] e, também, quando rege sentenças introduzidas
pelo complementarizador Que, como em:
O documento foi enviado para que houvesse a manifestação
de todos.
A maior parte das preposições latinas passou para o português.
Era frequente, no latim, combinar-se uma preposição com outra,
resultando uma preposição composta (de+ ex+de=desde; per+ante=
perante). Na passagem para o português, houve um grande número
de palavras de outras classes que passaram a funcionar como
preposição, por exemplo, os adjetivos segundo, conforme; particípios
passados: salvo, exceto, junto ou particípios presentes passante,
mediante, durante. Surgiram as locuções prepositivas formadas de
substantivos ou advérbios e preposições: em vez de, em presença de,
antes de, a par de, etc.
Algumas gramáticas identificam as preposições como “palavras
que relacionam palavras” sugerindo que são muito parecidas entre si,
do ponto de vista sintático. Esse fato vai depender, em grande parte,
do tipo de construção sintática em que elas intervêm. Ilari et al (op.
cit.,624) apontam que “as preposições mais usadas são aquelas que
apresentam a maior variedade de emprego”. Aponta, ainda, que do
ponto de vista sintático, as várias preposições não são tão parecidas
entre si, como se costuma considerar. Ficam claras a natureza dos
objetos sintáticos que elas ligam, bem como as diferenças, quando
são apresentadas como conectivos.

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Se considerarmos as preposições como conectivos que “ligam
palavras” tem-se em contrapartida, conectivos que “ligam sentenças”.
Vejamos exemplos:

1. Parede de tijolos.
2. Viajar sem pressa.
3. Você previu que isso ia acontecer.
4. Faça isso quando quiser.

Observamos que, em (3) e (4), há verbos flexionados e


a conexão entre orações se faz com as conjunções. As sentenças
propiciam um sentido completo no processo de interpretação. Isso
não ocorre em (1) e (2).
As preposições assumem uma variedade de sentidos em
diferentes contextos, não em uma relação de homonímia, mas em
relação de polissemia, do ponto de vista semântico. Ilari comenta que

Num certo momento da história das línguas românicas, o sentido


latino da preposição per, que indicava basicamente o intermediário
humano de uma ação praticada por iniciativa do sujeito, se ampliou
de modo a abranger qualquer tipo de agente. Na significação que per
(>por) assumiu nas línguas românicas, os papéis de “quem detém
a iniciativa” e de “quem a realiza”, se confundem.

Vejamos alguns exemplos em que o emprego da preposição


resulta em processos de nominalização como em João agrediu
Maricota/ Maricota foi agredida por João; temos sintagmas nominais
como a agressão de João; a agressão de Maricota por João. Nos
exemplos, a preposição de serve para indicar o agente ou o alvo da
agressão, enquanto que a preposição por indica, sem dúvida, o agente.
O autor discute alguns critérios que têm sido usados para
tratar as preposições como uma classe de palavras à parte, que é
o enfoque da gramaticalização. Há uma “tentativa de tratar de
preposições de maneira integrada, pois permite recuperar parte da

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história das preposições mostrando a dinâmica da classe como um
todo”.

Agora, as conjunções

A seguir, nos reportamos a palavras e expressões que a tradição


gramatical nomina como conjunções.
Said Ali (1964, p.220) comenta sobre a origem de algumas
conjunções.

Obscura é a origem de certas conjunções latinas; porém, a julgar


por aquelas cujo histórico se conhece, a linguagem não teria creado
vocábulos especiais para constituir a nova categoria. Serviram a este
fim advérbios que, de modestos determinantes de conceito único,
se usaram como determinantes de toda uma sentença; e serviram
também pronomes do tipo relativo-interrogativo [...].

Mattoso Câmara Jr.(1979, p.188) também afirma que


“geneticamente, a conjunção coordenativa é sempre um advérbio”.
Foram poucas as conjunções que herdamos do latim. Assim,
recorreu-se a outras classes de palavras, sobretudo aos advérbios e às
preposições, atribuindo-lhes uma função conjuncional, como em
todavia(tota+via), também(tam+bene), para que, depois que, porém
(pro+inde>porende), magis>mais>mas) etc.
Entendemos que as conjunções não devem ser consideradas
apenas como agrupadas sob um mesmo título. As funções
desempenhadas por palavras e expressões nominadas entre as
conjunções são compartilhadas por construções baseadas em palavras
de outras classes, como afirma Ilari (2008, p.809).
As conjunções têm também função conectiva como as
preposições. Estas aparecem ligando termos de uma sentença e
aquelas conectam sentenças. Nisso é que são distintas.
A tradição gramatical considera as conjunções como
coordenativas e subordinativas. Temos uma relação de coordenação

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e a conjunção é coordenativa ligando duas sentenças do mesmo
nível. No entanto, se uma das duas sentenças se insere na outra
como termo dessa outra, numa relação de subordinação, terá como
conectivo uma conjunção subordinativa.

Sobre gramaticalização de preposições e conjunções

Gonçalves et al.(2007, p.16) postulam que a gramaticalização


pode ser processo, mas também pode ser paradigma; pode apresentar-
se como um fenômeno diacrônico ou sincrônico. É considerada
paradigma “se observada num estado da língua que se preocupe em
focalizar a maneira como formas gramaticais e construções surgem
e como são usadas”. Como processo, se se propuser a identificar e
a analisar itens que se tornam mais gramaticais. Numa perspectiva
diacrônica, se o estudo voltar-se para a explicação sobre como surgem
e se desenvolvem, na língua, as formas gramaticais. Estudos de
gramaticalização sob uma perspectiva discursivo-pragmática, isto
é, do ponto de vista sincrônico, se houver uma preocupação em
identificar “os graus de gramaticalidade que uma forma linguística
desenvolve a partir de deslizamento de funções conferidas a ela
pelos padrões fluidos de uso da língua”. Neste momento, vamos
encaminhar nossa discussão numa perspectiva pancrônica, isto é, a
combinação dessas duas perspectivas, considerando ser, também,
uma possibilidade metodológica.
Discutimos, do ponto de vista da gramaticalização, sobre
vocábulos conectivos que, dependendo do contexto, passam a exercer
função importante na produção textual e são responsáveis pela
condução do sentido do enunciado. Nesta pesquisa, consideramos
Gramaticalização, como postulado por Longhi-Thomazi (2012)

um fenômeno tradicionalmente explicado como um tipo particular


de mudança linguística em que, por meio de um conjunto de
alterações, principalmente de ordem sintático-semântica, itens
lexicais plenos passam a funcionar como expressões que sinalizam

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relações gramaticais específicas. Trata-se, em outras palavras, de uma
das formas pelas quais a gramática de uma língua é constantemente
ampliada.

A teoria da gramaticalização, com o avanço dos estudos


linguísticos, tem contribuído para que se compreendam os limites
entre classes de palavras aberta/lexicais e classe de palavras fechadas/
gramaticais.
Considerando-se as preposições como “classes fechadas”, a
história nos mostra que elas nem sempre foram como são hoje.
Elas sofreram mudanças e algumas caíram em desuso, como ante,
perante, pós e trás.
O “significado de base” das preposições é espacial, isto é,
elas têm a função de indicar, localizar objeto ou evento, como
as preposições sobre, após, desde, entre, etc. Podem aparecer em
contextos não espaciais como em “ Estou aqui desde terça-feira;
Retorno entre duas e três horas da tarde. Nesses exemplos, as
preposições apresentam um sentido espacial em que desde indica a
origem e entre uma posição delimitada entre dois extremos. A isso,
Ilari nomina como “a ideia de uma metáfora” e explica que “um
elemento que tem uma certa significação em um certo contexto, é
transportado para outro contexto, assumindo novas relações, mas
mantendo traços daquela significação primeira”.
Desse modo, não é qualquer preposição que pode combinar-
se com qualquer verbo, substantivo, adjetivo etc. Por exemplo, o
verbo gostar sempre vem acompanhado da preposição de; a frase
cheguei de Curitiba é diferente de cheguei em Curitiba. Podemos
entender que a preposição não deve ser considerada apenas como
elemento relacional, pois como vimos, nos exemplos, é exatamente
a preposição que acarreta mudança de sentido. São itens funcionais.
Algumas preposições podem ser consideradas mais
gramaticalizadas do que outras, isto é, são encontradas em número
maior em construções sintáticas do que outras preposições. Podem

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introduzir um segmento sintaticamente indispensável para a boa
compreensão da frase.
As preposições, como sabemos, introduzem complementos
do verbo. Algumas, apenas, podem introduzir argumentos verbais
São as preposições que se encontram em um grau mais avançado
de gramaticalização. Para Ilari et al. (2008) essas preposições
caracterizam-se também “ (i) por poderem ser amalgamadas a
outros elementos linguísticos; (ii) por terem um sentido mais vago/
difuso e (iii) por conterem, comparativamente, menos material
fonético, compostas que são por uma sílaba: a, de, com, em, para
( que se encontra reduzida para “pra”) e por. Quanto à preposição
sobre, no português de hoje; não se pode combiná-la com artigos
ou pronomes; não é tão opaca quanto o de, e é composta por
duas sílabas. Mesmo assim, pode funcionar como introdutora de
argumentos, como na frase Marcos não fala sobre o que aconteceu.
Ilari et.al (op.cit.,p.642) comentam que “ parece difícil
encontrarmos um verbo que tenha o seu argumento introduzido
por sem ou por ante, ao passo que são inúmeros os casos com de e
em (gostar de, cuidar de, acreditar em, morar em, etc.).
Conforme postulações dos autores, se considerarmos o
processo de gramaticalização, podemos classificar as preposições
como mais gramaticalizadas e menos gramaticalizadas. Contra é a
preposição menos gramaticalizada e de a mais gramaticalizada. As
preposições até, sob e entre são colocadas num mesmo nível, bem
como a e para.
Valemo-nos do quadro (1) por Ilari et al.(2008, p.667), cujos
dados foram encontrados no corpus do Projeto NURC, no que diz
respeito ao uso temporal, espacial e /ou outros usos das preposições.

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Quadro 1. Uso temporal, espacial e outros usos das preposições.
Dados encontrados em Ilari et al. (2008,. 667)

Uso Outros
PREPOSIÇÕES Uso
temporal usos
A,até,de,desde,em,entre,para,por(per) Sim Sim Sim
Com,sem Sim Sim Sim
Sob,sobre Não Sim Não
Ante,perante Não Sim Não
Após Sim Não Não
Contra Não Não Sim
Trás Não Não Não

Na sequência temos o quadro (2) que mostra as preposições


consideradas altamente e/ou pouco gramaticalizadas (p. 647).

Quadro 2. Grau de gramaticalização das preposições

Preposições Gramaticalizadas
A, de, para, por, em, com Altamente
Após, até, contra, desde, entre, perante, sob,
Pouco/menos
sobre, trás, sem

Segundo Gonçalves et al. (2007, p.92), o estudo sobre


conjunções como um dos muitos fenômenos de gramaticalização
“tem se mostrado um domínio extremamente fértil, visto que na
história das línguas, essa classe de palavras sempre esteve sujeita à
renovação”. Para os autores,

Paul (1966) já afirmava que as conjunções derivam historicamente


de advérbios conjuncionais ou de alguns pronomes conjuncionais,
itens que já serviam para ligar orações, antes mesmo de se
transformarem em conjunções propriamente ditas.

Com o advento da Linguística de texto e da análise


conversacional, passou-se a dar atenção sobre a multifuncionalidade

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das conjunções. Castilho (2010, p.340) afirma que Beaugrande
(1980) “identifica entre as propriedades do texto a junção, em que
ele localiza três possibilidades”:

1. Conjunção: há a junção de dois elementos que aparecem


aditivamente em um contexto ou com semelhança (e, também,
além do mais, em aditamento a, etc.);
2. Disjunção: dois elementos em que a relação com o contexto é
alternativa (ou, ou ... ou, ora ...ora, etc.)
3. Contrajunção: os elementos estão relacionados de maneira
antagônica, com o contexto (mas, contudo, todavia, etc.)

Castilho (p.341) postula que os conectivos pragmáticos no


português brasileiro são considerados como marcadores discursivos
e que alguns estudiosos consideram as conjunções “a partir de mais
de um sistema, examinando o polifuncionalismo que assinala estas
como qualquer outra classe de palavras”. A partir disso, o autor
aponta como as conjunções têm procedência da recategorização de
várias classes. Consideremos o encaminhamento feito:

a) um substantivo > conjunção, em que as palavras “ modo”


e “amor” foram usadas no passado na formação de locuções
conjuncionais de causa “ a modo que ( variantes amoque, mode) e
por amor de (variante de pramorde )”.

Valemo-nos de exemplos, no falar caipira, mencionados por


Castilho:

Hei d´i na vila dumingo pramor de vê se compro os perciso.


(Amaral (1922/1977)

Outros exemplos mostram uma conjunção composta:

Mas home, ocê tá falando essas coisa, mode que não imagina os
acontecido. ( com o sentido de “parece” (Marroquim, 1943/1996).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 20


a) Verbo>conjunção: Digamos que eu possa ir lá./ Se eu puder ir lá.
b) Particípio feito > conjunção comparativa: Essa moça anda por
aí feito doida (= anda por aí como doida)
c)Advérbio > conjunção – o advérbio latino magis (“mais”), advérbio
latino que, semanticamente, estabelecia comparações de quantidade
e qualidade e, ainda, com valores de inclusão de indivíduos num
conjunto.

Apontamos exemplos de Castilho (p.351):

a) Precisamos de mais linguistas.


b) Ele tem mais livros do que seu vizinho.
c) Falou mais alto do que seu colega.
Em (a) e (b), mais funciona como um quantificador e em (c)
como um advérbio predicativo quantificador.
O autor comenta, ainda, sobre as propriedades semântico-
sintáticas do mas, afirmando que o emprego de mas como conjunção
adversativa implica:
a) a perda de suas propriedades semânticas de comparação e
inclusão, preservadas enquanto marcador discursivo e enquanto
conectivo textual;
b) a perda ainda mais severa de massa fonética, reduzindo-se o
dissílabo latino magis ao monossílabo português mas ;
c) o ganho da propriedade de contrajunção.

Confrontemos exemplos de Castilho (op.cit., p.353):

1) A gente vive de motorista o dia inteiro, mas o dia inteiro.


2) Nós temos tantos amigos desintegrados... mas nós só temos amigos
assim de família desestruturada.
3) Este vestido é mais para festas, para trabalhar é mais este outro.

Nesses exemplos, percebemos que em (1) e (2) o mas agrega


sintagmas nominais e sentenças; em (3) , mais propicia uma
comparação, atentando-se para o fato de que o segundo termo não

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 21


aparenta relação de contrajunção com o primeiro. No exemplo (1)
observamos que mas, no sentido de inclusão, reativa o sintagma o dia
inteiro propiciando um efeito de ênfase e não efeito contrajuntivo.
Neves (2000, p.767) comenta, também, sobre o mas

(a) com emprego em início de enunciado, em início de turno,


levando em consideração determinações pragmáticas. Confrontemos
os exemplos:

-Vá guardar esses brinquedos, já, já.


- Mas mãe, mas guardar sem sua ajuda...

(b) quando se introduz um novo tema, contrastando com o que foi


mencionado anteriormente. Há uma progressão temática sem se
desconsiderar ou desvalorizar o enunciado anterior. Confrontemos
o exemplo de Neves (op.cit., p.769)

Depois (as mulheres) falavam de roupas, sem constrangimentos. De


roupas, de empregadas e do zelo com as crianças (...) mas os homens
permaneciam no outro canto da sala e um deles contava coisas de
viagem. (CBC)

c) apresentando uma eliminação: “ o enunciado que o mas inicia,


elimina de certo modo o anterior” (p.770). Exemplificamos:

- Você verificou o fato atentamente? Aconteceu isso mesmo?Mas


não, não pode ser!

Castilho ( 2010, p.353-354) postula que casos de contrajunção


negativa, em construções em que há um segmento negado antes
ou depois do mas, “o valor contrajuntivo ainda se concentra nessas
negações explícitas, que podem vir expressas por prefixos negativos,
ou pelo advérbio não”, como no exemplo:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 22


A programação. havia sido planejada... mas não deu certo.
(D2 SP 360)
No entanto, para o autor (p.354), a contrajunção também
pode acontecer entre segmentos afirmativos. Nesse caso, há uma
metonímia, pois “o valor de contrajunção acaba por concentrar-se
em mas, consumando-se o movimento de traços do advérbio de
negação não para a conjunção mas.”

As mais velhas estão entrando na adolescência mas são muito


acomodadas. (D2 SP 360)

Ainda, como aponta Castilho (p. 352), o mas pode funcionar


como marcador discursivo e “ ocorre no lugar relevante da transição,
organizando uma unidade de construção de turno”, na interação
conversacional.. Confrontemos os exemplos dados pelo autor:

L1 – gosto do campo pra dormir... descansar por lá ... negócio de


cultivar não é comigo...
Doc. – mas você falou que passava férias na fazenda...
L1 – eu gosto de andar a cavalo...
Doc. – sim mas você não pode descrever pra ele pelo menos como
é que é essa fazenda?

Quanto às demais conjunções adversativas como porém,


contudo, todavia e entretanto, são derivadas ou sintagmas
preposicionados como por +inde > porende; com + tudo > contudo;
entre +tanto > entretanto ou do sintagma nominal tota +via
>todavia, por gramaticalização. Perini (1995, p.146) postula que
“a possibilidade de movimentação na oração, aproxima porém de
certos itens usualmente analisados como advérbios. Há a mesma
ocorrência com entretanto e contudo. Isso não acontece com mas.
Vejamos alguns exemplos:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 23


O bebê aquietou-se; porém a mãe continua a acalmá-lo.
O bebê aquietou-se; a mãe, porém, continua a acalmá-lo.
O bebê aquietou-se; a mãe continua, porém, a acalmá-lo.

Algumas considerações

Inicialmente, nos detivemos a um breve histórico sobre a


preposição e a conjunção e como alguns estudiosos as consideram,
de maneira diversa da gramática prescritiva.
Sobre as preposições, apontamos que a maior parte delas
passou do latim para o português. Vimos, também, que houve um
grande número de palavras de outras classes que, na passagem para
o português, funcionam como preposição.
Quanto às conjunções, pontuamos que poucas foram as que
tiveram origem latina. Houve a necessidade de recorrer-se a outras
classes de palavras atribuindo-lhes uma função conjuncional.
Ainda, no que diz respeito aos vocábulos que estabelecem
entre dois ou mais termos uma conexão, é bom relembrar, como
mencionado por Mattoso Câmara Jr. (2001, p. 79), que pode
haver conexão entre dois substantivos, como exemplo, flor-de-lis,
cadeira de palha, homem de ferro, ou entre duas sentenças: Soube
que ele venceu o campeonato. É preciso que voltes. Essas formas
são consideradas conectivos subordinativos; são preposições e
conjunções. As preposições subordinam uma palavra a outra; as
conjunções subordinam sentenças.
Discutimos que algumas preposições e conjunções passaram
pelo processo de gramaticalização, propiciando um melhor
encaminhamento textual.
Do ponto de vista do processo da gramaticalização, serviu,
também, para mostrar que as conjunções tiveram sua origem a partir
de advérbios que, além de representarem circunstâncias, atuam como
elementos de coesão, estabelecendo relação de sentido ao ligarem
partes do texto.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 24


O que apresentamos pontuou, principalmente, a importância
da reinterpretação contextualizada a fim de que se possam explicitar
os processos de mudança de sentido das preposições e das conjunções,
no processo de gramaticalização. Dessa forma, podem-se abrir
caminhos para a pragmatização, porque significados referenciais se
mostram como marcas subjetivas textuais na oralidade e na escrita.

Referências

CASTILHO, Ataliba T. de. Nova Gramática do português brasileiro. São


Paulo: Contexto, 2010.

GONÇALVES, S. C. L.& LIMA-HERNANDES, M. C.& CASSEB-


GALVÃO, V. C. (organização) RODRIGUES, A.T. C. [ET AL.] Introdução
à gramaticalização. Princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola
Editorial, 2007.

ILARI, Rodolfo; CASTILHO, Ataliba de; ALMEIDA, Maria L.; KLEPPA,


Lou-Ann; BASSO, Renato M.. A preposição. In: Gramática do português
culto falado no Brasil. Castilho et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2008.

LONGHIN-THOMAZI, Sanderléia Roberta. Considerações sobre


gramaticalização de conjunções na história do português. In: Anais do 6.º
Encontro Celsul - Círculo de Estudos Linguísticos do Sul-http://www.
celsul.org.br/Encontros/06/Individuais/60.pdf, acesso em21/10/2012.

MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. História e estrutura da língua


portuguesa. 2ª. ed., Rio de janeiro: Padrão, 1979.

_____. Estrutura da língua portuguesa. 34.ªed. Editora Vozes, Rio de


janeiro, 2001.

MELO, Gladstone Chaves. Iniciação à filologia e à linguística portuguesa.


Rio de janeiro: Ao Livro Técnico, 1984.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 25


NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do Português. São
Paulo: Editora UNESP, 2000.

PAUL, Hermann. Princípios fundamentais da história da língua. Trad.:M.L.


Schemann. Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 1966.

PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português. São Paulo: Editora


Ática, 1995.

ROMAN, Elódia Constantino. A função morfossintática e semântica de


classe de palavras: percorrendo caminhos. Revista Línguas & Letras. Número
Especial – XIX CELLIP – 1º semestre. EDUNIOESTE. p. 1-15, 2011.

SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. São Paulo:


Melhoramentos, 1964.

VENDRYES, Joseph. Le langage: introduction linguistique a l’histoire.


Ed. Paris: Albin Michel, p.91-92, 1978.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 11-26–jan./jun. 2014 26


FORMAS DA CITAÇÃO EM ARTIGOS CIENTÍFICOS

Lilian Salete Alonso Moreira Lima1


Edina Regina Pugas Panichi2

Resumo: Neste Artigo, realiza-se pesquisa explicativa, por meio dos procedimentos
bibliográfico e documental, cujo objetivo é focalizar a citação como manifestação do
discurso relatado, evidenciando as formas como esse discurso outro é inserido em artigos
científicos publicados em periódicos científicos da área Letras/ Linguística. O corpus é
constituído por 3 artigos, de revistas com Qualis CAPES A1, A2, B1, os quais, segundo
um dos critérios Qualis, são artigos de alta qualidade, produzidos por pesquisadores
doutores. Observamos que as formas das citações, quando tomadas em sua dimensão
linguística e entendidas como manifestação do discurso relatado, ganham outros
contornos, mais variados e abrangentes do que aqueles delimitados pela ABNT NBR
10520-2002 e disseminados pelos Manuais de Metodologia.

Palavras-chave: citação; artigos científicos; discurso relatado.

Abstract: This paper presents an explanatory research, realized by bibliographic and


documentary proceedings, whose objective is to focus to quotation as manifestation of the
speech reported, highlighting as ways this other speech are inserted in scientific articles
published in scientific magazines of the area Lyrics / Linguistics. The corpus is constituted
for 3 articles of magazines with Qualis CAPES A1, A2, B1, which, according one of the
Qualis criteria, are high quality articles, produced by doctor researchers. We note that
the forms of quotations, when taken in your linguistic dimension and understood how
manifestation of reported speech, they acquire other contours, more varied and embracing
than those delimited by ABNT NBR 10520-2002 e by the Methodology Manuals.

Keywords: quotation; scientific articles; reported speech.

1
Docente da UNESPAR, campus União da Vitória-PR. Doutoranda do Programa de Pós-
graduação em Estudos da Linguagem (UEL). Mestre em Estudos da Linguagem (UEL).
E-mail: liliansalete@hotmail.com.
2
Docente do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (UEL).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 27
Introdução

Temos observado nos textos acadêmicos produzidos por


nossos alunos de Graduação e até de alguns da Pós-graduação que
os autores citados são utilizados mais para sustentar as “poucas”
palavras do autor citante do que para estabelecer uma discussão. Pela
nossa prática em sala de aula, vemos que o trabalho com a leitura e
a escrita, ainda na graduação, não prepara o futuro pesquisador para
uma escrita heterogênea em que suas próprias palavras dialoguem,
em que suas ideias estejam presentes ou sejam testadas; enfim, desde
a graduação, o pesquisador é preparado para ser reprodutor do
discurso científico já consolidado. Essa observação também foi feita
por Silva (2009, p.2) em seu estudo sobre dissertações de mestrado:

Em alguns trabalhos acadêmicos, talvez mais especificamente em


dissertações de mestrado, temos verificado que, mais notadamente
no capítulo de resenha teórica e, ademais, no restante do trabalho,
os autores arrolados são mais úteis para confirmar o que o
candidato a mestre está querendo sustentar do que para
estabelecer uma discussão a fim de chegar a uma perspectiva que
melhor auxilie na análise do objeto pesquisado. A história do ensino
brasileiro nos mostra que o modo de tratamento do trabalho com a
leitura e a escrita até mesmo na graduação não prepara devidamente
para uma escrita heterogênea, que seja capaz de dialogar, propor
embates e criações.

Pesquisas que comparam o uso de citação entre principiantes


e pesquisadores experientes demonstram que os iniciantes recorrem
mais às citações diretas, apoiando-se nas ideias de autores, enquanto
os pesquisadores mais experientes costumam inserir-se como autores
de suas ideias, apoiando-se menos nas ideias do outro, atribuindo
e avaliando essas ideias (BOCH; GROSSMANN, 2002; BESSA,
2011, 2012; BESSA; BERNARDINO, 2012).
Boch e Grossmann (2002) analisam as “[...] diferentes
formas sob as quais se revestem as referências ao discurso do outro

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 28
nos textos dos especialistas, a fim de dispormos de um parâmetro
para comparação” com textos de estudantes universitários. Os
autores classificam os diferentes modos de referência ao discurso
do outro como evocação, discurso relatado e, a partir deste,
reformulação, ilhota citacional e citação autônoma. Em sua análise
de artigos publicados na revista Langages, eles encontraram número
significativo de evocação nos textos dos especialistas. Sob a forma
de discurso reportado, os especialistas utilizam predominantemente
a reformulação. Isso, segundo os autores, explica-se pela economia,
pela condução do fio da análise e por propiciar fácil controle do
gerenciamento enunciativo. A citação ocorre quando o autor precisa
marcar o dizer do outro, caso de definições, ou por questões de estilo.
Os estudantes universitários, por seu turno, supervalorizam
a citação comparada à reformulação, enquanto a evocação aparece
muito pouco. Os autores supõem que isso ocorra por: i) acúmulo
de fragmentos de discursos teóricos; ii) prevenção de deslize
resultante de reformulação não pertinente; iii) manutenção do estilo
científico considerado padrão; iv) distanciamento característico de
um primeiro contato com o discurso científico; v) fundamentação
ou valorização de seu dizer, especialmente pela falta de domínio do
conhecimento específico (BOCH; GROSSMANN, 2002).
Bessa e Bernardino (2012) partem da tese de que a referência
ao discurso do outro, fenômeno intrínseco à construção do texto
em geral e do texto acadêmico em particular, é mais recorrente nos
trabalhos de estudantes; os autores comprovam sua tese estudando
relatórios de estágio e TCCs de alunos do curso de Letras. Analisando
seu corpus, os autores verificaram que os estudantes mobilizam o
discurso do outro de diferentes maneiras, mas predominantemente
com vistas a apoiar/ reforçar seu dizer. No entanto, eles destacam
que nem sempre essa mobilização é bem empregada nos textos dos
estudantes e acreditam que a recorrência do discurso citado direto
indica sua dificuldade em citar indiretamente, via paráfrase ou
comentário.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 29
Alvarenga (1998) toma como base a bibliometria,
relacionando-a à arqueologia do saber foucaultiana, numa busca
por convergências e divergências entre ambas. Bessa (2011, p.427)
defende que somente o olhar técnico não é suficiente para “[...] dar
conta da complexidade do fenômeno da citação [...]”, assim como
somente o olhar linguístico não o é também, já que os usos da citação
“[...] não dependem de estratégias pontuais dos enunciadores [...]”
(BESSA, 2011, p.427). Esse autor afirma que há poucos estudos no
campo linguístico acerca da citação em textos acadêmico-científicos.
Ele analisa textos de pesquisadores iniciantes e mostra que o ensino
não deve se limitar a visão da citação como procedimento técnico,
pois o ato de citar envolve aspectos de natureza enunciativa, uma
tomada de posição do enunciador frente o dizer do outro.
Tendo em vista esse contexto, o objetivo deste Artigo
é focalizar a citação como manifestação do discurso relatado,
evidenciando as formas como esse discurso outro é inserido em
artigos científicos publicados em periódicos científicos da área
Letras/ Linguística. Por ser este Artigo um recorte de nossa Tese
em andamento, o corpus aqui selecionado é formado por 3 artigos,
de revistas com Qualis CAPES A1 (Artigo 1), A2, (Artigo 2), B1
(Artigo 3), os quais, segundo um dos critérios Qualis, são artigos
de alta qualidade, produzidos por doutores. Essa escolha se justifica
pelo fato de querermos mostrar quais são os usos feitos pela “elite
acadêmica”, isto é, por profissionais que já atingiram o grau máximo
de sua titulação acadêmica e são pesquisadores com relativa produção
científica. Metodologicamente, esta pesquisa se classifica, quanto
aos objetivos, como explicativa, e quanto aos procedimentos, como
bibliográfica e documental.

Citação segundo a ABNT e os Manuais de Metodologia

Para definir citação, especialmente quando se trata do texto


acadêmico, é necessário consultar a normalização. A Associação

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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por meio da norma NBR
10520, de agosto de 2002, “[...] especifica as características exigíveis
para apresentação de citações em documentos.” (ABNT, 2002, p.1)
e define:

3.1 citações: Menção de uma informação extraída de outra fonte


3.2 citação de citação: Citação direta ou indireta de um texto em
que não se teve acesso ao original.
3.3 citação direta: Transcrição textual de parte da obra do autor
consultado.
3.4 citação indireta: Texto baseado na obra do autor consultado.
(ABNT, 2002, p.1-2)

Após apresentar essas definições, o documento normaliza


a localização das citações (elas podem aparecer no texto ou em
notas de rodapé), as regras gerais de apresentação, ou seja, de que
modo devem ser feitas as chamadas (fornecimento de informações
suficientes para se localizar sua referência ao final do texto bem
como permitir a consulta à fonte original da citação: sobrenome
do autor, ano da publicação e número da página). É especificada
também a forma de apresentação visual das citações no texto (uso
de aspas, letras em tamanho e espaçamento diferenciados, indicação
de supressões, ênfase ou destaque, inserção de comentários, etc.).
Por se tratar de normalização elaborada por um órgão técnico,
vê-se que a norma da ABNT focaliza a forma de se fazer citação. Já
nos manuais, produzidos especificamente para orientar a produção
dos textos acadêmicos e geralmente publicados por editoras de
universidades, há uma abordagem mais detalhada do que são as
citações. Isso porque tais livros têm o objetivo não só de apresentar
a normalização dos textos acadêmicos, mas também de orientar sua
elaboração e redação.
Müller e Cornelsen (1999, p.22) definem as citações como
“[...] elementos retirados dos documentos dos autores pesquisados
durante a leitura da documentação” e destacam a utilidade das

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citações para ratificar as ideias do autor da pesquisa. As autoras
chamam atenção também para o fato de que as citações bem
escolhidas enriquecem o texto, pois mostram preocupação do autor
com a pesquisa e a atenção dada aos autores citados, os quais se
mostram “relevantes para o assunto”.
Quanto aos tipos e formas de apresentação, as autoras seguem
a NBR 10520, mas com diferença nas nominações: as citações
diretas são chamadas textuais e as citações indiretas são chamadas
conceptuais. Por se tratar de um manual, a forma como as autoras
condensam e organizam as regras da ABNT merece destaque, visto
que se torna mais fácil a compreensão dos tipos e formas de fazer
citação: as citações textuais são subdivididas em citações curtas (até
três linhas) e citações longas (mais de três linhas). No caso das citações
conceptuais, as autoras destacam que elas podem se apresentar
de duas formas – por paráfrase e por condensação (MÜLLER e
CORNELSEN, 1999, p.22-25).
Suzuki, Steinle e Battini (2009) abordam a citação quando
tratam dos elementos textuais do TCC. As autoras utilizam os
mesmos nomes da ABNT – citações diretas e indiretas – e seguem
a organização de Müller e Cornelsen para subdividir a citação direta
em curta ou longa.
Apesar de abordarem as diferentes formas de citação e
fornecerem exemplos de como devem ser feitas, os Manuais de
Metodologia nem sempre são bem avaliados. Dias (2005) aponta
que esses Manuais são pouco apropriados por não abrangerem a
heterogeneidade das práticas discursivas dos gêneros científicos. Ao
focalizar aspectos técnicos e o produto, essas obras não apresentam
as possibilidades, os efeitos enunciativos e os significados de recorrer
ao discurso de outrem.
Visão semelhante têm Boch e Grossmann (2002, p.97):

[...]Além do caráter normativo das recomendações (que provocam


impasse em relação à heterogeneidade das práticas dos especialistas),

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os estudantes universitários são colocados frente a exigências
contraditórias: citar, mas não muito, dar prova de originalidade,
mas se referir permanentemente ao discurso dos professores.

Bessa (2011) acredita que as classificações dos tipos de citação


e as instruções – o mesmo que as exigências de que falam Boch e
Grossmann (2002) acima – denotam a visão da citação como uma
ação guiada unicamente por regras de como fazer. Apoiar-se na voz
do outro se reduz a uma “questão de medida”, a algo técnico; em
vez de questionamento ou resolução de problema teórico, converte-
se em mera exigência do texto acadêmico, como se o modelo ideal
desse conta das possíveis variações e dos diferentes papéis da citação
(BOCH; GROSSMANN, 2002; BESSA, 2011).
Bessa (2012; 2011) defende que é preciso conceber a citação
no texto acadêmico não como se faz tecnicamente nos manuais
de metodologia científica, mas de forma sistemática e com “olhar
linguístico”. Dessa forma, pode-se ver que citar vai além das
nominações típicas dos manuais – citação direta, indireta e citação
de citação – de modo que se possa afastar de um ato de reprodução
fiel ou reformulação do texto original para uma forma de reflexão e
tomada de posição, assumir-se como autor de seu discurso. O autor
defende ser necessário:

[...] reivindicar o citar em sua dimensão dialógica e, por conseguinte,


sua função na construção textual dos sentidos, [...]. Suscitar esse
debate representa uma possibilidade de tentar olhar a citação como
um recurso de natureza enunciativa, cujo uso sinaliza uma tomada
de posição daquele que a emprega na tessitura dos sentidos do texto.
[...] Esse nosso entendimento se apoia na compreensão de que
o citar, embora seja constitutivo da linguagem humana, como
expressão do dialogismo linguístico bakhtiniano, é um ato
revestido de certa complexidade, especialmente na escrita de
pesquisadores em iniciação científica. (BESSA, 2011, p.422-423)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 33
Diante do exposto acima e, especialmente, da última citação,
passaremos à visão da citação como manifestação do discurso
relatado.

Citação como manifestação do discurso relatado

Discutindo a questão do “discurso outro”, Bakhtin (1997)


assevera que ele, ao mesmo tempo, contém sua própria expressão e a
expressão do enunciado que o cita. Apesar de isso ser mais evidente
quando o “discurso outro” é citado e aspeado, todo enunciado
traz algo do “outro”, ainda que implícito: “[...] Dir-se-ia que
um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase
inaudível da alternância dos sujeitos, falantes e pelos matizes
dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados
e totalmente permeáveis à expressividade do autor.” (BAKHTIN,
1997, p.318)
O texto acadêmico se faz a partir da aplicação de um método
científico, embasado teoricamente e essa teoria aparece sob a forma
de citações. Contudo, os dizeres do outro não devem ser “colados”
ao discurso do citante, mas sim constituir um diálogo. Vieira (2009,
p.58 – grifo nosso) sintetiza o papel da voz do outro no texto
acadêmico dizendo que:

Nenhum texto científico se sustenta sem referências. A pesquisa


bibliográfica serve para ajudar o pesquisador a ir adiante em suas
reflexões. O embate se estabelece no momento da escrita do texto:
como manter um estilo pessoal, uma visão crítica própria,
citando textos alheios? Justamente através do diálogo, em que
se evita o excesso de citações, e quando estas são utilizadas, faz-se
necessária a honestidade intelectual, ou seja, dar crédito às palavras
que não são suas, sob o risco de cometer plágio [...].

Assim, a citação pode ser entendida como um processo pelo
qual o locutor apropria-se de um conteúdo de um discurso para

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aplicá-lo em outro, atribuindo-lhe novo significado. Ao colocar um
enunciado no interior de outro, ele manifesta-se a respeito desse
enunciado, o que implica um comprometimento com o que está
sendo dito, mesmo que sejam palavras atribuídas a outro enunciador.
Uma definição de discurso citado é: “O discurso citado é
o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao
mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a
enunciação.” (BAKHTIN, 2006, p.147)
Segundo Bakhtin (2006, p.147):

[...] ele [o discurso de outrem] pode entrar no discurso e na sua


construção sintática, por assim dizer, “em pessoa”, como uma
unidade integral da construção. Assim, o discurso citado conserva
sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar
a trama linguística do contexto que o integrou.

Para o autor, há uma relação ativa entre as enunciações na


transmissão do discurso do outro, estabelecida pelas construções da
língua e, ao estudar o diálogo, é imprescindível que se estudem as
formas usadas na citação do discurso, pois “[...] essas formas refletem
tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de
outrem, e é essa recepção, afinal, que é fundamental também para
o diálogo.” A análise dessas formas também permite ao estudioso
apreender “[...] as tendências sociais estáveis características da
apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas
formas da língua.” Isso porque o mecanismos desse processo está na
sociedade, a qual é responsável por moldar as formas do discurso
citado. (BAKHTIN, 2006, p.149)
A transmissão do discurso do outro adquire sentido dentro do
contexto, tem uma finalidade específica e é direcionada a uma pessoa,
o que, segundo Bakhtin (2006, p.149), “[...] reforça a influência das
forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso”.
Para o autor, as formas de apreensão ativa e apreciativa do discurso
citado vão além das formas sintáticas típicas do discurso direto ou

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 35
do indireto, até porque o processo de citação vai além dessas formas
padronizadas.
Segundo o autor, uma forma é relegada a segundo plano
quando as tendências dominantes de compreensão e de apreciação
são difíceis de se manifestar sob essa forma, por isso ela é rejeitada.
Assim, no estudo do discurso citado, é importante que o pesquisador
foque seu estudo na interação entre o discurso citado e o discurso
citante, observando a direção em que se desenvolve a dinâmica
dessa interação.
Por um lado, pode-se delimitar clara e nitidamente o discurso
citado de modo a “protegê-lo de infiltração” do discurso citante;
criam-se contornos exteriores nítidos. Por outro lado, o discurso
citado pode ser apresentado como um monobloco, uma tomada
de posição do citante, em que ele “infiltra” seus comentários no
discurso do outro, apagando suas fronteiras (BAKHTIN, 2006,
p.152-153). No primeiro caso tem-se o estilo linear e, no segundo,
o estudo pictórico.
As constatações de Bakhtin (2006) foram feitas com base em
textos narrativos de séculos anteriores ao que ele viveu, escritos, por
exemplo, em francês ou russo, bem como seu estudo do discurso
indireto, do direto e de suas variantes foi feito a partir do russo. O
próprio autor observa que:

[...] Conforme a língua, conforme a época ou os grupos


sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo
específico, vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora
uma variante ora outra. O que isso atesta é a relativa força
ou fraqueza daquelas tendências na interorientação social de
uma comunidade de falantes, das quais as próprias formas
linguísticas são cristalizações estabilizadas e antigas. (BAKHTIN,
2006, P.150)

Maingueneau (2008, p.12 – grifo do autor) faz ressalva


semelhante, destacando que, em seu estudo, a atividade enunciativa

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vem em primeiro plano e o enunciado é visto como discurso, bem
como o texto é estudado “[...] como uma atividade enunciativa
ligada a um gênero do discurso: o lugar social do qual ele emerge, o
canal por onde passa [...], o tipo de difusão que implica etc., não
são dissociáveis do modo como o texto se organiza.”
Authier-Revuz (1997) assevera que os modos de representação
do discurso outro não se limitam ao discurso direto, indireto
e indireto livre, já que existem as formas híbridas entre outros
fenômenos. Para estruturar o campo do discurso citado, a autora
estabelece três oposições fundamentais: i) DR [discurso relatado =
discurso direto; discurso indireto] no sentido estrito vs. modalização
em discurso segundo; ii) signo padrão vs. signo autônimo; iii)
explícito vs. interpretativo.
A autora destaca que é essencial entender que o discurso
relatado não trata de frase ou enunciado, mas relata “um ato de
enunciação” e, por isso, “[...] supõe que e (objeto de M) seja diferente
de E [...]. Essa diferença entre e e E pode abarcar todos os parâmetro
(L ≠ l, R ≠ r; Tempo ≠ tempo; Lugar ≠ lugar)[...].” (AUTHIER-
REVUZ, 1997, p.145-146)
Authier-Revuz (2004) afirma que o locutor explicita em seu
discurso o discurso citado por meio do discurso direto e do indireto:

É o outro do discurso relatado: as formas sintáticas do discurso


indireto e do discurso direto designam, de maneira unívoca, no
plano da frase, um outro ato de enunciação. No discurso indireto,
o locutor se comporta como tradutor: fazendo uso de suas
próprias palavras, ele remete a um outro como fonte do ‘sentido’
dos propósitos que ele relata. No discurso direto, são as próprias
palavras do outro que ocupam o tempo – ou o espaço – claramente
recortado da citação na frase; o locutor se apresenta como simples
‘porta-voz’. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.12)

A presença do discurso citado é uma forma de heterogeneidade


mostrada, a qual pode se dar por meio de formas não marcadas,

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identificáveis a partir de índices textuais ou pela cultura do
interlocutor (por exemplo: discurso indireto livre, alusões, ironia,
pastiche etc.) ou por meio de formas marcadas (discurso direto
ou indireto, as aspas, as glosas). (AUTHIER-REVUZ, 2004;
MAINGUENEAU, 1997)
Souza-e-Silva e Rocha (2008, p.16) apontam as formas
do discurso relatado abordadas por Mainguenau (2008) como
“conceitos-suporte para uma abordagem discursiva das marcas da
heterogeneidade mostrada”. Este autor trata das formas modalização
em discurso segundo, discurso direto, discurso indireto, formas
híbridas, resumo com citações.
Boch e Grossmann (2002) apontam os modos de referência
ao discurso do outro como evocação e discurso relatado e, dentro
deste, reformulação, ilhota citacional e citação autônoma. A ilhota
e a citação entram nas formas de discurso direto e indireto, que
abordaremos com base em Maingueneau (2008). De Boch e
Grossmann (2002) interessam para nós a evocação e a reformulação.
Vejamos, a seguir, as especificidades de cada um dos tipos
nomeados acima e que servirão de base para a análise das formas
das citações.

