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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Barros, Solange Maria de.


Realismo crítico e emancipação humana - contribuições
ontológicas e epistemológicas para os estudos críticos do discurso /
Solange Maria de Barros

Coleção: Linguagem e Sociedade Vol. 11


Campinas, SP : Pontes Editores, 2015.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-629-8

1. Análise de discurso crítica 2. Meios auxiliares de ensino - gêneros -


letramento 3. Formação crítica de professores
I. Título II. Coleção

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise de discurso crítica - 410


2. Meios auxiliares de ensino - gêneros - letramento - 371.3
3. Formação crítica de professores - 370.7
Copyright © 2015 - Solange Maria de Barros

Coordenação Editorial: Pontes Editores


Editoração e capa: Eckel Wayne
Revisão: Pontes Editores

Coleção: Linguagem e Sociedade - Vol. 11


Coordenação da Coleção: Kleber Aparecido da Silva

Conselho editorial:

Adair Vieira Gonçalves (UFGD)


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Myriam Crestian Cunha (UFPA)
Rodrigo Aragão (UESC)
Rosane Pessoa (UFG)
Vânia Casseb-Galvão (UFG)
Vilson Leffa (UCPEL)
Viviane Resende (UnB)
Wagner Silva (UFT)
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Impresso no Brasil - 2015


Em memória do meu querido pai, Benedito Leite de Barros,
pelo exemplo de solidariedade.

Aos professores e alunos da Escola Estadual Meninos do


Futuro, pela aprendizagem e experiências colaborativas.
Duas coisas sempre me enchem a alma de crescente admi-
ração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o
pensamento delas se ocupa: o céu estrelado acima de mim
e a lei moral dentro de mim.

(Immanuel Kant)
SUMáRIO

APRESENTAçãO ................................................................................ 11

PARTE I - REALISMO CRÍTICO

ALGUMAS TRADIçõES NA FILOSOFIA DA CIêNCIA ................ 17

REALISMO CRíTICO .......................................................................... 22

PRIMEIRA ONDA - REALISMO TRANSCENDENTAL ................. 25

NATURALISMO CRíTICO ................................................................. 37

CRíTICA ExPLANATóRIA ................................................................ 42

SEGUNDA ONDA - REALISMO CRíTICO DIALéTICO ............... 47

TERCEIRA ONDA - REALISMO CRíTICO TRANSCENDENTAL.. 48

METARREALIDADE ........................................................................... 51

PARTE II - ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

ACD E A ONTOLOGIA SOCIAL REALISTA ................................... 60

REALISMO CRíTICO E A NEGLIGêNCIA PARA COM A


SEMIOSE: ALGUMAS IMPLICAçõES PARA A ACD ..................... 62

ESTRUTURAS SOCIAIS, PRáTICAS SOCIAIS E EVENTOS ........ 65

ELEMENTOS DAS PRáTICAS SOCIAIS: GêNERO,


DISCURSO E ESTILO.......................................................................... 68

LINGUíSTICA SISTêMICO-FUNCIONAL (LSF) E ACD ................ 70

SIGNIFICADO ACIONAL: GêNEROS .............................................. 72

SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: DISCURSO ....................... 74

SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: ESTILO ............................... 80

DISCURSO E IDEOLOGIA ................................................................. 86


DISCURSO E HEGEMONIA ............................................................... 91

MODELO TRANSFORMACIONAL DA ATIVIDADE


TExTUAL (MTAT) ............................................................................... 94

PARTE III - ABORDAGEM DE PESQUISA

ABORDAGEM qUALITATIVA .......................................................... 101

OBSERVAçãO PARTICIPANTE ......................................................... 103

ENTREVISTAS ..................................................................................... 103

NARRATIVAS DE VIDA ..................................................................... 104

ACD E A ABORDAGEM CRíTICO-REALISTA ................................ 106

PARTE IV - EXPERIÊNCIAS NA ESCOLA MENINOS


DO FUTURO (CENTRO SOCIOEDUCATIVO DO POMERI)

REFLExãO INTRODUTóRIA............................................................ 115

TEORIA CRíTICA DA SOCIEDADE MODERNA ............................. 116

FORMAçãO CRíTICA DE EDUCADORES DE LíNGUAS ............ 119

A ESCOLA............................................................................................. 122

OS PROFESSORES E A FORMAçãO CONTINUADA ................... 123

SEMINáRIO DE LITERATURA ......................................................... 125

PROJETO SALA DO EDUCADOR ..................................................... 129

LETRAMENTO CRíTICO ................................................................... 134

OS ALUNOS ........................................................................................ 147

SóCRATES, PLATãO E ARISTóTELES............................................ 151

AINDA NãO é UM PONTO FINAL... ................................................ 167

CONSIDERAçõES FINAIS................................................................. 169

BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 173


Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

APRESENTAçãO

A ideia de escrever este livro emergiu com os estudos


de pós-doutoramento realizados no Instituto de Educação da
Universidade de Londres, sob a orientação de Roy Bhaskar
(2012-2013). Procurei associar a filosofia do realismo crítico
(RC) e a abordagem teórico-metodológica da análise crítica
do discurso (ACD), com o objetivo de apontar a relevância
da ontologia e da epistemologia para os estudos críticos do
discurso. As reflexões aqui desfiladas servem como subsídio
para pesquisadores interessados em realizar estudos com base
no RC e ACD.
A abordagem realista, no entendimento embasado por
Collier (1994), postula uma forma de realismo moral. A satisfa-
ção, os desejos e as necessidades devem ser vistos como ques-
tões prioritárias, não podendo ser apresentados apenas como
fatos. Para esse autor, construir um projeto de transformação
social impõe considerar a forma mais alternativa e transparente
da vida em sociedade, visando a um futuro melhor.
A abordagem da ACD está em consonância com o RC
por entender o mundo social como um sistema aberto, em
constantes transformações. A ACD se assenta numa ontologia
social realista, uma vez que considera os eventos e as estruturas
sociais como parte da realidade. A ACD propõe questionar a
vida social em termos políticos e morais, isto é, à luz da justiça
e do poder, buscando contribuir para a superação das desigual-
dades e injustiças presentes na sociedade. O pesquisador, aqui,
não é neutro; ao contrário, deve ser crítico e transformador.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A primeira parte do livro é dedicada ao RC. Inicialmen-


te, teço breves considerações acerca das tradições existentes
na filosofia da ciência. Em seguida, apresento o pensamento
filosófico do RC formulado por Roy Bhaskar. Engloba três
ondas. A mais densa está subdividida em 1) realismo trans-
cendental; 2) naturalismo crítico; e 3) crítica explanatória. A
segunda onda, denominada realismo crítico dialético, expõe
uma metacrítica das filosofias anteriores, seguindo os domínios
do ontológico, do epistemológico e do ético. Finalmente, a
terceira marca definitivamente o interesse do filósofo para as
questões espirituais.
A segunda parte destina-se à ACD. Primeiramente, em-
preendo sucinta explanação sobre esta abordagem. Exponho
algumas observações sobre a aproximação entre a ACD e RC,
não sem destacar a negligência dos realistas críticos para com os
estudos da semiose. Entreabro uma discussão teórica proposta
por Fairclough (2003a) entre a ACD e a Linguística Sistêmico-
Funcional (LSF). Esse autor propõe uma articulação entre as
macrofunções de Halliday (1994) e os conceitos de gêneros,
discursos e estilos, sugerindo, em substituição às macrofunções
da linguagem de Halliday, os três tipos de significados: acional,
representacional e identificacional. Exponho ainda o modelo
transformacional da atividade textual (MTAT).
A terceira parte é dedicada à abordagem qualitativa
de pesquisa. Descortino algumas considerações relativas à
pesquisa em ACD. Argumento que esse tipo de abordagem
arquiva três conjuntos de decisões, relacionados com a on-
tologia, a epistemologia e a metodologia. As pesquisas em
ACD procuram desvelar problemas sociais materializados
em textos orais ou escritos. O modelo de análise proposto
por Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2010) é
baseado na crítica explanatória de Bhaskar (1998), formulado
em cinco estágios. Neste trabalho, apresento mais um estágio
(Estagio 6).

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A quarta e última se volta, em específico, às experiências


realizadas, desde 2006, na escola Meninos do Futuro. Exponho
algumas pesquisas efetuadas na escola. Elas me permitiram
compreender o sentido primacial da formação continuada no
próprio contexto da escola.

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PARTE I

REALISMO CRÍTICO
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

ALGUMAS TRADIçõES NA
FILOSOFIA DA CIêNCIA

Desde os gregos, duas correntes filosóficas sempre es-


tiveram no centro das discussões acerca do conhecimento: o
racionalismo e o empirismo. O racionalismo dominou forte-
mente a França e Alemanha. Na Inglaterra, o empirismo se
tornou hegemônico.
Para os racionalistas, a razão era fonte principal do
conhecimento. René Descartes ([1596–1650] 2002) foi o
fundador do racionalismo. Sempre convicto de que, através
da razão, se chegava ao conhecimento, muito semelhante à
matemática. Muitos anos depois, já na época de Kant, a me-
cânica newtoniana, tida por grande avanço científico, passou
a desconsiderar o racionalismo cartesiano.
Já os empiristas, como o próprio nome diz, consideravam
a “experiência” como a fonte segura de todo o conhecimento.
Locke (1632–1704, apud PéREZ, 1988, p. 170) assegurou
que a mente humana era uma “tábua limpa na qual nada está
escrito”. é a partir da experiência que o sujeito começa a for-
mar ideias mais simples e mais complexas. O método utilizado
pelos empiristas era o indutivo, ou seja, as leis universais eram
conseguidas com base em enunciados particulares – alguma
observação/experimentação.
O filósofo do pensamento empirista moderno foi, sem
sombra de dúvida, David Hume ([1721-1776]1985, p. 24).
Para ele, o conhecimento deveria partir dos sentidos, opondo-

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

se ao racionalismo cartesiano, que acreditava que o conheci-


mento derivava da razão. Todo o conhecimento, portanto, se
baseava na experiência. Tomemos um exemplo: um remédio
x pode eliminar a dor de cabeça. Depois de ser experimentado
por uma pessoa e obter resultado positivo, provavelmente a
pessoa volta a sentir a mesma dor.
Para os empiristas, o que mais rege o conhecimento é o
costume ou hábito. O hábito, no pensamento de Hume, é o
princípio em que uma simples constatação e sucessão entre
dois fenômenos eram considerados “causa” e “efeito”. Ou seja,
após a realização de determinada experiência, poderia retê-la
na memória e, ao realizar ação semelhante, teria a capacidade
de associá-la à primeira experiência. “Se pensarmos em uma
ferida, dificilmente nos abstemos de refletir sobre a dor que
se lhe segue” (HUME, 1985, p. 30).
Para este filósofo, os objetos do conhecimento são even-
tos atômicos, ou seja, os fatos e suas constantes conjunções
de eventos sucedem de maneira constante e fragmentaria-
mente. A ciência é apreendida como a sistematização rígida
e metódica da experiência, uma vez que organiza, classifica,
correlaciona os fatos, fornecendo ao pesquisador o “domí-
nio” sobre o mundo. é vista, portanto, como uma espécie de
resposta automática para estímulos de determinados fatos e
suas conjunções. Nesse caso, a ciência torna-se uma espécie
de “epifenômeno da natureza” (BHASKAR, 1998, p. 19).
Kant, seguidor de Hume, embora comungasse das ideias
do empirismo, acabou trilhando caminhos diferentes. Em sua
obra intitulada Crítica da razão pura ([1781]1987), centrou
seu interesse no conhecimento. Em suas palavras:

que todo o nosso conhecimento começa com


a experiência, não há dúvida alguma, pois,
do contrário, por meio do que a faculdade de
conhecimento deveria ser despertada para o

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

exercício senão através de objetos que tocam


nossos sentidos e em parte produzem por si
próprios representações, em parte põem em
movimento a atividade do nosso entendimento
para compará-las, conectá-las ou separá-las
e, desse modo, assimilar a matéria bruta das
impressões sensíveis a um conhecimento dos
objetos que se chama experiência? Segundo o
tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós
precede a experiência, e todo ele começa com
ela. Mas embora todo o nosso conhecimento
comece com a experiência, nem por isso todo
ele se origina justamente da experiência. Pois
poderia bem acontecer que mesmo o nosso co-
nhecimento de experiência seja um composto
daquilo que recebemos por impressões e daquilo
que a nossa própria faculdade de conhecimento
(apenas provocada por impressões sensíveis)
fornece de si mesma, cujo aditamento não
distinguimos daquela matéria-prima antes que
um longo exercício nos tenha tornado atentos
a ele e nos tenha tornado aptos à sua abstração.
(KANT, [1781] 1987, p. 1. Grifo no original)

Mesmo se alinhando ao empiricismo de Hume e Locke,


Kant assegurou que certas condições existem a priori para que
as impressões sensíveis se convertam em conhecimento. Por
conhecimentos a priori, Kant quer referir “não os que ocor-
rem de modo independente desta ou daquela experiência, mas
absolutamente independente de toda experiência” (KANT,
[1781] 1987, p. 3. Grifo no original). Para ele, existe uma
realidade externa independente do sujeito, denominando-a
de coisas em si ou númeno (noumena)1. Embora tivesse ade-

1 Conforme Kant (1987, KrV, B 347), númeno (noumena) se refere ao “[...] objeto(s)
de um conceito para o qual não se pode obter absolutamente nenhuma intuição cor-
respondente é = nada, isto é, um conceito sem objeto, como os noumena, que não
podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-se
passar por impossíveis (ens rationis) [...]”. São independentes da sua relação com a
nossa sensibilidade.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

rido à metafísica, Kant negou a possibilidade de conhecer as


coisas em si.
Ele chamou isso de filosofia transcendental. Conforme
o autor:

[...]denomino transcendental todo o conhecimento


que em geral se ocupa não tanto com os objetos,
mas com nosso modo de conhecimento de objetos
na medida em que este deve ser possível a priori. Um
sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia
transcendental [...]. (KANT, [1781] 1987, p. 26.
Grifo no original)

Para ele, as coisas em si permaneceriam em uma zona


cognitiva e, mesmo assim, existiria conhecimento verdadeiro
(intersubjetivamente) das coisas para nós. A Figura 1 abaixo,
representa esquematicamente como a coisa em si se tornava
em a coisa para nós, como o “númeno” incognoscível se
transformava no fenômeno–o objeto do conhecimento.