Discurso direto (DD)

Para Authier-Revuz (1997, p.150), o DD corresponde “[...]


a uma operação de citação da mensagem do ato relatado”. Segundo
Maingueneau:

[...] o discurso direto se caracteriza pela aparição de um segundo


“locutor” no enunciado atribuído a um primeiro “locutor”.
Frequentemente é oposto, de forma um pouco ingênua, ao
discurso indireto, alegando que ele pretende reproduzir literalmente
as alocuções citadas; seria mais exato ver nele uma espécie de
teatralização de uma enunciação anterior e não uma similitude
absoluta. Dito de outra forma, ele não é nem mais nem menos fiel

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 38
que o discurso indireto, são duas estratégias diferentes empregadas
para relatar uma enunciação. (MAINGUENEAU, 1997, p.85)

Authier-Revuz (1997) considera o DD mais complexo que


o DI, pois o DD tem estrutura heterogênea. Maingueneau parece
concordar com a autora quando afirma: “[...] o enunciador [...]
simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar
claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante
e a do discurso citado.” (MAINGUENEAU, 2008, p.140 – itálico
do autor)
Essa estrutura heterogênea do DD pode ser observada
no estatuto semiótico, na estrutura sintática, na modalidade de
enunciação, no quadro de indicações dêiticas, na designação por
descrições definidas, nos elementos expressivos e nos modos de dizer.
Além disso, o DD não é objetivo ou fiel, uma vez que não se pode
restituir o ato de enunciação (AUTHIER-REVUZ, 1997). Sobre
isso, afirma Maingueneau (2008):

[...] Como a situação de enunciação é reconstruída pelo sujeito que


a relata, é essa descrição necessariamente subjetiva que condiciona
a interpretação do discurso citado. O DD não pode, então, ser
objetivo: por mais fiel, o discurso direto é sempre apenas um
fragmento de texto submetido ao enunciador do discurso citante,
que dispõe de múltiplos meios para lhe dar um enfoque pessoal.
(MAINGUENEAU, 2008, p.141)

Sobre o modo semiótico do DD, afirma Authier-Revuz


(1997, p.139):

No DD, o enunciador relata um outro ato de enunciação e, usando


suas próprias palavras na descrição que faz da situação de enunciação
e [...], ou seja, naquilo que chamamos de sintagma introdutor, mas
faz menção às palavras da mensagem que relata; o modo semiótico
do DD é, assim, heterogêneo: padrão no sintagma introdutor, ele é
autônimo na parte “citada”, isto é, mostrada.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 39
Em relação à autonímia, no DD observam-se as propriedades:
“a mensagem relatada, colocada entre aspas, tem a função, na
frase global, de um SN substituindo as funções de OD do verbo
dicendi, qualquer que seja sua natureza sintática.”; “[...] a mensagem
mostrada e, DD é dada em sua materialidade significante [...]”
(AUTHIER-REVUZ, 1997, p.139-140).
Os introdutores do DD têm duas funções relacionadas ao
leitor: 1) indicação de um ato de fala; 2) estabelecimento de fronteira
entre discurso citante e discurso citado. A primeira função é satisfeita
por meio de: verbos cujo significado indica que há enunciação;
grupos preposicionais; ausência de introdutor explícito. A segunda
função é marcada tipograficamente: “[...] dois pontos, travessões,
aspas e itálico delimitam a fala citada.” (MAINGUENEAU, 2008,
p.141)

Discurso indireto (DI)

Segundo Authier-Revuz (1997), “no DI, o enunciador


relato um outro ato de enunciação e usando suas próprias palavras,
pelas quais ele reformula as palavras de outra mensagem: o modo
semiótico do DI é, de maneira homogênea, o modo-padrão.” Dessa
forma, a mensagem relatada é uma frase típica da gramática e o que
nos permite reconhecer o DI é o sentido, já que o DI enuncia um
conteúdo e apresenta apenas uma modalidade de enunciação. O DI
é apresentado sob a forma de oração subordinada objetiva direta,
antecedida de verbo dicendi, o qual indica a existência do DI, por
isso “[...] a escolha do verbo introdutor é bastante significativa, pois
condiciona a interpretação, dando um certo direcionamento ao
discurso citado.” (MAINGUENEAU, 2008, p.150)
De certa forma, o DI opera uma reformulação-tradução,
pois é produzido um enunciado que pretende ter o mesmo sentido
do ato relatado. Para produzi-lo, é preciso interpretar o enunciado,
considerando sua situação de enunciação, e recodificar em um novo
enunciado (AUTHIER-REVUZ, 1997).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 40
Formas híbridas

Como o próprio nome sugere, as formas híbridas são


construídas por formas diferentes de discurso citado numa mesma
ocorrência. São elas a ilha textual e o DD com que.

Ilha textual

Ilha textual, também chamada de ilha enunciativa


(MAINGUENEAU, 2008), ilhota textual (AUTHIER-REVUZ,
2004) ou ilhota citacional (BOCH; GROSSMANN, 2002) ocorre
quando, no interior do DI, o citante isola em itálico ou entre aspas
um fragmento do citado, perfeitamente integrado à sintaxe, que é,
ao mesmo tempo, utilizado e mencionado. Somente a tipografia
(itálico, aspas) permite reconhecer esse fragmento como não
assumido pelo citante.
Para Authier-Revuz (1997, p.142):

[...] é apenas um caso de imagem particular de funcionamento do


sinal de modalização autonímica: aquela extremamente frequente
na imprensa, em particular, na qual um DI, relatando um outro ato
de enunciação num modo que é o seu, ou seja, da reformulação,
assinala, localmente, um elemento como “não traduzido”, como
fragmento conservado da mensagem de origem [...].

Apesar de não usar essa nomenclatura, Bakhtin (1997, p.162)


também identificou casos semelhantes à ilha:

A tendência analítica do discurso indireto manifesta-se


principalmente pelo fato de que os elementos emocionais e
afetivos do discurso não são literalmente transpostos ao discurso
indireto, na medida em que não são expressos no conteúdo
mas nas formas da enunciação. Antes de entrar numa construção
indireta, eles passam de formas de discurso a conteúdo ou então
encontram-se transpostos na proposição principal como um
comentário do verbum dicendi.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 41
Authier-Revuz (2004) considera que na ilha também há
a homogeneidade que ela apontou anteriormente no DI (cf.
AUTHIER-REVUZ, 1997). Enquanto no DD a heterogeneidade
se mostra tanto no plano sintático quanto no plano enunciativo,
na ilha, assim como no DI, não apresenta ruptura sintática ou
enunciativa, mas o fragmento é integrado e homogêneo.

DD com que

O DD com que é uma forma híbrida em que o DD ocorre


depois de introdutor de DI (verbo + que). Maingueneau (2008)
observou esse uso na mídia, onde:

[...] os jornalistas procuram atuar em relação aos indivíduos de


quem falam, mas tentam “colar-se” à sua linguagem e ao seu ponto
de vista; não se contentam em comentar acontecimentos, descrever
a realidade; eles pretendem restituir o ponto de vista e as palavras
dos atores. (MAINGUENEAU, 2008, p.152)

Podemos adiantar que essa forma foi encontrada na análise


que empreendemos a seguir, neste mesmo Artigo.

O resumo com citações (RCC)

O RCC apresenta combinação de DI com fragmentos de


DD, mas, nesse caso, faz-se um resumo do conjunto do texto citado:

Nesse resumo com citações, as unidades entre aspas são empregadas


ao mesmo tempo como no DI, que restitui o sentido, e como no DD,
que restitui as palavras empregadas: o leitor apreende o sentido e,
ao mesmo tempo, lê as palavras mesmas utilizadas pelo enunciador
citado. (MAINGUENEAU, 2008, p.155)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 42
Segundo o autor, as palavras citadas se distinguem claramente
pela tipografia, seja itálico, sejam aspas. Essa forma de citação
é muito comum em textos jornalísticos, nos quais o RCC “[...]
pretende efetivamente ter valor documentário, ele se baseia em uma
ética da palavra escrita, da objetividade, que faz a voz do discurso
citante tornar-se a mais discreta possível.” (MAINGUENEAU,
2008, p.155)

Modalização em discurso segundo (MDS)

Authier-Revuz (1997) aponta a modalização em discurso


segundo como uma das formas marcadas de representação do
discurso citado, o qual é marcado por meio de formas da língua,
como grupos preposicionais, verbos, entre outras. Na MDS, o
enunciador remete ao discurso de outra pessoa e, em certos usos,
pode comentar sua própria fala.

Reformulação

Segundo Boch e Grossmann (2002, p.100), “[...] a


reformulação permite ao escritor integrar a fala do outro em seu
proprio dizer, assumindo-a do ponto de vista enunciativo.” A
reformulação é caracterizada pela “presença de marcas introdutórias
de discurso reportado” (semelhantes às da modalização em discurso
segundo); pela “ausência de marcas escriturais tais como aspas”
e pelo fato de que “o discurso do outro é integrado no discurso
de quem escreve e não tem autonomia enunciativa.” (BOCH;
GROSSMANN, 2002, p.101).
Quando consideram a presença das marcas de discurso
reportado, entendemos que os autores chamam de reformulação o
mesmo que Maingueneau (2008) e Authier-Revuz (1997) chamam
de modalização em discurso segundo. Assim, em nossa análise, a
ocorrência de modalizadores com DI será tratada de MDS.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 43
Para nós, reformulação será a ocorrência de DI em que há
ausência de marcas tipográficas e o discurso citado aparece integrado
ao discurso citante, sendo reconhecido somente pela presença da
referência (Autor, data) no final do trecho reformulado.

Evocação

A evocação ocorre quando o citante alude a trabalhos sem


resumir seu teor. A evocação “[...] permite colocar em segundo
plano os conhecimentos compartilhados, ou os elementos não
essenciais ao propósito, inscrevendo, ao mesmo tempo, a pesquisa
em um espaço epistêmico identificável [...]” e é identificada por
meio da “ausência de marcas introdutórias de discurso reportado”,
ausência de desenvolvimento temático do dizer do outro”, “presença
de um nome próprio de autor, frequentemente com a data à qual
o autor do artigo se refere, sem precisar o teor do texto”. (BOCH;
GROSSMANN, p.100-101).
Em nosso entendimento, a evocação é mais bem definida
por meio do termo “menção”, já que esta carrega em nossa língua
o sentido de “citar”. Dessa forma, em nosso Artigo, renomeamos a
evocação, tratando-a como menção.
Enfim, em nossa análise, classificaremos as citações a partir
das formas apresentadas neste item.

Formas das citações encontradas nos artigos

Discurso direto (DD)

Partindo dos introdutores do DD apontados por Maingueneau


(2008), identificamos diferentes formas de apresentação das citações.
Vamos iniciar pelas ocorrências que são introduzidas por verbos cujo
significado indica que há enunciação:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 44
(1) A propósito, citamos Seide (2006, p. 89),
Esta multiplicação [de sentidos], aponta ele [Bréal], decorre de o
sentido novo conviver com o antigo e poder ser causado
pela metaforização, pela concretização, pela abstração, pela
extensão, pela restrição de sentido, ou ainda por eventos externos
à linguagem. (ARTIGO 2)

(2) A esse respeito, afirma Seide (2006, p. 66),


Com relação à teoria de significação proposta por Bréal,
entendemos que a importância dada àquilo a que se refere
o nome não significa que ele seja partidário da concepção
referencialista [...]
Para Bréal, aquilo que o falante pensou a respeito do referente está
expresso no nome apenas no momento da nomeação,
sendo que, quanto mais distante da origem, mais o nome
adquire status de signo, em virtude de estar mais apto a ser índice
de pensamento. (ARTIGO 2)

Nas ocorrências (1) e (2) acima, observa-se que há verbos


dicendi (citar; afirmar), há uma pausa representada pela vírgula
(que poderia ser representada por dois-pontos) e o trecho DD não
vem destacado entre aspas porque não é necessário, já que elas são
dispensadas na formatação da citação direta longa, uma vez que nesta
o destaque do DD fica por conta do tamanho da fonte (menor que
o do texto) e pelo recuo da margem esquerda.
Vejamos estas ocorrências:

(3) [...] Trata-se do que Palrilha (2009, p. 92) define como “[...]
propriedade semântica de certas unidades lexicais, que lhes
permite funcionar com a conotação que lhes pretendemos
dar” [...]. (ARTIGO 2)

(4) As subseções a seguir descrevem 12 itens lexicais do domínio


semântico de destino, bem como os derivados e lexias compostas
e textuais, quando existem, naturalmente. Por lexia, compreende-
se o que Pottier (1978, p. 268) conceitua como “[...] unidade
lexical memorizada, unidade de comportamento”. (ARTIGO 2)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 45
(5) [...] Herring define perguntas retóricas como “qualquer
elocução que é interrogativa na forma, porém, ao contrário de
perguntas que requerem informação, as perguntas retóricas não
solicitam respostas”. 26 Desta forma, ao se falar em tipologia de
pergunta, há que se levar em conta, também, a resposta, já que esta
delimita a pergunta que vai ser feita. (ARTIGO 3)

Nas ocorrências (3) a (5), a introdução da citação também
é feita por verbo dicendi (definir, conceituar), mas não há pausa
entre a introdução e o DD; ele vem destacado por aspas e inserido
sintaticamente no período.
Além dos verbos dicendi, o DD pode ser introduzido por
grupos preposicionais. Nesse caso, o DD é introduzido de maneira
semelhante à MDS, de modo que os grupos preposicionais assinalam
uma mudança de ponto de vista (segundo X, para X, conforme
X...): “Geralmente, esses introdutores de discurso direto não são
neutros, mas trazem consigo um enfoque subjetivo. Com efeito, o
verbo introdutor fornece um certo quadro no interior do qual será
interpretado o discurso.” (Maingueneau, 2008, p.143)
Vejamos as ocorrências:

(6) [...] Conforme Gisi, Martins e Romanowski (2009: 208),


“entende-se o estágio como uma oportunidade de inserção
numa realidade, no caso escolas de educação básica, permitindo a
confrontação do saber acadêmico com o saber da escola, permitindo
aos estudantes apreender como se dão as relações de trabalho”.
(ARTIGO 1)

(7) No drama entre produtor e receptor, em que as palavras figuram


como atores, conforme dizeres do próprio Bréal (1992, p. 158),
[...] em que o agenciamento gramatical reproduz os movimentos
dos personagens é necessário pelo menos melhorar essa
comparação por uma circunstância especial: o produtor
intervém frequentemente na ação para nela misturar suas
reflexões e seu sentimento pessoal [...] Essa intervenção

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é o que proponho chamar o aspecto subjetivo da linguagem.
(ARTIGO 2)

(8) [...] Segundo Ferreira (1999, s.v.) “[...] conjunto de pequenas


causas independentes entre si, que se prendem a leis ignoradas ou
mal conhecidas, e que determinam um acontecimento qualquer”.
(ARTIGO 2)

(9) [...] Para Houaiss (2001), significa: “fatalidade a que


supostamente tudo no mundo está sujeito; destino, sorte, fado”. É
esse o sentido no trecho das músicas [...](ARTIGO 2)

Nas ocorrências de (6) a (9), modaliza-se o discurso segundo


por meio das preposições “conforme”, “segundo” e “para”. Nas
ocorrências abaixo, entretanto, há uso diferente:

(10) O sentido mais antigo é, conforme registra Houaiss


(2001), “profecia feita pelos áugures, sacerdotes romanos, a
partir do canto e voo das aves”. Sofreu ampliação de sentido
para significar “[...] aquilo que é pressagiado; agouro, profecia,
vaticínio” (HOUAISS, 2001, s.v. augúrio) (ARTIGO 2)

(11) Pode-se vislumbrar nesse emprego ainda o sentido de


‘fortuito’ como o define Houaiss (2001), neste campo:
“fenômeno patológico inesperado que sobrevém no curso
de uma doença”. (ARTIGO 2).

(12) [...] Nossa proposta é analisar, identificar e relacionar as


perguntas com a introdução, a continuidade, a reintrodução e a
mudança de tópico, considerando os planos inter e intratópicos, sem
se eleger um plano desse como superior, pois como fundamentam
os princípios da perspectiva textual-interativa “os elementos
integrantes do texto comportam simultaneamente funções
textuais e interacionais, que se combinam em graus variáveis,
ora com dominância de uma função sobre outra, ora com um
contrabalanceamento entre as duas”. 9 (ARTIGO 3)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 47
Nos casos de (10) a (12), têm-se orações conformativas
introduzidas pelas conjunções “conforme” e “como”. Abaixo, não
há uso de preposições que indicam conformidade:

(13) [...] Nas palavras de Gouveia (2008, 117), a EPG “é a


descrição do leque total de elementos retóricos opcionais, iterativos
e obrigatórios de um género, assim como da ordenação desses
elementos, de modo a equacionarmos e enquadramos na
descrição as possibilidades de estruturação de qualquer texto que
seja exemplo desse género”. (ARTIGO 1)

(14) [...] Nos termos proferidos por Celani (2008: 20), a LA


se caracteriza enquanto “área do conhecimento vista hoje como
articuladora de múltiplos domínios do saber, em diálogo constante
com vários campos que têm preocupação com a linguagem” (Celani,
2008: 20). (ARTIGO 1)

(15) Na perspectiva da LSF, os gêneros são aqui concebidos como


resultado da relação probabilística e não determinística entre sistema
linguístico e contextos de realização discursiva. [...] Nos termos
de Motta-Roth e Heberle (2005: 28), “o gênero corresponde à
linguagem usada em associação a contextos e funções recorrentes
na experiência cultural humana”. (ARTIGO 1)

As expressões “nas palavras de” (13), “nos termos proferidos


por” (14) e “nos termos de” (15) exercem a mesma função das
preposições de conformidade, tanto que poderia ser substituídas
por elas sem prejuízo do sentido.
Por fim, temos as ocorrências em que há ausência de
introdutor explícito. Nas ocorrências de (16) a (20), a única marca
de DD são os dois-pontos:

(16) Prova da ação histórica na ampliação de sentido é o


excerto abaixo:
Havia em Roma um recenseamento que era feito a cada cinco
anos, e que era acompanhado de cerimônia religiosa, chamada

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 48
‘purificação’ lustrum, lustratio. Como, nessa ocasião, o magistrado
e os padres percorriam as organizações populares, o verbo
lustrare assumiu o sentido de ‘percorrer’, ‘passar em revista’
(BRÉAL, 1992, p. 89, grifo do autor). (ARTIGO 2)

(17) Vale ressaltar que os vários fenômenos de mudança


semântica se associam à polissemia:
O sentido novo, qualquer que seja ele, não acaba com o antigo.
Ambos existem um ao lado do outro. O mesmo termo pode
empregar-se alternativamente no sentido próprio ou no sentido
metafórico, no sentido restrito ou sentido amplo, no sentido
abstrato ou no sentido concreto... (BRÉAL, 1992, p. 103).
(ARTIGO 2)

(18) Acoplada à elipse, entra em cena o fator ‘frequência’: “[...] o


uso frequente de duas unidades léxicas em combinação gera um
sintagma lexicalizado que acaba por produzir um lexema único,
com significado distinto de seus elementos componentes de origem”
(BIDERMAN, 2001, p. 152). (ARTIGO 2)

(19) Entende-se por ‘vontade’ um confronto de desejos:


Creio que é preciso representá-la [a vontade] sob a forma de
milhares, milhões, bilhões de tentativas, muitas vezes infelizes,
algumas vezes com algum sucesso, que assim dirigidas, assim
corrigidas, assim aperfeiçoadas, acabam por se definir numa
data direção. O objetivo, em matéria de linguagem, é o de ser
compreendido. A criança, durante meses, exerce sua língua,
proferindo vogais, articulando consoantes: quantos fracassos,
antes de chegar a pronunciar claramente uma sílaba! As
inovações gramaticais são do mesmo tipo, com a diferença de
que todo um povo delas participa. Quantas construções
confusas, incorretas, obscuras, antes de encontrar a que será a
expressão, não adequada (este não é ponto), mas, ao menos,
suficiente do pensamento! Neste longo trabalho, não há nada que
não venha da vontade (BRÉAL, 1992, p. 19-20). (ARTIGO 2)

(20) [...] ao conjunto de circunstâncias, ao lugar, ao


momento, à intenção visível do discurso e, no que tange ao

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ouvinte, este ultrapassa o valor literal, fixando-se na restrição
ou ampliação semânticas, em conformidade com aquele que fala.
Bréal did not only study language as a system of signs and
as a social institution, as indicated by the ‘ideologues’ and the
psychologist Taine, he also analysed the use of signs in contexts
and the use of language for the expression of feelings as well
as beliefs, wishes, demands and so on, in short speech acts. He
also examined the expression of the subject, what he called
subjectivity, in language, as for example the function of
markers like nevertheless, hopefully, etc. (NERLICH; CLARKE,
1994, p. 448). (ARTIGO 2)

Em (20), a marca de introdução do DD não são os dois-


pontos, mas o ponto final.
Maingueneau aponta que as razões para essa ausência de
introdutor do DD são: ser breve; harmonizar os discurso citante e
citado, mostrando que ambos partilham do mesmo comportamento
ou da mesma opinião; é óbvio ao leitor que aqueles trechos são
do citado, por isso “[...] as passagens entre aspas e itálico lhe são
atribuídas naturalmente, sem que haja necessidade de identificar
a cada vez a fonte das falas relatadas.” (MAINGUENAU, 2008,
p.146). Dessa forma, as ocorrências (16) a (20) acima enquadram-se
nos casos descritos por Maingueneau (2008), pois a obviedade está
na formatação típica de citação direta longa, que dispensa outras
formas de introdução, já que a própria formatação denota tratar-se
de discurso citado.

Discurso indireto (DI)

A forma básica de DI é verbo dicendi + oração subordinada


substantiva objetiva direta (AUTHIER-REVUZ, 1997;
MAINGUENEAU, 2008), forma que ocorre nas ocorrências de
(21) e (22) abaixo:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 50
(21) [...] Ao relatar essa experiência, Martin (2000) afirma que,
nessas escolas, as disciplinas foram mapeadas por sistemas de gêneros
e, dessa forma, foram criadas vias de aprendizagem por discursos
diferenciados dos comuns às disciplinas. (ARTIGO 1)

(22) A proposta de classificação de Fávero, Andrade e Aquino 13


estabelece um critério baseado na função, natureza e estrutura das
perguntas. As autoras frisam que há uma relação intrínseca entre
uma pergunta e uma resposta, ou seja, a pergunta faz restrição
sintática à resposta, antecipando-a. (ARTIGO 3)

Outras formas de apresentação do DI são possíveis, pois,


“Com o discurso indireto, o enunciador citante tem uma infinidade
de maneiras para traduzir as falas citadas, pois não são as palavras
exatas que são relatadas, mas sim o conteúdo do pensamento [...]”
(MAINGUENEAU, 2008, p.149 – itálico do autor).
Encontramos em nosso corpus ocorrências em que o DI
ocorre não como oração subordinada objetiva direta, mas como
complemento do verbo:

(23) No trabalho mencionado, Marinho (2010) apresenta uma


investigação diferenciada quando comparada a outros trabalhos
científicos realizados a partir da noção teórica de gênero [...], pois
a autora focaliza o gênero resenha produzido por alunos-mestre,
ou seja, a escrita do professor em formação inicial ganha relevância.
DI-V (ARTIGO 1)

(24) O signo é uma unidade cultural, conforme Eco (1980).


O semioticista investe contra as teorias referencialistas
incapazes de dar conta dos objetos distantes do falante/ouvinte,
dos nomes próprios (apenas denotativos), dos seres mitológicos
e dos personagens históricos. (ARTIGO 2)

(25) A aproximação que fazemos mutatis mutandis é acoplada


ao componente pragmático que Bréal (1992) já considerava
ao asseverar, por exemplo, que a expressão, para aquele que fala,
corresponde em si mesma à coisa [...](ARTIGO 2)

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(26) As alterações semânticas decorrem de múltiplos fatores,
estudados exaustivamente por Bréal (1992), como a restrição
e a ampliação de sentido, a metáfora, o espessamento de
sentido, a polissemia. Bréal recusava-se a apresentar a analogia
como uma causa e muito menos como uma força cega.
(ARTIGO 2)

(27) Givón 7 apresenta uma definição de tópico discursivo


fundamentalmente cognitiva. Por ser complexo, o tópico
não pode ser considerado apenas no domínio da oração [...]
(ARTIGO 3)

Nas ocorrências acima, ocupa lugar de sujeito da oração


o sobrenome do autor citado ou algum substantivo que remete
a pessoa (o autor/ o semioticista). Abaixo, temos casos em que o
sujeito é outro:

(28) A proposta de classificação de Fávero, Andrade e Aquino


13 estabelece um critério baseado na função, natureza e estrutura
das perguntas. (ARTIGO 3)

(29) A proposta de Fávero, Andrade e Aquino 34 considera as


perguntas quanto à função e relaciona com o tópico [...] Fávero,
Andrade e Aquino classificam apenas em relação ao tópico [...].
(ARTIGO 3)

Em (28) e (29), o sujeito não é o autor (a pessoa nomeada


por seu sobrenome), mas o feito do autor citado (“a proposta de”).
Encontramos também o DI introduzido por oração na voz
passiva:

(30) Exemplo disso é a relação observada por Bréal entre


os verbos latinos legere e seus correlatos prefixais eligere
e colligere, nos quais existe apofonia. Esta, porém, deixa de
existir quando legere significa ‘ler’, a exemplo de perlegere,
relegere. (ARTIGO 2)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 52
Na ocorrência (30) acima, o autor citado se torna o agente
da passiva, dando-se destaque nas construções para os conceitos
utilizados por eles em seus estudos.

Forma híbrida: Ilha textual

A ilha textual, entendida como o fragmento de DD


incorporado ao DI, não tem função específica; para atribuir função,
temos de considerar todo o contexto, isto é, a soma do DI e do DD.
O fragmento que constitui a ilha pode ser uma palavra ou
expressão:

(31) [...] Acrescidas as noções teóricas de sequência didática (cf.:


Dolz, Noverraz e Schneuwly, 2004), no contexto suíço, ou de
projeto de letramento (cf.: Oliveira, 2010; Tinoco, 2010, 2009),
no contexto brasileiro, por exemplo, o trabalho didático com
gêneros permite a participação dos alunos em práticas de escrita
mais significativas [...](ARTIGO 1)

(32) Dentre os elementos textuais que compõem a “estrutura


potencial do gênero” – EPG (Generic Structure Potential),
conforme terminologia proposta por Hasan (1989) [...] (ARTIGO
1)

(33) Descrevemos as marcas linguísticas características dos


elementos textuais configuradores dos relatórios de estágio, ainda
que, na LSF, o “centro nevrálgico da descrição” se situe não no
texto, mas na oração (Gouveia, 2009: 20). (ARTIGO 1)

(34) [...] conotações que Eco (1980) chama de ‘marcas


axiológicas’, que podem ser positivas, negativas ou não
marcadas. (ARTIGO 2)

Por outro lado, o fragmento que constitui a ilha, em certos


casos, equivale a uma frase:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 53
(35) Conforme os dados analisados, a diversidade de composição
do gênero ocorre no próprio relatório de estágio, o que é motivado
por inúmeros fatores, dentre os quais destacamos [...]. A ida do
aluno-mestre ao campo de estágio para observar e ministrar aulas
parece ser o único consenso existente na prática da referida disciplina
(Bueno, 2009: 46). A diversidade de procedimentos assumidos
inicia quando da escolha dos dispositivos para o aluno-mestre
apresentar as observações, reflexões ou críticas realizadas sobre as
atividades vivenciadas nos estágios: diários; discussões dirigidas;
projetos; relatórios; relatos reflexivos; seminários; dentre outros. Nas
palavras de Bueno (2009: 46), “cada professor de estágio faz a
sua escolha de acordo com os seus objetivos e, assim, diferentes
dispositivos acabam sendo empregados”. (ARTIGO 1)

(36) [...] Afinal, para o autor a inteligência como a faculdade


para conhecer tem a sua origem no funcionamento do signo
(GUIMARÃES, 1992). Daí decorrem as mudanças na
linguagem, como instrumento de civilização e tais mudanças se
devem à mediação da vontade, “[...] através de um trabalho
errático e perseverante” (GUIMARÃES, 1992, p. 11).
(ARTIGO 2)

(37) Outro ponto que merece ser considerado em relação à função


do analista assenta-se no fato de que a propriedade de centração
deve nortear toda análise, já que através desta, segundo Jubran, “o
analista identifica o tópico proeminente sobre o qual se discorre
em cada momento da interlocução, delimitando segmentos
tópicos, cuja organização pode ser analisada tanto no plano
intratópico quanto no intertópico”. 8 No plano intratópico,
para esta autora, são investigadas estratégias de construção textual,
como repetição, correção, parafraseamento e parentetização. Já no
intertópico, o foco recai sobre as relações de sequenciamento, ou
interpolação de tópicos na linearidade textual, como também as
relações hierárquicas entre super e subtópicos. (ARTIGO 3)

Essas ocorrências de ilha textual revelam que se trata de casos


em que o citante não pode ou não quer parafrasear, reformular

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 54
o fragmento do citado e, sendo esse fragmento essencial para o
entendimento do trecho, ele é incluído, demarcado por aspas,
indicando tratar-se de DD.

Forma híbrida: DD com que

Como o próprio nome sintetiza, trata-se de discurso direto,


mas introduzido por “que”. É considerada uma forma híbrida, pois
é DD com forma típica de DI:

(38) Bluteau (1728, s.v. agouro) registra que, em língua


portuguesa, “[...] ‘tomar agouro’ sem especificar com a palavra
bom ou mau, de ordinário, se entende por tomar mau agouro”, o
que se configura redução ou elipse [...].(ARTIGO 2)

Essa ocorrência (38) repete o padrão característico do DD


com que: sujeito + verbo dicendi + que + “DD”, embora na segunda
haja a interpolação do termo “em língua portuguesa”, o que não
descaracteriza a ocorrência.
Abaixo, temos um caso diferenciado:

(39) [...] Essa ausência de especificidade nos relatórios de estágio


supervisionado parece reproduzir orientações apresentadas em
manuais de normatização de trabalhos acadêmicos, conforme
podemos observar nas palavras de Sá (1994: 29), ao afirmar que
“nestes tipos de relatórios devem constar a descrição do local visitado
ou de onde foi realizado o estágio, além da descrição dos trabalhos
executados e dos processos técnicos observados”. (ARTIGO 1)

A construção sintática da introdução do DD difere do padrão,


mas não deixa de apresentar DD com que (verbo dicendi “afirmar”
+ que + “DD”).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 55
Resumo com citações (RCC)

O RCC é diferente da ilha textual porque nela o todo da


citação constitui um só pensamento, uma só ideia, enquanto no
RCC há resumo das ideias do autor, visando construir um “todo”
do texto citado. O Artigo 2 traz em seu Referencial teórico uma
sequência de parágrafos que, observados como um todo (a sequencia
inteira) ou observado cada parágrafo, repete-se a composição em
forma de RCC:

(40) A propósito, Bréal (1992, p. 77), posicionando-se contra a


pretensa “[...] tendência pejorativa das palavras”, argumenta
que mudanças de sentido positivo para negativo podem ser
explicadas como efeito de eufemismo: “[...] é o efeito de
uma disposição muito humana que nos leva a esconder, a atenuar,
a disfarçar as idéias desagradáveis, ofensivas ou repulsivas”
(BRÉAL, 1992, p. 77). Tal mudança pode ainda ser explicada
como resultado da “[...] natureza da malícia humana ter prazer
em encontrar um vício ou um defeito por detrás de uma qualidade”
(BRÉAL, 1992, p. 78). No sentido oposto, a mudança de sentido
negativo para positivo resultaria da polidez: “[...] a afecção tem
contornos curiosos que fazem com que termos de significação
desfavorável percam o que tinham de desagradável” (BRÉAL,
1992, p. 78). Isto demonstra o relevo que a subjetividade ganha
na abordagem brealina de tal modo que o autor a coloca como fator
primordial da linguagem:

Não se trata, pois, de um acessório, de uma espécie de


superfluidade, mas ao contrário de uma parte essencial, e
sem dúvida do fundamento primordial ao qual o resto foi
sucessivamente ajuntado (BRÉAL, 1992, p. 161).
Para Bréal, as palavras são desproporcionais às coisas.
Podem ser demasiado amplas ou demasiado restritas. Baseia-se
num interessante ponto de vista com base na essencialidade
do verbo, do qual derivam substantivos e adjetivos, e que,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 56
por natureza, ostenta uma significação geral, pois que “[...] marca
uma ação tomada em si mesma, sem outra determinação de
espécie alguma” (BRÉAL, 1992, p. 81). Assim, a adjunção de
um sufixo ao verbo pode conferir a ele uma noção de agente,
paciente, produto ou instrumento de ação. No entanto, os
resultados substantivais e adjetivais da adjunção não perdem
o significado geral. “Será preciso que pelo uso se limite”, afirma
Bréal (1992, p. 82).
A título de exemplo, refiramo-nos ao nome tegmen
usado para designar o telhado da casa. O referido substantivo
provém do verbo tegere ‘cobrir’ e de um sufixo instrumental men.
Todavia, tegmen se aplicava também para designar qualquer
cobertura ou invólucro. Em se usando tectum em lugar de
tegmen, depara-se com uma palavra de sentido mais restrito:
tudo que é coberto. O processo culmina com o francês toit para
encontrar-se a palavra em sua restrição máxima: “[...] cobertura
de uma casa” (BRÉAL, 1992, p. 81).
O autor argumenta que a desproporcionalidade entre as
palavras e as coisas não é percebida pelo falante, para quem a
expressão “[...] corresponde em si mesma à coisa, graças ao
conjunto de circunstâncias, graças ao lugar, ao momento,
à intenção visível do discurso” (BRÉAL, 1992, p. 81). Na interação
verbal, a atenção do ouvinte, dirigida ao pensamento, não se
detém no valor literal da expressão, mas “[...] a restringe
ou a estende segundo a intenção daquele que fala” (BRÉAL,
1992, p. 81).
Como contraponto à restrição de sentido, há a ampliação
de sentido, porém a diferença progride em mais de um ponto: a
restrição emerge da própria linguagem, liga-se primordialmente
a fatores intrínsecos, enquanto a ampliação de sentido resulta
de acontecimentos históricos, ou seja, liga-se a fatores
essencialmente extrínsecos. Por exemplo, a palavra parricidium
‘assassinato de um pai’ ampliou-se amparada em alterações fonéticas

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 57
a qualquer espécie de crime. ‘Videmia’, palavra que remonta
a vinum ‘vinho’, aplicou-se depois a outras colheitas além das do
vinho: vindemiaolearum, mellis, turis (BRÉAL, 1992, p. 89). [...]
Ampliação e restrição de sentido também ocorrem
na sincronia. Exemplo dado pelo autor é a frase Aller à laville ‘ir
à cidade’, frase conhecida por todos os camponeses, “[...] mas
que permanecendo a mesma deve traduzir-se segundo a região
por um nome diferente” (BRÉAL, 1992, p. 85). Bréal (1992) se
refere ao fato de Platão ter acusado Tales de não ter empregado
devidamente os termos relativos aos princípios mais abstratos
da linguagem filosófica. Em suma, Bréal remete à questão
hodierna das línguas de especialidade, já vigente no tempo de
Platão (SEIDE, 2006). [...]
Há um caso particular de polissemia que não se associa à
restrição ou ampliação de sentido (BRÉAL,1992). É aquela que
resulta por redução, vulgarmente conhecida por elipse. Pode
configurar-se plenamente, sendo irrecuperável o elemento
suprimido, ou pode configurar-se precariamente, sendo o
elemento suprimido recuperável por conhecimento de mundo
ou cooperação pragmática. (ARTIGO 2)
O mesmo ocorre no Artigo 3; exceto seis linhas no início e
quatro no final, praticamente todo o item “Estudos sobre perguntas”,
inserido no Referencial teórico, é uma sequência de RCC:

(41) Cunha e Cintra, dentro da perspectiva normativa, postulam


que, para se estudar as estruturas interrogativas, há que se considerar,
em primeiro lugar, a entonação e se a frase inicia ou não por advérbio
ou pronome interrogativo, pois são estes fatores que irão diferenciar
uma frase declarativa de outra afirmativa. Para o primeiro
tipo – entonação –várias características rítmicas e prosódicas são
apresentadas para estabelecer essa distinção:
a) espera sempre uma resposta categórica de sim ou não;
b) o ataque da frase começa por um nível tonal mais alto do que
a oração declarativa;

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 58
c) na parte medial do segmento melódico, haver uma queda
de voz , que, embora seja mais acentuada do que nas orações
declarativas, não altera o caráter ascendente desta modalidade de
interrogação;
d) subir a voz acentuadamente na última vogal tônica, ponto
culminante da frase; em seguida, sofrer uma queda brusca, apesar
de se manter em nível tonal elevado. 11

Há, para essa distinção, outras formulações, como a


comparação da curva da oração declarativa com a da interrogativa.
Neste cotejamento, os autores afirmam que a curva de ambas as
orações se assemelha por terem a parte inicial ascendente e medial
relativamente uniforme. A principal distinção, nesta categoria de
análise, ocorreria na parte final, que na declarativa é descendente, e
na interrogativa, ascendente.
Para as frases iniciadas com pronome interrogativo, os autores
sinalizam dois tipos principais, a saber:

a) o ataque da frase que, iniciado em um nível tonal muito alto,


sobe, às vezes, bruscamente, até a primeira sílaba tônica, sílaba esta
que, na maioria dos casos, pertence ao pronome ou ao advérbio
interrogativo, ou seja, ao elemento que realiza a função interrogativa
da oração;
b) a curva melódica, que, após a primeira sílaba tônica, decresce
progressivamente e de maneira mais acentuada do que nas frases
declarativas 12
É suficiente, para Cunha e Cintra, ao se identificar uma oração
interrogativa, ater-se a aspectos tonais da frase. [...](ARTIGO 3)

Diferentemente dos anteriores, O RCC abaixo ocorre na


Análise do artigo em que está inserido:

(42) O jogo de pergunta e resposta em sala de aula se


configura, para Coracini, 27 numa prática discursiva. A tipologia
apresentada por esta autora, que, segundo ela, não é exaustiva,
parte do professor em direção ao aluno.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 59
Coracini tenta mostrar, de acordo com sua perspectiva, que os
alunos tendem a responder exatamente o que o professor quer,
sendo raros os casos em que o aluno toma uma postura diferente.
Esta acepção da autora em relação aos professores e alunos não é
defendida aqui. A pesquisa de Coracini teve como foco principal
as formas que as perguntas em sala de aula, feita pelo professor,
assumem, e das respostas dos alunos a essas perguntas em aulas de
leitura. Não foca efetivamente as perguntas em relação ao tópico,
mas a relação professor-aluno.
Outro ponto que a investigação de Coracini procurou
evidenciar foi se as perguntas que são utilizadas em sala de aula têm o
mesmo propósito que tinham na antiguidade, que era o da maiêutica
socrática. A autora argumenta que as perguntas, na antiguidade,
eram elaboradas para desenvolver, no discípulo, a capacidade de
raciocinar e de elaborar soluções, baseadas na racionalidade, para
as questões que surgiam. No entanto, Coracini 28 afirma que hoje
só existe o vestígio dessa prática. As perguntas do professor são
classificadas, de acordo com a proposta de Coracini, em dois tipos: as
didáticas, que têm como objetivo estabelecer relação entre professor
e alunos; e as comunicativas, que parecem escapar às preocupações
didáticas, mesmo fazendo parte da aula. (ARTIGO 3)
Esse RCC na Análise se justifica por se tratar de um artigo em
que os autores estão comparando concepções de diferentes autores.
Assim, mesmo na Análise, é pertinente que eles façam RCC de um
trabalho (no caso, um capítulo de um livro da autora citada).

Modalização em discurso segundo

Segundo Neves (2000), os elementos “conforme” e “segundo”


podem ser conjunções conformativas, de modo que “a construção
conformativa expressa por um período composto é constituída
pelo conjunto de uma oração nuclear, ou principal, e uma
conformativa.” (NEVES, 2000, p.924 – grifos da autora) ou formas

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 60
de preposição, introduzindo, nesse caso, sintagma nominal que
estabelece relação circunstancial de conformidade.
Vejamos as ocorrências:

(43) O signo é uma unidade cultural, conforme Eco (1980).


(ARTIGO 2)

(44) [...] Segundo Wittgenstein (1953), as palavras, de algum


modo, valem como utensílios e ferramentas e significam
mediante o seu uso em determinado contexto. (ARTIGO 2)

(45) Segundo Houaiss (2001), o termo ‘azar’, cujo sentido


original era ‘flor’, e depois por extensão,‘dado’, passou, nas
línguas modernas entre os séculos XV e XVI, a designar ‘má sorte,
infortúnio’. (ARTIGO 2)

(46) Segundo Bluteau (1728), o sentido era, no jogo de dados,


‘tirar o ponto que faz perder’. (ARTIGO 2)

(47) [...] Segundo Faria (1994), especializou-se como ‘boa sorte’


ainda em latim, nas cartas de Cícero e daí, no plural, significava
‘dons da fortuna, riqueza’. (ARTIGO 2)

(48) [...] O mesmo, segundo Bluteau, ocorre em latim com


o adjetivo ominosus, a, um (ominari ‘tomar agouro,
prognosticar’), que, usado isoladamente, significa ‘coisa de mau
agouro’: Ominosa res accidit ‘sucedeu uma coisa de mau
agouro’. Daí o derivado abominável<ab – omin – avel: ‘o que devido
à natureza ominosa nos afasta’. (ARTIGO 2)

As ocorrências (43) a (48) acima nos permitem concluir que a


preferência de uso é pelo “segundo”, que aparece significativamente
mais vezes que “conforme”.
Além de “conforme” e “segundo”, outras preposições, como
“para” e “como”, podem estabelecer relação de conformidade:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 61
(49) Um exemplo diz respeito à classificação das semirretóricas.
Para Coracini, estas servem para animar a aula, classificando-a
como perguntas de animação. Neste caso, quando um professor
faz uma pergunta que ele mesmo responde, o faz para não dar
oportunidade ao aluno de responder. Para a autora, essa postura
compromete o desenvolvimento crítico do aluno, já que estes acham
normal esse procedimento, não procurando, portanto, responder
a esse tipo de pergunta[...](ARTIGO 3)

(50) Vale ressaltar, como Bréal (1992), que, em determinados


contextos, vale a restrição ou a ampliação de sentidos; noutros
contextos, nenhum dos fenômenos ocorre. (ARTIGO 2)

Observa-se, em todas as ocorrências de MDS que, além de


circunstancia de conformidade, esses modalizadores relacionam dois
atos de fala (NEVES, 2000). Nas ocorrências, o citante configura
o DI em conformidade com o que escreveu o citado, modalizando
seu discurso em outro discurso. O uso desses modalizadores
demarca claramente a quem pertence a ideia que foi parafraseada,
como se as citações em MDS significassem “as ideias são do citado,
mas o entendimento e as palavras são do citante”. Dessa forma, a
modalização garante a autoria do citado.