Fig.1- Do númeno incognoscível para o fenômeno


(baseado em Kant ([1781] 1987)

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Na visão de Kant, o espaço e o tempo não representavam


propriedades das coisas em si, não dependiam do mundo
externo. Eram o único modo como podíamos representar
os fenômenos, constituindo-se nas condições necessárias
e universais de qualquer percepção possível. Estava assim
justificada a emissão de juízos sintéticos a priori sobre eles.
“Logo, unicamente nossa explicação torna concebível a pos-
sibilidade da Geometria como um conhecimento sintético a
priori” (KANT, 1987, p. 42).
Nesse sentido, a característica fundamental do pensa-
mento de Kant é a negação de que apenas o conhecimen-
to das conjunções de eventos possa esgotar tudo o que
pertence ao mundo objetivo, na esteira do que defendia
Hume. Na visão de Kant, os objetos de conhecimento são
construtos artificiais da mente humana que se desenvolvem
na consciência dos indivíduos. A ciência se torna possível
porque a consciência individual encerra a função sintetiza-
dora, portanto fornece as formas “a priori” da percepção
sensível (espaço e tempo) e da compreensão (quantidade,
qualidade, causalidade, etc.).
Essas duas tradições filosóficas, explicitadas acima,
acabaram sendo relegadas por acreditarem na identificação
da realidade por meio da experiência positiva e superficial.
A ciência é, portanto, uma sistematização metódica da expe-
riência, cuja organização e classificação dos fatos fornecem
um total domínio sobre o cosmo. Carrega sempre a fórmula
“se...então...”.
A corrente mais contemporânea e crítica das filosofias
positivistas e pós-modernistas tem sido uma alternativa para
as ciências naturais e sociais, privilegiando essencialmente a
ontologia.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

O realismo transcendental2, liderado pelo britânico Roy


Bhaskar, em seu primeiro trabalho intitulado A Realist Theory
of Sciense3 ([1975]1978), foi a pedra fundamental para as dis-
cussões inerentes às ciências naturais e sociais, com destaque
à ontologia. O filósofo rejeita a ciência como uma sucessiva
conjunção de eventos. Os objetos de conhecimento não são
meros eventos (empirismo), nem fenômenos compreendidos
por meio de construções mentais (idealismo). A rejeição pela
conjunção sucessiva de eventos não é mais relevante para a
formulação de leis científicas universais. Ao contrário, elas
passam a ser denominadas “tendências”, pois são elas que
determinam como a realidade (fatos, acontecimentos) vai se
comportar.
A seguir, apresento o pensamento filosófico do realismo
crítico formulado por Roy Bhaskar.

Realismo crítico

O RC tem como expoente o filósofo inglês Roy Bhaskar.


Considerado movimento internacional na filosofia e nas ciên-
cias humanas, sendo uma alternativa para as ciências naturais
e sociais, sobrelevada a ontologia –questão do ser –, em que
o real é mais denso, ou seja, consiste em um mundo objetivo
que distingue uma superfície de algo ainda mais profundo. O
realismo crítico advoga uma ontologia não empiricista, em
que o mundo não é feito somente de acontecimentos, ou fatos.
Conforme o sociólogo Vandenberghe (2010), o RC abriga
caráter interdisciplinar, por considerar as reflexões sólidas
concernentes à ontologia, tanto no domínio da filosofia quanto
no das ciências humanas.

2 O termo transcendental alude a tudo que não pode ser compreendido. é parte do do-
mínio dos conceitos considerados infinitos, ou seja, de se referir ao plano metafísico.
3 Uma teoria realista da ciência.

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Na condição de filosofia de cunho emancipatório


(BHASKAR, 1998), o realismo crítico tem servido de base
para uma reflexão teórica e metodológica de muitos cientis-
tas sociais, que buscam compreender as inter-relações entre
indivíduos e sociedade.
Bhaskar (1998) denomina de “falácia epistêmica” as pro-
posições sobre o “ser”. Para ele, há um equívoco metafísico
em querer adotar questões ontológicas como epistemológicas.
Esse pensamento errôneo conduziu à dissolução da ontologia.
Na visão do filósofo, os objetos de conhecimento não são
os fatos ou eventos atômicos (empirismo), nem fenômenos
apreendidos por meio de construções mentais (idealismo),
“mas estruturas4 reais que operam e agem no mundo indepen-
dentemente do nosso conhecimento, da nossa experiência”
(BHASKAR, 1998, p. 19).
Se o mundo é constituído de mecanismos, e não de
eventos, então eles geram fluxos de eventos, formando, con-
sequentemente, os acontecimentos do mundo a nosso redor.
Conforme o autor, os mecanismos agem independentemente
dos seres humanos (agentes causais). é por essa razão que
ele assegura não sermos totalmente livres. “Essa é a árdua
tarefa da ciência: a produção do conhecimento sobre aqueles
mecanismos da natureza, duradouros e continuamente ativos,
que produzem os fenômenos do nosso mundo” (BHASKAR,
[1975]1978, p. 47).
Fenômenos sociais são significativos e, portanto, devem ser
compreendidos, e não medidos. Nesse sentido, é preciso entender
que, no realismo crítico, qualquer tipo de significado vai exigir
uma visão interpretativa da parte do pesquisador. Significa tam-

4 Por estruturas se entende qualquer rede de relações, a depender da posição que cada
um ocupa nessa rede. As estruturas são sempre organizadas de acordo com os elemen-
tos de cada sistema (sistema bancário, educacional, etc.). Elas têm potencialidades
inerentes, as quais se manifestam por meio de mecanismos de causação, ou seja,
poderes causais próprios.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

bém dizer que o realismo crítico é parcialmente naturalista, pois,


embora recorra aos mesmos métodos da ciência natural para a
explicação causal, diverge no que se refere à visão interpretativa
(SAYER, 2000). Da mesma forma, entende ser compatível a ado-
ção ampla de métodos de pesquisa, como a etnografia, a análise
de discurso, etc., pontuando que a definição por determinado
método vai depender da natureza do objeto de estudo.
O RC busca compreender as conexões entre os fenôme-
nos, e não as regularidades entre eles. Reconhece a necessi-
dade de interpretar significados, ainda que não seja uma saída
única para as explicações causais, considerando que razões
podem ser causas. é caracterizado também pela “emergência”,
ou seja, quando duas ou mais características de determinado
fenômeno dão origem a outros novos que emergem. Por
exemplo, fenômenos sociais são emergentes de fenômenos
biológicos que, de sua vez, são emergentes de estratos do
físico e do químico (BHASKAR, 1998).
Na visão de Outhwaite (1983, p. 322), o RC vê a ciência
“como uma atividade humana que visa descobrir uma mistura
de experimentação e razões teóricas, as entidades, estruturas
e mecanismos (visíveis ou invisíveis) que existem e operam
no mundo”.
Nessa mesma esteira, Vanderberghe (2010) entende a ci-
ência como um trabalhador das minas que está sempre cavando
mais profundamente, movendo-se de um estrato da realidade
para outro (dimensão vertical), descobrindo a cada estrato
uma multiplicidade de mecanismos gerativos que explicam a
relação entre os eventos (dimensão horizontal). Conforme esse
autor, ao final de todo o processo de escavação, finalmente a
ciência consegue descobrir a base de todos os seres, revelando
o mistério do próprio ser.
O RC, conforme disse antes, se apresenta em três ondas.
A primeira, correspondente à mais densa, está subdividida

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

em 1) realismo transcendental; 2) naturalismo crítico; e 3)


crítica explanatória.

Primeira onda

Realismo transcendental

Para o realismo transcendental, qualquer teoria dizente


do conhecimento pressupõe algo sobre o mundo e como este
deve ser para que o conhecimento seja possível. Isso implica
necessariamente alguma proposição sobre o ser, e não apenas
o conhecimento sobre o ser, porquanto os objetos de inves-
tigação científica existirão independentemente de qualquer
atividade ou pensamento.
O realismo transcendental se caracteriza por alguns
princípios fundamentais, tais como: (1) objetividade – quando
algo é real, mesmo não sendo conhecido; (2) falibilidade – as
proposições se referem não a dados aparentes, infalíveis ou
incorrigíveis, mas a alguma coisa que vai além; (3) transfe-
nomenalidade – quando se ultrapassa as aparências, ou seja,
o conhecimento pode não apresentar o que parece ser, pois as
estruturas subjacentes perduram em relação às aparências; (4)
contrafenomenalidade –quando o conhecimento da estrutura
profunda pode também contradizer as aparências.
Na compreensão de Bhaskar (1998), o realismo trans-
cendental considera os objetos do conhecimento como es-
trutura e mecanismos que geram fenômenos. Esses objetos
não são fenômenos (empirismo), nem construções mentais
impostas ao fenômeno (idealismo), mas estruturas reais que
operam independente do nosso conhecimento. Segundo o
filósofo, contra o empirismo, os objetos de conhecimento
são estruturas e não uma conjunção constante de eventos.
Em suas palavras:

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A necessidade de distinções categóricas entre estru-


turas e eventos, e entre sistema aberto e fechado são
índices de estratificação e diferenciação do mundo,
ou seja, da ontologia filosófica realista transcenden-
tal. (BHASKAR, 1998, p. 22)

Bhaskar sustenta que as práticas científicas devem ser


estudadas transcendentalmente. Na linha do autor, toda e qual-
quer prática científica pressupõe uma visão de mundo antes
mesmo da investigação. A esse entendimento, ele formula a
seguinte pergunta: “Como deve ser o mundo para que a ciência
seja possível?” (BHASKAR, [1975] 1978, p. 36). A resposta
para essa questão filosófica ele dá o nome de ontologia.
Bhaskar desenvolve uma crítica às visões racionalistas
e empiristas de ciência. O filósofo procura demonstrar que a
teoria humiana de leis causais levou a uma deterioração da pró-
pria teoria e, de consequência, da questão ontológica. Elabora
uma nova alternativa de explicação da ciência, valorizando a
“ontologia”, antes desprestigiada pelas correntes positivistas
e empiristas. Seu pensamento no tocante ao realismo trans-
cendental encarta como objetivo atingir as ciências naturais.
A origem do termo realismo transcendental é explicado
pelo autor.

Denominei minha filosofia geral de ciência de


“realismo transcendental” e minha filosofia especí-
fica das ciências humanas de “naturalismo crítico”.
Gradualmente, as pessoas começaram a misturar os
dois e referir-se ao híbrido como “realismo crítico”.
Ocorreu-me que havia boas razões para não objetar
ao hibridismo. [...] de início, Kant designou seu
idealismo transcendental de “filosofia crítica”. O
realismo transcendental tinha o mesmo direito ao
título de realismo crítico. Além disso, em minha
definição de naturalismo equivalia ao realismo, de

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

modo que qualificá-lo compo realismo crítico fez


tanto sentido quanto qualificá-lo como naturalismo
crítico ( BHASKAR, 1998, p. 190).

Ao defender a ontologia, Bhaskar argumenta que as


práticas científicas devem ser estudadas transcendentalmente.
A essa luz, toda e qualquer prática científica pressupõe uma
visão de mundo antes mesmo da investigação. Com esse
entendimento, ele formula a seguinte pergunta: “Como deve
ser o mundo para que a ciência seja possível?” (BHASKAR,
[1975] 1978, p. 36). A resposta para essa questão filosófica,
confere o nome de ontologia5.
A ciência deve servir para revelar algo que sirva para
transformar a realidade social. Porém, a realidade adota dimen-
sões profundas, as quais não são diretamente observáveis. é
dizer sobre “algo que está abaixo da superfície”, ou seja, que
existe alguma coisa mais profunda que não é possível desco-
brir. é isso que interessa aos pesquisadores que comungam
o pensamento do realismo crítico. O conhecimento precisa
fazer sentido para que a realidade possa ser transformada. é
preciso penetrar nas raízes dos problemas sociais, com suas
estruturas, mecanismos e poderes, visualizando, assim, uma
crítica explanatória6 que possa gerar argumentos críticos a
favor da transformação social.

5 É um campo da filosofia que, tradicionalmente, trata de objetos do mundo real e suas


estruturas, propriedades, poderes causais (Dictionary of critical realism, editado por
Merving Hartwig, 2007). A aparição do termo data do século xVII, e corresponde a
divisão que Christian Wolff realizou quanto a metafísica, seccionando-a em metafísica
geral (ontologia) e as especiais (Cosmologia Racional, Psicologia Racional e Teo-
logia Racional). Embora haja uma especificação quanto ao uso do termo, a filosofia
contemporânea entende que Metafísica e Ontologia são, na maior parte das vezes,
sinônimos, muito embora a metafísica seja o estudo do ser e dos seus princípios gerais
e primeiros, sendo portanto, mais ampla que o escopo da ontologia (Wikipédia, 2014).
qualquer prática humana pressupõe uma imagem de mundo. Negar a existência da
ontologia é bloquear a possibilidade de conhecimento do mundo Real.
6 Conceito usado para enfatizar a estreita conexão lógica entre algumas formas de
explicação do social e a adoção de um ponto de vista crítico em relação ao fenômeno
explicado.

27
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Em suas palavras,

a ciência é, de fato, um processo contínuo,


mas é um processo com um propósito central:
aprofundar o conhecimento dos mecanismos
transfactualmente ativos sempre mais profun-
dos da natureza [e da sociedade]. (BHASKAR,
1986, p. 50).

Bhaskar (1978) esclarece que o mundo é um sistema aber-


to, cujos inúmeros fatores operam ao mesmo tempo. Conforme
o filósofo, todas as ciências – naturais ou sociais– possuem
uma dimensão intransitiva e uma transitiva. Os objetos de
conhecimento – físicos ou sociais – formam a dimensão
intransitiva da ciência. As teorias, discursos e recursos (mé-
todos) da ciência são parte da dimensão transitiva. O objeto
da dimensão transitiva é a causa material7.
Nessa perspectiva, a construção do conhecimento traduz
uma atividade transitiva, ou seja, depende de conhecimentos
anteriores e da atividade do ser humano. Porém, há objetos
intransitivos que existem anteriormente à pesquisa, cuja rea-
lidade independe de nosso conhecimento. O quadro 1 ilustra
as duas dimensões entreabertas por Bhaskar (1978).