Reformulação

Como dissemos anteriormente, adaptamos a noção de


reformulação de Boch e Grossmann (2002), de modo que, para
nós, trata-se da ocorrência de DI em que há ausência de marcas
tipográficas e o discurso citado aparece integrado ao discurso citante,
sendo reconhecido somente pela presença da referência (Autor, data)
no final do trecho reformulado.
Vejamos as ocorrências:

(51) [...] Outro gênero utilizado nas práticas de escrita que


compõem as atividades didáticas na academia é o denominado

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 62
relatório ou relato de estágio supervisionado, bastante comum nos
cursos de licenciatura, ainda que pouco focalizado em investigações
científicas (cf.: Fairchild, 2010; Fiad e Silva, 2009). (ARTIGO 1)

(52) [...] Assim como outros instrumentos são utilizados para


avaliação formativa das diversas atividades realizadas em situação
de instrução ou de trabalho, como, por exemplo, o portfólio (cf.:
Villas Boas, 2010), o relatório pode ser utilizado para tal propósito.
(ARTIGO 1)

Uma ocorrência chamou nossa atenção:

(53) Dos fenômenos supraelencados, focaremos a atenção


na ‘restrição’ e ‘ampliação de sentido’ que constituem nosso
ponto de partida. Os referidos fenômenos são, até certo ponto,
susceptíveis de serem interpretados, na modernidade, com base
lógica, em função dos termos ‘intensão’ e ‘extensão’. O primeiro
concerne aos semas inerentes às palavras que definem seu emprego
em relação aos objetos; o segundo diz respeito à correlação entre
o signo e o objeto extralinguístico (ABBAGNANO, (2007, s.v.
intensão e extensão), (ECO, 1991). (ARTIGO 2)

Os autores citados são apresentados de forma confusa na


ocorrência acima. Acreditamos que possa ter sido um erro de
digitação. Se foi esse o caso, a referência deveria ser apresentada
desta forma conforme a ABNT (2002): (ABBAGNANO, 2007,
s.v. intensão e extensão; ECO, 1991).

Menção

A menção, nomeada por Boch e Grossmann (2002) de


evocação, não tem a forma típica da citação (presença das palavras
do outro via DD ou DI ou alguma das formas híbridas). Nesse caso,
trata-se tão somente de mencionar autor ou autores:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 63
(54) No trabalho mencionado, Marinho (2010) apresenta uma
investigação diferenciada quando comparada a outros trabalhos
científicos realizados a partir da noção teórica de gênero (cf.:
Araújo, 2002; Motta-Roth, 2002), pois a autora focaliza o gênero
resenha produzido por alunos-mestre, ou seja, a escrita do professor
em formação inicial ganha relevância. (ARTIGO 1)

(55) Bluteau (1728, s.v. agouro) registra que, em língua portuguesa,


“[...] ‘tomar agouro’ sem especificar com a palavra bom ou mau,
de ordinário, se entende por tomar mau agouro”, o que se configura
redução ou elipse, segundo Bréal (1992). (ARTIGO 2)

A menção se refere ao nome e não às ideias próprias do


citado. Nas ocorrências de (78) a (82), percebe-se a generalização,
como se significasse “o tema é este e esses autores já falaram dele”
ou ainda “sei que eles existem e sei o que eles estudaram, por isso
os menciono aqui”.
Vejamos agora esta ocorrência:

(56) As oito referências realizadas a outros gêneros no verbete


“relato” e as dez realizadas em “relato de caso” [...] evidenciam o
caráter flexível dos gêneros e o desafio da produção de um dicionário
do tipo. Tal instabilidade dos gêneros textuais, conforme já
destacada por Bakhtin (2000: 279), justifica-se pelas adaptações
sofridas conforme o propósito comunicativo para que são acionados
como resposta, em diferentes espaço e tempo. (ARTIGO 1)

Apesar de parecer uma ocorrência de MDS por causa do


modalizador “conforme”, temos aí uma menção a Bakhtin em meio
a palavras do autor citante, o qual, ao mencionar Bakhtin, demonstra
conhecer as ideias do autor e se dirige a seu “leitor-modelo” (cf.
MAINGUENEAU, 2008), já que quem não conhece o pensamento
de Bakhtin não entenderá a menção, ou seja, o leitor-modelo do
citante é quem está familiarizado com as ideias de Bakhtin a ponto
de entender por que ele é mencionado nesse contexto.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 64
Conclusão

Neste artigo, procuramos evidenciar quais são as formas das


citações presentes em artigos escritos por doutores e publicados em
revistas bem conceituadas pelo Qualis CAPES. Observamos que as
formas das citações, quando tomadas em sua dimensão linguística e
entendidas como manifestação do discurso relatado, ganham outros
contornos, mais variados e abrangentes do que aqueles delimitados
pela ABNT NBR 10520-2002 e disseminados pelos Manuais de
Metodologia.
Enquanto ABNT e Manuais falam de citação direta como
cópia de trecho de autor que deve ser marcada formalmente (aspas
ou espacejamento e tamanho da fonte), linguisticamente vemos
que o uso do DD engloba o trecho copiado, mas também apresenta
diferentes formas de introdução desse trecho citado (verbo dicendi
e/ ou marca tipográfica como vírgula ou dois-pontos; grupos
preposicionais), bem como pode haver ausência de introdutor
explícito. Escolher a forma de introduzir o DD pode atribuir um
enfoque subjetivo ao discurso, caso dos grupos preposicionais (cf.
MAINGUENEAU, 2008), ou pode ser uma forma de mesclar o
discurso citado ao discurso citante criando um efeito de “nossas
vozes e, portanto, nossas ideias, se complementam”.
O DI (citação indireta), por seu turno, não se resume a
parafrasear o citado, conforme a norma pode levar a crer, mas é uma
tradução do pensamento do outro (cf. MAINGUENEAU, 2008)
e as formas de introdução do DI permitem ao citante destacar
diretamente o nome/ sobrenome ou o feito do citado. Enquanto
nas normas e nos Manuais o uso do DI recebe o nome genérico
de citação indireta, entendemos que o uso do DI cria o efeito de
sentido de entendimento, como se o citante quisesse mostrar que
a ideia é do outro, mas ele compreendeu a ponto de traduzir com
suas palavras e escolher como introduzi-la, utilizando a forma
básica de DI (sujeito + verbo dicendi + or. sub. subs. Obj. direta),

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ou a MDS (a qual marca claramente de quem é a ideia citada) ou
a reformulação (pela ausência de marcas tipográficas, integra o
discurso citado ao citante).
Há ainda, a possibilidade de mesclar DD e DI, forma de
citação não prevista nas classificações da norma. Desse modo, pode-
se optar por utilizar fragmentos de DD inseridos no DI ou mesmo
nas próprias ideias do citante (ilha citacional); pode-se construir um
DD com características próprias de DI (DD com que); ou se pode
resumir o conteúdo de um texto, inserindo, sempre que necessário
a voz do citado (RCC).
Por fim, pode-se apenas mencionar o citado, evocando
indiretamente suas ideias, selecionando-se a faixa do público leitor
a que se dirige o texto científico, já que a menção remete às ideias
do autor sem precisar citar suas palavras no texto, de modo que o
citante reconhece a grandeza e abrangência das ideias do citado,
bem como se sente seguro de que a simples menção do sobrenome
do citado é suficiente para seu leitor.
Concluímos que o estudo e consequentemente o ensino da
citação deve pautar-se em suas formas do ponto de vista linguístico,
tratando esse fenômeno em sua potencialidade linguística e não
somente como mera transcrição literal ou paráfrase de trechos de
textos.

Referências

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Artigo 2:
DUARTE, Paulo Mosânio T.; LIMA, Maria Claudete. A deriva semântica
de termos ligados a destino. Acta Scientiarum. Language and Culture,
Maringá, v.34, n.2, p.187-198, jul/dez, 2012.

Artigo 3:
SANTOS, José Carlos L. dos; ARAUJO, Andréia S.; FREITAG, Raquel
M. Ko. Perguntas na sala de aula: uma classificação textual-interativa.
Cadernos de Letras UFF – Dossiê América Central e Caribe: múltiplos
olhares, n.45, p.373-397, 2012.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 27-68, jan./jun. 2014 68
A LÍNGUA DO PODER: INCLUSÃO E EXCLUSÃO
NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA

Jefferson Adriano de Souza1

RESUMO: Este artigo analisa três slogans de escolas de idiomas para observar como
os sentidos são construídos pela propaganda. Pautado em Pêcheux (1997), Orlandi
(2003) e Maingueneau (2001), destaco como essas escolas constroem significados para
a Língua Inglesa no cenário brasileiro, promovendo exclusão de muitos em favor da
inclusão de poucos. Os resultados sugerem que os slogans valorizam o padrão do falante
nativo, o desejo pela fala, ascensão social, sentidos de pertencimento e construção de
identidades positivas, relacionadas a comunidades poderosas. Espero com este estudo
contribuir para que algumas representações sejam questionadas, produzindo imagens
mais inclusivas da Língua Inglesa.

PALAVRAS-CHAVE: ensino de Língua Inglesa; slogan, escolas de idiomas.

ABSTRACT: This paper analyzes three slogans of language schools to observe how the
senses are constructed by advertisement. Based on Pêcheux (1997), Orlandi (2003)
and Maingueneau (2001) I try to understand how these schools construct meanings for
English Language in Brazilian contexts, promoting exclusion of many people in favor of
a minority. The results suggest the slogans value the native speaker standard, the desire
of speaking, social mobility, sense of belonging and construction of positive identities,
related to powerful communities. I hope with this study contribute to question some
representations, by promoting more inclusive images of the English Language.

KEYWORDS: English Language teaching; slogan; language schools.

Introdução

O ensino de Língua Inglesa no Brasil é um compromisso


compartilhado pelo Estado, representado pelas instituições de
ensino público e pelo poder privado, substantivado por inúmeras

1
Professor de Português e Inglês do Instituto Federal do Paraná, campus Telêmaco Borba.
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade
Estadual de Londrina (UEL).

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escolas de idiomas que atuam no país. Na arena do mercado,
revestidas pela imagem de prestadoras de serviços, essas escolas
elitistas configuram uma autêntica altercação pelo poder, através
da construção e divulgação de slogans publicitários, representações,
discursos e identidades.
Visando compreender os sentidos mobilizados nessa disputa,
recuperamos no cenário nacional três slogans, divulgados entre
2004-2005, por escolas de idiomas: 1) Escola 1, aqui você aprende;
2) Escola 2, é assim que se fala; 3) Destaque-se, fale certo, fale Escola
3. A recuperação desses discursos, após dez anos de divulgação, é
pertinente pela atualidade de seus sentidos, significação e influência,
em comunidades dominadas pela aparência, consumo e ideologia.
Tais discursos serão enlaçados por meio da perspectiva teórica
da Análise de Discurso (AD) de linha francesa, para que eu analise
as representações do sujeito-consumidor presentes nos slogans dessas
escolas, bem como os sentidos e as ideologias que as sustentam.
Embora esses discursos articulem elementos verbais e não verbais,
priorizo, neste artigo, mais o verbal por uma questão de recorte e
coerência com os limites do texto.
Penso que os discursos promovidos por essas escolas apelam
à distinção de sujeitos que contemplam a Língua Inglesa como
mais um atavio comunicativo, ecoando a antiga fórmula capitalista
do saber como fonte de poder e status. A ênfase na língua como
instrumento de projeção social mobiliza o sentido de pertencimento
a comunidades poderosas e, consequentemente, a ideologia de
que o universo se curva aos pés dos homens que detêm a língua,
conhecimento e poder.
Consoante Orlandi (2003), a Análise de Discurso de linha
francesa constitui um gesto de leitura que visualiza a linguagem
enquanto organismo representativo de sentidos inscritos na
história. Essa metodologia de interpretação articula três regiões do
conhecimento que se confluem contraditoriamente nas teorias da
sintaxe e da enunciação, ideologia e discurso, transpostas por uma
noção de sujeito lacaniana.

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A Análise de Discurso – quer se a considere como um dispositivo
de análise ou como a instauração de novos gestos de leitura – se
apresenta com efeito como uma forma de conhecimento que se
faz no entremeio e que leva em conta o confronto, a contradição
entre sua teoria e sua prática de análise (...) uma forma de reflexão
sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas
evidências e no lugar já-feito (...) região de equívoco e em que se
ligam materialmente o inconsciente e a ideologia (ORLANDI,
1997, p. 7-8).

A opção por essa perspectiva teórica deve-se ao fato de que


a AD me possibilita compreender a linguagem como uma prática
social, constitutiva do homem e de sua história, interligando-o
à realidade que o projeta enquanto sujeito histórico, ideológico
e social. Nas palavras de Orlandi (2003, p. 15), a AD oferece
instrumentos para “conhecer melhor aquilo que faz do homem um
ser especial com sua capacidade de significar e significar-se”.
Parece-me fundamental aplicar os conhecimentos da AD
na engenharia de estudos que busquem explicitar os sentidos
produzidos pelos discursos publicitários das escolas de Língua
Inglesa, para compreender as dimensões e significações dessa prática
para os homens e para a sociedade. Afinal, há anos dispersando e
circulando discursos e representações no cenário social, essas escolas
vêm contribuindo para a construção e naturalização de realidades
e desigualdades.
Sabemos que o discurso da propaganda é construído para
estimular o desejo de possuir, pertencer e ser, legitimando essa
prática através da gestação de necessidades que nos compelem
ao consumo. Assim, engendrando-nos em teias urdidas com os
finíssimos fios da persuasão e sedução, a propaganda nos interpela
enquanto consumidores, utilizando estratagemas, muitas vezes,
invisíveis aos sentidos.
Na concepção de Aranha e Martins (1993) a propaganda
manipula a vontade humana, utilizando apelos racionais e,

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essencialmente, irracionais que atuam no ego dos indivíduos, nas
imagens perceptivas e pressupostas de si e dos outros.

O que a publicidade vende [...] é muito mais do que o produto:


é a promessa de satisfação de uma necessidade ou aspiração
que extrapola, em muito, as possibilidades do produto [...]
mesmo quando se revestem de razões lógicas, o fundamento da
propaganda é despertar emoções de prazer, alegria, felicidade ou
de frustração, privação e sofrimento, emoções que dependem da
posse de determinados produtos para serem usufruídas ou afastadas
(ARANHA; MARTINS, 1993, p. 51).

Logo, enquanto instrumento de manipulação social, a


propaganda é sempre uma invocação às emoções; névoa que se
converte em dádivas que exorbitam as possibilidades do produto
e animam a ilusão do ser pelo ter (Aranha; Martins, 1993). Sob
essa ótica, Marx (1985) esclarece que o produto é transfigurado em
fetiche, ou seja, o inanimado adquire vida, pervertendo os valores
de uso através da supervalorização da troca.
O slogan figura no universo da propaganda como valioso
instrumento de persuasão. Conciso, penetrante e sugestivo, enraíza-
se na memória dos consumidores, vivificando a presença da marca e
a necessidade do consumo. Segundo Maingueneau (2001), o slogan
normalmente está ancorado na situação de enunciação, inserido em
um contexto histórico particular que o permite agir sobre as emoções
humanas. Para esse autor o slogan organiza algumas características
próprias como:

Fórmula curta, destinada a ser repetida por um número ilimitado


de locutores, que joga também com rimas, simetrias silábicas,
sintáticas ou lexicais, o slogan [...] constitui uma espécie de citação
[...] “Coca-Cola é isso aí” não toma para si a responsabilidade por
esses enunciados, apresentando-os como citações sem explicitar a
fonte, que supõe ser do conhecimento do co-enunciador [...] está
associado sobretudo à sugestão e se destina, acima de tudo, a fixar na

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 69-88, jan./jun. 2014 72
memória dos consumidores potenciais a associação entre uma marca
e um argumento persuasivo para a compra (MAINGUENEAU,
2001, p. 171).

Com base em seu poder de indução, o slogan estabelece


uma ponte comunicativa entre a escola de idioma e o público alvo,
laborando a edificação da imagem da instituição e vinculando
valores como legitimidade, status, credibilidade, liderança, excelência
e supremacia de ensino. Posso dizer que é também por meio da
propaganda que a instituição demarca a sua posição no mercado
educacional e convence os futuros consumidores quanto à primazia
de seus serviços.
Cônscios da significação desse instrumento da propaganda
para a representação das escolas de idiomas no Brasil e da influência
que a propaganda exerce sobre nossas vidas, sobressai-nos o desejo
de desvendar as estratégias de persuasão do slogan para visualizar
os sentidos produzidos por essas instituições acerca do processo de
ensino-aprendizagem de Língua Inglesa em nossa sociedade.

Slogan: cenários e vozes

As circunstâncias que envolvem a produção de um discurso


são representadas pelo contexto ou situação que possibilitou a sua
emersão na superfície do já-dito. Essas circunstâncias que permitem
a formulação e compreensão de qualquer discurso são nomenclaturas
segundo Pêcheux (1997) como condições de produção.
As condições de produção estabelecem as fronteiras e os
espaços que os discursos podem ocupar, visto que nem tudo pode ser
dito de um determinado lugar, de qualquer forma, assim como nem
todos os lugares comportam determinadas formulações discursivas.
O discurso possui limites determinados pelo lugar que ocupa e pela
instituição que representa (PÊCHEUX, 1997).
Na leitura de Orlandi (2003), as condições de produção
articulam essencialmente os sujeitos e a situação, os quais enlaçados

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pela memória despertam e revivem as condições de produção. Para
a autora, as condições de produção movimentam dois contextos: o
imediato, que representa as circunstâncias de enunciação e o amplo,
que abrange o contexto histórico, social e ideológico.
Assim, considerando o contexto imediato em que eclodem
os slogans apresentados por este estudo, digo que o espaço é
representado por três franquias de ensino de Língua Inglesa, em uma
cidade de médio porte, onde esses discursos figuram em panfletos
de divulgação. Os folders bem como outros materiais de divulgação
são distribuídos aos possíveis consumidores e divulgados nas mídias
ao longo do ano, de forma mais intensa no início do primeiro e
segundo semestre, momentos que antecedem a matrícula com a
abertura de novas turmas.
Os sujeitos que respondem por essas formulações são três
marcas que atuam no cenário nacional e internacional, direcionadas
para o ensino de Língua Inglesa, neste estudo, nominadas pelos
pseudônimos: Escola 1, Escola 2 e Escola 3. O contexto amplo
desses discursos invita para a sua compreensão os efeitos de sentido
de como a propaganda engendrada pelas instituições privadas no
sistema capitalista, entre elas as escolas de idiomas, disputam a
preferência dos consumidores.
De acordo com Orlandi (2003, p. 31), a memória constitui,
nas condições de produção, em comunicação com o discurso, a
função de interdiscurso, “aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente”. O interdiscurso movimenta as regiões
nebulosas do já-dito que sustentam os discursos, atribuindo-lhes
sentido. É o eco distante que se perde na memória de outros dizeres
e reveste de novidade um discurso que já não tem mais idade, tempo
e espaço. São esses outros discursos que mesmo desconhecidos falam
em nossos discursos, renovando significados e ressuscitando outros.
Para Orlandi (2003), o interdiscurso reveste o discurso de forças
incontroláveis que vociferam mesmo em silêncio:

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O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas.
Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro
lugar também significa nas ‘nossas’ palavras. O sujeito diz, pensa
que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo
pelo qual os sentidos se constituem nele (ORLANDI, 2003, p. 32).

O discurso produzido pela escola 3 – Destaque-se, fale certo,


fale Escola 3 – parece chocar-se com o produzido pela Escola 2 –
Escola 2 é assim que se fala. A regularidade entre esses discursos
centraliza a questão da fala no ensino de Língua Inglesa, como ponto
central de um consumidor imaginado e, ao mesmo tempo, convoca
para si os sentidos de que a metodologia aplicada nessas instituições
confere aos sujeitos uma forma especial de usar a língua – é assim
que se fala; fale certo. Usualmente, essa norma é anglo-americana,
ou seja, centrada na submissão do falante nativo.
No universo da propaganda, onde esses discursos são
gerados, configura-se uma altercação pela disputa do poder de
ensinar a Língua Inglesa, focalizando a habilidade da fala. Logo,
esses slogans concretizam o confronto entre essas instituições na
disputa por consumidores que buscam essas escolas com o objetivo
de comunicar-se oralmente. Isso demonstra que a propaganda não
cumpre unicamente a missão de criar novos desejos, mas também
inflar desejos antigos, visto que no imaginário social, conhecer uma
nova língua corresponde à capacidade de falar essa língua.
Nesse sentido, a língua do poder é também a língua da
exclusão, pois o desenvolvimento da oralidade é, muitas vezes,
represado na rede pública, como sugere a obra organizada por
Diógenes Cândido de Lima (2011), Inglês em escolas públicas não
funciona: uma questão, múltiplos olhares. Nesse livro, vários autores,
dialogam com a narrativa de um estudante que vê seu desejo pela
fala silenciado, em sala de aula. Tal limitação torna a Língua Inglesa
excludente para o grande público, visto que poucos têm acesso às
escolas de idiomas.

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O slogan – Escola 2 é assim que se fala – pode responder ou
ser respondido por outro que propõe uma forma diferente de falar
como: “fale assim”, “fale certo”. Isso ocorre quando o enunciado “é
assim que se fala” desperta um outro discurso que afirma: “não é
assim que se fala”, unificando simultaneamente dois sentidos, um
positivo e um negativo. Esse enunciado desperto pode fazer silenciar
outros que procuram se projetar sob a forma de “fale assim”, “fale
certo”, por exemplo.
Sob outra perspectiva, o enunciado “é assim que se fala”
conecta-se com uma expressão coloquial, utilizada normalmente
por grupos jovens, demonstrando concordância, aprovação,
consentimento, pertencimento, como por exemplo no enunciado:
“falou meu brother! É assim que se fala”. Dessa forma o slogan da
Escola 2 convoca o sentido de decisão, escolha correta e responde
aos apelos discursivos de outras escolas de idioma, neutralizando-os.
Como assevera Maingueneau (2001), o slogan é um gênero
publicitário que se utiliza da sonoridade para penetrar na mente
do consumidor e persuadi-lo através de motivações racionais e
irracionais. Assim, o slogan da Escola 2 explora insistentemente
o fonema /si/ na formulação / Escola 2 é assim que se fala / com
a intenção de convencer o consumidor a dizer “sim” aos apelos da
propaganda, como um jogo de aliteração e sujeição ao desejo pela
Língua Inglesa. Nessa perspectiva discursiva, Foucault (2004) nos
segreda que:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as


interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação
com o desejo e com o poder (...) [o discurso] não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que
é o objeto do desejo (...) não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que
se luta, o poder do qual queremos nos apoderar (FOUCAULT,
2004, p. 10).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 69-88, jan./jun. 2014 76
O slogan divulgado pela escola 3 – Destaque-se, fale certo, fale
Escola 3 – apela diretamente para o desejo de projeção social dos
sujeitos alvos da propaganda, divulgando o fato de que existe uma
forma correta de se falar e que essa forma é contemplada pela escola
de idiomas 3. A ênfase no verbo falar procura apagar a imagem de
que a instituição não prioriza a comunicação oral, em detrimento
de conteúdos gramaticais, e cristalizar na memória do consumidor
a ideia de que o objetivo central da instituição é desenvolver a
habilidade de fala.
Seguindo a mesma linha do slogan da Escola 2, a Escola 3
organiza o seu discurso, buscando atrair o contato do consumidor
com a escola, através do enunciado “fale Escola 3”. Essa fórmula
combina com a estruturação sucinta e persuasiva do slogan que
trabalha o convencimento do consumidor no nível das ideias para
produzir um movimento de aproximação com a instituição de
ensino.
O enunciado “fale certo” possibilita a leitura de que esta e não
outra instituição é a opção correta para a aprendizagem de Língua
Inglesa. Esse enunciado também explora o seu sentido avesso –
“fale errado” –, organizando o sentido de qualquer outra opção do
consumidor será equivocada. Esse raciocínio se articula da seguinte
maneira: se você não falar com a Escola 3, você vai falar errado,
fazer uma opção errada ou, se você não aprender a falar na Escola
3, você vai aprender a falar errado. A dicotomia certo x errado traz
à tona o argumento de autoridade da norma padrão, associada à
replicação do falante nativo e a uma elite que pode desfrutar desse
conhecimento e poder, via escola de idioma.
Em outras palavras, o slogan institucional da Escola 3 procura
através da palavra apoderar-se da primazia do ensino de Língua
Inglesa, incutindo na mente dos consumidores a convicção de que
só essa instituição e não outra conhece os segredos e as virtudes da
língua padrão, associada ao falante nativo. Mas o slogan amplia ainda
mais a extensão dos seus tentáculos significativos, ao asseverar que

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a relação do sujeito com a língua, nesse contexto de aprendizagem,
promove a sua ascensão, destaque e projeção social.
Isso significa que a aprendizagem da língua é transformada
em fetiche ao incorporar sentidos que extrapolam a capacidade
do produto. Assim, o que está em jogo na roleta não é,
fundamentalmente, a capacidade de falar uma nova língua mas,
principalmente, ser uma nova pessoa; alguém melhor, superior,
mundializado pela língua e seu poder. A língua é vendida como
uma possibilidade de pertencimento, reconhecimento e inclusão
em comunidades mais poderosas.
Trilhando os caminhos da primazia do saber, a Escola 1
também produz o seu discurso publicitário, encerrando em poucas
palavras a excelência dos seus serviços e a supremacia dessa instituição
sobre todas as demais, no slogan: Escola 1, aqui você aprende.
Enquanto os outros slogans analisados trabalham com o
imperativo na persuasão dos consumidores – “destaque-se, fale...”;
“é assim...” - a Escola 1 opta por aconselhar o possível consumidor
na tomada de sua decisão. O avesso desse slogan – “lá você não
aprende” – confirma a estratégia de manipulação do discurso da
propaganda, que enreda todos os outros discursos produzidos por
escolas de idiomas, a fim de esmagá-los. A luta pelo poder, verdades
e potencial de identificação, por meio da língua, está explicita nessas
altercações.
A palavra “lá” evoca como lugar de referência todas as demais
escolas concorrentes, anulando os seus dizeres. Essa referência não
se materializa explicitamente, visto que o discurso da propaganda,
submisso ao jogo mercadológico, desenvolve-se sob os limites
“éticos” de dissimulações e mascaramentos. Logo, como nos lembra
Foucault (2004, p. 9) “não se tem o direito de dizer tudo, que não
se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um,
enfim, não pode falar de qualquer coisa”.
Articulando as cores das bandeiras anglo-americanas,
representativas da Língua Inglesa – vermelho, azul e branco –, a

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 69-88, jan./jun. 2014 78
Escola 1 desenha o seu slogan em duas linhas, ancorando-o em
um selo de certificação internacional, sob um fundo branco. Na
primeira linha, o termo “Escola” está grafado em azul, seguido por
“1”, em vermelho; à frente o símbolo do ISO 9001. Na segunda
linha, grafado em letras azuis menores, o slogan “aqui você aprende”,
finalizado com outra certificação nacional, o selo de qualidade da
TECPAR CERT.
Esse certificado trabalha conjuntamente com o slogan para
a legitimação da primazia dessa instituição no ensino da Língua
Inglesa, atribuindo-lhe padrões internacionais que, ao mesmo
tempo, impressionam e seduzem os possíveis consumidores. A
disposição do slogan em duas linhas e o jogo de cores possibilitam as
leituras – “Escola ... aqui você aprende” e “1 ... aqui você aprende”
–, que corroboram para o fortalecimento da marca e do produto
no mercado.
Esse confronto de palavras pela preferência do consumidor
me recorda a voz de Pêcheux (1997, p. 77) que assevera que “tal
discurso remete a tal outro, frente ao qual é uma resposta direta ou
indireta, ou do qual ele ‘orquestra’ os termos principais ou anula
os argumentos.”
Portanto, mais do que trabalhar a persuasão do sujeito-
consumidor, excitar desejos e vender o produto, o discurso da
propaganda assenta-se sobre os outros discursos produzidos pelas
instituições rivais, para minar os seus argumentos e desacreditá-los
perante os consumidores. Assim, sobressai-se nesse jogo discursivo,
o sentido da propaganda como arena de confrontos e embates pelo
poder da palavra.

Slogan: a imagem do outro e o poder da ideologia

Na engenharia do discurso da propaganda, as imagens


pressupostas exercem função vital, visto que para o enunciador
um cálculo mal elaborado sobre o coenunciador pode significar a

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 69-88, jan./jun. 2014 79
anulação de seu próprio dizer e a ruína da sua estratégia de persuasão
(Maingueneau, 2001). Enquanto sujeito estrategista, o enunciador
da propaganda movimenta sobre o tabuleiro do mercado suas peças
– palavras de poder –, visando delinear e controlar certos efeitos
de sentido que aprisionem, na rede do discurso, os consumidores.
Acerca dessas implicações constitutivas do discurso, Orlandi
(2003) convoca-nos a refletir sobre a relação de sentidos que permeia
os discursos em perene ecoar de dispersão e singularidade. Assim,
com base em suas palavras, posso dizer que existe uma comunicação
contínua entre os discursos, sem ponto de partida ou chegada
absoluta, conectando sentidos do passado, presente e futuro.

...o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se


conjuga sempre sobre um discursivo prévio, ao qual ele atribui
o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal
acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito
dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado,
com as “deformações” que a situação presente introduz e da qual
pode tirar partido (PÊCHEUX, 1997, p. 77).

Partindo dessa comunhão de sentidos que se estabelece


entre os discursos, é que posso visualizar um encadeamento entre
os slogans: Escola 2 é assim que se fala; Destaque-se, fale certo, fale
Escola 3; Escola 1, aqui você aprende. Desse modo, afigura-nos quase
palpável a altercação que se constrói entre os discursos da escola de
idiomas 2 e 3 pelo poder de cultivar a fala. Ambas, elegem-na como
foco do processo de ensino-aprendizagem em Língua Inglesa e, com
isso, antecipam o desejo do consumidor.
Pêcheux (1997, p. 77) nos assevera que o orador ao formular
o seu dizer experimenta, imaginariamente, a posição do ouvinte para
arquitetar o seu discurso, sendo que “sua habilidade de imaginar, de
preceder o ouvinte é, às vezes, decisiva se ele sabe prever, em tempo
hábil, onde este ouvinte o ‘espera’”. Logo para Pêcheux (1997), a
antecipação do pensamento do outro parece ser inerente a todo
discursivo.

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Sob a ótica do locutor, a formação imaginária, que parece
emergir dos slogans das escolas analisadas, conflui para um sujeito
intuído que deseja comunicar-se oralmente, dominar a fala. Por
isso, a ênfase explícita na palavra ‘falar’ nos slogans da Escola 2 e 3
e, implícita, no slogan da Escola 1.
Analisando mais atentamente o slogan da Escola 2, percebo
que ele trabalha com a pressuposição de um público especialmente
jovem, por isso procura organizar em seu discurso uma forma de
expressão oral, particularmente, coloquial – é assim que se fala –, o
que na linguagem do adolescente significa um sinal de concordância
com o outro.
O interesse desse público com a língua do poder está
direcionado para uma comunicação dinâmica, fruto de conversações
e viagens internacionais. Esse jovem globalizado deseja ter acesso ao
mundo e, segundo o slogan, conseguirá tudo isso por intermédio
dessa língua global. Nesse contexto, as imagens de monumentos
do mundo como, a estátua da liberdade e o símbolo do globo azul,
ancorados no slogan corroboram com a antecipação de um sujeito
jovem que deseja abraçar o mundo.
O slogan da Escola 3 não se fecha, unicamente, na figura
do jovem, embora busque identificação com esse público, ao
desenvolver imagens estilizadas, que lembram a radicalidade de
esportes de rua. Os tipos de letras, as cores fortes com pontos de
corrosão buscam recriar a atmosfera e a linguagem da juventude.
Esse slogan é o que explora mais explicitamente a questão da
aprendizagem de Língua Inglesa como um elemento de ascensão
social e distinção dos sujeitos. Como se a língua pudesse consolidar
e/ou conferir o sujeito uma posição, identidade privilegiada no
cenário social e econômico das elites. O discurso da Escola 3 articula
também com forte ênfase a questão da fala, de uma forma específica:
a correta, a certa. Isso amplia a leitura que o locutor tem do sujeito
da propaganda, porque não só pressupõe o desejo de fala, como
também, o desejo de dominar a fala das elites, a norma padrão,
considerada a correta.

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Orlandi (2003) esclarece o pensamento de Pêcheux (1997),
ao asseverar que antecipação organiza e controla a argumentação,
de modo que o sujeito enuncia de um modo e não de outro para
produzir efeitos calculados sobre o interlocutor. Assim, emergem as
relações de força que se configuram entre os sujeitos, contaminando
os seus dizeres com a posição sócio-histórica que ocupam em
sociedade, bem como o mecanismo imaginário, responsável por
essas posições na relação discursiva.
Destarte Pêcheux (1997, p. 82) acredita que “... o que
funciona nos processos discursivos é uma série de formações
imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um
a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e
do lugar do outro”. Na mesma linha, Ducrot (1981) assinala que:

Toda comunicação linguística tem como pano de fundo certo


número de conhecimentos que os dois interlocutores possuem,
ou acreditam possuir, um a respeito do outro. Nenhum diálogo
começa ex abrupto: tenho sempre, quando falo a alguém, algumas
idéias a seu respeito, de um lado; e, de outro lado, sobre a imagem
que ele tem de mim, as vontades e as crenças que ele me atribui
(DUCROT, 1981, p. 174).

Na altercação entre os slogans analisados neste artigo, o


discurso produzido pela Cultura Inglesa parece presumir um
interlocutor insatisfeito, que após estabelecer contato com outros
ambientes de ensino, teve o seu desejo frustrado. Por conseguinte,
para garantir a supremacia do seu ensino perante as outras escolas,
a Escola 1 convoca o poder e o prestígio de certificações e símbolos
nacionais e internacionais, como: o ISO 9001, TECPAR CERT, etc.,
explorando as imagens que os sujeitos da propaganda alimentam
sobre essas certificações e símbolos. Desse modo, ela consolida a
sua posição e lugar no mercado educacional, ao convocar a força
de outra instituição de renome em seu discurso.

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No jogo de imagens entre os sujeitos, as posições se
corporificam, regulando, legitimando e significando os discursos,
de tal forma que Orlandi (2003, p. 42) declara: “os sentidos não
estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas”. Ou seja,
os sentidos estão inscritos na história, nos sujeitos, na memória e
ideologia.
Portanto, os discursos, objetos deste estudo, demonstram em
linhas gerais, que o sujeito alvo da propaganda configura a imagem
de alguém que ambiciona projeção social e econômica, através do
conhecimento da Língua Inglesa, destacando a habilidade da fala por
ser, possivelmente, a mais visível, dinâmica e ambicionada. Todavia,
cabe indagar, o que sustenta esse pensamento de que o saber conduz
à projeção social e, consequentemente, ao poder. E como resposta,
alcanço a ideologia.
Refletindo sobre essa questão, compreendo que em sentido
amplo, ideologia é conjunto de representações, concepções e/ou
opiniões acerca de algum objeto sujeito à controvérsia (ARANHA,
MARTINS, 1993). Na ótica de Marx (1985), é o véu que mascara
os conflitos sociais, tecido pelo/para e no homem, utilizando-se de
filigranas ilusórias para dominar a própria natureza humana.

... a ideologia tem influência marcante nos jogos do poder e na


manutenção dos privilégios que plasmam a maneira de pensar e
de agir dos indivíduos na sociedade (...) de tal forma insidiosa que
até aqueles em nome de quem ela é exercida não lhe perceberiam
o caráter ilusório (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 36)

Na concepção de Chauí (2012), a ideologia é a elaboração


intelectual produzida por forças hegemônicas que urdem um senso
comum social para descrever e justificar a realidade do mundo a
partir da ótica das elites dominantes. Essa elaboração visa por força
da dissimulação, ocultar as divisões sociais e políticas, envolvendo-as
sobre a ilusão da indivisibilidade e naturalidade, aprofundando as
raízes da alienação e submissão humana. Para essa autora, a ideologia

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 69-88, jan./jun. 2014 83
é um complexo racional, sistemático e coeso de representações
(idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que apontam
e determinam aos indivíduos o que e como devem pensar, sentir,
agir, viver e morrer.
A ideologia que se entremeia nos discursos das escolas de
idiomas assegura que o saber produz distinção social e poder. No
entanto, os slogans ao buscarem manipular o direito a opção por essa
ou aquela escola, escamoteiam o fato de que nem todos possuem
escolha, nem todos podem estudar nessas instituições privadas,
quase sempre, restritas às elites. Logo, aqueles que advogam para
si esse direito, buscam conquistar e/ou consolidar o seu lugar nos
domínios dessa classe social.
Para escravizar a vontade e as ações dos homens, a ideologia
utiliza os seguintes estratagemas: a inversão transfigura o efeito
em causa; a produção do imaginário social serve-se da imaginação
reprodutora para sistematizar e normatizar as experiências sociais, o
silêncio é convocado para acender coerência nas fissuras produzidas
pela ideologia e, a exclusão do sujeito é estimulada de dentro para
fora.

A ideologia assegura, a todos, modos de entender a realidade e de


se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas, ansiedade,
angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social,
bem como as contradições entre esta e as idéias que supostamente
explicam e controlam [...] A ideologia precisa das ideias-imagens, da
inversão de causas e efeitos, do silêncio para manifestar os interesses
da classe dominante e escondê-los como interesses de uma única
classe social (CHAUI, 2012, p. 219-220).

Ao comercializar o conhecimento da Língua Inglesa, essas


escolas não vendem unicamente a língua, mas também a cultura,
os valores e toda a sedução e representações imaginárias das grandes
nações capitalistas. Alimentam o desejo de sucesso pelo ter e ser o
Outro; um outro que se comunica, conhece e vive o mundo. A

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língua global, das elites, não é mera ferramenta de comunicação,
mas símbolo de distinção, pertencimento e, naturalmente, exclusão
como nos ensinou Bauman (2005).
Nessa linha de pensamento, Orlandi (2003, p. 46),
compreende que a ideologia apaga as contradições, engendra a
transparência da linguagem e sentidos, cristalizando a ideia de
naturalidade e perenidade sobre os homens e o mundo. Para essa
autora, esse é o estratagema da ideologia, “produzir evidências,
colocando os homens na relação imaginária com suas condições
materiais de existência”. E as evidências, produzidas pelo discurso
da propaganda, divulgam que só o consumo conduz à libertação.
Nos slogans, faísca a mensagem de que o sucesso espera por você,
se assim o desejar. Para isso, basta aprender, falar certo e destacar-se
com a Língua Inglesa. Negar-se às evidências da ideologia, implica
se condenar ao fracasso dos que não falam ou falam errado e não
aprendem.
Conforme Althusser (1969), a ideologia é condição sine qua
non para a constituição do sujeito e sua prática. Por meio da ideologia
opera-se a ilusão de sermos sempre já sujeito, apagando-se o fato
de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Assim,
Althusser (1969) conclui que:

...o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se


submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto para que aceite
(livremente) a sua sujeição, portanto, para que “realize sozinho” os
gestos e os atos da sua sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua
sujeição. É por isso que “andam sozinhos” (ALTHUSSER, 1969,
p. 113).

Para Orlandi (2003, p. 46-48) “não há discurso sem sujeito.


E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão
materialmente ligados” e assim, não há “realidade sem ideologia”.
É na ilusão de sermos sempre já sujeitos, sujeitos de direito, sujeitos
do dizer, sujeitos de nossos destinos que os discursos nos interpelam

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à mudança; mudança que se opera pelo consumo, pelo ato de falar
uma língua que não é nossa, mas que nos transforma, engrandece
pelo seu poder e alcance mundial.

Conclusão

Organizando esses dizeres, entendo que nos discursos


produzidos pelas escolas de idiomas analisadas preserva-se a lógica
de que o sucesso, o status e poder caminham de mãos dadas com
o saber; saber restrito a poucos privilegiados, capazes de falar certo
e aprender Língua Inglesa e, por consequência, destacar-se em um
mundo globalizado de fetiches, adornos e sujeição.
Produzidos entre 2004-2005, esses discurso permanecem
atuais e atuantes, contribuindo para expandir as fronteiras entre a
escola de idiomas e a rede pública de ensino. Na primeira, espaço
de pertencimento, reconhecimento e projeção social; na segunda,
cenário de exclusão, negação de desejos da fala e construção de
identidades fadadas ao insucesso, no mercado de trabalho.
Enquanto, nas escolas de idiomas, a disputa pelo poder
de controlar a primazia da fala trabalha em prol de identidades
poderosas e inclusivas, na rede pública, o silêncio apaga as
possibilidades de pertencimento e inclusão nessas comunidades,
perpetuando desigualdades e identidades excludentes. No mundo
globalizado, a língua do poder é, ao mesmo tempo, símbolo de
luta, exclusão, inclusão e identidades sequiosas por reconhecimento
e pertencimento. Afinal, se conhecimento é poder, falar inglês
representa empoderar-se de identidades globais, igualmente,
poderosas.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. 3. ed.


Lisboa: Presença, 1969.

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ARANHA, Maria Lucia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.
Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 14. ed. São Paulo: Ática, 2012.

DUCROT, Oswald. Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas. São


Paulo: Global, 1981.