DIMENSÃO DIMENSÃO
TRANSITIVA INTRANSITIVA
Teorias científicas, discursos e Objetos da ciência
métodos científicos. (físicos ou sociais)
(tudo que estudamos/pesquisa-
mos no mundo)

Quadro 1 – Dimensões transitiva e intransitiva da ciência

7 Conforme o autor, inclui “[...] fatos, teorias, paradigmas, modelos e métodos de


investigação previamente estabelecidos, disponíveis para uma corrente científica ou
cientista em particular” (BHASKAR, 1978, p. 21).

28
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Bhaskar denomina a existência dessas duas dimensões


como “o paradoxo da ciência”. Para ele, a filosofia da ciência
precisa saber lidar com este paradoxo: de um lado, o conheci-
mento é produzido por seres humanos – sofás, livros, cadeiras,
carros, computadores, etc. De outro, ele trata de coisas que
independem da ação dos seres humanos, não são produzidos
por eles. Ele assegura que,

se os homens deixassem de existir, o som continuaria


a se propagar e os corpos pesados continuariam a
cair no chão exatamente da mesma maneira, embo-
ra, por hipótese, não haveria ninguém para sabê-lo
(BHASKAR, 1978. p. 21)

Uma atividade de pesquisa experimental como a física,


biologia, etc., pressupõe o caráter estruturado dos objetos in-
vestigados, sob condições experimentais. Nos sistemas fecha-
dos, as conjunções ou a sequência de eventos ocorrem e devem
ser experimentalmente estabelecidas. Em suas palavras:

a inteligibilidade de uma atividade experimental


pressupõe independência categórica das leis causais,
descobertas dos padrões de eventos produzidos. Ao
repetir um experimento nós produzimos um padrão
de eventos para identificar a lei causal, mas nós não
produzimos a lei causal identificada. (BHASKAR,
1978, p. 34)

O pesquisador é o agente causal de uma sequência de


eventos, mas não da lei causal, em virtude de ter sido produ-
zido sob condições experimentais.
Conforme Sayer (2000, p. 15), no sistema aberto do
mundo social, “o mesmo poder causal pode produzir diferen-
tes resultados”. Por exemplo, a competição econômica pode
levar as empresas a se reestruturar e a inovar, ou a se fechar.

29
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Às vezes, diferentes mecanismos causais podem produzir o


mesmo resultado. Alguém pode perder o emprego por uma
variedade de razões. Os eventos não são predeterminados antes
de acontecer, mas dependem de condições contingenciais. No
sistema aberto, a conjunção ou a sequência de eventos é pre-
visível. “Tem uma profundidade ontológica: eventos nascem
de mecanismos os quais derivam de estruturas dos objetos,
e eles ocorrem dentro de contextos geo-históricos” (SAYER,
2000, p. 15).
Danemark, Ekstron, Jakobsen e Karlsson (2002) revelam
um experimento feito pelo Dr. Otto Loewi, no qual é possível
entender de que maneira e por que existem, a um só tempo,
diferenças distintas entre ciência natural e ciência social –
sistemas abertos e fechados.
Conforme os autores, antes de Loewi realizar seu expe-
rimento, o pesquisador acreditava que o centro nervoso das
funções do organismo trabalhava diretamente na forma de
impulsos elétricos. Porém, essa explanação era problemática,
uma vez que os impulsos tinham efeitos em diferentes órgãos.
Certas drogas eram conhecidas por possibilitar o mesmo
efeito. Loewi imaginava que essas substâncias fossem talvez
encontradas em nervos terminais. No caso do impulso elétrico,
começaria uma reação química, afetando o músculo.
Anos mais tarde, Loewi sonhou com seu experimento,
resultando em uma grande descoberta científica. Foi até seu
laboratório em plena noite, pegou dois corações de rãs, um
deles perfeito, outro sem os nervos. Colocou o primeiro
coração em uma solução com sal, a qual estimulou o nervo,
obtendo uma diminuição no número de batidas do coração. Se
sua hipótese estivesse correta, uma substância química teria
sido liberada e estaria presente na solução, a qual seria capaz
de afetar o outro coração, mesmo sem o nervo.

30
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

é possível imaginar, conforme Danemark, Ekstron,


Jakobsen e Karlsson (2002), a emoção que Loewi sentiu ao
aplicar a solução de sal no segundo coração? As batidas do
coração seriam reduzidas ou não? Foi fácil imaginar a alegria
da descoberta que Loewi sentiu quando o ritmo foi reduzido,
como se o nervo não tivesse sido estimulado. Ele concluiu
que a substância química operava através do músculo. Em
seguida, variou o experimento ao estimular, em uma nova
solução com sal, o nervo que teve um efeito rápido. Ao co-
locar o coração sem os nervos na solução com sal, seu ritmo
também aumentou.
Loewi estava convicto de que o mecanismo ativo é a
substância química iniciada pelo impulso nervoso, o qual
atua no músculo. Os eventos do experimento de Loewi con-
duziram a uma discussão, segundo os autores, sobre o papel
do inconsciente no processo criativo. O que Loewi realmente
fez? E por que foi tão difícil descobrir como desenvolver o
experimento?
Conforme Danemark, Ekstron, Jakobsen e Karlsson
(2002, p. 20),

o experimento pode ser descrito como uma inter-


venção ativa na realidade. Ao realizar uma série de
eventos, Loewi interferiu ele mesmo no curso da
natureza. O propósito do experimento foi descobrir,
detectar, revelar, procurar etc. alguma coisa sobre a
realidade que ainda não era conhecida, algo que não
poderia ser observado sem grande esforço.

Para esses autores, a manipulação de eventos precisa


acontecer. E, conforme a manipulação sistemática, a realida-
de reage e fornece ao pesquisador algum resultado – no caso
de Loewi –, levaram dezessete anos para descobrir como ele
pôde realizar tal experimento. é a partir dos resultados que o

31
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

pesquisador consegue construir teorias científicas, sendo essas


incluídas em nossa concepção de realidade.
Alicerçado num experimento científico, é possível con-
cluir, conforme esses pesquisadores que: (i) existe uma realida-
de independente de nosso conhecimento; (ii) a maneira como
essa realidade se comporta não é facilmente observada. Se
tudo fosse transparente, não haveria, portanto, a necessidade
da ciência. A realidade (Real) não é cristalina, esconde poderes
e mecanismos que não podemos enxergar. Contudo, podemos,
indiretamente, experienciar pela habilidade de “causalidade”8,
ou seja, podemos fazer com que as coisas aconteçam a nosso
redor. O que realmente ocorre no mundo não é o mesmo que
está sendo observado.
é impossível, então, pensar em uma ciência sem objetos
transitivos e intransitivos. O estudo dos objetos intransitivos
da ciência recebe o nome de “ontologia”. Conforme Bhaskar
(1978, p. 13), a dimensão intransitiva implica três níveis de
realidade, quais sejam:

• o Real9 ou mecanismos causais, poderes, tendências, etc.


é o que a ciência deve procurar descobrir;
• o Realizado ou acontecimentos observáveis, sequência de
eventos, pode ser produzido sob condições experimen-
tais ou ocorrer em conjunturas mais complexas, fora do
laboratório;
• o Empírico (fatos ou eventos observados) deve ser somente
um subconjunto de “b”.