LIMA, Diógenes Cândido de (Org.) Inglês em escolas públicas não funciona:


uma questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola, 2011.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São Paulo: Loyola,


2004.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. 1, livro 1º. O


processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São


Paulo: Cortez, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Nota ao leitor. In: PÊCHEUX, Michel. O


discurso: estrutura ou acontecimento. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.

_____. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas,


SP: Pontes, 2003.

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GADET, Françoise; HAK, Tony (Org.). Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas,
SP: Unicamp, 1997.

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QUALIDADE DA EDUCAÇÃO:
CONCEPÇÕES DA EQUIPE DE GESTÃO
E DE DOCENTES EM ANÁLISE

Viviani Fernanda Hojas1


Aline Manfio2

Resumo: Este estudo teve como objetivo analisar as concepções da equipe gestora e de
docentes de duas escolas públicas municipais do interior paulista sobre educação de
qualidade a partir de dois eixos principais: organização do trabalho na escola e avaliação
em larga escala. A pesquisa identificou, entre outros aspectos, que a maneira como os
atores escolares compreendem e lidam com os processos avaliativos realizados em larga
escala tem influenciado o trabalho desenvolvido nessas escolas. Ao final, destaca-se que
os profissionais que atuam no cotidiano escolar são personagens fundamentais para
avaliação da educação e construção de políticas públicas educacionais.

Palavras-chave: Qualidade de ensino. Avaliação em larga escala. Gestão escolar.

Abstract: This study aimed to analyze the views of the management team and teachers
in two public schools in São Paulo state about quality education from two main areas:
organization of work in school and large-scale assessment. The survey identified, inter
alia, that the way school actors understand and deal with the evaluation processes
conducted on a large scale has influenced the work of these schools. Finally, it is
emphasized that the professionals who work in the school routine are key characters to
assess education and construction of public educational policies.

Keywords: Quality of teaching. Large scale evaluation. School management.

Introdução

Este estudo integra-se ao projeto de pesquisa do Observatório
de Educação intitulado “Indicadores de qualidade e gestão
democrática” – Núcleo em Rede – (Capes/Inep), cuja problemática
1
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp/Marília
e professora de Educação Básica da rede municipal de ensino de Marília.
2
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp/Marília e
professora de Educação Básica da rede municipal de ensino de Marília.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 89
busca discutir a qualidade da escola básica brasileira a partir de
algumas categorias analíticas como: indicadores de desempenho,
gestão democrática e avaliação em larga escala.
Um dos principais focos do referido projeto é a materialização
das políticas públicas educacionais no espaço escolar, ou seja, sua
consolidação pelas escolas e os desafios que envolvem esse processo.
Neste sentido, o presente estudo tem como objetivo analisar
as concepções da equipe gestora e de docentes de duas escolas
públicas municipais do interior paulista (uma com alto e a outra
com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica –
Ideb, considerando a média do município no ano de 2012) sobre
qualidade da educação a partir de dois eixos principais: organização
do trabalho na escola e avaliação em larga escala.
O material utilizado na análise foi reunido a partir de
entrevistas realizadas com a coordenadora, a auxiliar de direção
e a diretora e com dois professores de cada uma das escolas. As
entrevistas foram de tipo semiestruturada, cuja característica
principal, segundo Manzini (2003), consiste na elaboração prévia
de um roteiro com a função de auxiliar o pesquisador a conduzir a
entrevista para o objetivo pretendido.
Na primeira seção deste artigo, apresentamos o referencial
teórico que norteou a pesquisa. As análises das entrevistas são
abordadas na segunda e na terceira seções as quais contemplam,
respectivamente, as concepções da equipe gestora (diretora,
auxiliar de direção e coordenadora) e dos docentes das duas
escolas mencionadas. Nas considerações finais são feitos alguns
apontamentos com o intuito de suscitar novas reflexões acerca da
temática e subsidiar pesquisas futuras.

Organização do trabalho na escola e avaliação em larga escala

Em estudo no qual lança reflexões acerca das possibilidades


de o espaço escolar contribuir para a efetivação da emancipação

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social, Abdian (2010) destaca que dois movimentos concomitantes
têm voltado às atenções para a escola recentemente: 1) o da
política educacional que, buscando a melhoria da produtividade
na área da educação, desloca para a ponta do sistema (a escola) a
responsabilidade pela construção do projeto político-pedagógico,
gestão do dinheiro, implantação de medidas/reformas de política
de governo e 2) o dos estudos acadêmicos, cuja focalização da escola
emerge da preocupação por parte dos pesquisadores em investigar
como as escolas constroem seu processo educacional.
Sem discordar do “padrão de gestão” proposto pelo
movimento da política educacional que enfatiza a importância do
trabalho em equipe, da tomada de decisão coletiva e de um bom
clima de trabalho na escola, mas questionando o caráter economicista
a ele associado, Abdian (2010), baseando-se em Machado (2000),
aponta a necessidade de se resgatar o clássico na administração/gestão
escolar: as funções de planejamento, organização, coordenação,
avaliação e prestação de contas, as quais devem ser pensadas a partir
de um coletivo mediado por uma equipe de gestão. A partir desses
elementos, segundo a autora, a escola poderia construir espaços reais
de planejamento de seu fazer pedagógico e a administração/gestão
escolar “seria posta a serviço de fins negociados, autorrefletidos,
participados, enfim, com a potencialidade de vir a contribuir com
a transformação da escola e da sociedade.” (ABDIAN, 2010, p.66).
Com base em Freitas (2005), Abdian (2010) argumenta
também que as avaliações em larga escala precisam ser pensadas em
uma nova lógica, pois em lugar da sobrevalorização de critérios que
fogem ao modo de existência e à essência do trabalho educativo,
seus resultados podem ser utilizados como meio para que o coletivo
escolar autorreflita sobre seu trabalho, estabeleça consensos, planeje
e execute as mudanças necessárias.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 91
Em perspectiva semelhante, Dias Sobrinho (2004)1 afirma
que nem sempre a avaliação é aplicada com função pedagógica e
formativa e, consequentemente, de emancipação pessoal e social.
O enfoque mais comum, segundo ele, é a utilização da avaliação
para o exercício de funções de controle, seleção social e restrições
a autonomia, amplamente utilizado pelos governos e agências
multilaterais. O autor distingue dois paradigmas avaliativos que,
embora decorrentes de epistemologias distintas e contraditórias,
não se excluem mutuamente.
De acordo com Dias Sobrinho (2004), o paradigma avaliativo
fundado na epistemologia objetivista tem como objetivo principal
prestar informações objetivas, claras, incontestáveis e úteis para
orientar o mercado e os governos e seu núcleo central é a verificação,
o controle dos resultados, a constatação da coerência e das diferenças
encontradas entre o realizado e o idealizado, os resultados e a norma
preestabelecida. A epistemologia subjetivista, por sua vez, sustenta
a ideia de que a verdade é relativa e dependente das experiências
humanas concretas e defende que a avaliação tem por objeto uma
realidade dinâmica e complexa que só pode ser compreendida de
maneira adequada por meio de múltiplos enfoques e ângulos de
estudo.
Tais paradigmas avaliativos, na visão do autor, se
complementam e não devem ser tratados por simples oposição:

A objetividade, para ser legítima e mais amplamente reconhecida,


precisa reconhecer a dimensão social e intersubjetiva do
conhecimento. Não é possível objetividade sem subjetividade,
não há o quantitativo sem o qualitativo, só mediante teorias da
complexidade se pode compreender globalmente um fenômeno
humano, que por natureza é polissêmico – e este é o caso da
educação, como também é o da avaliação. (DIAS SOBRINHO,
2004, p.720).

1
No referido estudo as atenções do autor estão voltadas para a educação superior. Contudo,
consideramos que as reflexões que ele apresenta acerca da avaliação podem ser estendidas aos
processos avaliativos realizados na educação básica.

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Para Dias Sobrinho (2004), os objetivos de uma avaliação
educativa devem ser essencialmente formativos, ou seja, por em
questão os sentidos da formação. O autor defende a ideia de
avaliação como produção de sentidos que, apesar de ser objetiva e
utilizar instrumentos técnicos, não se restringe a mera verificação
da conformidade de produtos a uma norma e alimenta o debate e a
reflexão sobre valores e significados do processo educativo.
Em sua concepção, a melhoria da qualidade educativa é uma
construção coletiva na qual “a participação ativa dos sujeitos em
processos sociais de comunicação gera os princípios democráticos
fundamentais para a construção das bases de entendimento comum
e de interesse público” (DIAS SOBRINHO, 2004, p.720). Tal
processo, apesar de apresentar contradições e disputas por conter
interlocutores de distintos grupos, cria condições para aprendizagens
e experiências dos significados da vida social.
Por fim, o autor aponta a necessidade de substituirmos as
noções estreitas de qualidade, transferidas do mercado para a área
educacional e voltadas apenas para a operatividade e a funcionalidade
produtiva, por uma concepção complexa que incorpore os sentidos
e os valores da construção da sociedade democrática.
Compartilhando das concepções de administração/
gestão escolar e de avaliação dos autores abordados nesta seção,
apresentamos a seguir, as concepções da equipe gestora das escolas
pesquisadas acerca das duas temáticas buscando estabelecer a
interlocução de ideias.

As concepções da equipe de gestão

Conforme mencionamos inicialmente, as escolas onde


realizamos a pesquisa apresentaram resultados distintos no Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) no ano de 2012. A
primeira delas, denominada de E1, teve baixa pontuação no IDEB
e a equipe de direção havia iniciado seu trabalho há pouco tempo

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na escola. A segunda escola, nomeada como E2, vem apresentado
uma sequência de bons resultados no referido índice e a equipe de
direção e o grupo de professores sofreram poucas alterações nos
últimos anos.
No que se refere à organização do trabalho na escola, a diretora
da E1 considera que a abertura ao diálogo e a vivência democrática é
fundamental para a melhoria da qualidade do ensino. Segundo ela:

[...] cada um tem uma forma de administrar, cada um tem a sua


gestão ou é democrática ou ela não... E eu encontrei aqui muitos
obstáculos, muitas portas fechadas, a escola totalmente fechada,
totalmente no ostracismo. Então quando é tudo fechado você não
oferece qualidade. (DE1, 2012).

Ainda que com foco voltado para o desempenho nas


avaliações externas, a ideia de trabalho em conjunto mediado por
uma equipe de gestão proposto por Abdian (2010) aparece tanto
na fala da diretora quanto da coordenadora da E2:

Então, nesses 12 anos, mantendo o mesmo grupo de professores, a


gente conseguiu construir um trabalho, estudando, vendo a prática,
vendo o que acontece, o que é bom, o que não é bom, o que precisa,
o que todo mundo precisa, o que tá dando certo, o que não está
dando certo. Procura estudar pra melhorar e vai aperfeiçoando a
prática. E uma das coisas que eu penso que deu bastante resultado
na minha escola foi através desses estudos. (DE2, 2012).

Aqui tem muita coisa que acontece assim que acontece de


forma muito natural. Os professores acreditam no trabalho, se
envolvem e acontece. Muita coisa a gente tem que levar pra estudar
e ainda fala assim, aqui precisa melhorar. [...] o que vale a pena, o
que se vê que precisa melhorar o grupo acredita. E a gente também
acredita. (CE2, 2012).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 94
A participação dos pais na organização do trabalho escolar, no
entanto, constitui um grande desafio para as integrantes da equipe de
direção das duas escolas. De acordo com a auxiliar de direção da E1:

Então... Não existe muito, muito envolvimento aqui, tá? É...


Esse ano até que nós conseguimos um pouquinho mais, tá? Mas
realmente não tinha acho que envolvimento nenhum. Esse ano
nós conseguimos acho que um pouco mais evoluir em relação a
isso. (ADE1, 2012).

Apesar de terem conseguido organizar a Associação de Pais


e Mestres (APM) na referida escola, a coordenadora afirma que
não são muitos os pais que se dispõem a integrá-la. E, segundo ela,
“a gente não pode ficar colocando muitas reuniões, porque ai eles
acabam desistindo”. (CE1, 2012).
A diretora da E2 também afirma algo semelhante acerca da
participação dos pais e da comunidade na escola. Segundo ela:

A gente tem uma certa dificuldade em envolver em alguma coisa,


mas tem sempre aquela que se envolve em tudo e tem aquela que
não quer saber de nada. A gente tenta trazer os pais. Tenta convidá-
los em toda reunião. Pra eles terem uma noção do global, pra ter
uma participação, pra entender o processo. A APM e o Conselho de
Escola, por lei eu coloco o edital no portão não aparece ninguém.
Daí o que eu faço? Vou no portão, na hora da saída e convido e
explico o que é direitinho, pra gente sentar. (DE2, 2012).

Os relatos acerca das dificuldades de envolver os pais nas


tomadas de decisão da escola, se, por um lado, podem gerar um
sentimento de desânimo e/ou descrença em relação às possibilidades
de trabalho coletivo, de outro lado, colocam em evidência a
importância da atuação da equipe de direção nessa empreitada.
Abdian (2010) argumenta que pensar a escola democrática exige
a participação ativa de professores, alunos e demais segmentos
que compõem o ambiente escolar seja promovida e incentivada.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 95
Isso implica, segundo ela, a progressiva abertura e inserção da
comunidade educativa nos diferentes processos decisórios que
acontecem na escola.
Em relação às avaliações em larga escala, a diretora da E1
considera que essas avaliações, por se voltarem apenas para aquilo que
é quantificável, não seriam suficientes para determinar a qualidade
de uma escola:

Ela vai mostrar, assim, parcialmente a cara da escola. Vamos colocar


dessa forma. Acho que elas são bem elaboradas, de acordo com que
é trabalhado [...] mas eu acho assim elas são válidas pra gente. Dá
pra você medir em quantidade, não é? Mas ainda não tenho firmeza
pra dizer que ela mostra qualidade. (DE1, 2012).

Tais ideias parecem seguir em direção do pensamento


de Dias Sobrinho (2004). Segundo o autor, a ênfase no uso de
técnicas objetivas que focalizam resultados e aquisições na avaliação
educacional se deve ao fato de que elas são mais facilmente
organizáveis do ponto de vista operacional, além de transmitirem a
imagem de objetividade e isenção. Contudo, ele também argumenta
que as dinâmicas educativas apresentam elementos que escapam à
rigidez da racionalidade administrativa.
A diretora da E2, em seu relato, faz referências a diferentes
tipos de avaliação e considera que os resultados dos processos
avaliativos realizados em larga escala são importantes para orientar
as políticas governamentais:

Então a gente tem vários tipos de avaliação, com vários objetivos


e todas tem que ser feitas. A gente tem aquela avaliação que o
professor faz no dia a dia, no corpo a corpo com o aluno onde ele vai
medir o tamanho do passo que o aluno dele deu, independente do
outro aluno, da série, da escola, do país, independente de qualquer
coisa. [...] E tem a avaliação externa que é essa mais classificatória,
mas que não deixa de ter sua importância porque é essa avaliação
que acaba dando um parâmetro de como estão as escolas, como

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está o município, como está o estado, o que precisa fazer, onde os
alunos estão com mais dificuldade. (DE2, 2012).

É inegável que as avaliações em larga escala podem constituir


um instrumento importante para orientar as tomadas de decisão dos
governos, mas, conforme Dias Sobrinho (2004), nem sempre seus
resultados prevalecem nesse processo e, muitas vezes, as políticas
governamentais organizam as avaliações ao invés delas organizarem
tais políticas.
Outro aspecto que chamou a atenção nas falas das integrantes
da equipe de gestão das duas escolas foi a afirmação de que os alunos
são treinados para realizar os processos avaliativos em larga escala.
Segundo a diretora da E1, o treino “é uma forma de preparar. Até
ensinar a preencher o gabarito, você entendeu? A gente faz um
fuvestinho para a criança, aplica a prova do ano passado, do ano
retrasado” (DE1, 2012). Esse tipo de treinamento também parece
ser algo natural na afirmação da diretora da E2: “[...] a gente
costuma pegar as avaliações, das provas anteriores como modelo
pra as questões, os problemas matemáticos, a maneira de solicitar a
produção de texto, pra treinar um pouco” (DE2, 2012).
A coordenadora pedagógica de uma das escolas pesquisadas,
no entanto, questiona a eficiência dessa prática. Segundo ela:

A gente dá as provas anteriores, a gente conversa tal. [...] mas a


gente sabe que existem competências mínimas de escrita, de leitura
e habilidades mínimas. E eu acredito que isso não se consiga com
simulados apenas. Eu falo é importante, é importante que as crianças
aprendam a fazer a prova e que consigam entender as atividades que
estão sendo propostas? Sim. Mas se ela não tiver conhecimentos
que foram trabalhados no processo, por exemplo, competências
linguísticas, inferir num texto, por mais que o professor faça dez
exercícios disso, se a criança não tiver essa competência e não souber
lidar com essa situação, ela vai errar. (CE1, 2012).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 97
Apesar de pontos de vista ora semelhantes, ora distintos
apresentados pelos profissionais entrevistados, é possível observar,
nos diferentes relatos, que as avaliações em larga escala vêm
interferindo na organização do trabalho realizado nas duas escolas.
Para Dias Sobrinho (2004, p.714), apesar de possibilitar mais
precisão e força operacional aos sistemas de medidas e de seleção,
as provas e exames “determinaram uma concepção e uma prática
pedagógicas que consistem basicamente na formulação dos deveres
ou exercícios escolares e no controle por meio dos testes”.

As concepções da equipe docente



Em continuidade ao trabalho de análise, apresentamos
nesta seção as concepções dos docentes acerca de alguns aspectos
relacionados ao processo educativo escolar: E1 (baixo IDEB e equipe
gestora nova) e E2 (alto IDEB e equipe gestora consolidada).
Na E1, segundo uma das professoras, as decisões em que
o corpo docente é chamado a participar são geralmente mais
relacionadas às questões burocráticas do que ao trabalho pedagógico:

[...] participa sobre gastos, arrecadação de valores e outros gastos.


Eles são perguntados antes de se fazer a realização do gasto. Eles
perguntam se estão de acordo se não estão de acordo. Mas os gastos
são sempre de acordo com as necessidades da escola. Ai participa
faz prestação de contas. (P2E1, 2012).

Na E2, quando questionadas sobre a tomada de decisões,


as professoras relatam que a participação normalmente acontece
quando o corpo docente, em parceria com a equipe gestora, decide o
que lecionar para os alunos no planejamento que acontece no início
do ano letivo. Em alguns casos, no entanto, a Secretaria Municipal
de Educação determina algumas questões que devem ser acatadas
pelos professores.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 98
Bom, depende das decisões. Tem decisão que vem de cima
pra baixo e nós somos obrigados a fazer. Coisas da Secretaria, por
exemplo. Agora, a gente organiza nosso trabalho no começo do ano
letivo, através do Plano de Ensino. (P1E2, 2012).

A organização do trabalho é tudo em equipe. Os professores


preparam o semanário, a coordenadora olha, dá opinião quando
é necessário, conversa quando é necessário, a diretora também
participa, a vice-diretora também. É organizado desta forma. E
também em consenso com os professores da mesma série. (P2E2,
2012).

No relato dos docentes das duas escolas é possível notar


formas distintas de participação. No caso da E1, a participação
parece mais vinculada a aspectos financeiros e adquire um sentido
fiscalizador, ao passo que na E2 o envolvimento da equipe docente
constitui-se de características educativas e formativas. Vale lembrar,
no entanto, que na E1 a equipe de gestão havia iniciado o trabalho
há pouco tempo com o grupo e os relatos da equipe docente, muito
provavelmente, se referem à situação vivida anteriormente na escola.
A E2, por sua vez, mantém um grupo sólido de profissionais há mais
de uma década e que constituiu grande vínculo com a escola e com
a comunidade escolar.
Em relação aos processos avaliativos em larga escala, a
professora da E1 afirma ser favorável, uma vez que eles geram
competitividade o que para ela é positivo e permite a preparação
para a vida adulta “eu acho que a competição é saudável e que ela
deve existir” (P1E1). Segundo a professora ainda, o treinamento dos
alunos a partir dos indicadores possibilita a melhoria da pontuação
da escola e, consequentemente, proporciona maior arrecadação de
recursos financeiros. Contudo, reconhece que esse tipo de trabalho
acaba colocando em segundo plano alguns conteúdos importantes:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 99
[...] se você ficar só em cima de um treinamento, em cima das
questões, em cima somente desses descritores, você perde outros
conteúdos que são importantes como português, história, geografia.
Então fica vinculado às questões que são cobradas nas provas
e você deixa de trabalhar outros conteúdos que são cobrados
profissionalmente. Então, assim, a competitividade é boa? É
bacana, é produtivo. A escola que quer melhorar o seu IDEB,
porque o IDEB também dá recursos para uma escola dependendo
da pontuação que você conseguir ele também vai tá dando recursos
pra escola. Então é positivo, porque as escolas precisam de recursos
não é? Mas eu falo na questão das outras disciplinas entendeu?
E como é trabalhado, porque você não pode ficar em cima dos
descritores, você não pode ficar bitolado somente nessas avaliações.
(P1E1, 2012).

Quando questionada se os indicadores de qualidade realmente


indicavam a qualidade, a professora afirma:

Nem sempre. Eu acho que tem criança que fica nervosa, tem
criança... Como é de alternativa, eu sempre brinco que tem criança
que se jogasse na loteria ganhava. Porque tem criança que não tem
um bom desempenho nas atividades normais na sala de aula e tiram
uma boa nota. Tem crianças que têm um bom desempenho e não
conseguem tirar. (P1E1, 2012).

Os testes, provas e exames, segundo Dias Sobrinho (2004,


p.707), são utilizados há bastante tempo no campo educacional
“como se a qualidade da formação de um aluno coincidisse com
os resultados que ele alcança nesses instrumentos de verificação”.
Em sua concepção, os instrumentos técnicos não precisam
necessariamente ser descartados dos processos avaliativos, mas, se
os resultados desses instrumentos são apropriados pelas instâncias
de poder sem uma interlocução com os educadores, a avaliação
perde seu potencial formativo em favor de funções burocráticas,
controladoras e economicistas.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 100
Na E2 as professoras afirmam que a preparação para as
avaliações em larga escala acontecem de forma sistemática na escola
e que esse tipo de treinamento está voltado para o conteúdo a ser
avaliado. Quando questionadas se os resultados das avaliações em
larga escala indicam se uma escola é de qualidade ou não, as respostas
são afirmativas:

Eu acho que sim, eu acho que mostra a realidade. (P1E2, 2012).

Eu acredito que sim, porque a partir dos indicadores é direcionado


o trabalho. Esses indicadores conseguem direcionar o trabalho.
Antigamente, o trabalho era mais solto. E quando você tem os
indicadores, eles te orientam e você sabe o que o aluno precisa
saber quando chegar no final daquela série. Então eu acho que os
indicadores são muito importantes para direcionar o trabalho do
professor, porque visa aquilo que você vai trabalhar. (P2E2, 2012).

Diferentemente da professora da E1, que apresenta certa


contradição em sua fala, as docentes da E2 consideram que a
qualidade da educação é algo que pode ser definido a partir dos níveis
de desempenho alcançados pelos alunos nos processos avaliativos
realizados pelas diferentes instâncias de governo.
A seguir, apresentamos algumas conclusões obtidas mediante
a análise efetuada e, a partir do resgate das ideias dos autores
utilizados como referência neste estudo, lançamos algumas questões
que podem (ou talvez devem) ser respondidas não apenas por
pesquisadores da área educacional, mas sim (e principalmente) pelos
profissionais que atuam no dia-a-dia das escolas.

Considerações Finais

Ao analisarmos as concepções da equipe gestora e de docentes


de duas escolas públicas municipais com perfis bastante distintos
notamos que a maneira como os atores escolares compreendem e

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lidam com os processos avaliativos realizados em âmbito federal,
estadual e municipal tem influenciado o trabalho desenvolvido
nessas escolas.
Em linhas gerais, observamos que na escola denominada E1
a equipe de gestão dá menos ênfase às avaliações em larga escala
e essa característica se reflete nas concepções dos docentes, que,
apesar de abordarem os conteúdos dessas avaliações em sala de aula,
consideram que outros conteúdos também são importantes para o
processo de formação dos alunos. Já na escola que nomeamos E2,
devido à grande importância atribuída aos processos avaliativos
em larga escala por parte da equipe gestora e incorporada pelo
grupo de professores, o trabalho educativo parece voltar-se, quase
que exclusivamente, para o bom desempenho dos alunos nessas
avaliações.
Com efeito, conforme as ideias dos autores utilizados como
base desta pesquisa, a avaliações podem impulsionar mudanças
necessárias em direção à melhoria da qualidade do ensino quando,
ao invés da mera verificação de desempenho, estiver voltada para
o debate e a reflexão coletiva. Abdian (2010) critica os processos
avaliativos que fogem ao modo de existência e da essência do trabalho
educativo e defende que a avaliação seja realizada pelo coletivo
escolar. Dias Sobrinho (2004), na mesma linha, argumenta que
tendo a formação em seu sentido pleno como finalidade essencial da
educação, a avaliação deve se realizar como um processo em contínua
construção que coloca em foco de conceituação e questionamento
os significados da formação produzida.
Para finalizar, destacamos que os profissionais que atuam no
cotidiano escolar são personagens fundamentais para avaliação da
educação e construção de políticas públicas educacionais, pois quem
tem melhores condições de produzir sentidos para os resultados das
avaliações desenvolvidas em larga escala? Quem está diretamente
envolvido com o ensino oferecido aos alunos? Quem pode definir
com propriedade os encaminhamentos necessários para a melhoria
da qualidade desse ensino?

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Referências

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proposições. In: WERLE, Flavia Obino Correa (Org.). Avaliação em larga
escala: foco na escola. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2010.

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como direito público ou como mercadoria? Educação & Sociedade.
Campinas, v.25, n.88, p.703-725, Especial, out. 2004.

FREITAS, Luis Carlos de. Qualidade negociada: avaliação e contra-


regulação na escola pública. Educação & Sociedade. Campinas, v. 26, n.
92, p. 911-933, out. 2005.

MACHADO, Lourdes Marcelino. Quem embala a escola? Considerações


a respeito da gestão da unidade escolar. SP: Pioneira, 2000.

MANZINI, Eduardo José. Considerações sobre a elaboração de roteiro


para entrevista semi-estruturada. In: MARQUEZINE, Maria Cristina;

ALMEIDA, Maria Amélia; OMOTE, Sadao. (Orgs.). Colóquios sobre


pesquisa em educação especial. Londrina: Eduel, 2003.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 89-104, jan./jun. 2014 103
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A REPRESENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
CINEMA E LITERATURA

Tacel Coutinho Leal1


Danusia Regina Alves2

Resumo: Os direitos humanos têm sido um tema recorrente nas mais diversas áreas
do saber. Seu discurso se faz presente em diferentes mídias, porém, este artigo enfoca
a presença desses direitos enquanto representação manifesta em produtos culturais, a
saber, o cinema e a literatura. As obras são exploradas levando em conta sua possível
contribuição para o fortalecimento, ou o esvaziamento de tal discurso. Através da
contribuição de teóricos eminentes nesta área, a representação dos direitos humanos
presentes nas duas formas de ficção, cinema e literatura, reflete a presença, ou ausência
dos mesmos nas práticas sociais no contexto social brasileiro.
Palavras-chave: direitos humanos, representação, produtos culturais

Abstract: Human rights have been a recurrent theme in different areas of knowledge.
This discourse is present in a variety of medias, however, this article focuses the presence
of such rights as representation manifested in cultural products, that is, cinema and
literature. The works are explored taking into account their alleged contribution for the
strengthening or emptying of such discourse. Using contribution from eminent thinkers
of this area, the representation of human rights present in both fictional forms, cinema
and literature, reflects the presence or the absence of those rights in social practices in
the Brazilian social context.
Key-words: human rights, representation, cultural products

Introdução

O discurso dos direitos humanos foi incorporado às mais


diversas áreas do saber: da história às ciências jurídicas, da sociologia
aos estudos de imagem e literatura, tal discurso é utilizado e repetido
sob diversas óticas e perspectivas. Nunca se falou tanto a respeito do
assunto e há mais de duas décadas o discurso dos direitos humanos

1
Professor adjunto do curso de Letras-Inglês na Universidade Estadual de Londrina.
2
Estudante de graduação do curso de Letras Inglês na Universidade Estadual de Londrina.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 105
foi incorporado aos estudos culturais e de gênero. Este artigo se
debruça exatamente sobre esta percepção do discurso dos direitos
humanos: sua qualidade enquanto linguagem, discurso produzido
que cria e valida subjetividades e também a presença de tal discurso
enquanto representação, ficcionalização das noções de cidadania e
convivência humana em sociedade.
Tal discurso, na sua essência, é veiculado através das leis e
tratados que, ao longo do tempo, tornaram-se seus documentos
fundadores. No entanto, seu caráter jurídico e seu linguajar
específico os tornam, por vezes, impenetráveis ao público leigo. É
na concretude da vida diária que os direitos humanos, muito mais
do que um discurso específico, se realizam. Este discurso também
se intensifica na medida em que é incorporado nas práticas culturais
de representação. O visual e o verbal agregam força ao discurso dos
direitos humanos na medida em que o amplificam.
Assim, nosso objetivo é o de debater como a prática dos
direitos humanos (ou o seu desrespeito) se concretiza em formas
ficcionais específicas: a literatura e o cinema. Também aqui
discutimos como é possível traçar um paralelo entre a produção do
discurso dos direitos humanos e a produção de um discurso ficcional
que reflete, valida ou nega o primeiro.

A Ficcionalização dos Direitos Humanos

Em Human Rights, Inc., Joseph Slaughter explora a


novelização da cidadania e das formas narrativas dos direitos
humanos. Para o autor, o advento internacional dos direitos
humanos é um evento novelístico, em parte por que o “surgimento
do romance está consistentemente implicado no surgimento das
duas ‘pessoas’ que estão no centro do projeto dos direitos humanos:
o indivíduo e o estado” (SLAUGHTER, 2007, p. 91, tradução

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 106
nossa).3 Como nos mostra o autor, a teoria da narrativa escrita
concomitantemente com o surgimento da Declaração Universal dos
Direitos Humanos vê o romance como o gênero literário que mais
intensamente preocupa-se com a problemática da socialização, ou
seja, a problemática estabelecida do encontro entre o contingente
social com o indivíduo comum. Da mesma forma, o romance é
visto como o meio que mais fortemente representa a construção
socioestética do individualismo moderno e burguês e o estado
moderno como uma comunidade social (SLAUGHTER, 2007, p.
92). Assim, pretendemos aqui desdobrar tal ideia ao analisar outras
formas narrativas, como o conto e o cinema, a fim de debater a
questão dos direitos humanos inserida nestas formas representativas
de novelização, ou ficcionalização, do indivíduo e do estado no
contexto social brasileiro.
No entanto, ao se analisar a conexão entre o discurso dos
direitos humanos e as formas ficcionais, é preciso estar atento na
maneira em que este discurso está sendo apropriado, ou, melhor
dizendo, a maneira (e os propósitos) que este discurso está sendo
ficcionalizado. Como nos mostra Costas Douzinas, o discurso
dos direitos humanos “pode ser adotado pela direita ou pela
esquerda, pelo norte ou pelo sul, pelo estado e pelo púlpito, pelo
ministro e pelo rebelde.”4 (apud Slaughter, p. 1, tradução nossa).
Em “Introducing human rights and literary forms; or, the vehicles
and vocabular of human rights (2009)”, Joseph Slaughter e Sophia
McClennen exemplificam como a extrema direita também pode se
apropriar do discurso dos direitos humanos para colocar em prática
seus propósitos (tudo isso sob uma manta de boas intenções que o
discurso dos direitos humanos, quando distorcido, pode garantir).
Os autores exemplificam como Bush, ao proclamar a invasão do
Afeganistão (após os eventos de 11 de setembro), anunciou que, ao
3
Texto original: “The rise of the novel has been consistently implicated in the rise of human
rights’ two primary persons: the individual and the state”.
4
Texto original: “can be adopted by the right and the left, the north and the south, the state
and the pulpit, the minister and the rebel.”

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 107
mesmo tempo em que os soldados bombardeariam os alvos militares,
eles também deixariam cair de seus aviões comida e remédios para
a população, notadamente mulheres e crianças. Como nos mostra
Slaughter “os direitos humanos estão sob ameaça em todo o lugar,
especialmente quando sua linguagem é usada para justificar a sua
violação”5 (SLAUGHTER, 2009, p.2,tradução nossa).
Sendo assim, a academia (principalmente a área das ciências
humanas) deveria aprender a reconhecer tanto a “boa apropriação/
ficcionalização” dos direitos humanos, quanto a má apropriação, ou
seja, aquela que é mal intencionada. Para Slaughter, quando alguém
analisa uma obra literária ou um filme na intenção de debater a
questão dos direitos humanos, este (a) precisa desvincular-se da ideia
de que os direitos humanos são apenas um discurso sentimental que
se detém apenas na questão de como os seres humanos deveriam
ser tratados. Para Slaughter, esta é uma das maneiras em que a área
das humanas pode ajudar a “esvaziar” o potencial do discurso dos
direitos humanos. Segundo o autor, o estudante de cultura pode
“arriscar-se a uma irrelevância prática se este falhar em reconhecer
a importância jurídica e o status institucional dos direitos humanos
como um regime legal.”6 (SLAUGHTER, 2009, p. 6, tradução
nossa). Além disso, os autores afirmam, é justamente por que o
discurso dos direitos humanos pode ser apropriado por qualquer
pessoa para os mais diversos fins que é preciso insistir no aspecto
legal (ou jurídico) do discurso dos direitos humanos.
Em seu artigo “The Most We Can Hope For: Human Rights
and the Politics of Fatalism,”, Wendy Brown também questiona os
direitos humanos e os diferentes resultados que seu discurso pode
produzir. Para a autora

5
Texto original: “Human rights are under threat everywhere, especially when the language
of human rights is used to justify their violation.”
6
Texto original: “risk practical irrelevance if we fail to recognize the juridical importance and
institutional status of human rights as a legal regime.”

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Nenhum projeto eficaz produz somente as consequências que
intenciona produzir. Assim, qualquer que seja o seu propósito
declarado, será que os direitos humanos apenas reduzem o
sofrimento? Será que os direitos humanos (prometem) reduzir o
sofrimento de uma maneira que exclui ou nega outras possibilidades?
(BROWN, 2004, p. 453, tradução nossa)7

Como na afirmação de Douzinas, o discurso dos direitos


humanos pode produzir – de forma intencional ou não – os mais
variados resultados. Na visão de Brown, o ativismo dos direitos
humanos é, de fato, um projeto político e moral. Ora, na medida
em que estes direitos competem, rejeitam ou recusam outros
projetos políticos (incluindo aqueles que também pretendem fazer
justiça) eles deixam de ser apenas uma tática centrada na dor e no
sofrimento. Na visão de Brown, os direitos humanos são, na verdade,
uma forma de poder político que carrega uma imagem bastante
peculiar de justiça. Sendo assim, tal forma de poder político deve
ser inspecionada, avaliada e julgada sob esta perspectiva. O que
Brown tenta mostrar é que os direitos humanos tomam forma
como um discurso moral apenas, um discurso que se centra na dor
e no sofrimento, ou na defesa de indivíduos fragilizados frente ao
poder do estado. Ao contrário, Brown afirma, os direitos humanos
deveriam assumir um discurso político capaz de produzir uma noção
de justiça mais concreta e compreensível. Da maneira como são
postos, não fica claro como os indivíduos seriam capazes de ter acesso
à autonomia e a capacidade de ação que tais direitos proclamam
(BROWN, 2004, p. 454, 455).
Segundo Slaughter e McClennen, é fundamental que se
questione qual é o papel da cultura (e de suas representações) no
ato de apoiar e pôr em prática os direitos humanos (como discurso
legal e político) e qual o seu papel no ato de ameaçar, ou mesmo
7
Texto original: “No effective project produces only the consequences it aims to produce.
Whatever their avowed purpose, then, do human rights only reduce suffering? Do they
(promise to) reduce it in a particular way that precludes or negates other possible ways?”

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 109
de esvaziar, o potencial de tal discurso. Como afirmam os autores,
é preciso estar atento ao “poder que produtos culturais têm em
dar forma às estruturas narrativas e aos mapas ideológicos que
influenciam as visões públicas e privadas da política global e das
relações sociais”8 (SLAUGHTER e MCCLENNEN, 2009, p. 8-9
tradução nossa). Assim, as “representações culturais têm um papel
fundamental no imaginário social: um papel que possui um potencial
repressivo ou de resistência nas operações efêmeras ou duradouras
do meio literário,”9 (SLAUGHTER e MCCLENNEN, 2009, p. 9,
tradução nossa) e, por que também não dizer, fílmico.
Em seu artigo “O Direito à Literatura”, o crítico brasileiro
Antonio Candido também atesta o poder que formas representativas
possuem e como tais formas espelham valores sociais e formas de
consciência. Para o autor, “os valores que a sociedade preconiza, ou os
que considera prejudicial, estão presentes nas diversas manifestações
da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 1995, p. 175).
É através da análise de produtos culturais – a saber, o cinema
nacional e a literatura brasileira – que este artigo pretende analisar
o efeito que tais produtos culturais exercem na promoção, no
esvaziamento ou mesmo na ameaça aos direitos humanos, e como
tais representações ficcionais influem no imaginário nacional.

Cronicamente Inviável (1999), de Sérgio Bianchi

O filme com o qual trabalharemos neste artigo é Cronicamente


Inviável, dirigido por Sérgio Bianchi e lançado em 1999. Sete

8
Texto original: “(...) the power that cultural forms have in shaping the narrative structures
and the ideological maps that influence public and private views of global politics and social
relations.”
9
Texto original: “Cultural representations play a key role in the social imaginary: a role
that holds repressive as well as resistant potential in both the ephemeral and the enduring
operations of the literary medium.”

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 110
personagens principais, todas pertencentes a diferentes classes, têm
suas histórias entrelaçadas pelas circunstâncias sociais: Luís (Cecil
Thiré) é dono de um restaurante de luxo; o casal de classe média
alta, Maria Alice (Betty Goffman) e Carlos (Daniel Dantas), que são
amigos de Luís; a empregada doméstica Josilene (Zezeh Barbosa),
que foi criada junto com Maria Alice e agora trabalha para a mesma;
o garçom Adam (Dan Stulbach), imigrante sulista que vai para São
Paulo à procura de trabalho; Alfredo (Umberto Magnani), intelectual
e autor de livros que trabalha também para Amanda (Dira Paes),
gerente do restaurante de Luís.
Há diversas narrativas dentro do filme envolvendo cada uma
das personagens, e a cada momento descobrimos um pouco mais de
cada uma delas. Retratadas em cenas cotidianas, percebemos através
dos diálogos, de suas ações e de seus próprios pensamentos – quando
há narração em off - o racismo destas personagens, o preconceito
de classe, elitismo, cinismo, inconformismo – infindáveis “ismos”
que fazem parte da sociedade brasileira e que por vezes estão tão
inculcados em nosso imaginário social que nem percebemos sua
presença e, assim, continuamos a propagá-los infinitamente. É
dentro desta perspectiva que se enquadra a discussão sobre os direitos
humanos em contextos culturais: o filme brasileiro, ao mesmo
tempo em que se configura como um retrato de nossa sociedade, é
também solo fértil para a pesquisa sociológica justamente por esse
motivo: nele estão impressos o zeitgeist de nossa era e, portanto,
é instrumento válido para analisarmos como a discussão sobre os
direitos humanos está inserida (ou não) em nossa sociedade. Como
visto anteriormente, para Candido, os valores e preconceitos sociais
se refletem nos produtos culturais.
De acordo com Rafael Meira de Figueiredo, em sua
dissertação Paradigmas da Decupagem no Cinema Brasileiro dos anos
2000, o autor defende que Cronicamente Inviável foi filmado sob a
estética realista de cinema, pois segue alguns preceitos básicos de tal
corrente cinematográfica: “câmera fixa (por vezes na mão), ausência

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de distorções de tempo, tendência à utilização da câmera à altura dos
olhos, adoção da decupagem clássica que objetiva uma impressão
de transparência na montagem” (FIGUEIREDO, 2005, p. 129).
De fato, todas essas características podem ser observadas ao longo
do filme de Bianchi e a maneira com que o diretor escolheu criar a
narrativa de Cronicamente Inviável nos ajuda a entender um pouco
melhor por que essa obra trabalha com aspectos do tratamento
dos direitos humanos no Brasil. Ou seja, nas palavras de Joseph
Slaughter: “[...] como (os textos) refletem questões dos direitos
humanos através de práticas estéticas específicas” (SLAUGHTER
e MCCLENNEN, 2009, p. 12, tradução nossa)10.
Dentro da própria narrativa interna do filme podemos
averiguar a falácia do discurso do “bom mocismo” dos direitos
humanos, descrito por Slaughter e McClennen, na fala de
representantes sociais, que sejam: a secretária de finanças do banco
central (como alegoria da elite brasileira), o representante do núcleo
indígena da USP (desempenhando o papel do ativista de movimentos
sociais) e, por sua vez, o coordenador do Movimento Viva Rio (como
ativista de organizações não-governamentais), quando no programa
de televisão os três tipos alegóricos, com discursos análogos, tentam
trazer para si e seus grupos a responsabilidade pela criação de uma
“verdadeira” identidade nacional, justa e igualitária. Bianchi enfatiza
a demagogia dos discursos fazendo com que as personagens, em
diferentes momentos do filme, expressem exatamente a mesma ideia,
trocando apenas os sujeitos da ação: “[...] é por isso que nós sulistas,
que compreendemos bem esse espírito progressista, é que temos o
papel de gerar a identidade nacional”, “[...] é por isso que nós índios,
que compreendemos bem esse espírito do extermínio brasileiro
[...]” e “[...] é por isso que nós cariocas, que compreendemos bem
esse comportamento do brasileiro, é que temos o papel de garantir
a identidade nacional”. Há ainda o caso do escritor Alfredo, que

10
Texto original: “We wondered what happens when we read texts to see how they reflect
human rights issues through specific aesthetic practices”.

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ao longo do filme parece ser uma das poucas vozes que possuem
consciência social, mas que descobrimos, ao final da obra, que é
apenas mais um hipócrita na lista de Bianchi, pois em suas viagens
“antropológicas” pelo país a personagem também trafica órgãos,
prestando serviços para Amanda, a gerente do restaurante. Figueiredo
(2005, p. 108) sumariza a mensagem de Bianchi em Cronicamente
Inviável:

Bianchi quer denunciar a hipocrisia e a falácia da harmonia racial


e para isso atira para todos lados. Não há mocinhos nem bandidos,
todos têm sua parcela de culpa: as elites, os políticos, intelectuais,
os movimentos sociais. [...] O filme por vezes se apresenta como
documentário–falso. Este teor documental serve para acentuar o
pretenso realismo do filme e emprestar verossimilhança a situações
por vezes absurdas.

As cenas dos atropelamentos das crianças de rua, por exemplo,


podem ser consideradas absurdas por causa do tom proclamatório
com que as motoristas justificam seus atos, mas não estão tão
distantes da realidade – lembremos do caso do ciclista atropelado,
ocorrido em março de 2013, na cidade de São Paulo, que teve seu
braço amputado durante a colisão, e jogado em um córrego pelo
autor do crime – que, por sua vez, voltava embriagado de uma casa
noturna, pela avenida Paulista.
Esse tom por vezes ultrarrealista de Bianchi acaba por criar
no espectador uma espécie de distanciamento do que está sendo
mostrado. Figueiredo o chama de “desdramatização”, que, por sua
vez, causa desconforto. A cena da briga das crianças, por exemplo,
num filme que desejaria recorrer ao emocional, provavelmente
mostraria a câmera como sendo o olhar de uma das crianças, a
música seria agitada ou provocaria tensão, haveria, possivelmente, a
utilização do recurso de slow motion, cortes rápidos e muitas partes
editadas. Na visão de Figueiredo, “A câmera é sempre colocada na
altura dos olhos e distanciada da ação. O ponto de vista é neutro,

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colaborando para criar uma sensação de frieza em relação a uma
cena de alto índice dramático” (2005, p. 126). Em tom documental
e sóbrio, mas fazendo uso constante da ironia, o diretor faz um
retrato “quase científico” da sociedade brasileira. Notamos isso ao
analisarmos também a maneira com que a trilha sonora contrasta
com a cena – uma bossa nova tranquila como pano de fundo para
uma briga entre crianças de rua – sendo que o diretor opta por
esse caminho, ao invés de utilizar recursos comumente aplicados
em filmes hollywoodianos, como usar a música para enfatizar a
dramaticidade e ajudar a criar a atmosfera necessária. O espectador é
convidado a observar diálogos inteiros sem cortes e sem edição, assim
como no teatro, e tem acesso à reação das outras personagens ao que
cada uma deles fala, no momento em que fala – como na sequência
do jantar em que estão Carlos, Luís e Maria Alice discutindo escravos
e office boys como mercadoria.
Esse mesmo realismo de Bianchi também provoca no
espectador uma desnaturalização de práticas sociais comumente
aceitas na sociedade: a violência, a pobreza, o abuso de autoridade,
a humilhação a que os trabalhadores estão sujeitos, as péssimas
condições do transporte público, a caridade que mitiga a culpa, o
preconceito de classe. Tratando desses assuntos de maneira “objetiva”,
o diretor consegue desumanizar as personagens, fazendo com
que não nos identifiquemos com nenhuma delas, e, a partir daí,
humaniza o espectador porque, ao mesmo tempo em que as ações
das mesmas não nos permitem identificarmos emocionalmente com
elas (porque geralmente não nos identificamos com personagens tão
‘torpes’), os lugares que as personagens frequentam e os diálogos
aparentemente banais são simbólicos: essas personagens são, de fato,
nós mesmos. A praia, a caridade, o jantar no restaurante discutindo
questões sociais, o carnaval, a conversa no táxi – ao retratar nossa
vivência cotidiana Bianchi se mostra, mais uma vez, um diretor que
segue a estética realista: “Por isso a atenção ao cotidiano, ao fato banal
da vida como ponto de partida. E, principalmente, à valorização

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do homem comum, nas suas ações do dia a dia” (FIGUEIREDO,
2005, p. 37). O espectador não se vê em nenhuma das personagens,
mas, paradoxalmente, acaba se reconhecendo nelas. Candido, em
“O Direito à Literatura”, explica o processo de humanização pela
literatura, cujo conceito, no entanto, pode ser estendido às artes
em geral:

Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no


homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício
da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos
problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve
em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante
(CANDIDO, 2004, p. 180).

A apropriação do discurso sobre direitos humanos feita no


filme de Bianchi é contundente e eficaz. Ele mostra essa questão nas
pequenas atitudes e preconceitos diários, camuflados em discursos
demagógicos ou paternalistas, no caso da personagem Maria
Alice, ou escancaradamente abertos, nos discursos segregativos da
personagem Carlos. Tanto Slaughter como Candido enfatizam
em seus escritos a importância da forma para a efetiva atuação
do conteúdo da obra. Slaughter e McClennen comentam que “A
forma é onde fica a maior parte do trabalho social e do potencial
político da produção cultural. Forma pode, na verdade, ser a única
maneira de adequadamente reconhecer o tema” (2009, p. 12,
tradução nossa)11, enquanto Candido afirma que “[...] o conteúdo
só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma
capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe
e que sugere” (1995, p. 178). Se Bianchi tivesse escolhido filmar

11
Texto original: “Form, we maintain, is where much of the social work and political potential
of cultural production lies. Form may, in fact, be the only way to adequately recognize theme”.

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Cronicamente Inviável de qualquer outra maneira, salientando mais
a dramaticidade, ou apontando de maneira maniqueísta a luta de
classes, talvez o impacto que o filme causou à época de sua estreia
– e ainda causa, em quem o assiste, quase 14 anos depois de seu
lançamento – não tivesse sido o mesmo. Talvez a discussão sobre
os direitos humanos dentro do filme fosse menos política. Ao se
recusar a explorar a dicotomia bem versus mal em sua obra, Bianchi
desmascara a hipocrisia da classe média e elite brasileiras, e atinge
o espectador em seu ponto fraco: a alienação pode causar prejuízos
quase irremediáveis para a sociedade.

Ônibus Especial, de Cidinha da Silva

No conto Ônibus especial, uma personagem narra em


primeira pessoa sua experiência ao presenciar, em Goiânia, um
ônibus criado por uma empresa para transportar empregadas
domésticas que trabalham num condomínio fechado, distante da
cidade. Através do uso do discurso indireto, a personagem reproduz
a fala das empregadas domésticas, ao mesmo tempo em que as
critica duramente. Também por meio do uso da ironia de situação,
as crenças da personagem vão sendo reveladas ao longo de seus
comentários, inclusive crenças de como “controlar” as trabalhadoras
em questão:

A dona Fátima foi empregada lá de casa desde que minha mãe


casou. As filhas dela eram cria nossa, ajudavam desde pequenas
e aprenderam um ofício para garantir o futuro. Hoje elas estão
bem, empregadas nas casas da nossa família. Todo mundo respeita,
porque é quase da família. Pelo menos, até onde eu sei, as filhas
da dona Fátima nunca fizeram a iniciação sexual dos meninos das
casas onde trabalharam, como a gente vê muitas por aí. Porque elas
são safadinhas, vamos dizer a verdade. Quando são cria da família,
fica mais fácil controlar. (Da Silva, 2011, p. 55, 56).

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Ao mesmo tempo em que a narradora do conto desumaniza
as trabalhadoras, dona Fátima e suas filhas (todas empregadas nas
casas de sua família), ao se referir a elas como “cria” da família, ela
demonstra um pretenso intuito em ajudá-las a melhorar de vida.
Ao manter as filhas da empregada como “crias” na casa de sua mãe,
a família supostamente estaria ensinando um “ofício” às crianças,
na tentativa de dar-lhes um futuro. Assim, a família considera que
as empregadas (mãe e filhas) estão todas bem, trabalhando em
diferentes casas da família e são mesmo consideradas “quase da
família,” já que são “crias.” No fim, a ideia de proteção e cuidado
com as empregadas se revela como forma de controle, de subjugação.
Embora as empregadas sejam “quase da família,” a narradora afirma
que empregadas são “safadinhas,” e precisam ser controladas, e
mesmo vigiadas, para não iniciar sexualmente os meninos da família.
No final, a narradora se refere ao ônibus que transporta
as empregadas como um “navio negreiro,” o qual as patroas
têm vergonha de ver circulando pelo condomínio. As mesmas
empregadas que são ditas como “quase da família” são tidas como
escravas que não têm o direito de circular pelas alamedas arborizadas
do condomínio de luxo sem causar a indignação das patroas.
Através da ficção, Cidinha da Silva nos mostra como o discurso dos
direitos humanos pode ser apropriado na hora de criar mecanismos
de controle social; uma vez que isto é conseguido, tal discurso é
colocado de lado em favor de um discurso de intolerância.
Assim como na situação anterior, a tentativa de mudança das
personagens em situação de desvantagem é fortemente rechaçada.
A narradora, apesar de seu pretenso discurso humano para com as
empregadas, se mostra incapaz de enxergá-las como trabalhadoras
em busca de mudança e justiça:

Mas empregada é mesmo um bicho danado. Não se contenta com


o que tem. Outro dia, elas não estavam reivindicando um ônibus
que saísse às 18h00 para as que estudam à noite. Veja só você, a
empresa dá a mão, elas querem o pé. Empregada do meu tempo só

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ia dormir depois de servir a janta, lavar os pratos e deixar a cozinha
limpa (DA SILVA, 2011, p. 56)

A verdadeira intenção da narradora, assim, é mascarada pelo


tom “humano” de seu discurso. Cidinha da Silva incorpora em
sua ficção o discurso dos direitos humanos com conhecimento,
com a intenção de questionamento de padrões já tão arraigados na
sociedade. Porém, em “Ônibus Especial,” a autora o faz de forma
inversa, através da uma forte ironia, o que apenas saliente sua
violação. O efeito produzido pelo discurso da narradora é o inverso
do que a personagem parece esperar, marca forte do tipo de ironia em
questão. A ironia de situação é usada como recurso desestabilizador
no conto (assim como no filme). Ao dar voz à personagem que tem
já voz ativa na história, aquela que justamente se opõe às tentativas
de ação das personagens em condição de desvantagem social (as
empregadas), a autora destaca a arbitrariedade do tecido social,
que constrói e segmenta diferenças. O conto salienta a questão dos
direitos humanos pela negação dos mesmos, já que quem “fala” é
quem se opõe a tais direitos. A narrativa aqui encontrada, então,
chama a atenção para a questão dos direitos humanos pela ausência
de sua percepção na voz da personagem que detêm o poder (a
literatura como denúncia, como afirma Cândido). A presença pela
ausência. Ao silenciar as personagens que estão em desvantagem,
a autora também salienta a falta de voz, de ação, de meios de tais
figuras na materialidade do cotidiano social.

Conclusão

Tanto no conto quanto no filme aqui analisados, a ironia de


situação é usada como meio de denúncia. Em ambas as narrativas,
a questão dos direitos humanos é salientada pela sua ausência. O
humor em tom cínico salienta valores (como preconceito de classe,
racismo, entre outros) que a sociedade preconiza – valores que, ou ela

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não se dá conta, ou cria meios de justificar as violações perpetradas.
Em ambas as obras, quem detém o poder é quem possui voz de
ação: o dono do restaurante, o casal de classe média alta, a patroa.
As personagens em situação de opressão não têm voz, ou se tem
(como Adam, Josilene e as empregadas domésticas) são castigadas
por isso: Adam acaba desempregado e preso, Josilene é espancada
pelo namorado, e as empregadas domésticas têm suas reivindicações
rechaçadas pela narradora do conto. Como nas afirmações dos
teóricos aqui discutidos, o discurso dos direitos humanos é
apropriado pelos mais diversos tipos de sujeitos e seus objetivos nem
sempre são bem intencionados. O pretenso discurso humanista,
presente nas obras aqui analisadas, mostrado com genialidade por
Bianchi e Cidinha da Silva, termina, como visto anteriormente,
esvaziando o potencial do discurso dos direitos humanos como um
discurso genuinamente político e gerador de mudanças efetivas.
Tanto o cineasta quanto a contista utilizam a representação como
meio de denúncia das violações dos direitos humanos expondo a
“manta” de boas intenções utilizada por quem distorce seu discurso
para legitimar a exploração e a intolerância.

Referências

BROWN, Wendy. “The Most We Can Hope For”: Human Rights and
the Politics of Fatalism. The South Atlantic Quarterly, Duke University
Press, 103:2/3, 2004.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos.3ª Ed. São Paulo: Duas Cidades,


1995.

DA SILVA, Cidinha. Oh Margem! Reinventa os Rios! São Paulo: Selo Povo,


2011.

FIGUEIREDO, Rafael Meira de. Paradigmas da decupagem no cinema


brasileiro dos anos 2000: O caso de Cidade de Deus e Cronicamente
Inviável. 2005. 139 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) –

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 105-120, jan./jun. 2014 119
Faculdade de Comunicação Social, PUC – RS, Porto Alegre. Disponível
em <http://tardis.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/2235/1/000345061-
Texto%2bCompleto-0.pdf>. Acessado em 26 de outubro de 2013.

MCCLENNEN, Sophia A.&SLAUGHTER, Joseph. “Introducing


Human Rights and Literary Forms; or, The Vehicles and Vocabularies
of Human Rights.” Comparative Literary Studies, The Pennsylvania State
University, vol. 46, no. I: 1/19, 2009.

SLAUGHTER, Joseph R. Human Rights, Inc. – The World Novel, Narrative


Form, and International Law. New York: Fordham University Press, 2008.

CRONICAMENTE Inviável. Direção: Sérgio Bianchi. Produção: Agravo


Produções Cinematográficas. Intérpretes: Dira Paes, Zezeh Barbosa, Daniel
Dantas, Betty Gofman, Cecil Thiré, Dan Stulbach, Umberto Magnani.
Roteiro: Sérgio Bianchi. Rio de Janeiro: Rio filme, 2003. 1 DVD (101
min), DVD, som, cor.

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Análise dos discursos midiáticos do
edifício joelma e da boate kiss

Letícia dos Santos Ribeiro1


Valéria Cristina de Oliveira2

Resumo: Nesse trabalho, analisamos o discurso midiático sobre o edifício Joelma e a


boate Kiss, procurando entender qual é a relação entre o texto verbal e o visual. Para
a produção do artigo, utilizamos como base teórica Michel Foucault (2008), a fim de
compreendermos como os enunciados midiáticos são produzidos e, também, Alberto
Manguel (1997), entre outros, para analisarmos o texto imagético. Através deste
trabalho, chegamos à conclusão de que o texto visual não anula o texto verbal; nesse caso,
eles se completam, sendo a fotografia a prova do que se diz, uma silenciosa denúncia
social, ainda que o enunciado não possa ser submetido à prova de sua veracidade.

Palavras-chave: Enunciado; Imagem; Discurso.

Resumen: En este trabajo se analiza el discurso “midiático” sobre el edificio Joelma y


el club Kiss, procurando a través de la observación entender cuál la relación del texto
verbal con el texto visual. Para que el análisis fuera posible contamos con la ayuda de
Foucault (2008) para comprendernos como los enunciados “midiáticos” son producidos y
de Manguel (1997), entre otros, para comprendernos la lectura “imagética”. A través de
este trabajo se llega la conclusión de que el texto visual no anula el texto verbal, en nuestro
caso ellos se completan, siendo la fotografía, la prueba de lo que se dice, una silenciosa
denuncia social, aunque el enunciado no pueda ser llevado a prueba de su veracidad.

Palabras llave: Enunciado; Imagen; Discurso.

Introdução

Diariamente ouvimos, vemos e lemos notícias sobre assuntos


de variadas áreas sociais, sendo que eles nos chamam a atenção pela
maneira que se apresentam. No fotojornalismo, somos tentados a
1
Licenciada em Letras Português-Espanhol pela FATEB- Faculdade de Telêmaco Borba.
2
Professora de Letras da FATEB - Faculdade de Telêmaco Borba. Doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.

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parar frente a bancas de jornal, pelos enunciados - textos verbais - e
pelas fotografias - textos visuais -, que estampam a primeira página
nos jornais impressos, induzindo-nos a comprá-los para serem lidos.
Assim, como leitores e observadores inquietos, buscaremos
compreender o porquê da utilização de determinados enunciados
e fotografias em textos jornalísticos e que mudanças causaram ao
serem enunciados e publicados. Para isso, analisaremos o discurso
midiático sobre o edifício Joelma e a boate Kiss, procurando através
da observação entender qual a relação do texto verbal com o texto
visual, sendo que estes, nosso objeto de estudo, existem a partir do
momento em que se falam deles e são produzidos através de fatos
recorrentes socialmente relacionados a tragédias.
Para que a análise seja possível, abordaremos a teoria de
Foucault (2008) para compreendermos como os enunciados
midiáticos são produzidos, em qual ocasião, quais mudanças sofrem
em relação ao contexto histórico, em que contexto foram produzidos
ou repetidos, e também de Manguel (1997), entre outros, para
compreendermos a leitura imagética.
O texto visual tanto quanto o texto verbal é sujeito à leitura,
sendo o primeiro associado à realidade, atestando o que o texto
verbal diz. A fotografia conta os acontecimentos através daquilo que
apresenta, sendo sua leitura feita a partir das experiências vividas
de seu leitor.
Ainda tentaremos mostrar que o texto visual não anula o texto
verbal, eles se completam, sendo a fotografia a prova do que se diz,
mesmo que o enunciado não possa ser submetido à prova de sua
veracidade. Portanto, os enunciados se repetem e são evocados por
fatos institucionais semelhantes ao que se enunciou, e a fotografia
remete-nos ao acontecimento mesmo anos após a tragédia, servindo
como uma silenciosa denúncia social, uma testemunha imagética.

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Desenvolvimento

Em A Arqueologia do Saber, Michel Foucault afirma que


tem como objetivo estudar os enunciados ditos e o funcionamento
dos discursos que “articulam o que pensamos, dizemos e fazemos”
(ARAÚJO, 2008, p.57), sem levantar a preocupação em reconhecer
se o conteúdo é “falso” ou “verdadeiro”, mas sim observando se esse
conteúdo está socialmente compreendido a partir de sua forma
histórica.
Os objetos desta análise de discurso só puderam existir a
partir de acontecimentos decorridos de fatos e épocas específicas,
tendo o discurso relação com as condições interiores e exteriores a
ele. Assim, para a descrição dos acontecimentos discursivos, que aqui
apresentaremos, voltamos nossa atenção aos enunciados selecionados
questionando o porquê de tal enunciado e não outro em seu lugar.

O que é enunciado

Como enunciado, entendemos uma unidade de discurso, não


uma frase gramatical que precisa de sua estrutura sintático-semântica
para começar a ter sentido. O enunciado é, portanto, mais do que
ligação entre significado e significante, mas não é tão somente uma
proposição lógica estrutural, que permite a análise de sua veracidade,
não é ainda um ato de fala, uma vez que este é dito em circunstâncias
únicas; os enunciados são diferentes, pois se repetem.
Quanto ao enunciado, ainda importa saber por quem foi
dito, em que ocasião, se foi repetido e que mudanças sofreu. A
característica maior do enunciado é não ter sujeito gramatical nem
sujeito lógico, estando o lugar do sujeito vazio, ou seja, conforme
a ordem do discurso, ou os discursos proferidos que se encontram
em circulação, o enunciado se integra ao seu enunciador, qualquer
pessoa pode ocupar o lugar de sujeito e retomar ou ressignificar
esse enunciado.

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Assim, o importante para o enunciado é o referencial, o sujeito
a ocupar o lugar vazio, o domínio associado e sua materialidade.
Ele, assim, é definitivamente uma unidade de discurso.
Consideramos o enunciado um conjunto de signos em função
enunciativa dada a sua relação entre enunciado e o que se enuncia,
sendo esta a relação gramatical lógica e semântica, a relação do sujeito
com a história e a própria materialidade do enunciado. Contudo, é
importante dizer ainda que a língua, explica Foucault, é a base do
enunciado, é ela que dispõe o sistema de regras para que o enunciado
seja construído. É a partir da função enunciativa, unidade principal
do discurso, que podemos dizer se há ou não frase, proposição ou
ato de linguagem.
Porém, mesmo admitindo tal fato, Foucault nos alerta
sobre o fato de que o enunciado não pode ser submetido às provas
de verdadeiro/falso, nem se submete necessariamente a estrutura
linguística canônica (sujeito-verbo-predicado), para ele não cabe
descobrir a intenção do indivíduo que está realizando o ato ou o
resultado obtido, mas sim o que se produziu pelo fato de ter sido
enunciado em determinada circunstância.
Para que o enunciado exista, é necessário que haja um “autor”
ou uma instância produtora, sendo que este autor não é idêntico
ao sujeito do enunciado, já que esta função pode ser exercida por
diferentes sujeitos, isto é, “um único e mesmo indivíduo pode
ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes
posições e assumir o papel de diferentes sujeitos” (FOUCAULT,
1986, p. 107).
Dessa forma, para ele:

não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como


idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem
funcionalmente. Ele não é causa, origem ou ponto de partida
do fenômeno de articulação escrita ou oral de uma frase, não é,
tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o
terreno das palavras, as ordena com o corpo invisível de sua intuição;

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não é o núcleo constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma
série de operações que os enunciados, cada um por sua vez, viriam
manifestar na superfície do discurso. É um lugar determinado e
vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes;
mas, esse lugar em vez de ser definido de uma vez por todas e de
se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma
obra, varia – ou melhor, é variável o bastante para poder continuar
idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se
modificar a cada uma. (FOUCAULT, 1986, p. 109).

Sendo o enunciado produzido a partir de acontecimentos,


podemos atestar sua historicidade pelo fato de que “ele tem sempre
margens povoadas de outros enunciados” (idem, p.12), ou seja, há
a presença de interdiscurso no enunciado produzido de enunciados
anteriores que se encontram no mesmo campo enunciativo. ”Por
isso, todo enunciado liga-se a uma memória e, assim, não há
enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros
enunciados” (idem, p. 113).
Para o filósofo “não há enunciado em geral, livre, neutro e
independente, mas sempre um conjunto desempenhando um papel
no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se
integra sempre em um jogo enunciativo” (1986, p.114).
Sendo assim, para que a sequência de elementos linguísticos
possa ser considerada e analisada como enunciado é preciso saber da
existência de sua materialidade a qual deve ser constituída de uma
substância, um suporte, um lugar, uma data. Esta materialidade é
manipulada por seus enunciadores a cada enunciação, assim como
tem sua identidade submetida pelo lugar em que ocupa entre outros
enunciados. O mesmo conjunto de elementos linguísticos pode
ser pronunciado em duas épocas diferentes e produzir enunciados
diferentes. Entendemos então que os enunciados constroem a
história, sendo um gerenciador de memória.
Cabe também algum esclarecimento sobre o que entendemos
por discurso, o qual, segundo a compreensão do que estudamos em
Foucault (apud ARAÚJO, 2008) é formado por:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 121-150, jan./jun. 2014 125
a) domínio de objetos: o objeto só existe a partir do momento
que alguém fala dele. E por objeto entendemos assunto,
acontecimento, situação.
b) sujeito do enunciado: é o indivíduo que possui direito, advindo
de uma tradição ou até adquirido pela “licença” de falar sobre
algo. Compreendido por legitimidade e autoridade para o quê,
quando e como dizer.
c) disposição de conceitos: os conceitos não operam em coordenação
lógica tendo uma história em progressão interna. Portanto, tais
conceitos estão dispersos, podendo ou não ser retomados e estão
em constante mudança.
d) temas ou estratégias com uma materialidade repetível: os temas
dependem de fatores institucionais, processos econômicos,
organizações jurídicas. A sociedade dispõe das práticas não
discursivas que serão usadas e discursivizadas.
Sobre nosso objeto de estudo, o discurso, Foucault diz ser:

um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na


mesma formação discursiva; ele é constituído de um número
limitado de enunciados, para os quais podemos definir um conjunto
de condições de existência; é, de parte a arte, histórico – fragmento
de história, unidade e descontinuidade na própria história, que
coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de
sua transformação, dos modos específicos de sua temporalidade.
(FOUCAULT, 1986, p. 135-36).

Além disso, também define prática discursiva como sendo:

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas


no tempo e no espaço, que definiram em uma dada época e para
uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística,
as condições de exercício da função enunciativa. (FOUCAULT,
1986, p. 136)

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Ainda quanto a análise do discurso é preciso levar em
consideração as características de raridade, exterioridade e acúmulo.
Respectivamente elas pressupõem que nem tudo é sempre dito sendo
que nem tudo pode ser dito num lugar qualquer por um sujeito
qualquer; o campo do enunciado é um local de acontecimento no
qual não importa o que se fala considerando apenas que o que se diz
não é dito de qualquer lugar; todo enunciado é produzido através
de um campo de elementos antecedentes que são compostos por
um certo número de suportes (como livros), instituições (como
bibliotecas), modalidades.
A análise de enunciados visa à busca pela positividade, ou seja,
não busca revelar quem estava com a verdade, mas sim mostrar como
os enunciados se repetem. “A positividade desempenha o papel do
que se poderia chamar um a priori histórico” (FOUCAULT, 1986,
p. 146), sendo este um conjunto de regras que caracteriza a prática
discursiva.
Assim, buscamos entender o que faz com que os homens
reproduzam enunciados, de onde surge este conhecimento e qual a
regra que faz com que tenham determinados enunciados.
Foucault chama a regra que rege os enunciados de arquivo,
definindo-o como:

[...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. [...] é o que
define o sistema de enunciabilidade do enunciado-acontecimento.
[...] é o sistema de seu funcionamento. [...] entre tradição e o
esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que
permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se
modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da
transformação dos enunciados. [...] O arquivo não é descritível em
sua totalidade e incontornável em sua atualidade. (FOUCAULT
apud GREGOLIN, 2004, p.41)

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Modalidades enunciativas em Foucault

O enunciador antes de tudo é um observador. É através da


observação de uma determinada situação que ele irá questionar,
procurar adquirir informações, perceber o que ocorre, descrever e
reproduzir tal discurso.
Vimos anteriormente que para que um discurso seja formado
é preciso que o indivíduo tenha um determinado status, ou seja, que
ele possua um poder, uma licença para produzir o discurso e assim
este ter credibilidade.
O professor, por exemplo, tem o poder de falar sobre
métodos de ensino, desenvolvimento cognitivo, afetivo, psicomotor,
motricidade, ensino e aprendizagem, sendo que sua fala será levada
em conta por ele possuir o status “Professor”, mas nem por isso
ele deixa de seguir regras quanto ao que será dito, respeitando
a hierarquia para a reprodução dos discursos, para quem será
enunciando e em que ocasião.
Para a mídia jornalística a origem de seus discursos são os
acontecimentos da sociedade, sejam eles fatores institucionais,
econômicos, jurídicos, religiosos, etc., sendo aplicado através da
materialidade do jornal impresso, digital ou televisivo tendo como
público alvo os leitores e espectadores adultos.
A formação dos enunciados modificou-se no século XVI
através de critérios em que estabeleceu a posição dos enunciados e sua
sequência, formando uma cadeia de elementos subordinados os quais
através da observação descrevem, transcrevem e estabelecem possíveis
conclusões do que se observou, “o que se viu, o que se deduz, o que se
admite como provável, o que se postula” (FOUCAULT, 2008, p. 63)
Ao analisar um enunciado precisa-se compreender como
ele é descrito, em que espaço, qual a sequência cronológica dos
acontecimentos, ou seja, como o conjunto de elementos enunciativos
está disposto; convém ainda analisar se o enunciado apresenta uma
hipótese, crítica ou regra e como é feita a ligação dos enunciados

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a fim de constituí-los em um texto. Quanto ao enunciado ainda
cabe lembrar que ele é formado por antigos enunciados, estando
estes implícitos, como base de conhecimento para a formulação
do enunciado atual, ou explícitos, servindo para afirmar o que está
sendo dito.
Já que um enunciado “recicla” outros anteriormente
enunciados podemos afirmar que:

[...] o campo enunciativo compreende o que se poderia chamar


um domínio de memória (trata-se dos enunciados que não são
mais nem admitidos nem discutidos, que não definem mais,
consequentemente, nem um corpo de verdades nem um domínio
de validade, mas em relação aos quais se estabelecem laços de
filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade
histórica. (idem, p. 64)

Assim, reiteramos e resumimos dizendo que o objeto de


estudo das análises aqui é o discurso, o qual é formado por unidades
chamadas de enunciados, e cada um compreende um acontecimento,
seja ele atual ou não.
Um discurso só é considerado como tal quando
contextualizado, ou seja, o texto só será considerado um discurso
se relacionado a temas sociais, culturais, políticos e econômicos, além
de terem a característica de poderem retornar em outras situações,
quase como uma entidade que se quer atemporal, exceto pelo fato
de que aparecendo surge como um novo enunciado, mesmo com
marcas de memória.
A construção do discurso se dá, portanto, pelo contexto
histórico-social, sendo formado por antigos enunciados e enunciados
atuais. Cabe-nos analisar como ocorre essa ligação para a construção
do texto, o porquê da utilização de determinados enunciados e não
outros e como se integram com os enunciados atuais.
Através destes traçados, compreendemos as possíveis formas
de análise gramatical, possíveis formas de disposição de itens

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da gramática como nome, verbo, adjetivos, e outras marcas e
marcadores linguísticos. Também aborda os critérios para tratar da
veracidade de uma proposição, os critérios que elegem e excluem
os enunciados do discurso.
Em nossa análise de discurso encontramos pontos
incompatíveis como dois objetos em diferentes formas de enunciação,
conceitos diferentes em um mesmo campo enunciativo, mas os
mesmos objetos tidos como incompatíveis são formados da mesma
maneira, surgiram de formas idênticas mesmo que não tenham tido
a mesma importância, ou melhor, a mesma gama de produção de
sentidos e nem acontecido no mesmo tempo cronológico. Sendo
assim, importa analisar a construção dos enunciados em diferentes
discursos, em diferentes épocas relacionando-os com o contexto
histórico.
Além disso, nossa análise só é possível através da existência de
objetos que existem a partir do momento em que são enunciados,
ou seja, que falam dele, sendo estes enunciados discursivizados por
meio de letras em uma determinada ordem dispostas em caracteres
tipográficos impressos na materialidade de folha de papel formando
assim o discurso midiático das páginas dos jornais impressos ou
digitais.

A imagem: teoria e pressupostos

A forma para se obter informação vai além da leitura de


palavras impressas ou faladas. A comunicação acontece em todo
momento, em todo lugar, de várias maneiras, tendo sido até usado
por São Nilo no século IV, pois no final do século IV, São Nilo
de Ancira (onde hoje se localiza Ancara, capital da Turquia) foi
consultado pelo bispo Olimpidoro sobre a decoração das paredes
de uma igreja que este pretendia decorar com imagens de animais,
santos e cenas de caça. Nilo aprovou a ideia se opondo apenas às
imagens de cenas de caça sugerindo em seu lugar imagens que

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retratassem cenas do Velho e do Novo Testamento afirmando que
estas serviriam “como livros para os iletrados, ensinando-lhes a
história bíblica e incutindo neles a crônica da misericórdia de Deus.”
(Nilo, apud Manguel, 1997, p. 116)
Desde a alfabetização, somos instigados a “ler” imagens
mesmo que inconscientemente. Durante o processo de alfabetização
de uma criança do primário, podemos apresentar o alfabeto
acompanhado por imagens mostrando que o nome do que está sendo
representado na figura inicia-se com a letra correspondente, ou até
mesmo imagens que vêm acompanhadas por seu respectivo nome
fazendo com que a criança interprete que a palavra corresponde
à figura ilustrada, e, assim, sempre que a criança vê determinada
figura lembrará seu nome, por exemplo, a imagem de um cachorro
o remeterá ao nome “cachorro”, ou seja, a imagem também pode
ser lida e interpretada e, assim, entendida como texto, porém um
texto imagético.
É possível fazer a leitura de inúmeras materialidades que não
sejam textos impressos. Podemos “ler” o céu para sabermos se irá
chover. Um pescador “lê” o mar para saber o quão agitado e perigoso
está antes de pescar. Uma mãe “lê” a expressão do bebê para saber
se sente fome ou dor. O poeta “lê” as emoções para descrevê-las. O
montador de móveis “lê” a instrução gráfica em seu passo a passo para
montar um móvel (Manguel, 1997, p.19). Nessas belas palavras de
Manguel, entendemos que quanto mais diferente o campo associado
ou o domínio de conhecimento mais peculiar será sua leitura. Mesmo
que não seja uma leitura formal registrada em texto escrito, ainda
assim será uma leitura e, em nosso caso o leitor “lê” a notícia através
do texto imagético que serve aqui como fonte de legitimidade do
texto verbal em um veículo de comunicação impresso ou digital.
Para onde formos, em um país falante de nosso idioma ou
não, se entrarmos em um estabelecimento público à procura de um
banheiro feminino o localizaremos através da imagem representada
na porta simbolizando a figura feminina. Assim como ao nos

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depararmos com uma matéria jornalística em um idioma que
desconhecemos, caso ela esteja acompanhada por imagem, podemos
associar o conteúdo da matéria jornalística aos componentes
representados na fotografia.
Essa ideia de vermos imagens e compreendê-la como leitura
é recente em termos historiográficos, como disse o Papa Gregório:

O que a escrita torna presente para o leitor, as imagens tornam


presente para o analfabeto, para aqueles que só percebem
visualmente, porque nas imagens os ignorantes veem a história que
têm de seguir, e aqueles que não sabem as letras descobrem que
podem , de certo modo, ler. Portanto, especialmente para a gente
comum, as imagens são equivalentes à leitura (DAGENS, 1977,
apud MANGUEL, 1997, p. 177)

Para o ensaísta Alberto Manguel (1997) com o surgimento


da arte gótica, no final do século XIII, as pinturas das paredes das
igrejas foram substituídas por janelas pictóricas e colunas em forma
de esculturas, as histórias bíblicas iconográficas passaram a ser
representadas em vitrais, pedras e madeira.
Os livros iconográficos surgiram no início do século XIV
nas regiões do baixo Reino. Eles foram criados por iluminadores e
gravadores que utilizavam pergaminho e papel para a representação
das imagens. Eram feitos por imagens justapostas com quase
ausência de texto verbal, mas, quando havia, eram legendas nas
margens da página ou dentro de “caixas de texto” próximo a boca
dos personagens indicando diálogo semelhante aos balões das atuais
histórias em quadrinho.
Durante a Idade Média os livros de imagens tornaram-se
populares, sendo grafados em miniaturas, página inteira e madeira,
mas somente no século XV foi impresso. Esses livros ficaram
conhecidos como Bibliae pauperum, ou seja, como Bíblias dos
pobres, já que estes por não serem letrados liam as imagens. O
primeiro livro desses é datado em 1462.

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A Bíblia dos pobres não foi criada com este nome. A história
conta que no século XVIII o escritor alemão Gotthold Ephraim
Lessing encontrava-se pobre e doente e por este motivo aceitou
trabalhar como bibliotecário mesmo com baixa remuneração. Um
dia ele encontrou na biblioteca um livro sem título com a inscrição
Hic icipitur bibelia [sic] pauperum em uma das margens deduzindo
então que pela inscrição incorreta, quase ausência de texto e uma
grande quantidade de imagem o livro só poderia ser de pobre, um
iletrado, por isso o catalogou como sendo Bibliae pauperum.
O crítico alemão Maurus Berve discorda que a Biblae
pauperum tenha sido criada para os pobres alegando que a bíblia
é “absolutamente ininteligível” para que os analfabetos possam
compreender acreditando ele que o livro destinava-se aos letrados,
eruditos ou clérigos que não tinham condições de comprar o livro
completo e que em vez de Biblia pauperum o correto seria Biblia
pauperim praecicatorum, que quer dizer “Bíblia dos pregadores dos
pobres”.
Independente do público a quem o livro era destinado
podemos afirmar que as imagens são mais do que meras ilustrações,
elas contam silenciosamente a história de um povo. Trazem em
seus contornos, cores, expressões acontecimentos datados há muito
tempo que ao vermos, como as representações no vitral do Velho e
Novo Testamento, resgata em nossa memória a história.
No final dos anos 60 o que se via de imagem nos jornais eram
ilustrações humorísticas como tirinhas ou historinhas em quadrinho
e pequenas fotos em preto e branco.
Já a partir do início dos anos 80 o uso das imagens em textos
jornalísticos mudou sendo esta mudança motivada pela concorrência
da internet e televisão, introduzindo assim o uso de computadores
e utilização de alguns softwares para a edição das redações.
Os jornais então passaram a melhorar a paginação, o tamanho
dos títulos, utilizando fotos coloridas, baseando-se na infografia
para melhorar os recursos visuais fazendo então com que o texto
“dialogasse” com a imagem.

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Através dos recursos utilizados nas edições das fotografias, o
jornal tornou-se mais atrativo ao olhar do leitor, já que a foto possui
uma linguagem rápida e assim mais fácil de ser lida superficialmente,
sendo que o que muitas vezes chama a atenção do leitor fazendo-o
parar em frente à banca de jornal é a imagem da primeira página
do jornal.
Podemos considerar a foto um documento histórico
imagético, já que a visualização dela resgata em nossa memória o
que está sendo representado, seja qual for o acontecimento ela retrata
o espaço, a situação, tempo, envolvidos e atmosfera, sendo esta
observada através das expressões físicas das pessoas retratadas se estas
houverem. Geraldo Carlos do Nascimento diz que as imagens “por
si sós, constroem mini-narrativas que referendam e, às vezes, trazem
preciosos enriquecimentos aos textos verbais” (NASCIMENTO,
2003, p.2)
A imagem jornalística não anula o texto, assim como o texto
não anula a imagem, ambos textos, seja ele verbal ou visual, têm valor
igualmente importante, sendo que o texto verbal permite ao leitor
uma informação detalhada da notícia, enquanto a imagem, sendo
esta uma fotografia relacionada à notícia, permite-nos a visualização
do que se fala, portanto ambos se completam enriquecendo a
informação verbo visual.
Estudos indicam que para o ser humano aprender ou fixar
determinado assunto, acontece da seguinte maneira: “75% pela
visão, 20% pela audição e 5% pelos demais sentidos” (SANTAELLA,
apud TASSO, 2005, p. 137) .
Pensando a fotografia como informação visual, entendemos
que por mais que o texto visual não anule o texto verbal, a imagem
ainda é a que mais se perpetua em nossa memória, pois, ao invés de
longos textos que possa exigir uma longa leitura verbal, ela apresenta
uma leitura de si rápida, porém também mais fácil de ser interpretada
de modo errôneo.
As fotografias também podem vir acompanhadas por legendas,
sendo que estas manipulam o significado e interpretação da mesma,

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no entanto a mesma fotografia pode vincular em diferentes jornais
com diferentes legendas que a atribuem diferentes interpretações.
Sousa (2000) utiliza o termo fotojornalismo, fotografias
direcionadas para a imprensa, como sendo o trabalho

de realização de fotografias informativas, interpretativas,


documentais, ou ‘ilustrativas’ para a imprensa ou projetos editoriais
ligados à produção de informação de atualidade (SOUSA apud
TAVARES & VAZ, 2005, p. 127).

Ou seja, nosso objeto de estudo, aqui chamado de


fotojornalismo, é um arquivo histórico-cultural informativo
de acontecimentos, que informa tempo, espaço, indivíduos,
desenvolvimento, etc.
São Nilo de Ancora dizia que as ilustrações bíblicas do Velho
e Novo Testamento nas paredes da igreja contavam a história bíblica,
sendo que deste período só conhecemos as escrituras e as ilustrações
feitas a partir dos textos já que não havia o recurso da fotografia para
através dela podermos comprovar a veracidade dos acontecimentos,
enquanto atualmente utilizamos do recurso da fotografia para
comprovar e perpetuar determinada situação.
Com base no semiólogo francês, Roland Barthes, podemos
dizer que, “a fotografia reproduz ao infinito o que só ocorreu uma
vez: ela se repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente” (apud NASCIMENTO, 2003, p. 3).
Portanto, a fotografia vem a ser o testemunho visual de um
acontecimento. Assim, quando pensamos em um determinado
assunto, a imagem que vem à nossa cabeça é a da mídia jornalística
do texto que lemos. Assim como, anos após um acontecimento
e a leitura feita ao seu respeito, se observarmos a imagem que foi
utilizada para complementar a informação verbal da notícia na
época, logo recordaremos do acontecimento, pois a imagem mais
do que o texto chama, invoca a memória coletiva.

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A fotografia que acompanha o discurso jornalístico acrescenta
elementos da narrativa referentes ao drama e a tragédia, sendo estas
as características relacionadas ao nosso objeto de estudo.
Para Vera França a notícia faz mais do que informar, ela
“testemunha também o sentimento de uma sociedade, seu padrão
de sociabilidade, sua maneira de falar, (FRANÇA, apud TAVAREZ
& VAZ, 2005, p. 130)
A fotografia utilizada é a interpretação de certa forma apelativa
do discurso jornalístico, assim também acredita ser Frederico de
Mello Brandão Tavares e Paulo Bernardo Ferreira Vaz ao dizerem
que “há jornais que preferem mostrar a ferida e jornais que preferem
mostrar o curativo”. (TAVARES & VAZ, 2005, p. 132)
Quando a notícia é voltada para o público infantil ou
adolescente a imagem busca apenas informar mostrando apenas o
“curativo” da notícia, já quando é voltada para os jovens e adultos
o que se vê impresso na primeira página dos jornais na tentativa de
atraí-los visualmente a comprar o produto é a “ferida” da notícia,
fazendo com que o leitor não apenas obtenha a informação, mas
também se compadeça, se sensibilize, se comova com o acontecido,
com a tragédia e as pessoas envolvidas, sejam elas vítimas, culpados,
parente ou demais envolvidos, levando uma grande massa de leitores
não só a ter uma opinião sobre tal discurso jornalístico, mas também
a compartilhar de uma dor emocional nacional.
Sendo assim “a fotografia redefine o conteúdo de nossa
experiência cotidiana e acrescenta vastas quantidades de material
(pessoas, coisas, eventos etc.) que jamais chegamos a ver ou
presenciar” (SONTAG apud TAVARES & VAZ, 2005, p.126).
Assim, é com “O texto jornalístico – seja ele textual ou visual –
reconta a realidade através de um formato próprio, organizando
os acontecimentos e transformando-os em informação e notícia”
(idem, p. 5).
Entendo como experiência uma situação que já vivenciamos,
podemos assim pensar o leitor de hoje como um indivíduo sujeito a

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ser o personagem de que se fala no discurso jornalístico de amanhã,
já que não temos domínio sobre as casualidades que surgem e são
discursivizadas como acontecimento, notícia.