8 Está basicamente relacionada ao poder do indivíduo para realizar alguma mudança.


9 No original: Real, Actual and Empirical. Opto pelos termos Real, Realizado e Empí-
rico. Reconheço que os estratos do Realizado e Empírico também são “reais” porque
estão relacionados aos poderes dos objetos sociais, bem como ativados em eventos.
Potencialidades podem ou não ser exercitadas.

32
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Enquanto o Realismo Empírico10 vê o mundo como


objetos atomísticos, eventos e regularidades entre eles, como
se não tivessem nenhuma estrutura e poderes, o Realismo
Crítico, ao contrário, distingue não apenas o mundo e nossa
experiência, mas também o Real, o Realizado e o Empírico
(BHASKAR, 1978, p. 13).
Na esteira desse filósofo, o domínio do Real pode ser en-
tendido como tudo que existe na natureza, sejam eles objetos
naturais – estruturas atômicas e estruturas químicas –, sejam
sociais – ideias, relações sociais, modos de produção, etc. O
Real é formado por estruturas, com poderes causais próprios. é
apenas investigando determinado fenômeno que será possível
distinguir estruturas (domínio do Real) de eventos (domínio
do Realizado). Estruturas podem ser compreendidas como
redes de relações, vinculadas a um conjunto de elementos,
definidos pelas posições que ocupam nessas redes de relação.
As estruturas têm potencialidades inerentes, que se manifestam
através de mecanismos de causação.
O domínio do Realizado consiste de eventos ou ativida-
des que são realizados e, portanto, geram efeitos de poder,
podendo ser observáveis ou não. Esse domínio ocorre quando
os poderes são ativados. Se tomarmos como exemplo um
trabalhador, sua força ou capacidade física de desempenhar
determinado tipo de trabalho se concentra no nível do Real,
ao passo que o exercício desse poder e seus efeitos pertencem
ao domínio do Realizado.
O domínio do Empírico–acontecimentos/fatos observá-
veis – é entendido como o domínio da experiência.
Na visão de Brown (2009), ao referir-se às crenças dos
alunos sobre a aprendizagem, poder-se-ia dizer que as crenças
dos alunos sobre a aprendizagem se concentram no domínio
10 Corrente filosófica defendida por Kant que trata da existência de uma realidade que,
por ser exterior à consciência, seria impossível de conhecer.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

do Real. Ao serem exercitadas por meio dos eventos (median-


te comportamentos), elas passam a pertencer ao domínio do
Realizado. A depender da habilidade do professor, os eventos
podem ser notados ou experienciados por ele (domínio da
experiência). Nesse contexto, é relevante que o professor
esteja consciente acerca das crenças e das concepções que
possam existir, uma vez que elas podem estar afetando a
aprendizagem dos alunos.
Ao considerar a estrutura da língua, poder-se-ia dizer
também que, como geradora de uma gramática e de vocabu-
lário, ela se concentra no nível do Real. Já a fala está centrada
no nível do Realizado (SAYER, 2000).
Ao fazer a distinção desses três domínios da realidade,
Bhaskar (1978) propõe uma “ontologia estratificada” em
oposição a outras ontologias “achatadas”, que reduzem em
Realizado e Empírico, ficando de fora o domínio do Real
(poderes).
O filósofo entende que cada um desses domínios é “Real”.
Para Benton e Craib (2001), há uma confusão terminológica
com essa palavra, como se os outros níveis também não o
fossem. A metáfora dos níveis implica que o realismo crítico
é uma forma de “realismo profundo”.
é importante destacar, à luz do entendimento de
Flewtwood (2005), que muitas coisas no mundo são consi-
deradas Reais, porém, apresentadas de maneiras diferentes.
O autor explica que existem pelo menos quatro formas que
realidade: (1) material – que se refere a entidades pura-
mente materiais como a água, terra, fogo; (2) ideal – alude
a entidades conceituais, como discurso, símbolos, os quais
possuem poderes causais, podendo ser idealmente reais ou
não; (3) artefactual – reporta-se a entidades físicas, tais
como computadores, televisão, etc., as quais, no entanto,
são entidades socialmente reais; (4) social – refere-se a

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

práticas, estados de coisas, estruturas sociais que constituem


as relações humanas.
O quadro 2, abaixo, ilustra os três domínios da realidade.

Real Realizado Empírico


Mecanismos 
Eventos  
Experiências   

Quadro 2 – Três domínios da realidade

Bhaskar explica que as estruturas são reais e existem inde-


pendentemente dos padrões de eventos. O filósofo assegura o
caráter intransitivo do Real e vê esse domínio como esfera com-
plexa formada por elementos diferenciados e estruturados. Nesse
sentido, é fácil compreender que a ciência não é uma determinada
constituição para o mundo, mas, em contrário, é o próprio mundo
que fornece a matéria para que a ciência seja possível.
Para estudar os objetos e suas estruturas, mecanismos e
eventos, é preciso considerar a “causalidade”, entendida não
como um relacionamento entre os eventos (causa e efeito),
mas como “poderes causais”11, ou seja, “modos de agir”
ou mecanismos. Na visão de Sayer (1984, p. 95), “pessoas
têm poderes causais para serem capazes de trabalhar, falar,
caminhar, reproduzir, etc.”. Conforme o autor, os “poderes
causais” existem independentemente se são exercitados ou
não. O relacionamento entre poderes causais ou mecanismos
e seus efeitos não é fixo, mas contingencial.
quando explicamos determinados fenômenos no mundo,
raramente os mecanismos que estão subjacentes são observa-

11 Potencialidades que podem ou não ser exercitadas.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

dos, uma vez que é preciso levar em conta os modos de opera-


ção não manifestados e não realizados. Poderes e mecanismos
podem estar presentes, mas não percebidos imediatamente.
A Figura 2, abaixo, ilustra bem o que acabei de dizer.

Figura 2 – Estruturas, mecanismos e eventos


(baseado em SAYER, 1984, p. 107)

Trata-se de conjunto de eventos, mecanismos e estrutu-


ras, e como eles ocorrem de maneira complexa. quando os
mecanismos são ativados, produzem determinados efeitos,
dependendo de outros mecanismos que podem existir. Um
mecanismo particular pode produzir diferentes ações em pe-
ríodos de tempo diferentes. E, inversamente, o mesmo evento
pode se revestir de diferentes causas.
Ao conhecer determinados objetos sociais ou naturais,
percebe-se que eles possuem poderes em virtude de suas es-
truturas. Os mecanismos se originam de estruturas e existem
em função delas. Ao analisar determinado objeto concreto,
por exemplo, é preciso compreender como esse objeto está
se apresentando. A abstração é uma maneira de fazer isso. Ao

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

fazer a abstração sobre determinado objeto, denotam-se suas


estruturas, poderes e mecanismos. Porém, não basta organizar
e explicar categorias apenas, é preciso procurar desvendar
outros estratos da realidade. Os mecanismos pertencem a
diferentes estratos da realidade – físico, químico, psicológi-
co, biológico. Ao mover de um estrato para outro, poderes e
mecanismos são desvelados do estrato subjacente. Esse estrato
e seus novos objetos surgem com estruturas específicas, po-
deres e mecanismos também. O início dessa nova ocorrência
é denominado “emergência”. Nesse sentido, é possível dizer
que determinado objeto tem “poderes emergentes”.
Nas palavras de Collier (1994, p. 43): “as coisas têm os
poderes que têm por causa de suas estruturas [...] Estruturas
causam poderes para serem exercitados, dado algum insumo,
alguma ‘causa eficiente’”.
Nos objetos sociais, as estruturas não podem existir in-
dependentemente das “ações” das pessoas. Conforme Sayer
(1984), a relação proprietário– inquilino, por exemplo, pode
estar, contingencialmente, relacionada com outras, como a
religião, a atividade de recreação, etc. A relação ente ambos
pressupõe a existência de propriedade privada, aluguel e outras
mais. Juntos, formam uma estrutura. Dentro de uma estrutura
social existem posições particulares, que estão associadas a
certos papéis.