Etapas para análise da fotografia

Com base em Tasso (2005) para analisarmos a imagem


devemos observá-la em três etapas, sendo estas a icônico-sensorial,
a noemática e a discursiva.
A etapa icônico-sensorial compreende o momento em que o
leitor colhe informações da imagem através da observação. Busca-se
entender quais emoções a imagem evoca, sendo elas alegrias, tristezas,
espanto, curiosidade, entre outros. Após isto, é preciso conhecer a
imagem em seu conjunto, fazendo as seguintes perguntas em relação
à fotografia observada:
• Qual seu tamanho? Esta pode ser medida em centímetros ou
metros?
• Quantas personagens podemos observar na fotografia?
• O ambiente é externo ou interno? Há iluminação, havendo está
é pouca ou muita?
• O ambiente pertence à zona rural ou urbana? Há presença de
vegetação, e de qual tipo?
• Pode-se visualizar todos os elementos que a compõem?
Através das respostas deste questionamento juntamente com
as experiências que o observador já traz consigo será levantado
um conjunto de informações para que ele possa responder aos
questionamentos: Qual sentimento se tem ao observar a imagem?
Ela é composta por quais elementos? O que a imagem nos diz através
desta observação?
Na segunda etapa (Noemática) é espaço do observador
que lê a imagem partindo de seu conhecimento sobre os fatores
institucionais, sejam estes políticos, econômicos, religiosos, ou
outros. Após esta leitura o observador fará a seguinte pergunta: De

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que maneira o texto imagético diz o que parece nos dizer? Assim
procuramos descobrir:
• A imagem é monocromática?
• A claridade ou obscuridade prevalece?
• A intensidade das cores representa uma imagem viva ou uma
imagem apagada?
• O ambiente é de caráter público ou de caráter privado?
• O ambiente é sofisticado, se sim a qual nível?
• O personagem ou objeto em foco encontra-se distante ou próximo
a lente da câmera fotográfica?
• Este representa estar em movimento?
• A imagem é complexa ou simples?
A terceira e última etapa de estudo sobre a imagem fotográfica
é relativa ao discurso, sendo que este procura estabelecer os elementos
simbólicos presentes no texto. Questionamos então:
• A qual época se refere o texto?
• Quais elementos na fotografia nos leva a acreditar que ela se trata
de desta determinada época?
• Quais elementos indicam que a fotografia foi registrada na zona
urbana, ou zona rural?
• Quais elementos indicam a que fator institucional se trata a
fotografia?
• O que ou quem está em destaque na fotografia?
• Quais sentidos são evocados a partir ao visualizar o texto
imagético?
• Quais sentidos são invocados a partir dos elementos que não são
possíveis de visualizar na imagem?
• Se a imagem corresponde ao fotojornalismo, qual a relação de
diálogo acontece entre o texto verbal e visual?
Após realizadas estas observações, perguntamo-nos: Por que
a imagem diz isso?
Assim que as três etapas forem concluídas levantamos as
seguintes perguntas: O que a imagem observada nos diz? Como ela
nos diz? Qual o motivo dela nos dizer isso?

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 121-150, jan./jun. 2014 138
Tragédias – assunto do discurso, nosso objeto de estudo

O Edifício Joelma localizava-se no centro de São Paulo e foi


inaugurado em 1971, possuía 25 andares e chamava a atenção por
sua altura e aparência modernas. Às 08:45m do dia 01 de fevereiro
de 1974, um curto-circuito no aparelho de ar-condicionado no
décimo segundo andar (12º) deu início a um incêndio que se
alastrou facilmente.
Minutos após o curto-circuito a fumaça e o fogo já haviam
tomado o interior do prédio, dificultando a saída das pessoas, já
que as escadas eram localizadas no meio da construção e não havia
saídas de emergência, fazendo com que muitos utilizassem os
elevadores que mesmo sendo a opção mais arriscada salvou muita
gente enquanto funcionou até paralisar e ocasionar mais mortes.
Algumas pessoas na tentativa de se salvarem subiam para o
terraço, mas como o edifício não possuía heliporto os helicópteros
não puderam pousar, pela dificuldade em se aproximar do telhado
por conta da fumaça, outras pessoas iam até os parapeitos das janelas
em busca de socorro, sendo que mais de vinte pessoas morreram
em uma tentativa desesperada de salvarem suas vidas se jogando da
janela mesmo com os bombeiros pedindo para que não o fizessem.
Apenas uma hora e meia após o início do incêndio foi
possível contê-lo, porém só às 13h:30m o serviço de resgate foi
encerrado. A tragédia do Edifício Joelma terminou com 188 mortos
e aproximadamente 300 feridos.
Já o incêndio da Boate Kiss, localizada em Santa Maria, Rio
Grande do Sul, aconteceu por volta das 2h:30m do dia 26 de janeiro
de 2013, provocado pelo uso de um sinalizador de uso externo
utilizado pelo vocalista da banda que se apresentava.
As faíscas do sinalizador atingiram a espuma de isolamento
acústico do teto, que não possuía proteção contra incêndio, e se
alastrou rapidamente mesmo com a tentativa fracassada do cantor
e segurança em apagar as chamas.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 121-150, jan./jun. 2014 139
De acordo com os dados da polícia a boate, a qual se
encontrava com alvará vencido, tinha capacidade para 691 pessoas,
mas no momento da tragédia comportava mais de mil pessoas
dentro, que ao perceberem o incêndio correram em direção a porta,
já que não havia saída de emergência. Segundo relatos, os seguranças
teriam bloqueado a saída dos jovens pensando ser uma tentativa
de sair sem pagar, após perceberem que se tratava de um incêndio
liberaram a saída.
Muitos jovens, desorientados tanto por não conhecer o local
e este não ter sinalização indicando a saída, quanto pela fumaça,
correram em direção ao banheiro sendo encurralados por outros
jovens também em busca de ar morrendo ali por asfixia, sendo o
maior número de corpos 90% do total encontrados nos banheiros.
O número de vítimas fatais foi tão alto que as autoridades da
cidade recorreram a caminhões frigoríficos para ajudar no transporte
dos corpos. O incêndio resultou em aproximadamente 260 mortos.

Análise dos enunciados e imagens

As fotografias e os enunciados que serão analisados


correspondem ao incêndio do edifício Joelma e ao incêndio da boate
Kiss, extraídos das páginas jornalísticas do jornal Folha de São Paulo.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 121-150, jan./jun. 2014 140
O enunciado da matéria jornalística sobre o incêndio do
edifício Joelma, na cidade de São Paulo, datado no dia 01 de
fevereiro de 1974, primeiramente nos remete a outro enunciado, um
acontecimento anterior a este. “De novo” indica que um incidente
semelhante ao reportado já aconteceu, levando nossa memória ao
incêndio do edifício Andraus, ocorrido no dia 24 de fevereiro de
1972 também em São Paulo. O enunciado “muito pior” nos indica a
gravidade do acontecido se comparado ao incêndio anterior evocado
pelo enunciado “De novo”.
O incêndio no edifício Andraus resultou em 16 mortos e
345 feridos enquanto que o incêndio no edifício Joelma, sendo
este “muito pior”, resultou em 188 mortos e aproximadamente
300 feridos.
Não bastando remeter nossa
memória ao incêndio do edifício
Andraus através do texto verbal,
também nos é apresentado uma
fotografia deste acontecimento
logo abaixo da imagem do edifício
Joelma, sendo que esta imagem
foi tirada no sentido paisagem
retratando uma multidão em frente
ao prédio, com algumas árvores
impedindo a visualização da parte
inferior deste e ocultando também
a parte superior em que era possível
visualizar o incêndio.
Quanto à multidão, é possível
visualizar personagens em movi-
mento e outros parados observando
o que entendemos ser incêndio.
Po d e m o s d e d u z i r q u e e s t a
multidão era formada pela soma

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dos sobreviventes do edifício que conseguiram sair a tempo, por
familiares e amigos das pessoas que estariam no edifício no momento
do incêndio em busca de informações dos seus, por curiosos que
por ali passavam e pela equipe de resgate.
A fotografia do incêndio Joelma vem apresentar-nos o
texto verbal em contraposição ao visual. Ela foi tirada na posição
vertical, sentido retrato, dando destaque à parte superior do edifício
que se encontra em chamas, ao lado esquerdo há outro edifício
aparentemente intacto.
Pela fotografia é possível se perceber que o incêndio ocorre
na área urbana, por se tratar de edifícios; o incidente ocorre em
ambiente interno, mas é retrato do ambiente externo, sendo este um
lugar público, como rua ou calçada; há a presença de claridade (dia),
sendo dificultada a visualização por ser monocrática caracterizando
o que entendemos como uma fotografia antiga. Podemos também
afirmar que a fotografia pertence a uma instituição privada,
possivelmente a imprensa jornalística, pois na década de 70 não
era comum as pessoas trazerem consigo máquinas fotográficas,
já que estas pesavam muito e quem as possuía eram geralmente
profissionais da área.
Por se tratar de um incêndio, supõe-se, a partir daquilo
que não podemos ver, que o local registrado estivesse cercado por
policiais, médicos e bombeiros para conter o incêndio e a multidão
que acompanha o desfecho da tragédia, sendo esta formada por
possíveis sobreviventes do incêndio, amigos, familiares e curiosos.
Retomando a análise do edifício Joelma, podemos afirmar que
forma monocrática da imagem não nos causa repulsa ao observá-
la, pois sua cor preto e branco apresenta um tom de conformismo,
mesmo que fiquemos abalados emocionalmente pela quantidade de
mortos e feridos fazendo com que nos coloquemos no lugar dos seus
familiares ao sentir a dor da perda por pessoas que desconhecemos.
A fotografia é simples, de fácil compreensão apesar da pouca
nitidez já que esta foi registrada na década de 70 em que havia

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poucos recursos fotográficos. O objeto em foco encontra-se distante
da câmera do fotografo, tendo esta uma imagem viva retratando o
edifício ainda no momento do incêndio, onde podemos observar as
chamas e fumaça na parte superior do edifício subindo de encontro
ao céu.
Portanto, ao analisarmos a fotografia e o enunciado podemos
afirmar que ambos textos, seja ele verbal ou visual, passa-nos a
informação da gravidade do incêndio. O enunciado, por mais que
não possa ser submetido a prova de sua veracidade, só pode ser
entendido se visualizado juntamente com a fotografia, já que o
enunciado “De novo, e muito pior” nos passa a informação que algo
semelhante já aconteceu e sua gravidade foi mais alta que a anterior,
sendo que até as 17:00 horas já havia o número de 70 mortos no
ocorrido, mas é apenas com a visualização da imagem junto ao texto
verbal que compreendemos que se trata de um incêndio.
Assim concluímos que o enunciado e a fotografia do edifício
Joelma não se completam, mas sim passam-nos informações
diferentes uma da outra, sendo que a imagem testifica aquilo que o
enunciado diz, servindo como testemunha de um acontecimento.

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Ao analisarmos o enunciado do discurso midiático do dia 28
de janeiro de 2013, sobre o incêndio da boate Kiss, ocorrido na
cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, obtemos a informação
que há 50 anos não acontece um incêndio com uma gravidade tão
elevada quanto a da boate Kiss.
O enunciado “Pior incêndio do país em 50 anos” nos traz
à memória os piores incêndios ocorridos no Brasil, estando em
primeiro lugar o do Gran Circo Norte-Americano ocorrido no dia
15 de dezembro de 1961 em Niterói, Rio de Janeiro, sendo este
um incêndio criminoso causado por vingança que resultou em 503
mortos, em segundo lugar o incêndio da boate Kiss que resultou
em aproximadamente 260 mortos, e em terceiro lugar o incêndio
do edifício Joelma, ocorrido no dia 01 de fevereiro de 1974, em
São Paulo, que iniciou após um curto-circuito, resultando em 188
mortos. Estas informações são reforçadas pela legenda da parte lateral
esquerda na imagem.
Ao ser utilizado o termo “casa noturna” de maneira genérica
sem nomeá-la entende-se que lugares como estes também estão
sujeitos a terem a mesma falha que levou ao ocorrido, informando
também que 231 mortes foram causadas pelo incêndio, até aquele
momento.
A fotografia foi retrata no sentido paisagem, mostrando um
espaço amplo onde se é possível ver a fachada da boate Kiss com
partes da parede quebrada, destroços no chão, a parte lateral de um
caminhão de bombeiro, policiais e bombeiros no local. A fumaça
branca saindo de uma das paredes quebradas e da parte superior do
local indica que o incêndio já havia sido controlado na hora em que
a fotografia foi tirada, sendo isso por volta das cinco horas da manhã,
pois as lâmpadas dos dois postes que visualizamos permaneciam
ainda ligadas.
Podemos deduzir que fora da lente da câmera, sendo isto
aquilo que não se pode visualizar na fotografia, estavam familiares e
amigos das vitimas em busca de notícias, sobreviventes do incêndio,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 121-150, jan./jun. 2014 144
curiosos, um maior número de polícias, médicos e bombeiros devido
à gravidade do incêndio, ambulância, IMLs e também caminhões
frigoríficos que foram utilizados devido à grande quantidade de
corpos.
O local onde o incêndio ocorreu pertencia a uma instituição
privada, a fotografia registrada em local público, onde se pode
visualizar a rua, demais prédios, e uma placa de orientação turística e
orientação de destino, caracterizando assim uma área movimentada,
o que entendemos ser o centro da cidade na zona urbana.
Os personagens retratados estão voltados para a entrada da
boate, sendo que dois policiais no centro da fotografia estão em
movimento em direção a entrada da mesma. A fotografia é colorida,
possui uma imagem nítida não sendo complexa apesar da quantidade
de elementos nela representada, mostrando-nos uma imagem viva de
um ambiente sofisticado que pode ser percebido através do designe
da faixada da boate Kiss.
Os objetos em foco encontram-se longe da lente da câmera
ampliando assim a visão do que ela representa, não apenas nos
mostrando elementos da tragédia, mas colocando-nos na posição
de observador juntamente com o fotógrafo.
Pela posição da fotografia ao retratar diversos elementos e
ainda assim colocar a faixada da boate Kiss em destaque, sendo esta
representada do lado esquerdo da fotografia com a câmera levemente
inclinada possibilitando assim que possamos visualizar o nome da
boate e por se tratar de uma fotografia que veicula em um jornal de
caráter privado podemos afirmar que a fotografia foi tirada por um
profissional da área que ali estava para registrar o incêndio.
Através da visualização daquilo que vemos, sentimo-
nos impossibilitados diante do fato que se encerra de maneira
trágica, curiosos e ao mesmo tempo preocupados por aquilo não
visualizamos, sendo estes as vítimas e seus familiares.
Concluímos assim que o enunciado e a fotografia do nosso
objeto de estudo não se completam, mas sim nos trazem informações

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distintas podendo ser lidas separadamente, e mesmo que o enunciado
não possa ser submetido à prova de sua veracidade a imagem
comprova o que o enunciado diz, servindo como testemunha social,
denuncia do que aconteceu.
O enunciado da terceira imagem registrada em 28 de janeiro
de 2013, mostra a qual tema este pertence, se autodenominando
como “tragédia” indicando a região em que esta aconteceu. O
enunciado em destaque é o “231 mortos” na parte inferior da
matéria, expressando assim que o número de vítimas é mais
importante do que o local em que este aconteceu.
Na fotografia, registrada em sentido retrato, podemos observar
três personagens no primeiro plano, sendo o primeiro personagem
um homem levemente inclinado demonstrando movimento, usando
uma camiseta branca e luvas, o segundo personagem aparenta ser
um médico (talvez legista) ajoelhado segurando uma prancheta
observando algo a frente dele na parte inferior, usando um jaleco
branco, e o lado esquerdo das costas do terceiro personagem que
também está com vestuário branco.
No segundo plano, perce-bemos
que a fotografia foi registrada em
um ambiente interno, não sendo
possível saber se este é de caráter
privado ou público, onde há
possivelmente muitos mais corpos
enfileirados no chão do que
podemos visualizar, estes estão
cobertos por lonas pretas de seus
pescoços para baixo. Há uma fila
em que não se é possível ver seu
fim, estando esta na parte superior
da fotografia e outra em frente aos
personagens. Entendemos que nessa posição foram postos ali para
serem identificados. A posição lateral da fotografia em que os corpos

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foram fotografados dá a ideia de continuidade, para nos remeter
ao número elevado de “231 mortos” em destaque no enunciado.
A compreensão da imagem é simples, portanto daquilo
que se é possível ver podemos supor que pelo número de corpos
expostos no chão, deve ter também pessoas no local, sendo estas
familiares e amigas das vítimas que estão ali para identificar o corpo
de um parente. Podemos ainda dizer que, o terceiro personagem
representado na fotografia possa ser uma destas pessoas à procura de
seu familiar, e por este motivo o segundo personagem, supostamente
um médico legista, esteja com a prancheta em mãos para localizar
na lista o nome dos mortos até o momento identificados através dos
documentos encontrados em suas roupas e pertences.
Há presença de luz (dia) na fotografia com aspecto vivo,
sendo esta colorida e com efeitos visuais nas laterais da mesma, que
nos remete a uma fumaça, talvez para se criar a ilusão informativa
de que as pessoas ali mortas foram vítimas de um incêndio. Pelos
elementos representados na fotografia não se pode distinguir se a
identificação dos corpos está sendo em uma área rural ou urbana,
mas pelas manchas na parede cremos que não se trata de um local
sofisticado.
O distanciamento fotográfico dos corpos em segundo plano,
com o contraste preto destes e o branco dos outros personagens
busca não chocar o leitor em um primeiro momento, sendo esta
fotografia tirada intencionalmente com o objetivo de não se focar
os rostos das vítimas fatais, e assim então não temos a certeza de
que foi tirada por um profissional jornalístico.
A imagem analisada assusta pela quantidade de mortos,
trazendo-nos um sentimento de impotência diante do fato já
ocorrido e de solidariedade para com os familiares que passarão pela
difícil missão de identificação dos corpos dos parentes.
Portanto, podemos afirmar que o enunciado verbal e a
fotografia não apenas se completam, como muitos estudiosos
do discurso e do texto parecem dizer, mas sim nos apresentam o

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mesmo assunto sob diferentes olhares, que podem ser entendidos
separadamente, não precisando, necessariamente, estarem lado a lado
para serem compreendidos, pois em muitos casos, como por exemplo
as fotos de tragédias já dizem, já confirmam os enunciados e os
discursos socialmente divulgados. Sendo assim, a imagem em nosso
caso atesta o que o enunciado verbal diz, mesmo este não podendo
ser submetido à prova de sua veracidade, mas a fotografia de uma
tragédia é o que realmente fica em nossa memória e nos remeterá
ao assunto mesmo anos após o acontecido, ou seja, aos enunciados
verbais proferidos em tragédias como as que aqui analisamos servem
ao discurso imediato, cumprem o papel de divulgadores eficientes,
porém cabe às imagens a denúncia social, a elas é destinado o papel
de uma testemunha imagética silenciosa.

Referências

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Curitiba, PR, 2008.

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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO POR MEIO DA
LINGUAGEM: CONVERGÊNCIAS ENTRE
BAKHTIN E VIGOTSKI

Simone Lesnhak1

Resumo: Este artigo, de abordagem teórica, discute o processo de constituição do


sujeito na relação com o outro, por meio da linguagem, propondo convergências entre
as concepções bakhtinianas e vigotskianas, considerando o entendimento de que, na
interação humana, os sujeitos aprendem e se desenvolvem, e isso ocorre por meio de
instrumentos de mediação simbólica – os signos. Nesse sentido, as duas perspectivas
convergem na compreensão de aprendizagem como processo que depende da alteridade,
da mediação da linguagem, efetivando-se no encontro da outra palavra com a palavra
outra (PONZIO, 2010). Por meio de estudos sobre as teorias de Vigotski (2007 [1978])
e Volóshinov (2009 [1929]), compreende-se a concepção de língua/ linguagem como
instrumento que medeia as interações humanas, que se caracteriza como signo ideológico
e, portanto, incide na interpretações e na construção das ideologias. Geraldi (2010 a; b),
em interpretações dos estudos bakhtinianos, concorre para esta discussão por compreender
que o sujeito se constitui pela linguagem, transformando essa linguagem, a princípio
abstrata e neutra, na relação com a outra palavra (PONZIO, 2010). O artigo contém
a proposta de olhar a constituição da identidade como uma relação entre subjetividade
e alteridade mediada pela linguagem.
Palavras-chave: Linguagem; sujeito; identidade.

Abstract: This article, theoretical approach, discusses the process of human constitution
in relation with other humans, through language, proposing convergences between
Bakhtin Circle and Vigotski studies conceptions considered the understanding that, in
human interaction, individuals learn and develop themselves, and this occurs through
instruments of symbolic mediation - the signs. In this sense, the two perspectives converge
in understanding learning as a process that depends on other people, the mediation of
language, effecting on another word (PONZIO, 2010). Through studies on the theories
of Vygotsky (2007[1978]) and Volóshinov (2009 [1929]), we understand the language
as a tool that mediates human interactions, which is characterized as ideological sign and
therefore, focuses on the interpretation and construction of ideologies. Geraldi (2010a,
b​​), in interpretations of Bakhtin studies, contributes to this discussion by understanding
that the human being is constituted through language, transforming this language,
1
Doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – no Curso de Pós-
Graduação em Linguística - e professora do Curso de Letras da Universidade da Região de
Joinville – UNIVILLE.

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abstract and neutral principle in relation to another word (PONZIO, 2010). The
article contains a proposal to look at the constitution of identity as a relation between
subjectivity and other ones mediated by language.
Keywords: language; human; identity; lerning; developing.

Introdução

A aprendizagem e desenvolvimento humano, bem como a


qualificação desses processos, estão sempre em pauta nos cursos de
pós-graduação e em eventos científicos por todo país, bem como nos
órgãos educacionais e mesmo nas escolas, universidades; enfim, este
tema provoca indagações constantes naqueles que vivem a Educação.
Estudiosos da área de Linguística Aplicada, cujo foco é
tratar dos problemas relativos à linguagem, abrangendo as mais
diversas áreas em que a linguagem medeia relações intersubjetivas,
da mesma forma que os da área de Educação, têm procurado
discutir concepções no sentido de promover processos de ensino e
de aprendizagem que contribuam para tal qualificação.
No escopo da LA, entendemos que perspectivas bakhtiniana
e vigotskiana, ressalvadas as especificidades de cada qual delas,
convergem nas concepções de língua e de sujeito – compreendendo
que os sujeitos se apropriam da cultura na relação com o outro, sendo
essa relação mediada pela língua/linguagem2- e parecem apontar
para um caminho por meio do qual possamos buscar novos olhares
para a aprendizagem e o desenvolvimento no campo do ensino
de língua/linguagem. Trata-se de focalizar o encontro (PONZIO,
2010), concebido sob a perspectiva de que, por meio da linguagem,
os sujeitos incidem uns sobre os outros na constituição de sua
subjetividade.

2
Entendemos que nossa inserção no ideário histórico-cultural nos libera de distinções entre
língua e linguagem, as quais são comuns na Linguística Teórica. Do ponto de vista histórico-
cultural, ambas – língua e linguagem – existem e são objeto de estudo no que respeita às
relações intersubjetivas.

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Nos processos de escolarização, em quaisquer graus de
ensino, o professor age como o interlocutor mais experiente,
responsável por promover condições para que se consubstanciem a
aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes. Nessa condição
de interlocutor mais experiente, parecem-nos implicadas discussões
relacionadas a concepções de sujeito, língua e identidade, requerendo
considerar que o sujeito é constituído nas interações, nas vivências
com a alteridade/outridade, em contato com as diferentes culturas
(GERALDI, 2010b), por meio da linguagem, compreendida essa
mesma linguagem, aqui, como instrumento psicológico de mediação
simbólica (VIGOTSKI, 2007 [1978]).
Propomos, assim, uma reflexão – desde aqui, assumidamente
de base histórico-cultural – a respeito das concepções bakhtiniana
e vigotskiana no que respeita à constituição do sujeito por meio da
linguagem, discutindo, convergentemente, as teorias da filosofia
da linguagem, que tem como principal estudioso Mikhail Bakhtin,
e da psicologia da linguagem, cujo principal representante, neste
artigo, é Lev Vigotski.

A constituição da subjetividade e o papel da linguagem

Iniciamos nossa discussão teórica com uma reflexão sobre


subjetividade, entendendo que a formação de sujeitos demanda
a interação do sujeito com o outro; em última instância a relação
intersubjetiva. Essa reflexão nos leva inicialmente a Geraldi (2010a,
p. 29), que, ao discutir concepções de sujeito, faz referência ao sujeito
instituído e ao sujeito constituído. Segundo o autor, o sujeito instituído
é aquele cujas condições históricas o fazem ser o que é e, nesse sentido,
“[...] é capaz de aprender e é capaz de utilizar os instrumentos do
passado para construir o futuro (dependendo do ponto de vista,
esse futuro há que ser a reprodução do status quo do passado)”
(GERALDI, 2010a, p. 29). Para caracterizar esse sujeito, Geraldi
(2010a) o define como: determinado; o centro; pré-existente ao seu

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próprio acontecimento; pronto, acabado nos acontecimentos. Nessa
perspectiva, os sujeitos agiriam uniformemente, reproduzindo uma
herança cultural pré-estabelecida. Essa concepção de sujeito remete
a propriedades como responsabilidade, consciência, responsividade,
inconclusibilidade/insolubilidade, situacionalidade, propriedades
compreendidas por Geraldi (2010b) a partir de perspectivas teóricas
bakhtinianas e vigotskianas.
A responsabilidade, para Geraldi (2010b, p. 137), é concebida
a partir de Bakhtin como fundada no “[...] pensamento participativo
e [implicando] a participação de cada um no Ser único [de forma]
singular e insubstituível [...]”. O autor caracteriza como Ser único e
insubstituível aquele que vive a realização concreta do Ser. Segundo
Geraldi (2010b, p. 134), “[...] devo responder com a minha vida
para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam
inativos”. Já a consciência refere-se ao ‘saber o que se faz’, e tal
característica poderá ser percebida na materialização desse estado
de consciência por meio dos signos (GERALDI, 2010b).
Sobre a característica da responsividade ou respondibilidade,
“[...] toda a ação do sujeito é sempre uma resposta a uma
compreensão de outra ação [...]” (GERALDI, 2010b, 140), ou como
concebe o ideário bakhtiniano, uma resposta ativa aos discursos,
aos enunciados dos outros ou àqueles já realizados. Assim, tal “[...]
encadeamento infinito proposto dá um sentido novo à unicidade
do evento: único, mas não isolado. [...] este encadeamento aponta
para a constituição social de cada um na relação com os outros e de
cada ação individual” (GERALDI, 2010b, p. 140).
A inconclusibilidade/insolubilidade é a característica que
implica o contato, a interação, a resposta do outro que demanda a
completude, por isso, Geraldi (2010b, p. 143) explica que,

Deste movimento contínuo entre o eu e o outro, em que eu


vivencio minha vida de dentro e o outro me dá completude do
exterior, infere-se que os acabamentos e as identidades serão
sempre múltiplos no tempo e no espaço, pois a relação nunca é

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com somente um e mesmo outro, e a vida não se resume a um e
sempre mesmo tempo.

Já a situacionalidade diz respeito à visualização de um tempo


e espaço, na dimensão cronotópica das vivências humanas, pois “O
que define a seleção de uma ação, o que define a avaliação do sujeito
é precisamente o futuro, aquilo que ainda não existente está por
ser alcançado” (GERALDI, 2010b, 144). No ideário bakhtiniano,
segundo Geraldi (2010b), nas enunciações, há um entrelaçamento
entre o passado (o histórico), o presente (a situação de interação) e
o futuro (a resposta ativa).
Assumimos, assim, o sujeito como constituído, propondo-
nos a olhar essa constituição na convergência entre o dialogismo
bakhtiniano e os estudos vigotskianos – bases que ancoram Geraldi
(2010a), em que pesem suas especificidades – olhar que suscita uma
visão de sujeito constituído na relação com o outro, na eventicidade.
A linguagem, nessa perspectiva, estabelece o elo entre o eu e o outro
e se materializa em atividades sociais; é instrumento psicológico
de mediação simbólica que institui tais relações interpessoais entre
esses mesmos sujeitos historicizados. Assim, neste estudo assumimos
essa concepção, defendendo que sujeitos constituem-se na interação
com o outro, nas relações intersubjetivas que estabelecem com
os professores, com os demais estudantes, enfim, com os demais
sujeitos participantes da esfera escolar ou acadêmica – dependendo
o âmbito em que se discute o processo de ensino e de aprendizagem
–, fazendo-o por meio da linguagem.
A noção de constitutividade do sujeito, em Geraldi (2010a
e 2010b), deriva, como já mencionamos, do Círculo de Bakhtin
e se opõe a concepções universalistas segundo as quais os sujeitos
nascem prontos, acabados, iguais, ‘tábulas rasas’, vazios. Opõe-se,
ainda, a concepções de sujeito instituído pela sociedade e atravessado
passivamente por suas regras, ou seja, pelas condições históricas
que o faz ser o que é. Geraldi (2010b), ancorado no Círculo de

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Bakhtin, considera que a identidade dos sujeitos se constrói no
movimento, na dinâmica que caracteriza a interação humana nas
diversas situações sociais. O autor associa a noção de constitutividade
à ideia de interação, lugar de sua realização, em que ocorre a relação
com o outro, na qual se gestam as movências.
Nessa discussão importa atenção ao conceito de interação,
que, para Volóshinov3 (2009 [1929]), implica agenciamento do
signo, da expressão semiótica, da palavra como signo potencial de
interação humana. Embora nos aprofundemos adiante no ideário
bakhtiniano e discutamos com maior profundidade noções tais
como a de interação verbal, é importante considerarmos que, nessa
ótica, é a partir da exterioridade, na relação com o outro, que se dá a
organização mental e a apropriação de conhecimentos; assim, só nos
parece possível discutir identidade na relação com a alteridade. Sob
essa perspectiva, constituímo-nos na situação social mais imediata,
no meio social concreto em que estamos inseridos, no grupo social e
na época a que pertencemos, fazendo-o por meio de enunciados, na
condição de sujeitos ativos e responsivos, responsáveis e conscientes.
Para Volóshinov (2009 [1929], p. 143),

No existe el pensamiento sin una tendencia hacia una posible


expresión y, por consiguiente, fuera de una orientación social de
esta expresión. Así pues, una persona hablante, abordada, por
decido así, desde su interior, aparece por completo como producto
de interrelaciones sociales.

Nesse sentido, a palavra, mesmo exterior ao sujeito, é parte


dele e da sua interação com o outro. Ela carrega e, ao mesmo tempo
altera suas especificidades no momento de sua concretização, no
momento em que os indivíduos interagem. Não se trata, pois,
de palavra estática. O fluxo do movimento, a interação, é o lugar
3
Sensíveis à recomendação de Faraco (2012, informação oral), temos tomado esta obra,
em nosso grupo de estudos, na tradução para o espanhol, assinada apenas por Volóshinov.

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‘de passagem’, e, na passagem, constroem-se “[...] as categorias
de compreensão do mundo vivido, nem sempre percebido e
dificilmente concebido de forma idêntica pela unicidade irrepetível
que é cada sujeito” (GERALDI, 2010b, p. 31). Assim, a cada nova
interação, a palavra constitui-se o lugar das interações verbais, e, na
mediação simbólica a que se presta, constroem-se representações não
ainda pensadas, novos acontecimentos sobre os quais incidimos e os
quais incidem sobre nós no processo de constituição subjetiva que
protagonizamos na relação histórico-culturalmente situada com o
outro. Segundo Geraldi (2010b, p. 32), as concepções bakhtinianas
sobre sujeito trazem para o processo de formação da subjetividade o
fluxo do movimento do trabalho que se faz cotidianamente.
Já em uma perspectiva mais focada na psicologia da
linguagem, importa tratar da constituição do sujeito também no
que se refere à aprendizagem e ao desenvolvimento. Segundo Vigotski
(2007 [1978]), o desenvolvimento e a aprendizagem implicam a
relação do homem com o mundo, processo mediado pela linguagem,
pelos signos. Sirgado (2000) explica que Vigotski considerava dois
estímulos para tal: o estímulo natural (interior) e o cultural (exterior)
criado pelo homem. A interação e os estímulos externos criam entre
os dois tipos de estímulos “[...] uma relação indireta e mediada,
exatamente como ocorre com o instrumento técnico na relação
do homem com a natureza, [...] resultando em uma ‘forma nova’ à
natureza, da qual ele é parte integrante” (SIRGADO, 2000, p. 57).
Faraco, Tezza e Castro (2007, p. 101), na perspectiva da filosofia da
linguagem bakhtiniana, entendem que

[...] o homem como um ser de linguagem [...] se constrói e se


desenvolve alimentando-se de signos sociais, em meio às inúmeras
relações interacionais, e opera internamente com a própria lógica
da interação sócio-semiótica, donde emergem seus gestos singulares.

Assim, sob esse olhar que entendemos histórico-cultural,


a linguagem é atividade social, e o sujeito se constitui nas inter-

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relações sociais instituídas por meio da linguagem. A constituição
da identidade se dá necessariamente no encontro com a alteridade:
na convergência com o ideário bakhtiniano, poderíamos dizer que
o outro tem o excedente de visão sobre mim que não me é dado ter
em minha incompletude fundante (GERALDI, 2010a). Assim, a
legitimação como membro de um determinado grupo social implica o
encontro subjetividade/alteridade. Os membros de uma comunidade,
por meio da linguagem, considerada por Kramsch (1998, p. 10)
como “[...] a social patrimony and a simbolic capital that serve to
perpetuate relationships of power and domination [...]”4, criam e
formatam a sua cultura nas relações intersubjetivas mediadas por ela.
Kramsch (1998) associa a constituição da subjetividade à noção de
interação, instituidora da cultura, entendida, neste estudo, na esteira
dos pensamentos vigotskiano e bakhtiniano, como a criação de um
povo – ou de um grupo –, no curso de sua vida e de sua história,
processo que implica incidir sobre o ambiente natural e social (com
base em GAČEV, 2011).
Entendemos, pois, que o momento único e irrepetível da
situação de interação materializa as representações de mundo por
meio das palavras, consideradas também únicas e irrepetíveis já
que, após cada acontecimento, voltam à sua abstração, apesar de
carregadas de novas representações, para ‘acontecer’ novamente
quando tomadas em novas situação de interação humana, o que
nos remete ao conceito de enunciado. Nesse sentido, a interação
provoca esse movimento de construção de novas representações na
mente humana: o interno é estimulado a modificar-se pelo social
externo, tal como entende o ideário vigotskiano. Somos, assim,
sujeitos historicizados, constituídos na interação, na alteridade, no
encontro com o outro por meio da linguagem.
Nessa discussão, vale mencionar Faraco (2010, p. 150), para
quem a palavra abstrata, “recortada da existência, objetificada”

4
Tradução: [...] um patrimônio social e um capital simbólico que serve para perpetuar relações
de poder e de dominação [...].

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 158
não constitui ato. A palavra como ato responsável é entendida por
Bakhtin (2010 [1924]) sob a perspectiva daquilo que é irrepetível na
situação de interação, lugar indispensável de sua realização. Assim,
para o ideário bakhtiniano, as palavras, quando usadas na interação,
compõem a eventicidade irrepetível do “[...] ato em sua totalidade,
no qual [o sujeito] entra como um ser integral” (FARACO, 2010,
p. 150). Assim, ao tomarmos como exemplo os sentimentos da dor
e da tristeza, não há como pensá-los, conceitualizá-los; eles somente
tomam parte do ser humano, ou seja, pode-se dizer que o homem
deles se apropriou, somente quando os viveu, em sua interioridade.
Isso remete à arquitetônica real concreta do mundo dos valores
vivenciados, processo em que os sujeitos estão unidos por relações
concretas no evento singular do existir (FARACO, 2010). Ponzio
(2010), com base no ideário bakhtiniano, trata de encontro da outra
palavra com a palavra outra, no qual, em nossa percepção e para as
finalidades deste estudo, se dá a constituição dos sujeitos. Quanto
ao encontro5 propriamente dito,

[...] trata-se do ato da palavra, da enunciação como célula viva do


falar [...] da palavra na sua singularidade, da enunciação na sua
irrepetibilidade [...] fora do lugar em relação aos lugares-comuns
do discurso, em relação à língua estereotipada, ao falar homologado
[...]; trata-se do ato de palavra, não considerado como abstração,
como algo de contemplado ou teoricamente pensado, como objeto
examinado de fora de um sujeito que desse não participa (PONZIO,
2010, p. 31-32)

5
Ainda que Ponzio (2010; 2013) conceba encontro eminentemente no âmbito do que chama
de infuncionalidade, trazemos o conceito também para as relações que, segundo ele, seriam
funcionais, com o propósito de propor que, nos processos de escolarização – funcionais em
sua essência –, a exemplo das relações infuncionais, tomemos as vivências humanas como se
instituindo entre sujeitos singulares e não entre indivíduos diferenciados entre si apenas no
âmbito das grandes categorias macrossociológicas. Não nos deteremos na complexidade dessa
questão porque foge ao escopo de nossa discussão. A nota objetiva registrar a consciência
de que o autor lida com o conceito de encontro na perspectiva da infuncionalidade e nós o
fazemos na perspectiva da funcionalidade.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 159
Nessa discussão, porém, é importante considerar que a
palavra, constitutiva do encontro, nos enunciados dos membros mais
experientes, tais como os professores, tende a representar aos sujeitos
estudantes mero teoreticismo se não for parte de uma experiência
de fato vivenciada e significativa. Para tal parece-nos imprescindível
que as situações de interação com o outro mais experiente de fato
facultem essas mesmas vivências. Ponzio (2010, p. 38), na proposição
do encontro, parte dessa questão: não se trata de uma relação entre
dois sujeitos, entre duas palavras,

[...] como se houvesse antes os dois sujeitos, as duas palavras e em


seguida a relação entre elas, o encontro. É exatamente a relação, o
encontro que faz existir a palavra como outra palavra; esta é por esta
relação, não existe antes, não existe fora disso. Sem o encontro com
a palavra outra que a escuta não há outra palavra.

E esse encontro se dá, segundo o autor, com base no


pensamento bakhtiniano, pela concreta arquitetônica focada ao
redor do eu: eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-outro. Esse
movimento de escuta concretiza a palavra outra, porque “[...] fora
dos lugares comuns do discurso, descoberta, sem defesas, na situação
de responsabilidade sem álibis, sem escapatórias, a palavra subsiste
apenas no encontro com a outra palavra” (PONZIO, 2010, p. 39). O
conceito de encontro traz consigo, em nossa compreensão, conceitos
de outridade ou exterioridade (VIGOTSKI, 2007 [1978]), de
interação (VOLÓSHINOV, 2009 [1929]), de movência (GERALDI,
2010a), de fluxo de movimento, e por que não dizer, do movimento
de pêndulo (GERALDI, 2010b).
Tal processo de constituição, de desenvolvimento, de
aprendizagem, de identidade profissional do sujeito não se dá, pois,
por um simples percurso de transferência de vivências do outro. Nos
grupos em que estamos inseridos, os interactantes com os quais
contatamos nas interações cotidianas atuam como referenciais
culturalmente situados; cada sujeito, porém, “[...] não só reproduz

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 160
e repete o que foi elaborado pela sociedade na sua história, mas
também transforma essas respostas no seu processo individual de
desenvolvimento” (GERALDI, FICHTNER; BENITES, 2006, p.
185). Assim, “[...] o discurso interior é o resultado de um processo de
construção por meio do qual o discurso dos outros e com os outros
se torna discurso para si mesmo” (DANIELS, 2002 [1996], p. 12).
Quanto ao conceito de apropriação, Sobral (2009, p. 161),
na vertente bakhtiniana, nos parece especialmente pertinente na
menção a essa questão:

A objetivação do mundo consiste na apropriação material e


simbólica [desse mesmo] mundo; ou seja, o mundo dado é
apreendido em termos das relações que constituem a sociedade
no âmbito da história: o que chega à consciência não é o mundo
objetivo, mas o mundo lido pelas lentes sociais e históricas dos
seres humanos. A apropriação consiste na apropriação do mundo
objetivado pelo sujeito individual, que chega a ele e já o encontra
transfigurado material e simbolicamente. Assim como a objetivação
varia de acordo com o tipo de sociedade e do período histórico,
assim também a apropriação varia de acordo com o indivíduo e
com as relações sociais de que faz parte. Logo, se a objetivação
altera o mundo dado, a apropriação altera o mundo transfigurado.

Assim, importa retomar, Geraldi (2010b, p. 30): “Entre a


metafísica idealista e o materialismo mecanicista, pontos extremos,
movimenta-se o pêndulo. [...] Em nenhum dos extremos a noção
de constitutividade situa a essência do que define o sujeito.”
Entendemos, pois, que o lugar da constituição do sujeito é o
movimento do pêndulo, com toda a sua dinâmica, que, no vai e vem,
se dá de forma diferente: movimentos mais rápidos, mais lentos, mais
suaves, mais intensos, idas e vindas que se delineiam nas relações
entre subjetividade e alteridade. A palavra como outra palavra, como
ato responsável, constitui-se na interação e, por assim ser, diferenciada,
única, irrepetível, dinâmica, medeia as relações intersubjetivas no
âmbito das quais se delineiam as identidades humanas.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 161
A filosofia da linguagem bakhtiniana, com ênfase na discussão
sobre signo ideológico e a psicologia da linguagem vigotskiana, com
ênfase na discussão sobre aprendizagem e desenvolvimento favorecem
o nosso entendimento sobre como devemos, então, conceber a
língua/ linguagem para considerá-la instrumento de mediação
simbólica.

Os signos ideológicos, instrumentos de mediação simbólica, e


a aprendizagem e desenvolvimento humano

Em seus usos, a linguagem materializa as representações e as


compreensões do mundo vivido e, como afirma Kramsch (1998), ela
entranha e indicia nossas experiências, nossas atitudes, nossa cultura.
Assim, a linguagem é concebida como instrumento psicológico
de mediação simbólica (VIGOTSKI, 2007 [1978]) e como signo
ideológico (VOLÓSHINOV, 2009 [1929]).
A concepção vigotskiana de linguagem, em sua dimensão
psicológica, tem sido fecunda no campo da educação no que diz
respeito ao entendimento dos processos cognitivos, da apropriação
de conteúdos e da sistematização dos conhecimentos (BEZERRA,
2001). Em seus escritos, Vigotski estendeu o conceito de mediação
por instrumentos de Engels, entendendo que a mediação na interação
homem-ambiente se dá pelo uso de signos (VIGOTSKI, 2007
[1978]). Vigotski (2007 [1978]) define signos primeiramente como
elos autogerados que servem de estímulos artificiais, extrínsecos
para operações do comportamento humano e sociais. Assim, o
que ocorre na memória humana compreende, segundo Vigotski
(2007 [1978], p. 32), “[...] a operação [...] para além das dimensões
biológicas do sistema nervoso humano, permitindo incorporar a
ele estímulos artificiais, ou autogerados, que chamamos de signos”.
Para o autor, assim como para o Círculo de Bakhtin, ao contrário
de teorias comprometidas com uma filosofia idealista ou uma
psicologia subjetivista, o desenvolvimento humano se dá primeiro

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 162
no nível social e depois no nível individual, isto é, “[...] primeiro,
entre pessoas ([dimensão] interpsicológica) e depois no interior [do
sujeito] ([dimensão] intrapsicológica)” (VIGOTSKI, 2007 [1978],
p. 58). Para haver desenvolvimento e aprendizagem nas relações
intersubjetivas, Vigotski aponta o signo como elemento essencial,
pois ele constitui, reiteramos, instrumento psicológico de mediação
simbólica fundamental na instituição das relações intersubjetivas.
Quanto a essa mediação por meio de signos, segundo Vigotski
(2007 [1978], p. 33):

[...] toda forma elementar de comportamento pressupõe uma reação


direta à situação-problema defrontada pelo organismo (o que pode
ser representado pela fórmula simples (E<>R). Por outro lado, a
estrutura de operações com signos requer um elo intermediário (X)
entre o estímulo e a resposta.

Disso resulta a seguinte representação apresentada por


Vigotski (2007 [1978], p. 33):

Figura 1: Função

E -------------- R

Com base nessas proposições vigotskianas, entendemos que,


numa situação de interação, surgem diversas situações (-problema) a
serem resolvidas pelos interactantes, situações para cujas resoluções/
reações o ser humano precisa de estímulos6. O elemento que atua na
estimulação do pensamento, da ação é o signo. Sirgado (2000, p. 56)
explica que, nessa função, Vigotski determina que “[...] esse estímulo
[o signo] é carregado para o interior da operação (da memória, ou
6
Estímulo, aqui, é concebido a partir da perspectiva da psicologia da linguagem vigotskiana,
de base histórico-cultural, desvinculando-se de qualquer acepção behaviorista.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 163
de qualquer outra função), desempenhando o papel de organizador
da resposta [...]”. Assim, desenvolvimento e aprendizagem implicam
a relação do homem com o mundo e com o outro, constituindo
processos mediados pela linguagem, pelos signos.
Sobre o signo ainda, Sirgado (2000, p. 55) esclarece que se
pode supor que o termo signo, para Vigotski, num sentido genérico,
englobaria dois tipos de signos: os naturais e os artificiais ou
produzidos pelo homem. Vigotski entendia que “[...] a internalização
dos sistemas de signos produzidos culturalmente provoca
transformações comportamentais e estabelece um elo de ligação
entre as formas iniciais e tardias do desenvolvimento individual.”
(VIGOTSKI, 2007 [1978], p. XXVI). Pode-se compreender, por
essa perspectiva, que ocorre uma relação dialética nesse processo,
pois os universos pessoal e social se integram, interagem. Vigotski
está preocupado em mostrar a continuidade/descontinuidade que
existe entre o estímulo natural e o cultural criado pelo homem.
Enquanto o primeiro traduz a relação imediata e direta do organismo
com o meio, o segundo cria entre eles uma relação indireta e
mediada, exatamente como ocorre com o instrumento técnico
na relação do homem com a natureza (SIRGADO, 2000, p. 57).
Apesar de o autor russo fazer essa analogia entre o instrumento
semiótico e o instrumento técnico, Sirgado (2000, p. 58) alerta
para a compreensão de que “[...] se a mediação técnica permite ao
homem [...] dar uma ‘forma nova’ à natureza da qual ele é parte
integrante, é a mediação semiótica que lhe permite conferir a essa
‘forma nova’ uma significação”. A partir da operação psicológica de
incorporação de formas qualitativamente novas e superiores, “[...]
o uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica
de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e
cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura”
(VIGOTSKI, 2007 [1978], p. 34).
Sobre a concepção de signo, entendemos haver convergências
entre os pensamentos de Volóshinov (2009 [1929]) e de Vigostki

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 164
(2007 [1978]). Para o primeiro autor, a especificidade do signo
também consiste no fato de situar-se entre os indivíduos organizados,
de aparecer como seu ambiente e de servir-lhes como meio de
comunicação, de interação, de materialização da consciência. Nas
interações humanas e por causa delas, as ‘coisas’ físicas se convertem
em signos, e adquirem o caráter de elos do pensamento com a cultura,
refletindo e refratando outra realidade, assumindo uma valoração
ideológica. Nesse sentido, para Volóshinov (2009[1929]), o signo é
ideológico porque é social.
Tratando do papel de elemento de interação, Volóshinov
(2009 [1929], p. 31) entende que “[...] eI signo sólo puede surgir en
un territorio interindividual [...]”. Os objetos do mundo, os corpos
físicos em suas representações, tais como desenhos, pinturas, sons,
imagens, etc., são tomados ou usados pelos homens para exteriorizar,
materializar o seu pensamento. Essa ação ocorre nas interações
humanas, pois “La conciencia se construye y se realiza mediante
el material sígnico, creado en el proceso de Ia comunicación social
[...]” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 31). Diferentemente
das ideias da psicologia e da filosofia idealista, que consideram
que a consciência, o pensamento resultam de operações, reações
psicofisiológicas, ou seja, que o signo exterioriza aquilo que já foi
construído pela consciência, a perspectiva dialógica da linguagem
entende que a consciência é “[...] un inquilino alojado en el edificio
social de los signos ideológicos [...]”(VOLÓSHINOV, 2009 [1929],
p. 31). Assim, para o autor, os signos também só se manifestam nas
situações de interação humana.
Tomando o signo verbal como exemplo, Bakhtin (2000
[1952/53], p. 326) explica que o sistema da língua dispõe de uma
reserva imensa de recursos puramente linguísticos para expressar
formalmente a comunicação entre os indivíduos, ou seja, “[...] a
palavra possui completitude em sua significação, completitude na
sua forma gramatical, mas a completitude de sua significação é de
natureza abstrata [...]” (BAKHTIN, 2000 [1952/53]). Segundo

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 165
o autor, essas formas só podem transformar-se em signos na
concretização da compreensão entre interactantes em uma situação
concreta de comunicação ou interação. A linguagem, como sistema
abstrato, adquire significação quando alguém dela faz uso. Eis o
papel do sujeito como fundamental/fundante do signo, embora
não o depositário do signo, de onde o signo emerge, pois, segundo
Bakhtin (2002 [1929], p. 33), “[...] um signo é um fenômeno do
mundo exterior [...]”, cujo sistema é elaborado por uma sociedade
no curso de suas relações sociais.
Sobre a concepção de signo ideológico, Volóshinov (1993
[1930]) entende que a ideologia, que implica interpretações da
realidade social e natural que são produzidas pela mente humana,
encontra-se no material sígnico específico criado pelo homem.
Por ‘material específico’, entendamos os signos que materializam a
comunicação social, criados num processo de comunicação social
em um coletivo organizado. Assim

[...] cualquier cuerpo físico puede ser percebido como imagen


de algo, digamos, como imagen del carácter inerte, rutinario
y necesario del mundo natural reflejado en un objeto singular.
Una semejante imagen simbólica y artística de una cosa física
determinada representa ya un produto ideológico. La cosa física se
convierte en signo. Sin dejar de ser parte de Ia realidad material,
esta cosa muerta en cierta forma refleja y refracta Ia realidad.
(VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 26)

Sobre as ‘coisas’ do mundo, Volóshinov (2009 [1929])


entende que existem os fenômenos da natureza, os objetos técnicos,
os produtos de consumo, os instrumentos de trabalho, e tudo pode
se converter em signos ideológicos; não se exclui a fronteira entre
tais elementos e os signos ideológicos, embora quando “[...] adquiere
una significación que rebasa los límites de su dación singular [...]”
(VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 27), elas se transformam em
signos. Segundo esse autor, os signos se realizam em situações de

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 166
interação humana, são o meio de comunicação social, portanto a sua
significação particular se delineia nessas situações, materializando
pensamentos e representações culturais tanto quanto incidindo sobre
eles no âmbito das relações intersubjetivas. Por meio da práxis e
valendo-se do uso da língua, o homem cria, desenvolve e consolida
seus modos de viver, de agir, de interagir, de (co)instituir suas regras,
leis, ideias, de constituir a sua ideologia.
Para Volóshinov (2009 [1929], p. 26), existem as coisas em
sua forma material, um objeto qualquer, isto é, “Un cuerpo físico es,
por así decido, igual a sí mismo: no significa nada coincidiendo por
completo con su carácter natural único y dado”. Esses corpos físicos,
quando usados pelos indivíduos, são carregados de interpretações,
de representações que não estão em si mesmos, foram atribuídos
a si pelos seus usuários que fazem parte de grupos sociais. Assim,
tornam-se reflexos das consciências humanas e sociais, refletindo
e refratando a realidade. O processo de reflexão e refração que
compreende uma transformação de um objeto físico em signo,
segundo o autor, é “[...] el proceso de una autêntica transformación
de la existencia en el signo, de una verdadera refracción del ser en
el signo [...]” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 44). No signo,
além do seu conteúdo, acompanha-o o ‘acento valorativo’. Desse
modo, “En cada etapa evolutiva de Ia sociedad existe un específjco
y limitado círculo de temas expuestos a Ia atención de Ia sociedad
y en los que esta atención suele depositar un acento valorativo
[...]” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 45). A valoração no signo
é dada, segundo o autor, pela época e pelo grupo social nos quais
esse signo atua na cadeia ideológica. O signo, pois, tem lugar nas
situações de interação, quando se relacionam e se integram valores
sócio-histórico-culturais. Assim, a origem do signo ideológico não é
individual, mas interindividual. “En realidad, es tan sólo gracias a
este cruce de acentos que el signo permanece vivo, móvil y capaz de
evolucionar [...]” (VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 47).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 167
Para entender melhor como o signo e a ideologia
simultaneamente se realizam – já que, segundo Volóshinov (2009
[1929], p. 28), “Donde hay un signo, hay ideología. Todo lo
ideológico posee uma significación sígnica [...]” –, esse autor
entende que precisamos relacioná-los com as formas e condições de
comunicação social, sendo a palavra o meio mais puro e genuíno
dessa comunicação.

La palavra acompaña, como un ingrediente necesario, a toda la


creación ideológica en general. La palabra acompaña y comenta
todo acto ideológico. Los procesos de comprensión de cualquier
fenómeno ideológico (la pintura, la musica, el ritual, el acto ético)
no se llevan a cabo sin la participación del discurso interno. Todas
las manifestaciones de la creatividad ideológica, todos los demás
signos no verbales parecen sumergidos en el elemento verbal y no
se dejan aislar y separar de éste por completo. (VOLÓSHINOV,
2009 [1929], p. 35).

Tomando a palavra para exemplificar o processo de criação


ideológica, de reflexão e refração da realidade, Volóshinov (2009
[1929], p. 38) o define como “[...] el proceso de uma generación
dialéctica efectiva en una sociedad, proceso que se inicia en las
bases y culmina en las superestructuras [...]”, entendendo que “La
esencia de este problema se reduce, en el plano que nos interesa, al
cómo de la existencia real (las bases) determinan el signo, al cómo
el signo refleja y refracta la existencia en su proceso generativo”
(VOLÓSHINOV, 2009 [1929], p. 40). O processo de evolução
social como um todo procede da infra-estrutura e toma forma nas
superestruturas. No caso do signo ideológico, o autor entende que
acontece da mesma forma: tomar o signo em seu nível técnico de
produção ou isolando o seu componente superficial (ou seja, a sua
base), é ficar à margem da substância do fenômeno ideológico,
já que, segundo ele, tal fenômeno não se engendra com “[...] los
correspondientes trastornos económicos [...]” e com o “[...] valor

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 168
cognoscitivo [...] en la totalidad de la vida social” (VOLÓSHINOV,
2009 [1929], p. 40).
Assim, para o autor, a dialética se estabelece na relação
recíproca entre a infra-estrutura e as superestruturas, entre as coisas,
os objetos e suas transformações, relações entre os indivíduos, relações
de colaboração; entre os corpos físicos e os encontros fortuitos da
vida cotidiana, as relações de caráter político, as fases transitórias
mais íntimas, as efêmeras mudanças sociais. Nesse sentido, o signo
além do seu caráter meramente físico, adquire ubiquidade social, é
assinalado pelo horizonte axiológico dos grupos sociais no momento
do uso, grupos esses que vivem em diferentes épocas, culturalmente
singularizadas e os quais possuem diferentes índices sociais de valor.
Assim, entende-se o signo ideológico como reflexão da vida social,
refratado pelas interpretações e representações humanas.
Assim, os signos são os instrumentos de representação dos
sistemas simbólicos e ideológicos dos humanos; as representações
humanas de quaisquer esferas se concretizam nos signos ideológicos
criados por grupos sociais e profissionais e são esses signos que
também atuam como instrumentos de mediação simbólica nas
interações humanas, de modo a instituir relações intersubjetivas
com vistas ao desenvolvimento dos sujeitos.

Considerações finais

As convergências aqui propostas buscam novas formas de


olhar a linguagem nos processos de aprendizagem e desenvolvimento,
com enfoque na interação dos sujeitos aprendentes com o(s) outro(s),
em encontros nos quais a subjetividade se constitui na relação com
a alteridade.
Para isso, é fundamental analisar que concepções de sujeito,
de língua/linguagem e de identidade estão norteando as práticas
educativas, as ações didático-pedagógicas, assim como as relações
intersubjetivas que ocorrem nas escolas, nas universidades. Trata-se

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 169
de considerar que os sujeitos não aprendem sozinhos, nem tampouco
‘ouvindo’ o outro em um processo passivo de assimilação; o sujeito
constitui-se – aprende e se desenvolve e, por conseguinte, constrói
sua identidade (concebida na dimensão dos sujeitos singulares e
não sob as grandes categorias macrossociológicas) – nas relações
intersubjetivas que estabelece nas diversas situações que vivencia,
refratando os dizeres do outro, indo a seu encontro. A linguagem,
assim, atua como instrumento psicológico de mediação simbólica
que possibilita a apropriação de saberes, de conhecimentos. Para
isso, é preciso que os sujeitos que atuam na Educação considerem
aprendizagem e desenvolvimento como processos que se dão por
meio da linguagem, como o ‘encontro da palavra outra com a
outra palavra’ (PONZIO, 2010), em contextos situados nos quais
a singularidade do eu e do outro seja objeto de atenção e ausculta.

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Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 171
Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 151-172, jan./jun. 2014 172
O CÉREBRO DA APRENDIZAGEM SOCIAL:
UMA VISÃO SITUADA DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL

Wagner Ferreira Lima1

Resumo: Este ensaio apresenta uma visão situada e neurológica da aprendizagem


humana, baseada na tríplice relação ambiente-forma-função. De um lado, esse modelo
defende que o modo como aprendemos é essencialmente por imitação social; de outro,
a fim de conferir um fundamento neurológico a essa visão, ele questiona os limites dos
três modelos existentes do cérebro (o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo);
e defende uma representação neurológica alternativa, apoiada na plasticidade dos
neurônios. Segundo essa representação, o cérebro é biologicamente programado para
o aprendizado social. O “ambiente” fornece a estimulação social que altera a “forma”
dos circuitos, os processos fisiológicos em nível celular, para que a “função” de imitação
social aconteça.
Palavras-chave: aprendizagem social; imitação social; neuroplasticidade; relação
ambiente-forma-função.

Abstract: This paper show a grounded and neurological view of human learning
which is based on the triple relation “environment-form-function”. On one hand,
this model defends that the way we learn is trough social imitation; on other hand, to
place this view in neurological basis, it question the bounds of the three extant models
of brain (the localizationism, the holism and the equipotentialism); and it defends a
alternative neurological representation based on the neurons plasticity. In according this
representation the brain is biologically programmed to social learning. The “environment”
provides the social stimulation which changes the circuits “form”, the physiological process
in cell level, to the social imitation “function” to occur.
Key-words: social learning; social imitation; neuroplasticity; relation environment-
form-function.

1
Professor Associado do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade
Estadual de Londrina (UEL). <wagner.wagnerlima.lima@gmail.com>

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 173
Introdução

A relevância da neurociência é hoje incontestável.


Frequentemente abrimos um jornal ou revista e lá está ela, abordando
um assunto do nosso cotidiano. Parece existir uma explicação
neurológica para todo tipo de comportamento. Esse aparente ar de
absolutismo epistemológico esconde, contudo, uma propriedade de
todo conhecimento: seus limites. Apesar de lidar com um órgão físico
– o cérebro –, a neurociência opera como base numa representação
dele (TEIXEIRA, 2005, p. 20).
Em termos epistemológicos, isso levanta a questão de saber
se essa representação é adequada e suficiente para explicar os fatos.
Como, no fundo, todo conhecimento se justifica por sua utilidade
num contexto específico de interesses, uma teoria neurológica deve
conter um recorte do cérebro apropriado ao fim a que se destina.
Para nós, esse fim é a aprendizagem social. Nosso cérebro evoluiu
gerindo o convívio social de nossos ancestrais, nisso consistindo sua
natureza (WINSTON, 2006, p. 113-115). Por isso, sua estrutura
precisa ser descrita à luz dessa hipótese.
É o que pretendemos fazer nesta comunicação. Propomos,
assim, uma teoria neurológica apoiada na tríplice relação “ambiente-
forma-função”, em que o sistema nervoso é visto como um órgão
dinâmico e plástico e que opera segundo os limites de suas condições
biológicas. Ou seja, propomos uma teoria do nosso cérebro que se
orienta pelas questões de aprendizagem e que, por isso mesmo, deve
refletir o dinamismo desse processo.
Em primeiro lugar, faremos uma breve descrição do conceito
de aprendizagem segundo três enfoques distintos, o condicionamento
clássico, o condicionamento operante e a teoria da aprendizagem
social, e salientaremos a importância desta última abordagem. Em
seguida, apresentaremos as diferentes visões neurológicas existentes,
o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo, e como elas
têm tratado do problema mente-corpo. Por fim, esboçaremos as

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bases gerais de uma teoria neurológica que lida com esse problema
a partir de uma representação social e dinâmica do sistema nervoso.

A importância da aprendizagem social para o ser humano

A aprendizagem é um mecanismo necessário de adaptação.


Gazzaniga e Heatherton (2005, p. 183) afirmam que a aprendizagem
é “uma mudança relativamente duradoura de comportamento
resultante da experiência”. Ao interagirem com o meio, os indivíduos
conquistam habilidades que lhes permitem lidar com os problemas
de sobrevivência, tais como obter alimentos, seduzir parceiros,
proteger-se de perigos, estabelecer laços sociais etc.
Atualmente, há muitas teorias sobre o modo pelo qual as
pessoas, e também os animais em geral, aprendem. Contudo,
o modelo funcional, representado pelo behaviorismo, gozou
por muito tempo do privilégio de ser o principal paradigma de
aprendizagem. Sua primazia provinha da eficiência e da generalidade
de seu método. Baseado na idéia de que aprendizagem era obtida
por condicionamento (seja clássico ou operante), o behaviorismo
explicou com sucesso os mecanismos por trás das mudanças de
comportamento, a partir da presença de recompensas ou de punições.
Evidenciou-se com esses estudos que era possível ensinar
sujeitos de diferentes espécies usando os mesmos protocolos
de condicionamento e, por consequência, que os indivíduos
aprendiam basicamente da mesma maneira. Não é, portanto, de nos
surpreender o fato de o behaviorismo usar modelos animais para
explicar comportamentos humanos, inclusive a aprendizagem. Essa
postura representa, na verdade, uma defesa do “equipotencialismo”
comportamental, isto é, a ideia de que a diversidade biológica não
interfere substancialmente na aprendizagem e, no geral, os animais
gozam das mesmas condições para aprender.
A princípio, o modelo do condicionamento aplicou-se com
relativo êxito a diferentes espécies. Aparentemente, os sujeitos

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submetidos a esse método mudavam seu jeito de agir conforme
os propósitos do instrutor. Os resultados sugeriam que não havia
uma diferença essencial entre como nós aprendemos e como outras
espécies o fazem e que os outros fatores presentes no contexto de
condicionamento, como os biológicos e culturais, eram irrelevantes
para a aprendizagem.
Contudo, tão logo se avançaram as pesquisas, verificou-se
que o funcionalismo apresenta limitações e que existem outras
formas de aprendizagem. Ao notar em seus experimentos que é
mais fácil condicionar macacos a temer cobras do que coelhos e
flores, o psicólogo M. Seligman (1970) sustenta que os animais
são geneticamente programados a temer objetos específicos (apud
GAZZANIGA; HEATHERTON, 2005, p. 189). A isso ele chamou
de “prontidão biológica”, enfatizando o papel das disposições
biológicas no aprendizado.
A prontidão biológica ajuda a explicar também por que certas
espécies resistem a colaborar na aprendizagem por condicionamento.
Por exemplo, na década de 60, um casal de psicólogos treinou um
guaxinim para colocar moedas em um cofrinho. Entretanto, embora
inicialmente tenha aprendido a tarefa, ele eventualmente se recusou
a depositar as moedas. Em vez disso, realizou comportamentos que
não foram reforçados: ficou sobre o cofre e esfregou as moedas com
as patinhas, tal como a espécie faz instintivamente com a comida.
A explicação para isso é que a tarefa ensinada era incompatível com
ações adaptativas inatas (apud GAZZANIGA; HEATHERTON,
2005, p. 196).
Especialmente entre os humanos, cuja forma de vida é mais
complexa, a aprendizagem ocorre, sobretudo, pela observação. O
homem possui uma extraordinária capacidade de reparar as ações
dos outros e imitá-las. Na década de 60, A. Brandura desenvolveu
uma série de experiência mostrando como crianças imitam o
comportamento de adultos. A mais conhecida é a do boneco inflável
chamado “Bobo”.

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A experiência consistia em exibir um vídeo de pessoas
interagindo com esse boneco a dois grupos de crianças em
idade pré-escolar. Apresentava-se a um grupo o filme da pessoa
brincando tranquilamente com ele; a outro, o do adulto atacando-o
furiosamente. Depois, quando foram brincar com Bobo, as crianças
que viram as imagens nas quais o boneco era atacado apresentaram
uma probabilidade duas vezes maior de agir agressivamente com ele
(apud GAZZANIGA; HEATHERTON, 2005, p. 199).
Há outras experiências com macacos que reforçam a tese do
aprendizado por observação e imitação de modelos. As pesquisas
em etologia têm evidenciado que a imitação é um comportamento
de muitas espécies, especialmente as que vivem em sociedade.
Observando as ações de seus iguais, os indivíduos aprendem a
explorar o ambiente sem se arriscar, ou, na pior das hipóteses,
arriscando-se menos. Repetir comportamentos observados poupa
esforços, facilita a aquisição de habilidades e permite transmitir
técnicas e conhecimentos de uma geração a outra; criando as
tradições.
A imitação representa, assim, uma vantagem fundamental
em relação ao condicionamento. Contudo, de forma semelhante ao
método funcional, o aprendizado por observação também apresenta
limitações relacionadas à biologia do aprendiz. Pesquisas conduzidas
por V. Horner (2010) mostram que nós humanos aprendemos
de um modo especial. Na verdade, a maioria das habilidades que
atribuíamos exclusivamente à humanidade se verifica também no
comportamento de outras espécies. No caso particular dos grandes
símios, considerados nossos parentes mais próximos, entre outras
coisas, porque compartilhamos com eles 95% de nosso DNA, a
diferença entre seu modo de agir e o nosso é de grau e não de tipo;
o que, apesar disso, nos torna a espécie dominante nesse planeta.
Para entender como homem e símios aprendem, Horner
realizou o seguinte teste: ela demonstrou para crianças e chimpanzés
adultos como tirar doce de dentro de uma caixa, seguindo uma série

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de passos. A pesquisadora usou duas caixas em situações distintas.
Na primeira vez, a caixa era pintada de preto e tinha uma porta e um
ferrolho atravessado na parte de cima. A guloseima ficava escondida
num tubo atrás da porta. Assim, ela mostrava que, para se obter o
prêmio, os sujeitos tinham de repetir a sequência de ações até chegar
à fase final, quando, então, abriam a porta da caixa e extraíam o doce.
Na segunda situação, ela repetia o mesmo teste, porém, desta
vez, empregando uma caixa transparente, mas estruturalmente
idêntica à primeira. Nessa situação, ficava patente que a sequência
de ações era desnecessária para se conseguir o prêmio. Quando se
aplicou o teste da caixa preta aos chimpanzés, dois terços imitaram
fielmente a cientista. Já entre as crianças, todas repetiram a sequência
de ações demonstrada.
Já no teste da caixa transparente, a diferença foi ainda
maior. Ao notarem a inutilidade dos procedimentos ensinados, os
chimpanzés não controlaram o ímpeto e foram direto ao prêmio. Já
as crianças, apesar de perceberem a fraude, foram, no entanto, até
o fim e repetiram os movimentos ensinados. Esses resultados foram
confirmados por outros cientistas (2010), empregando o mesmo
teste ou versões dele.
Os experimentos de Horner sugerem que, conquanto esteja
presente em muitas espécies, a aprendizagem social é limitada
geneticamente. Os animais sociais aprendem mediante observação
de seus iguais, mas esse aprendizado está sujeito à prontidão
biológica de cada espécie, a qual determina a amplitude e o estilo da
aprendizagem. Pesquisas em antropologia evolutiva evidenciam essa
tese. Por exemplo, comportamentos de empatia e cooperação entre os
macacos antropóides, como chimpanzés e orangotangos, orientam-se
por interesses estritamente pessoais, e não por sentimentos altruístas,
como em nós.
Esse fato põe acento no modo diferencial pelo qual
aprendemos. A reprodução e sustentação da vida social dependem
especialmente da observação e repetição de comportamentos.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 178
Porém, é preciso resistir à tentação de conceber a aprendizagem
social como um processo sumário, que passa por cima das diferenças
biológicas e culturais dos sujeitos, e abrigar a visão dela como um
acontecimento situado, que, ao sofrer as influências do ambiente e,
inclusive, da biologia, assume características específicas. Conquanto
seja compartilhada por uma ampla gama de espécies, entre nós essa
forma de aprender é surpreendentemente poderosa.
A teoria da aprendizagem social atribui um importante papel
ao sistema nervoso central (SNC). De acordo com essa visão, o
cérebro é a sede do nosso aprendizado e o centro de comando de
nossas ações e sentimentos. Durante a aprendizagem, nosso cérebro
sofre alterações físicas, ocorridas no nível celular, as quais garantem
o processamento e armazenamento de informações ambientais
relevantes. Sem essa mudança, passaríamos pelas experiências sem
nada reter delas; o que seria um grande risco para a existência da
espécie.
Não obstante, o SNC não é um mero suporte de registro das
experiências. Pelo contrário, ele interage ativamente com o meio
e, mesmo, impõe suas condições ao aprendizado. Na realidade, o
modo pelo qual aprendemos depende não apenas das contingências
ambientais, como também da natureza do nosso cérebro. É ele que
determina a qualidade dos comportamentos adquiridos, como no
exemplo acima da imitação humana.
A teoria da aprendizagem social supõe, assim, uma visão
dinâmica e plástica do cérebro. O problema, então, é saber se
as representações existentes atendem a suas exigências ou se a
formulação de uma nova teoria neurológica se faz necessária para
tanto.

Um olhar crítico sobre as diversas formas de representação do


cérebro

Nas últimas décadas, a neurociência conquistou um


importante desenvolvimento científico; em grande parte, graças

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às novas técnicas de imageamento do cérebro in vivo, como a
PET e o fMRI (siglas em inglês para “Tomografia por Emissão
de Pósitrons” e “Imageamento por Ressonância Magnética
funcional”, respectivamente). Atualmente, já é um dos paradigmas
epistemológicos predominantes em nossa vida cotidiana, como bem
mostra a mídia em geral.
Por trás desse aparente absolutismo epistemológico, contudo,
está o “tendão de Aquiles” de toda ciência – seus limites. É fato
que toda ciência é fruto de uma série de escolhas metodológicas,
que refletem interesses específicos. No caso da neurociência não é
diferente. Como bem salientou Teixeira (2005, p. 20), ao contrário
do que muitos pensam, os neurocientistas operam com base numa
representação do SNC, uma espécie de mapa do cérebro. Por isso,
há tantas cartografias cerebrais distintas, já que os interesses por trás
desses construtos também são diferentes.
Na história dessa ciência, há pelo menos três formas de se
tratar o cérebro: o localizacionismo, o holismo e o equipotencialismo.
Cada qual encerra um modo específico de relacionar as funções
mentais com a estrutura do cérebro. Baseado nos estudos de
Brodmann, quem dividiu o cérebro em diversas áreas funcionais, o
localizacionismo defende a especialização do sistema nervoso. Ou
seja, o processamento das funções cognitivas acontece em regiões
específicas do córtex, e não de forma indiscriminada por todo o
encéfalo.
Essa última concepção, por sua vez, está na base do holismo,
teoria que sustenta a participação global e indistinta do cérebro
na execução de tarefas específicas. O suporte científico dessa
visão provém dos estudos feitos com ratos, nos quais os sujeitos
experimentais tinham seus cérebros lesados após a aprendizagem.
O aspecto estudado era normalmente a capacidade dos roedores de
explorar um labirinto e encontrar a sua saída. De modo geral, os
ratos não apresentavam mudanças significativas de comportamento
depois dos ferimentos sofridos (TEIXEIRA, 2005, p 22).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 180
Por fim, o equipotencialismo erige a partir de estudos
empregando um método muito parecido com o do holismo 2.
Extraem-se, aos poucos, partes do encéfalo de pequenos animais e
verificam-se as mudanças comportamentais daí resultantes. Alguns
dados obtidos apóiam a tese de que não há correlação biunívoca
entre comportamentos e regiões cerebrais específicos. As extirpações
encefálicas não acarretavam necessariamente a perda de funções
cognitivas determinadas. Assim, é razoável supor a ausência de
identidade entre mente e corpo; e mais, postular a equivalência
funcional entre os cérebros de diferentes espécies.
A questão da correlação mente-corpo, ou função-forma, se
colocou desde o início para a neurociência. Por ser intrinsecamente
materialista, essa área de conhecimento se deparou com o problema
de evidenciar como funções psíquicas se relacionam com o substrato
físico do SNC. Não obstante o antagonismo histórico das três
posturas teóricas ora apresentadas, atualmente o debate gira em
torno da oposição entre o equipotencialismo e o localizacionismo.
Pelas razões acima mencionadas, o equipotencialismo nega
a possibilidade de existir uma identidade forte entre funções
cognitivas e formas ou regiões cerebrais. Ele se mantém fiel à
tradição cartesiana que divide o homem em corpo e mente.
Essa visão coaduna, em parte, com o pensamento subjacente ao
funcionalismo, especialmente o pregado pelo behaviorismo radical
de Skinner e seguidores (embora estes últimos rejeitem a noção de
mente, pelo menos na forma como tradicionalmente ela vem sendo
compreendida) (BAUM, 2006, p. 49-70).
Como vimos, o behaviorismo emprega os mesmos princípios
comportamentais a toda e qualquer espécie. A aprendizagem
é fruto de um condicionamento clássico ou operante e é
controlada por estímulos, seja de reforço ou de punição. Dado

2
Segundo Teixeira (2005), holismo e equipotencialismo são frequentemente tomados
como sendo a mesma coisa; porém o equipotencialista defende que cada parte do cérebro é
funcionalmente equivalente a outra.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 181
que no condicionamento as diferenças biológicas são em princípio
desconsideradas, a aprendizagem se apresenta como um processo
aplicável sumariamente a diferentes espécies. Assim, do ponto
de vista comportamental, os animais são capazes de aprender,
independentemente da natureza de seus cérebros. Eles seriam
equipotentes.
Nesse sentido, o funcionalismo representa, no âmbito desse
debate, o não-reducionismo materialista. Há uma correlação entre
comportamento e sistema nervoso apenas na medida em que as
funções dependem de algum suporte físico para se instanciar, como,
por exemplo, num “jogo de xadrez”. As regras que o caracterizam
são de natureza distinta do material em que se expressam, ou seja,
da matéria do tabuleiro e das peças do jogo. Não obstante, elas
prescindem desse suporte para acontecer. Haveria, portanto, uma
identidade fraca entre função e forma, uma correlação “token-token”
(TEIXEIRA, 2005, p. 24-27).
O localizacionismo, ao contrário, defende uma identidade
mais estreita entre comportamento e matéria encefálica, uma
identidade “type-type”. Atualmente, a ideia de um cérebro
especializado é predominante e há uma série de experimentos que
confirmam essa tese (DAMÁSIO et. al, 1996; DAMÁSIO, 2005).
A especialização se verifica não apenas no nível macro, isto é, das
divisões corticais e subcorticais, como também no nível micro,
dos circuitos de neurotransmissores e das organizações citológicas.
Talvez as descobertas que mais tenham contribuído para a escolha
dessa cartografia cerebral sejam os estudos em neurolinguística,
particularmente os achados de Broca e Wernicke (FIORI, 2008,
p. 131-151).
Esses cientistas conseguiram localizar as regiões corticais
responsáveis pela produção e compreensão da fala, respectivamente.
Hoje, com os trabalhos de Damásio e sua equipe, já se sabe que as
áreas da linguagem são muito mais especializadas do supunham
Broca e Wernicke (DAMASIO et al., 1996). Além disso, graças ao

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avanço da genética, essa visão tem-se consolidado. A sequência de
genes responsável pela fala com sintaxe já foi localizada em nosso
DNA – o chamado FOXP2, expresso na área de Broca (POLLARD,
2009, p. 34-39).
Entretanto, ainda pairam as dúvidas quanto à relação termo
a termo envolvendo funções cognitivas e estruturas cerebrais. Em
geral, o mapeamento dos comportamentos ligados aos sentidos e à
motricidade é mais acurado do que o referente ao pensamento lógico-
racional. Por exemplo, o raciocínio abstrato e a tomada de decisões,
duas importantes manifestações da razão, ocorrem no córtex frontal
como um todo; embora os córtices pré-frontais parecem ser mais
decisivos no cumprimento dessa função (DAMÁSIO, 2005).
Vale salientar também o problema do mapeamento no
tocante à aprendizagem social, que é um dos modos mais eficientes
de adaptação. Já vimos que os organismos aprendem observando
e repetindo expressões e atitudes de seus iguais. Vimos também
que nós somos muito bons nisso, pois ganhamos de nossos primos
símios na capacidade de imitar desinteressadamente. Pois bem, até
o presente das pesquisas neurocientíficas, ainda não se localizaram
as áreas especializadas da imitação, embora as regiões corticais
envolvidas na tarefa imitada sejam ativadas e, portanto, delimitadas
(GASCHLER, 2009, p. 46-51).
Em síntese, as representações existentes do cérebro não
resolvem o problema da identidade estreita entre função e forma.
Como é de se esperar, há limitações em todas as concepções
apresentadas. O localizacionismo se aplica muito bem a alguns
comportamentos mais básicos, como os sentidos, as emoções
primais, a motricidade e a linguagem. Contudo, ele se mostra
inadequado para explicar as funções ditas superiores, como a razão;
cujo processamento é geral e distribuído.
Já o equipotencialismo abstrai as particularidades do contexto
de realização das ações, inclusive os fatores biológicos envolvidos.
Algumas tarefas muito gerais, como as espaciais, são bem explicadas

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por essa concepção; porém funções mais específicas e precisas
escapam ao seu controle (TEIXEIRA, 2005, p 22-23). A nosso
ver, uma identidade perfeita entre forma e função é uma utopia.
Qualquer procedimento científico orienta-se por um método e por
um contexto de interesses, de modo a impossibilitar a existência de
uma teoria absoluta, definida de uma vez por todas.
Nesse sentido, assumindo a falibilidade de todo conhecimento,
propomos uma teoria neurológica que vise a dar respostas a
questões de aprendizagem social. Ela se apóia na tríplice relação
“ambiente-forma-função”, na qual o sistema nervoso central se
constitui epistemologicamente como um órgão dinâmico, plástico
e remodelável; no entanto, dentro de seus limites biológicos. Nossa
formulação defende uma visão do SNC cujo critério de construção
é essencialmente nossa capacidade de aprender de modo social.

O cérebro social: uma visão dinâmica e situada do SNC

Uma teoria como tal requer, de antemão, uma série de


escolhas, conforme seja o propósito considerado. Buscamos uma
representação do sistema nervoso no contexto de aprendizagem
social humana. De modo abstrato, define-se aprendizagem social
como uma mudança duradoura de comportamentos, baseada na
observação e imitação dos outros; mas, em termos situados, esse
processo engloba a interação de três componentes: o ambiente, os
mecanismos de aprendizagem e uma estrutura cerebral.
Acrescente-se a isso as diferenças biológicas entre os animais
sociais, as quais influenciam a qualidade da aprendizagem. Apesar de
supor a presença desses três componentes, é fato que a aprendizagem
social sofre limitações biológicas inerentes a cada espécie. A
conhecida hipótese do cérebro social sugere que na natureza os
seres mais inteligentes são os que vivem em sociedade. Ela se apóia
na crença de que o aumento da complexidade social determinou
o desenvolvimento encefálico das espécies (WINSTON, 2006, p.
113-115).