Naturalismo Crítico

Em seu segundo livro intitulado The possibility of natu-


ralism12, Bhaskar ([1978] 1998) desenvolve um pensamento,
explorando o naturalismo crítico como uma filosofia antipositi-
vista, transpondo das ciências naturais para as ciências sociais.

12 A possibilidade do naturalismo.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Naturalismo pode ser definido como a tese de que “existe


(ou pode existir) uma unidade essencial de método entre as
ciências naturais e sociais” (BHASKAR, 1998, p. 2). Trata-
se de abordagem das ciências naturais que pode ser aplicada
às ciências sociais, desde que seja uma abordagem realista.
Nesse caso, a ontologia, bem como a estratificação da reali-
dade, devem ser mantidas. Da mesma forma, os domínios do
real, com seus poderes, estruturas de forças, e o domínio do
empírico onde os fenômenos são percebidos. No naturalismo,
não se permite reduzir o domínio do empírico ao domínio do
real, bem como o real ser revelado diretamente pelo empírico.
Conforme Bhaskar, a filosofia das ciências sociais encarta
duas tradições distintas: a naturalista, que tem procurado rei-
vindicar que “as ciências são (real ou idealmente) unificadas
em sua concordância com princípios positivistas, baseados
nas concepções humianas de lei” (BHASKAR, 1998, p. 2). E
a tradição antinaturalista, que tem demonstrado uma ruptura
metodológica entre ciências naturais e sociais, com base nas
diferenças de seus objetos de estudo. Nesta última, “o obje-
to das ciências sociais consiste essencialmente em objetos
significativos, e seu objetivo é a elucidação do significado
destes objetos” (Ibidem). O naturalismo também deve ser
distinguido a partir de duas espécies: reducionismo – porque
existe uma identidade real do objeto – e cientificismo – porque
nega a diferença existente entre os métodos apropriados para
estudar os objetos sociais e naturais. Na visão do filósofo, “é
a natureza do objeto que vai determinar a possível forma de
se fazer ciência” (BHASKAR, 1998, p. 3).
A tradição positivista ressalta que existem leis causais,
generalidades na vida social. A ciência, nesse caso, está
deslocada da sociedade. A teoria de Hume sobre leis causais
sustenta conjunções constantes de eventos ou estado de coisas.
Essa concepção vê o homem como passivo, automatizado,
com uma concepção de mundo constituída por dados e fatos

38
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

atomísticos (BHASKAR, 1998, p. 136). O positivismo é in-


capaz de sustentar as noções de estratificação e diferenciação
da realidade, bem como as distinções entre estruturas, eventos
e sistemas abertos e fechados. O positivismo se vê obstinado
por leis universais e generalizações, sendo incapaz de captar
o que está “além” das aparências, permitindo que conheçamos
os mecanismos gerativos dos fenômenos.
Conforme Benton e Craib (2001), a posição advogada por
Bhaskar sobre a abordagem “naturalista crítica” se assenta no
modelo interpretativista, ou hermenêutica da versão positivista
do “naturalismo”, que é de estudar objetos sociais seguindo o
mesmo modelo da ciência natural. Embora existam diferenças
entre os objetos naturais e sociais de conhecimento, ainda é
possível, segundo esses autores, ter uma ciência da sociedade,
seguindo o mesmo modelo que a ciência da natureza, mas
não necessariamente da mesma maneira com o emprego dos
mesmos métodos.
Na tradição hermenêutica, a realidade é pré-interpetrada,
trazida sob os conceitos dos atores para ser compreendida, ou
seja, a sociedade passa a ser considerada um objeto científico,
com conceitos de subjetividade, carregado de significados.
No entendimento de Bhaskar (1998), a possibilidade do
naturalismo nas ciências sociais constitui o principal problema
da filosofia das ciências. Ao propor um naturalismo antiposi-
tivista, baseado essencialmente na visão realista de ciência, o
filósofo reivindica uma investigação ontológica do naturalis-
mo nas ciências sociais. Ele faz o seguinte questionamento:
que propriedades têm as sociedades que podem torná-las
possíveis objetos de conhecimento para nós? Dito de outra
maneira: de onde originam as propriedades que as sociedades
possuem? Trata-se, aqui, de questão ontológica. E, ao indagar
sobre “como as propriedades tornam as sociedades possíveis
objetos de conhecimento para nós”, ele introduz outra questão

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

de caráter epistemológico. Em sua visão, a reflexão ontológica


precede à epistemológica.
Ao explicar sua concepção transformacional da socie-
dade, Bhaskar (1998, p. 32) contraria os modelos propostos
por Weber, Durkheim e Berger. No modelo 1 de Weber (vo-
luntarismo), objetos sociais são resultado do comportamento
intencional dos indivíduos. A sociedade é reduzida apenas às
ações dos indivíduos. No modelo 2 de Durkheim – reificação
ou coisificação –, objetos sociais são externos e exercem coer-
ção sobre os indivíduos. Ou seja,a sociedade tem total poder,
mas acaba alienando os indivíduos, tornando-os passivos. No
modelo 3 de Berger – dialético –, a sociedade e os indivíduos
são momentos de um mesmo processo, ou seja, a sociedade
cria os indivíduos, que, por sua vez, criam a sociedade.
Ao propor seu modelo acerca da relação sociedade/pes-
soa, Bhaskar denomina-o de Modelo Transformacional da
Atividade Social. Para ele, as pessoas não criam a sociedade,
uma vez que a sociedade preexiste a elas. Em suas palavras:

As pessoas não criam a sociedade. A sociedade sem-


pre preexiste às pessoas e é uma condição necessária
para sua atividade. Ao contrário, a sociedade deve
ser encarada como um conjunto de estruturas, práti-
cas e convenções que os indivíduos reproduzem ou
transformam, mas que não existe independentemente
da atividade humana (erro de reificação). Mas não é
produto da atividade humana (erro de voluntarismo).
[...] é importante salientar que a reprodução e/ou
transformação da sociedade, embora na maioria dos
casos seja inconscientemente alcançada, é, não obs-
tante, uma realização competente de sujeitos ativos, e
não uma consequência mecânica de condições ante-
cedentes. (BHASKAR, 1998, p. 36). (Grifos meus).

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

O modelo de conexão sociedade/pessoa pode ser repre-


sentado conforme a Figura 3, ilustrada a seguir.