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Sendo assim, precisamos selecionar os traços particularmente
humanos da sociabilidade e, então, convertê-los em critérios
epistemológicos de uma teoria neurológica. Tais critérios devem
tanto esclarecer a interação entre ambiente, forma e função, quanto
justificar a importância científica dessa teoria.
A respeito do comportamento social, há de fato uma
correlação entre inteligência, vida social e cérebros grandes.
Os indivíduos mais inteligentes são sociais e carregam grandes
encéfalos, proporcionalmente ao tamanho de seus corpos. Em geral,
apresentam muitas das capacidades superiores verificadas no homem
moderno, como a imitação, a empatia, a cooperação, a trapaça etc.
No entanto, nossa capacidade de cumprir essas funções é muito
maior, o que se reflete na qualidade de nossos desempenhos e de
seus resultados.
Nesse sentido, conquanto nos comportemos como
muitas espécies, nossa capacidade de aprender com o outro é
indiscutivelmente superior. A imitação desinteressada, identificada
nos estudos de V. Horner (cf. supra), expressa uma prontidão
biológica do Homo sapiens. Outro aspecto marcante da vida social
humana é a nossa busca compulsiva pela atenção, admiração e
reconhecimento dos outros significativos.
Isso parece tão urgente e fundamental que muitos põem a vida
em risco pelo sucesso social, o qual se resume ao reconhecimento
de seus pares. Basta citarmos a busca pela superação dos limites
pessoais, que é o mote de muitas competições humanas. Na maioria
das vezes, o principal prêmio é tornar-se alvo da admiração pública.
Tal fato sugere que não só gostamos de ser desejados como também
desejamos aqueles que o são. Ser visto, desejado e admirado é próprio
do homem. Isso deve contar na aprendizagem social e, por extensão,
no modo como o cérebro funciona.
Reconhecimento social e imitação desinteressada constituem
os vetores da aprendizagem social humana. Nesse sentido, é de se
esperar que cumpram um papel fundamental na explicação da

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maneira pela qual nosso cérebro opera e se organiza. Uma vez que
isso se dá na relação entre ambiente, forma e função, tais critérios
determinam aos três aspectos dessa tríade. Senão vejamos.
Como um músculo, que precisa de exercício e estímulo
para se desenvolver, nosso cérebro depende do entorno para criar,
conectar e reorganizar seus circuitos neurais. Foi assim durante
toda a sua evolução e, atualmente, permanece como sempre foi.
Conforme vimos defendendo, o “outro”, ou mais especificamente,
o comportamento de nossos iguais, é o mais nobre estímulo. Num
ambiente social, as ações, gestos e atitudes de nossos vizinhos
competem por nossa atenção.
Há nisso um princípio geral de regulação das trocas humanas:
assim como buscamos o reconhecimento social, disputando a
atenção dos outros, estes fazem o mesmo conosco. Somos atraídos
por seus comportamentos porque desejamos ser reconhecidos por
eles; e vice-versa. Em princípio, a opção por uma atitude depende
do seu valor social. Bons comportamentos são, em geral, aqueles
que atraem o público e se espalham mais.
Em termos neurológicos, esse fato condiciona socialmente
os circuitos neurais, os quais biologicamente parecem estar
programados para isso. O resultado é um cérebro sensível ao outro,
sendo capaz de imitar seus gestos e de compreender suas razões.
Coloca-se, então, o problema de saber que funções psíquicas
estariam envolvidas nesse processo. As últimas descobertas da
neurociência apontam para a função de “imitar”, a qual pode
ser desdobrada em duas mais específicas: o “espelhamento” e a
“repetição”. Não se trata de processos específicos, localizados, como
a linguagem, as emoções, a motricidade etc.; mas de uma espécie de
“metafunção”, atuando indiscriminadamente sobre as habilidades
mais especializadas.
O espelhamento foi descoberto pela equipe do Dr. Rizzolatti,
da Universidade de Parma, nos anos 90, quando monitorava a
atividade neural de um macaco reso enquanto ele pegava algumas

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guloseimas. Na verdade, foi um achado científico: num dado
momento, no intervalo do experimento, a região cerebral do símio
ligada ao movimento de prensão disparou, estimulada pela ação
do pesquisador de pegar uma uva-passa. O cérebro espelhava o
movimento do outro (GASCHLER, 2009, p. 46-47).
As células envolvidas nessa função foram batizadas de
“neurônios-espelho”; de lá para cá, novas funções foram atribuídas a
elas, como a imitação de sentimentos e de intenções. O espelhamento
está por trás, portanto, da empatia e da teoria da mente, dois
mecanismos cruciais para a comunicação, a intercompreensão e o
desenvolvimento da vida sociocultural. Simulando internamente
ações, intenções e sentimentos alheios, compreendemos de forma
mais objetiva o que se passa com nossos semelhantes.
Além de espelharmos internamente nossos pares, também
repetimos seus gestos. A repetição de atitudes observadas representa
um importante dispositivo de aprendizagem social. Como vimos
acima, temos uma vocação natural para imitar os outros, já que
imitamos por imitar. Nesse processo, os neurônios-espelho cumprem
o papel central de auxiliar a cópia e a reprodução das ações humanas.
Por isso mesmo, defendemos uma interpenetração entre
espelhamento e repetição – o primeiro auxiliando o segundo, e este
incrementando aquele. Esses dados reforçam a suposição de que o
cérebro é biologicamente social, num grau inexistente nas demais
espécies sociais. De um lado, assegura o aprendizado social; de
outro, se desenvolve e se organiza por influência da sociedade. Este
é o último aspecto da teoria a ser esclarecido.
A dificuldade aqui é acertar a cartografia cerebral mais
condizente com nossa teoria. Acima, conhecemos e avaliamos as três
concepções neurológicas existentes – o localizacionismo, o holismo e
o equipotencialismo (TEIXEIRA, 2005, p. 21-23). Paradoxalmente,
a idéia do cérebro social se relaciona com todas essas tendências,
mas não se enquadra em nenhuma particularmente. Ainda que ela
se instancie nos chamados neurônios-espelho, a imitação não possui

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qualquer localidade física, como uma região ou célula específica. Na
verdade, como dissemos, esses neurônios são os mesmos envolvidos
na especialidade de uma dada função cognitiva (p. ex., a atividade
motora).
Em regra, as células refletoras servem primordialmente
a funções mais específicas e só na presença de estímulos sociais
expressa, ademais, a função complementar de simular o outro. Por
outro lado, os circuitos neurais como um todo reagem à imitação, o
que sugere um princípio holístico. Todavia, a imitação diz respeito
a habilidades específicas, como linguagem, emoção, intenções,
motricidade etc. (GASCHLER, 2009, p. 46-51). Ela pertence, ao
mesmo tempo, a cada função e a nenhuma em especial. Resta-nos,
finalmente, o equipotencialismo.
Não obstante a exiguidade de pesquisas acerca dos neurônios-
espelho, alguns estudos mostram que a imitação também ocorre
no cérebro de outros animais, como no exemplo mencionado de
Rizzolatti. Isso apoiaria perfeitamente a atitude equipotencialista,
não fosse o fato inegável da superioridade da imitação humana.
Como temos sugerido, há algo de especial nesta que só o cérebro
humano é capaz de expressar.
O problema de encontrar um correlato neurológico para a
imitação se resolve contanto que se assuma que o espelhamento e a
repetição são comportamentos compartilhados por muitos grupos de
neurônios e que, por isso mesmo, orientam e reforçam as conexões
sinápticas dessas células. Graças a essas funções, as quais são causadas
e guiadas pela alteridade, o cérebro interage com o meio e adquire
uma organização social. Assim, nesta nossa proposta, as cartografias
existentes não dão conta de exprimir essa dimensão social do sistema
nervoso humano.
Por isso, apostamos numa representação processual do
SNC em nível celular. Ou seja, numa “cartografia” que evidencie o
dinamismo das redes neurais durante a aprendizagem social. Dessa
forma, conseguimos focalizar os mecanismos neurais envolvidos na

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aprendizagem e correlacionar esses mecanismos com a função de
imitar e com o ambiente social. Conseguimos também obter uma
identidade forte entre ambiente, forma e função.
“Neuroplastia” é o termo chave que resume os aspectos
dessa representação cerebral e, em jargão técnico, é outro nome
para dinamismo. A plasticidade cerebral diz respeito à mudança
adaptativa na estrutura e função do sistema nervoso, seja como
atividade de interações com o meio interno e externo, seja como
resultado de lesões que afetam os neurônios (MUSZKAT, p. 42).
A neuroplastia ocorre, portanto, em virtude de uma resposta
adaptativa impulsionada por desafios do ambiente ou lesões, sendo
um modo de ser do cérebro. (A representação desse fenômeno
poderia se chamar “neuroplasticismo”, por analogia às concepções
acima mencionadas, e estaria mais de acordo com a aprendizagem
social do que qualquer outra representação do sistema nervoso.)
Como a plasticidade opera em vários níveis (neuroquímico,
neural e comportamental), podemos refinar essa representação.
Assim, em nossa proposta teórica, tomamos por “forma” todos
os processos fisiológicos do cérebro envolvidos na aprendizagem;
e por “função”, o nível comportamental da plasticidade – mais
exatamente, a imitação. Os processos fisiológicos englobam:
crescimento e formação de novas conexões sinápticas, crescimento
de espículas dentríticas, mudança de conformação de macroproteínas
das membranas pós-sinápticas e aumento de neurotransmissores,
neuromoduladores e das áreas sinápticas funcionais (MUSZKAT,
p. 42).
Visto dessa perspectiva, o cérebro não é um mero substrato
físico das funções cognitivas; nem um órgão que recebe passivamente
as ações do meio, excitando-se ao sabor dos eventos. Pelo contrário,
ele é dinâmico e pró-ativo. Dado que o SNC se desenvolve, a
plasticidade expressa o potencial de mutabilidade de acordo com
esse desenvolvimento. O crescimento e a superprodução de sinapses
(sinaptogênese), assim como a eliminação de sinapses e neurônios

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 189
(apoptose), ocorrem de forma distinta nas várias áreas cerebrais,
nas diferentes fases de seu amadurecimento (MUSZKAT, p. 44).
O SNC torna-se mais sensível a determinados estímulos,
abrindo uma “janela de oportunidades”, uma fase ideal para o
aprendizado e desenvolvimento de habilidades específicas. Portanto,
dizemos que, em períodos distintos de seu amadurecimento, o
cérebro está mais sensível à aquisição de certas habilidades e não de
outras. Essa condição é crucial para o aprendizado.
Em síntese, a teoria neurológica proposta concebe o
funcionamento cerebral como um processo de aprendizagem
envolvendo “ambiente-forma-função”. São aspectos interdependentes,
pois nenhum funciona independentemente. O ambiente fornece os
estímulos sociais que disputam nossa atenção, afetando as estruturas
neurais. As mudanças neuroquímicas e neuronais geram, então,
os processos cognitivos de imitação, que, mediante retroação,
reforçam a fisiologia das células. Os comportamentos bem-sucedidos
selecionam as transformações químicas e sinápticas relacionadas,
produzindo a aprendizagem social.

Considerações finais

A visão neurológica que ora formulamos não passa de uma


representação epistemológica do SNC. Como dissemos, uma teoria
completa e cabal do funcionamento desse órgão é impossível, já
que toda teoria representa necessariamente um recorte do objeto
estudado, recorte esse determinado pelas forças e interesses presentes
no contexto de criação da teoria. Nosso caso não foi diferente.
O que fizemos neste artigo foi esboçar uma visão do SNC que,
diversamente das perspectivas neurológicas existentes, revelasse seu
papel no contexto de aprendizagem social. Optamos por esse recorte,
porque, se de fato somos seres essencialmente sociais e se nossa
aptidão para viver em sociedade é fruto de uma história evolutiva,
então nosso cérebro está configurado para propiciar e sustentar a

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 173-192, jan./jun. 2014 190
expressão de habilidades que promovam a vida sociocultural. Em
suma, está programado para aprender socialmente.
Assim, diferentemente da atitude funcionalista, que sustenta
um modelo sumário de aprendizado, defendemos uma concepção
situada do processo de mudança duradoura de comportamentos.
Como evidenciamos aqui, a aprendizagem se dá num circuito
de interação envolvendo três componentes: o ambiente social, as
funções de imitação e os processos neuroplásticos do SNC. Nesse
circuito o aprendiz identifica e resolve problemas, conquistando
novas habilidades para viver em sociedade.
É nesse contexto dinâmico e situado que nossa teoria
neurobiológica encontra seus fundamentos e se justifica
epistemologicamente. Ao compreendermos o funcionamento
cerebral com base no contexto de aprendizagem, inauguramos um
novo modo de se conceberem o SNC e a identidade estreita mente-
corpo, a qual passa a supor o ambiente.
À medida que enfatiza a correlação íntima entre as funções
de imitação e os processos citológicos do nosso cérebro, esse recorte
revela um desenho do SNC mais apropriado às questões de cunho
prático, como as relativas à maneira pela qual a inteligência se
desenvolve socialmente. Nesse sentido, não faz mais sentido sustentar
a divisão mente e matéria, bem como uma concepção meramente
funcional da aprendizagem humana.

Referências

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O ADVÉRBIO COMO ELEMENTO
ARGUMENTATIVO

Esther Gomes de Oliveira 1


Lolyane Cristina Guerreiro de Oliveira 2
Bárbara Luise Hiltel Venturini 3

Resumo: Neste artigo, estudaremos como se apresenta a classe do advérbio em dois


gêneros midiáticos: publicidade e “frases”. O discurso publicitário caracteriza-se pelo
seu elevado grau de persuasão, com o intuito de convencer seu leitor/consumidor. O
gênero “frases” recentemente tornou-se objeto de pesquisa, demonstrando, também, a
necessidade de convencimento por parte de seus enunciadores. Objetivamos explicitar
como o advérbio, nas suas variadas subclasses, influencia a trama argumentativa que
envolve enunciador e enunciatário, originando diversificados efeitos de sentido.
Palavras-chave: Argumentação; modalização; gêneros midiáticos.

Abstract: In this article, we will present the class of the adverb in two media genres:
advertising and “phrases”. The advertising discourse is characterized by its high degree
of persuasion in order to convince the reader/consumer. The genre “phrases” recently
became subject of research, also demonstrating the need to convince by their enunciators.
We aim to clarify how the adverb in its various subclasses, influence the argumentative
plot which involves enunciator and enunciatee, causing diverse effects of meaning.
Key-words: Argumentation; modalization; media genres.

Introdução

A linguagem, considerada uma prática social, não deve


ser analisada por si mesma, é necessário mobilizar os fatores
que interferem em seu uso, ou seja, o contexto social e cultural
intimamente ligado à realidade da vida cotidiana, uma realidade que
busca a participação e a interação dos interlocutores, objetivando
construir um texto semanticamente satisfatório.
1
Professora da Universidade Estadual de Londrina.
2
Professora da Universidade Estadual de Londrina e do Colégio Maxi.
3
Discente do curso de Letras/Português, na Universidade Estadual de Londrina, bolsista
PIBIC/CNPq.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 193
Todo texto contém uma carga de sentido que expressa a
intencionalidade de seu produtor, cabendo ao interlocutor captar,
em determinada extensão, essa intencionalidade. É nesse aspecto que
se instala a argumentatividade que só se desvela progressivamente
(ampliando/aprofundando nossas percepções), por intermédio das
pistas que os elementos linguísticos podem oferecer.
Quanto ao gênero publicitário, Breton (2003, p. 51) afirma
que “A propaganda, nas formas extremamente sofisticadas que lhe
foram dadas no século XX, continua a ser o modelo de referência da
manipulação da relação orador/auditório para fazê-lo aceitar certas
opiniões, a qualquer custo.”
Portanto, o texto publicitário bem elaborado, tanto na parte
verbal quanto na não verbal, é justamente o fator diferencial no
competidíssimo jogo de mercado, em que as marcas disputam,
acirradamente, o público consumidor.
Quanto ao gênero “frases”, em 2001, a pesquisadora Cleide
Emília Faye Pedrosa, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, iniciou a sua sistematização e, em 20104, publicou, na obra
Gêneros textuais e ensino, o capítulo “‘Frases’: caracterização do gênero
e aplicação pedagógica”.
Ao selecionarmos esse gênero como corpus de nossa pesquisa,
consideramos que ele propicia um estudo relevante, pois a linguagem
dos discursos midiáticos é caracterizada pela criatividade, pela busca
incessante de procedimentos semântico-pragmáticos que possam
interferir na interação enunciador/enunciatário, ou seja, texto/leitor.
O principal recurso argumentativo que embasa os textos
deste trabalho é a classe do advérbio, pois ele referenda a posição
ideológico-argumentativa do enunciador, explicitando movimentos
discursivos que revelam o arcabouço persuasivo do enunciador no
momento da enunciação.

4
A primeira publicação dessa obra foi em 2002, pela Editora Lucerna. Neste artigo,
utilizaremos a 2ª reimpressão da obra, ou seja, Pedrosa (2010).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 194
Os gêneros publicitário e “frases”

A noção de gênero origina-se da retórica antiga, mais


precisamente de Aristóteles, que, no século IV a.C., distinguiu
e sistematizou três grandes gêneros de discurso (que ainda hoje
têm aplicação em várias atividades): a) judiciário ou forense; b)
deliberativo ou político; c) epidítico, panegírico ou cerimonial5.
Após ser estudado, em diversos enfoques, pela análise literária,
a questão do gênero foi retomada pelo pesquisador russo Mikhail
Bakhtin, ao afirmar que

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais ou


escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. [...] Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2011, p.
261-262, grifos do autor).

Conforme Barreto (2004), a propaganda teve seu início com


a Revolução Industrial, juntamente com a explosão demográfica que
ela própria originou; no entanto, foi em meados do século XIX que
a propaganda começou a expandir-se.
Devido a essa expansão, o gênero publicitário mobiliza
profissionais altamente capacitados, pois, segundo Carvalho e Pessoa
(1996, p. 61-62),

Já é uma verdade tida como insofismável, a construção bem


elaborada do texto publicitário (o bom texto, naturalmente!)
visando à rápida apreensão e fixação da mensagem. [...] Além
disso, é importante salientar que toda essa estruturação servirá à
argumentação e revelará elementos culturais e ideológicos.
5
Para uma leitura mais aprofundada, recomendamos OLIVEIRA, Esther Gomes de. A
argumentação na Antiguidade. Signum – Estudos da Linguagem, Londrina, v. 5, p. 213-
225, dez. 2002.

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Dessa forma, o texto da propaganda, com o objetivo de
chamar a atenção de seu interlocutor/consumidor, é elaborado com
os mais sofisticados recursos argumentativos, já que a criatividade
será o fator que vai fazer a diferença no competitivo patamar das
marcas, pois, como cita Martins (2002, p. 141), “a criação nada
mais é que originalidade, aquele ângulo de abordagem impensado,
aquele ponto de vista inédito que sempre esteve diante dos olhos de
todo mundo mas ninguém viu.” (é sem vírgula mesmo?)
E, ainda, de acordo com Vestergaard e Schrøder (2000, p. 47),
“não basta que o cliente em potencial chegue a sentir necessidade do
produto: o anúncio deve convencê-lo de que aquela marca anunciada
tem certas qualidades que a tornam superior às similares.”
O gênero frase está registrado no Dicionário de gêneros textuais
(COSTA, 2014) com base em Pedrosa (2010). [ler post-it] Para
a autora, algumas revistas oportunizam uma seção própria para
este gênero, estabelecendo “uma forma padrão para o processo de
textualização (registro das ‘falas’ dos locutores) e contextualização
(registro do contexto recuperado pelo editor).” (PEDROSA, 2010,
p. 168).
Ainda segundo a autora, a frase, quanto à sua temporalidade,
pode pertencer a duas classes: situada ou eterna. A primeira é
construída levando em conta aspectos situacionais do país ou
região do locutor, ou seja, fatos políticos, sociais, educacionais,
esportivos, entre outros. A segunda independe do momento atual,
ela foi proferida por alguma personalidade famosa, representante de
algum campo do saber, como por exemplo, a ciência, a literatura,
entre outros.
Os locutores das frases normalmente são adultos (brasileiros
ou estrangeiros); no entanto, “às vezes, encontramos outros tipos de
locutores: crianças e adolescentes, pessoas do povo; e instituições.”
(PEDROSA, 2010, P. 174).
Para este artigo, selecionamos frases da revista Veja e das
seguintes obras: As melhores frases em Veja: 1995 a 2012 (BARROS,

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J., 2012); Ironia: frases soltas que deveriam ser presas (LARA,
2005) e Do bestial ao genial: frases da política (BUCHSBAUM;
BUCHSBAUM, 2006).

A classe do advérbio

No âmbito da Gramática Tradicional, em Rocha Lima


(1972, p. 153) encontramos a seguinte definição: “Advérbios são
palavras modificadoras do verbo. Servem para expressar as várias
circunstâncias que cercam a significação verbal.” Para o autor, os
advérbios de intensidade podem prender-se, também, a adjetivos
ou a outros advérbios.
Para Vilela e Koch (2001), o advérbio implica, prioritariamente,
uma relação com o verbo; considerado o “adjetivo do verbo” (p.
244), no entanto, o advérbio também pode modificar o adjetivo
ou outro advérbio.
Os autores, ainda, ressaltam:

Os advérbios de enunciação, ou advérbios extrafrásicos, [que] são,


semanticamente, exteriores à frase, não participam na referência
frásica e são fruto da intervenção do enunciador, que comenta,
julga, critica, aprecia, o conteúdo proposicional por si produzido.
(VILELA; KOCH, 2001, p. 251).

Em publicação mais recente, na obra intitulada Palavras


de classe aberta, organizada por Rodolfo Ilari (2014), fruto das
pesquisas realizadas por linguistas do Projeto NURC (Norma Urbana
Linguística Culta do Português Brasileiro) e do projeto da Gramática
do Português Falado, dirigido por Ataliba Teixeira de Castilho, no
período de 1980 a 2000, Castilho et al. elaboraram um capítulo
referente ao advérbio. A referida obra apresenta quatro capítulos
referentes a essas “classes abertas”, que podem assimilar novos termos,
ou seja: substantivo, verbo, adjetivo e advérbio.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 197
Ao final do capítulo, os autores fazem a seguinte advertência:

[...] não se pode esperar que um mesmo item lexical tenha em


todos os seus usos a mesma função; em outras palavras, o ‘mesmo
advérbio’ pode desempenhar várias funções diferentes, ou seja, pode
reaparecer em mais subclasses; além disso, uma única ocorrência
do Adv pode desencadear várias interpretações simultâneas.”
(CASTILHO et al., 2014, p. 267).

Para este artigo, utilizaremos a classificação do advérbio de


Neves (2000, p. 236), que os coloca em duas grandes subclasses: 1)
advérbios modificadores e 2) advérbios não modificadores.

1 – ADVÉRBIOS MODIFICADORES

1.1 de modo
1.2 de intensidade

1.3 modalizadores
1.3.1 epistêmicos ou asseverativos
· afirmativos
· negativos
· relativos

1.3.2 delimitadores ou circunscritores

1.3.3 deônticos

1.3.4 afetivos ou atitudinais


· subjetivos
· interpessoais

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 198
2 – ADVÉRBIOS MODIFICADORES

2.1 de afirmação
2.2 de negação
2.3 de inclusão
2.4 de exclusão
2.5 de verificação
2.6 de lugar
Circunstanciais
2.7 de tempo

Na sequência, para exemplificar alguns tipos de advérbios6,


analisaremos peças publicitárias e frases, extraídas de variados
suportes midiáticos. Nos textos selecionados, foram mobilizados
diversos recursos que, juntamente com os advérbios, constroem a
estrutura argumentativa do texto, com o objetivo de complementar
a mensagem desejada pelo enunciador. Dessa forma, teceremos,
também, comentários a respeito desses outros mecanismos
persuasivos.

ANÁLISE DO CORPUS

Advérbios modificadores

Modificadores de Modo

* Propaganda 1

Seus cabelos vão ficar escandalosamente lindos com OUTRAGEOUS


todos os dias.
Outrageous é a nova linha de shampoos da Revlon que deixa seus
cabelos escandalosamente macios. Escandalosamente fascinantes.

6 Devido à exiguidade de espaço, focalizaremos apenas os advérbios modificadores, pois o


nosso objetivo é mostrar, principalmente, a riqueza de análise proporcionada pela classe de
palavra advérbio.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 199
Todos os dias. Como você nunca viu. Sua fórmula exclusiva,
enriquecida com pró-vitamina B5, dá um volume escandaloso.
A proteína de seda e o moisture locking silicone garantem um
escândalo de brilho. Com Outrageous, você vai ter cabelos
escandalosamente lindos.
Revlon
Revolutionary
(Revista Nova Beleza, n. 11, 1998).

O texto da propaganda começa com a declaração de uma


atriz francesa de renome internacional, Catherine Deneuve, a
respeito do uso dos produtos anunciados: shampoo e condicionador
para cabelos. Esse recurso argumentativo recebe o nome de
intertextualidade (no caso, implícita, pois o nome da atriz não é
divulgado) e corrobora a força semântica do advérbio de modo
escandalosamente, referindo-se ao adjetivo lindos.
A peça publicitária é construída com o jogo de palavras
cognatas, ou seja, palavras da mesma família, com a mesma raiz:
a) escandalosamente (advérbio); b) escandaloso (adjetivo); e c)
escândalo (substantivo). Esse procedimento, que reúne motivação
sonora e semântica, realça o movimento argumentativo do anúncio,
com o propósito de valorizar as qualidades do produto.
As quatro ocorrências do advérbio escandalosamente
intensificam a carga semântica do texto, juntamente com o
paralelismo sintático, formado por advérbio mais adjetivo:

escandalosamente macios
escandalosamente fascinantes
↓ ↓
advérbio adjetivo

Outra repetição, também relevante, é a da expressão


“escandalosamente lindos”, que está no título do anúncio (declaração
da atriz) e no final do texto, pois, conforme Citelli (1985, p.
48), “repetir significa a possibilidade de aceitação pela constância

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 200
reiterativa.” Os quatro advérbios acompanham adjetivos eufóricos,
valorativos, envolvendo o interlocutor de forma emotiva, já que “a
seleção lexical [...] constitui também uma estratégia de envolvimento
e sedução do leitor” (PAULIUKONIS, 2010, p. 81).

* Frase 1

“Sempre ostentei a certeza inabalável de que todos os políticos


eram inteiramente vagabundos, irrecuperavelmente vagabundos,
insofismavelmente vagabundos. A idéia de que eles possam ser
apenas meio vagabundos contraria todo meu sistema de valores.”
Diogo Mainardi, articulista da Revista Veja até 2010.
(Revista Veja, seção Veja Essa, 10 out. 2007).

Identificamos, primeiramente, a repetição do adjetivo


vagabundos, citado quatro vezes. Em todas as ocorrências, o
adjetivo é antecedido por advérbios, ou seja, nas primeira e última
ocorrências, as palavras inteiramente e meio intensificam o adjetivo
vagabundos; nas segunda e terceira ocorrências, os advérbios
irrecuperavelmente e insofismavelmente avaliam o adjetivo
vagabundos, sendo classificados como advérbios de modo, e servem
para expressar as intenções e atitudes do enunciador, o seu grau de
engajamento diante da situação discursiva; instaura a crítica do
articulista com relação ao conteúdo veiculado.
Confirmando essa posição do enunciador, outro mecanismo
retórico é utilizado: a repetição, em estrutura paralela, do adjetivo
vagabundos, sempre no final da expressão, originando uma figura
de linguagem chamada epístrofe:

inteiramente vagabundos
irrecuperavelmente vagabundos
insofismavelmente vagabundos
meio vagabundos
↓ ↓
advérbio repetição no final = epístrofe

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 201
A repetição do adjetivo e da estrutura sintática intensifica a
carga semântica da palavra vagabundos, agindo de forma persuasiva
na opinião do interlocutor, pois

A reiteração ou repetição de itens lexicais tem por efeito trazer ao


enunciado um acréscimo de sentido que ele não teria se o item fosse
usado somente uma vez, já que não existe jamais uma identidade
total de sentido entre os elementos recorrentes, ou seja, cada um
deles traz consigo novas instruções de sentido que se acrescentam
às do termo anterior. (KOCH, 2004, p. 81).

A ironia também permeia todo o texto, corroborando o


seu arcabouço argumentativo e fortalecendo o caráter persuasivo
dos advérbios usados. O enunciador mobiliza todo o construto
enciclopédico e cognitivo de seu interlocutor, objetivando
direcioná-lo para a conclusão desejada, já que o texto produzido
por Diogo Mainardi traduz um sentimento de indignação diante
dos desmandos cometidos por políticos que, historicamente, têm
abusado da confiança dos eleitores.
O discurso irônico pressupõe o compartilhamento, por
parte dos interlocutores, de conhecimentos, pontos de vista, valores
pessoais/culturais/sociais constitutivos de um imaginário coletivo,
ou seja, a ironia conta com a participação total do enunciatário, é
necessário acreditar que ele compartilhe dos mesmos conhecimentos
embutidos na produção textual.
Dessa forma, evidenciamos que a argumentação é um ato de
persuasão que necessita de técnicas próprias imbricadas no discurso,
induzindo e conduzindo, convenientemente, o argumento que vai
provocar a adesão do interlocutor, pois, conforme Citelli (2001, p.
253), “o discurso persuasivo não é apenas sinônimo de engodo ou
mentira. Trata-se de um desdobramento argumentativo capaz de
velar ou desvelar determinadas idéias, valores ou conceitos.”

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 202
Modificadores de Intensidade

* Propaganda 2

Quem mais entende de leite e leite


faz o iogurte mais gostoso.
Só quem mais entende de leite
faz o iogurte mais gostoso.
Iogurte Nestlé é feito com o leite
mais puro que existe e o melhor
da natureza. Iogurte Nestlé é
tão gostoso, tão gostoso, mas tão gostoso,
que só pode ser... Nestlé.
Iogurtes Nestlé.
A vida com todo prazer.
(Revista Claudia, out. 1995).

O texto desta propaganda foi construído com oito advérbios


de intensidade (cinco mais e três tão): em duas ocorrências, o mais
intensifica o verbo entender; em uma ocorrência, mais intensifica
o adjetivo puro e, em cinco ocorrências, o mais e o tão referem-
se ao adjetivo gostoso. A repetição do advérbio mais em posições
diversas recebe o nome de epímone e a reiteração do advérbio
tão, juntamente com o adjetivo gostoso, é considerada por Fiorin
(2014, p. 116), uma repetição intraoracional, ou seja, “a repetição
de palavras ou expressões seguidas recebe o nome de reduplicação
(em latim chamava-se geminatio) ou epizeuxe (do grego epizeixis,
que significa ‘encadeamento’, ‘repetição de palavra’).”
Nos dois primeiros períodos do anúncio:

“Quem mais entende de leite e leite


faz o iogurte mais gostoso.
Só quem mais entende de leite
faz o iogurte mais gostoso.”
há uma figura chamada “paliologia (do grego palillogia, que significa

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 66 – p. 193-218, jan./jun. 2014 203
‘recapitulação’, ‘repetição’) [que é] a repetição de uma oração ou
verso. Esse aumento da extensão textual serve para tornar mais
intenso o sentido.” (FIORIN, 2012, p. 127).

* Frase 2

“Foi tããão divertido! O lugar é tão relaxante, tão calmo e bonito.”


Dayana Mendoza, Miss Universo venezuelana, relatando visita
à base militar e à prisão americana em Guantánamo (em 2009).
(BARROS, J., 2012, p. 203).

Neste caso, o modificador de intensidade tão é repetido três


vezes, atribuindo maior realce ao foco do texto: a beleza e a calma
de Guantánamo. Na primeira ocorrência, foi utilizado, também, um
outro recurso intensificador: o prolongamento da vogal, que revela
o estado de espírito do enunciador no momento da enunciação.
Os adjetivos sobre os quais recai a intensificação possuem
carga semântica valorativa: divertido, relaxante, calmo, bonito,
provocando no leitor, ao término do texto explicativo da frase,
um certo estranhamento, pois, Guantánamo ativa, na memória
discursiva da maioria das pessoas, um lugar totalmente diverso da
adjetivação melhorativa usada pela referida miss.

Modificadores Modalizadores

Epistêmicos

Epistêmicos afirmativos

* Propaganda 3

Gente bonita de verdade.


O mundo é mesmo pequeno. A Andrea queria fazer a massagem
Shantala na sua filha Ana. Shantala é um método milenar de
massagens para bebês.

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Um dia, a Andrea conheceu a Lucimary na casa da amiga da vizinha
da sua mãe. Lucimary é Consultora Natura há 3 anos e, como a
Andrea, ela também tem um bebê, o Klaus. A Andrea comprou da
Lucimary o Óleo para Massagem da linha Natura Mamãe e Bebê.
A Lucimary ensinou para a Andrea tudo o que sabe sobre Shantala.
E todo mundo ficou feliz, principalmente a Ana e o Klaus.
Essa é a história real. De gente que gosta da beleza e da verdade.
(Revista Claudia, out. 2002).

A locução adverbial de verdade (verdadeiramente) é um


modalizador epistêmico afirmativo, pois o enunciador não tem
dúvida do fato que afirma, ou seja, o adjetivo bonita é modalizado
de acordo com o conhecimento do falante, da sua certeza quanto à
qualidade do referente gente.
O advérbio mesmo segue, também, essa classificação, já
que instaura, junto ao adjetivo pequeno, uma certeza quanto ao
substantivo mundo.
Com o objetivo de confirmar essas asseverações, o enunciador
constrói, no final do texto, um jogo de palavras com as expressões “de
verdade” e “da verdade”. A primeira expressão, como vimos, é uma
locução adverbial formada por uma preposição mais um substantivo,
funcionando, sintaticamente, como adjunto adverbial; a segunda
expressão também é formada por preposição mais substantivo,
no entanto, há, neste caso, a presença do artigo a, fornecendo a
contração da. Com o artigo, a expressão transforma-se totalmente,
deixa de ser um adjunto adverbial para ocupar a função sintática
de objeto indireto.
Esses jogos linguísticos revelam a busca incessante do
enunciador em elaborar um texto que convença o consumidor a
adquirir o produto anunciado. E, segundo Marafioti (1989, p. 99),

La publicidad está caracterizada por el recurrir, en forma constante,


a las más diversas manifestaciones expresivas. El empleo de cualquier
mecanismo expresivo está subordinado al logro del fin supremo que
es la creación de la ‘necesidad’ imaginaria del producto.

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* Frase 3

“Como demorando? Você está no Brasil, pelo amor de Deus.”


Wilson Damázio, delegado da Polícia Federal, sobre a demora
na apuração da violação do sigilo bancário do caseiro Nildo, que
aconteceu exatamente porque estamos no Brasil.

Neste exemplo, o modalizador epistêmico afirmativo


exatamente está no comentário da revista ao contextualizar a frase
de Wilson Damázio. Esse advérbio veicula a certeza, a confirmação
de um fato, um tanto deprimente, ocorrido em nosso país; foi
um assunto exaustivamente publicizado pela mídia (impressa e
televisiva), provocando as mais diversas conjecturas.
Portanto, ao empregar o modalizador exatamente, o
enunciador revelou, de forma velada, a sua posição (negativa)
quanto a esse fato ocorrer no Brasil, pois, conforme Cabral (2014,
p. 63), “Com efeito, a situação e que empregamos uma palavra pode
ser determinante para o valor em que ela é tomada, se positivo ou
negativo [...]”.

Epistêmicos negativos

* Propaganda 4

A Sadia está fazendo 60 anos porque você gosta da gente.


E a gente não vai deixar este amor esfriar de jeito nenhum.
Sessenta anos. Uma história de amor.
(Revista Estilo de Vida, jun. 2004).

Neste caso, a locução adverbial de jeito nenhum demonstra


a posição favorável da empresa em continuar uma parceria com o
consumidor que já dura 60 anos. A focalização do lugar retórico da
tradição explora “um valor particular, a partir do momento em que
o seu consumidor, fiel à marca, à tradição, transforma-se em alguém

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especial, ao fazer uso, também, do valor positivo da fidelidade.”
(SILVA; OLIVEIRA; CORDEIRO, 2012, p. 61).
O vocábulo gente, próprio da linguagem informal, instaura
um cenário de aproximação entre enunciador e enunciatário, no
caso, o consumidor; inclusive, a sua reiteração intensifica a carga
semântica do modalizador de jeito nenhum.

Epistêmicos relativos

* Frase 4

“Cheguei à conclusão, talvez um pouquinho tarde, de que os


discursos devem ser curtos.”
Fidel Castro, presidente cubano, famoso por fazer discursos de até
sete horas (em 2000).
(BARROS, J.; 2012, p. 80).

Neste exemplo, o modalizador epistêmico relativo talvez


ameniza a atitude do enunciador diante de seu enunciado, pois,
de acordo com Neves (2000, p. 247), quando se usa esse tipo
de modalizador, o conteúdo do que se diz é apresentado como
uma eventualidade, como algo que o falante crê ser possível, ou
impossível, provável ou improvável. Ele não se compromete com a
verdade do que é dito, e, com isso, revela baixo grau de adesão ao
enunciado, criando um efeito de atenuação.
Um outro recurso que corrobora essa atenuação é a forma
diminutiva de um pouco, que já é um intensificador que indica uma
graduação para menos em uma determinada escala.

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Modificadores modalizadores delimitadores

* Propaganda 5

Colorama
Cores cultivadas especialmente para você.
Aprecie sem moderação.
Inspirada no universo dos vinhos, a Colorama lança sua mais nova
safra de esmaltes.
São 9 tons cultivados especialmente para deixar o seu visual muito
mais chique.
“Juliana Paes está usando o novo esmalte Vinho Reserva.”
Dermatologicamente testado. Fórmulas livres de Formaldeído,
Toluemo e Dibutilftalato (DBP).
(Revista Claudia, jul. 2003).

Neste anúncio, há três ocorrências de modalizadores


delimitadores: duas do especialmente e uma do dermatologicamente.
Esse tipo de modalizador serve para limitar, restringir um
determinado domínio e, conforme Neves (2000, p. 250):

O que ocorre nessa modalização é que o falante circunscreve os


limites dentro dos quais o enunciado, ou um constituinte do
enunciado, deve ser interpretado, e dentro dos quais, portanto, se
pode procurar a factualidade, ou não, do que é dito.

O texto foi construído com base no campo semântico do


vinho, enfatizando os delimitadores: cultivadas, safra, cultivados,
Reserva. Inclusive há, também, um jogo intertextual com o
enunciado “Aprecie com moderação”, largamente veiculado em
propagandas de bebidas alcoólicas.

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* Frase 5

“A detenção de Pinochet é moralmente justa, legalmente


questionável e politicamente poderia criar muitos problemas dentro
do Chile.”
Fidel Castro, presidente cubano, sobre a detenção de Augusto
Pinochet na Inglaterra (em 1998).
(BARROS, J., 2012, p. 56).

Neste enunciado, três delimitadores sedimentam o


encadeamento persuasivo: moralmente, legalmente e politicamente,
sendo que os dois primeiros formam um paralelismo que realça a
carga semântica dos referidos advérbios:

moralmente justa
legalmente questionável


advérbio adjetivo

Os advérbios limitam-se a três campos: da moral, da


legalidade e da política, que se interceptam para revelar o ponto de
vista do enunciador.

Modificadores modalizadores deônticos

* Propaganda 6

Um grande carro não precisa necessariamente ser um carro grande.


(Carro Renault Clio)
(Revista Veja, 24 nov. 1999).

O modalizador deôntico indica um fato que deve,


obrigatoriamente, acontecer; normalmente o enunciado apresenta,
também, um verbo auxiliar modal, como por exemplo: dever,
precisar, ter que.

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No discurso publicitário, raramente encontramos esse tipo de
modalizador, talvez porque, apesar de ser um gênero argumentativo
e, também, injuntivo, a publicidade não apresenta essa injunção
de forma categórica, a não ser pela utilização exaustiva do modo
imperativo.
Na propaganda em análise, o advérbio necessariamente está
acompanhado do advérbio de negação não, legitimando a mensagem
nuclear do texto originada pelo jogo de anteposição e posposição do
adjetivo grande, pois esta alternância de posição originou, também,
uma alteração semântica:

• grande carro → carro de qualidade


• carro grande → carro espaçoso

Portanto, o anúncio quer mostrar que o consumidor não deve


priorizar, na compra de um veículo, apenas o seu espaço interior.

Modificadores modalizadores afetivos

Os modalizadores afetivos revelam a emotividade do locutor


em relação ao conteúdo do enunciado. Eles podem ser subjetivos
ou intersubjetivos.

Modalizadores afetivos subjetivos

Os modalizadores afetivos subjetivos envolvem “simplesmente


as emoções ou sentimentos do falante, como felicidade, curiosidade,
surpresa, espanto.” (NEVES, 2000, p. 253).

* Propaganda 7

A vida começa aos 40.


Infelizmente, a vista cansada também.

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[...]
(Propaganda do Instituto de Oftalmologia de Curitiba)
(Revista Veja, 22 fev. 2006).

O modalizador afetivo subjetivo infelizmente legitima um


sentimento do locutor diante do conteúdo do enunciado, ou seja,
o problema oftalmológico chamado presbiopia, conhecido como
vista cansada, pode ter seu início quando a pessoa atinge os 40
anos de idade.
Para o enunciador, é um problema que começa cedo, levando
em consideração que “a vida começa aos 40”. Essa alusão ao dito
popular aproxima produto e consumidor, criando uma atmosfera
de cumplicidade.

* Frase 6

“Nós, humanos, temos um problema imenso. Infelizmente não


controlamos chuva, vento, raio.”
Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil, dizendo que o apagão
caiu do céu (em 2009).
(BARROS, J., 2012, p. 195).

O advérbio infelizmente, também neste caso, recai no


conteúdo do enunciado “não controlar chuva, vento, raio”, a
enumeração dos fenômenos meteorológicos, totalmente dependentes
de fatores ambientais, traduz a incompatibilidade semântica entre
o Homem e a Natureza.
A ministra Dilma utilizou um outro mecanismo para
manifestar a sua opinião: a ironia, pois controlar fenômenos da
natureza é uma impossibilidade para os humanos, e não apenas um
problema. Segundo Fiorin (2014, p. 70),

A ironia apresenta uma atitude do enunciador, pois é utilizada para


criar sentidos que vão do gracejo até o sarcasmo, passando pelo

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escárnio, pela zombaria, pelo desprezo, etc. [...] a ironia é um tropo
em que se estabelece uma compatibilidade predicativa por inversão,
alargando a extensão sêmica dos pontos de vista coexistentes e
aumentando sua intensidade.

Modalizadores afetivos interpessoais

Os modalizadores afetivos interpessoais revelam uma


manifestação intersubjetiva, ou seja, eles podem “envolver um
sentimento que se defina pelas relações entre falante e ouvinte, como
por exemplo, sinceridade, franqueza.” (NEVES, 2000, p. 253).

* Propaganda 8

Francamente, sua empresa está levando muito a sério aquela história


de LTDA.
Nextel
Direto. Esse é o nosso jeito.
(Revista Veja, 06 out. 2004).

A base argumentativa do texto prende-se ao advérbio


francamente; ele se revela uma atitude de franqueza, de lealdade
do locutor, que “aconselha” o interlocutor da propaganda (provável
consumidor) a rever seu posicionamento quanto à aquisição de
aparelhos mais modernos. Esse fato é corroborado pelo emprego
polissêmico da palavra LTDA (“limitada”), pois, em uma primeira
interpretação, “limitada” é o estatuto jurídico da empresa; e em uma
segunda, seria uma qualidade não muito valorativa para caracterizar
uma empresa, já que ser limitada revelaria comportamentos
negativos/inadequados para uma empresa moderna, que acompanha
os avanços tecnológicos.

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* Frase 7

“Muito francamente, os professores são os únicos profissionais que


ensinam nossas crianças.”
Dan Quayle – americano (1947–) – vice-presidente de George
Bush.
(BUCHSBAUM; BUCHSBAUM, 2006, p. 40).

Os organizadores da obra Do bestial ao genial: frases da


política, colocaram, acertadamente, esta frase de Dan Quayle no
capítulo chamado “É o fim da picada”, na seção “Óbvio ululante”.
O advérbio francamente, modificado pelo intensificador
muito, indica a posição do locutor quanto ao ensino das crianças
americanas, ou seja, é uma tarefa unicamente dos professores, como
se isso fosse verdadeiro apenas nos Estados Unidos.
A frase em tela causa certo estranhamento, já que seu grau de
informatividade é zero e o seu autor é vice-presidente de uma das
maiores potências do mundo.
Ao finalizar os comentários desse texto de Quayle, fazemos
uso de uma frase retirada de Lara (2005, p. 63): “O silêncio não
comete erros.” (Filosofias da Máfia).

Considerações finais

O discurso é construído por meio de escolhas, o enunciador


que conhece as preferências de seu interlocutor constrói um discurso
argumentativo para atrair seu destinatário, cuidando para que ele
não perceba que está sendo conduzido ou manipulado a tomar uma
decisão. Portanto, dentro do quadro enunciativo, o enunciador
utiliza-se de variados mecanismos argumentativos para alcançar, de
forma satisfatória, os seus objetivos, isto é, levar o seu interlocutor
a determinada conclusão.
Neste trabalho, objetivamos mostrar a importância persuasiva
da classe do advérbio, que é um procedimento recorrente em

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determinados gêneros, como os midiáticos, por exemplo, e
selecionamos para o corpus o gênero frase e o publicitário.
Verificamos que o gênero frase, ainda pouco estudado, foi,
inicialmente, sistematizado por Pedrosa (2001), afirmando “que
só podemos tratar do gênero textual ‘frases’ considerando-o em
seu conjunto constitutivo: ‘fala’ do locutor + contexto do editor.”
(PEDROSA, 2010, p. 171). Dessa forma, entram para análise os
dois elementos do conjunto.
Quanto ao discurso da propaganda, é impressionante como
os publicitários desconstroem as regras de funcionamento da língua
com o intuito de obter um efeito mais informal, lúdico, original, na
tentativa de aproximar as pessoas dos textos que leem, influenciando-
as em suas ações e decisões.
Considerando a classificação de Neves (2000), apresentamos
alguns textos com a classe do advérbio, ratificando a importância
desse recurso para a construção argumentativa do texto, pois, de
acordo com Citelli (1994, p. 78, grifo do autor),

[...] escrever bons textos argumentativos e dissertativos é tanto uma


questão de explorar certos recursos da língua como estar atento ao
fato de que a linguagem significa; ela atribui sentido às coisas,
carrega valores e idéias, formula preceitos e preconceitos. [...] Isto é,
as palavras podem formar os discursos que oprimem, mas também
os que libertam.

Portanto, o estudo dos mecanismos linguístico-persuasivos


mostra o processo social-comunicativo do discurso, revelando as
virtualidades semânticas e pragmáticas inerentes ao arcabouço
argumentativo da língua, considerada não como algo estático, mas
sim um fenômeno social, um simulacro cultural de um povo, um
conjunto dinâmico que evolui com o tempo.

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