Figura 3 – Modelo Transformacional da Atividade Social (MTAS)

Nesse modelo, a “sociedade fornece as condições ne-


cessárias para a ação intencional, e a ação intencional é uma
condição necessária para a sociedade” (BHASKAR, 1998,
p. 36). Ou seja, os indivíduos devem não apenas produzir
produtos sociais, mas realizar as condições de sua produção,
reproduzindo ou transformando as estruturas que governam
suas atividades de produção. Como as estruturas sociais são
produtos sociais, elas são também possíveis objetos de trans-
formação, sendo, portanto, relativamente duradouras.
A sociedade é, conforme o autor, um conjunto articulado
de tendências e poderes que, diferentemente dos objetos na-
turais, existem somente na medida em que estão sendo exer-
cidos, conforme a atividade intencional dos seres humanos.
Nesse sentido, as estruturas sociais são ontologicamen-
te diferentes das estruturas naturais. Diferenças essas que
Bhaskar (1998, p. 38) assim as descreve:

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

• As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu-


rais, não existem independentemente nas atividades que
governam.

• As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu-


rais, não existem independentemente das concepções dos
agentes acerca do que estejam realizando em sua atividade.

• As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu-


rais, podem ser apenas relativamente duradouras (de modo
que as tendências sobre as quais se baseiam não podem
ser universais no sentido da invariância espaço-temporal.

Vale ressaltar que, embora existam diferenças reais nos


possíveis objetos de conhecimento das ciências sociais e
naturais, em nenhum momento a sociedade é desconectada
do natural. O que Bhaskar quer salientar é a estratificação
ontológica. As estruturas sociais estão continuamente sendo
reproduzidas ou transformadas, e elas só existem em virtude
do agir humano.
Para o autor, a sociedade, em razão do seu caráter aberto
(sistema aberto), não é um objeto que podemos, então, prever
de maneira dedutivamente justificada. Normalmente ocorrem
desenvolvimentos qualitativos que a teoria científica social
não pode antecipar. é sempre um caráter provisório.

Crítica explanatória

A crítica explanatória que Bhaskar propõe nada mais é


do que uma contestação transcendental do positivismo nas
ciências naturais, visto que todas as ciências possuem uma
dimensão intransitiva e uma transitiva. O positivismo de Hume
defende uma ontologia empiricista, totalmente contrária ao

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

posicionamento de Bhaskar. Como já mencionado, Hume


entende que o conhecimento e suas conjunções de eventos
ocorrem de maneira incessante e fragmentariamente. Ou seja,
ele reduz as leis e sequência de eventos a experiências observá-
veis, fornecendo ao pesquisador o “domínio” sobre o mundo.
Bhaskar (1978) propõe uma alternativa abrangente para o
positivismo, que desde a época de Hume tem assegurado uma
imagem positivista de ciência sobre leis causais. Conforme o
filósofo, uma conjunção constante de eventos não é condição
necessária e suficiente para garantir uma lei científica. Ao con-
trário, isso só deve ser demonstrado através de um argumento
transcendental da natureza da atividade experimental. Os
acontecimentos ocorrem independentemente de experiências
que, muitas vezes, são identificadas de maneira equivocada.
A crítica explanatória sustenta um conceito de que os
objetos das ciências sociais, diferentemente das ciências na-
turais, devem abranger crenças, incluindo julgamento de valor
e ação. O estudo de determinada sociedade, em determinado
momento histórico, acrescerá informações sobre a estrutura da
sociedade desse período. Muitas pessoas, por exemplo, acredi-
tam que a sociedade é uma sociedade sem classes, quando na
verdade não é. As crenças podem ter efeitos sobre a estrutura,
impedindo as pessoas de tentar alterá-las (BHASKAR, 1998).
Isso abre a possibilidade de expandir o realismo crítico para
o reino dos valores e da moralidade, encontrar uma dimensão
intransitiva subjacente ao pensamento moral.
Bhaskar assegura que as ciências sociais devem ser
morais. O mundo é constituído não apenas de crenças, mas
também de valores. Ao explicar uma crença como falsa, ou
seja, como uma ideologia, é necessário fazer uma avaliação
negativa do sistema que provocou essa falsa crença e, ao
mesmo tempo, realizar uma avaliação positiva da ação trans-
formadora visando modificar o sistema.

43
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Na visão do filósofo, as ciências sociais não são neutras;


em contrário, elas devem ser críticas, com possibilidades de
intervenção prática na vida social. Para Bhaskar, os cientistas
sociais precisam assumir uma posição sobre o que realmente
nos interessa acerca do que fazer, dizer, sentir e pensar. Às
vezes, implica juízos práticos de valor. A possibilidade da
crítica científica desfila para as ciências humanas importante
impulso emancipatório.
As ciências sociais podem gerar impacto mais direto
na esfera de valores, pois certos juízos de valor – de grande
importância para os movimentos emancipatórios – podem
ser aceitos nas ciências sociais, dado que envolve “desejo,
vontade, sentimento, capacidades, facilidades, oportunidades
e crenças” (BHASKAR, 1998, p. 411).
Bhaskar (1998, p. 410) assegura que, embora o conheci-
mento seja necessário, é insuficiente para a liberdade. Ser livre
acarreta: (i) conhecer os reais interesses; (ii) possuir habilida-
des, recursos e oportunidade para agir; (iii) estar disposto a
agir. A política emancipatória deve estar, portanto, alicerçada
em uma teoria científica e revolucionária.
Nas palavras do autor:

[...] Eu quero focalizar na estrutura lógica da crítica


explanatória. A possibilidade de tal crítica constitui
o núcleo do potencial emancipatório das ciências
humanas; a possibilidade da efetividade de tal crítica
na história da humanidade é, talvez, a única chance
da não barbárie, ou seja, a sobrevivência da espécie
humana [...] (BHASKAR, 1998, p. 417).

O potencial emancipatório nasce, consequentemente,


da capacidade da agência intencional e da prática reflexiva.
Os indivíduos possuem poderes causais para reproduzir ou
transformar as estruturas sociais.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A socióloga e realista crítica Margaret Archer (2000),


em seu livro intitulado Being Human13, tem discutido a re-
lação estrutura social e agência. Como conectá-las sem a
necessidade de redução ou conflação? Em sua análise sobre
a morfogênese da agência, a autora argumenta a necessidade
de compreender as propriedades e os poderes dos seres hu-
manos e como eles emergem através de nossas relações com
o mundo, não podendo ser construídos apenas como “socie-
dade”, “linguagem”, “discurso” e “diálogo”. Uma das mais
importantes propriedades que nós temos é de nos conhecer, e
isso depende da prática do diálogo na sociedade.
Antenada com os princípios filosóficos do realismo
crítico, Archer (2000) advoga que os poderes causais estão
intimamente relacionados à agência, e não à sociedade. Ela
considera que os indivíduos “têm poderes de monitoramento
contínuo, tanto do self (eu), quanto da sociedade” (ARCHER,
2000, p. 74). Ou seja, os indivíduos possuem uma capacidade
tanto para cuidar de suas próprias ações quanto das ações do
meio em que vive. A autora assegura que o self emerge das
práticas sociais, irredutíveis à sociedade. Cada indivíduo
decide, através de “conversas internas”, como lidar com as
implicações da realidade, seja na relação com ele mesmo,
seja na relação com os outros. Tudo que assumimos como
compromissos ou preocupações sempre estará sujeito a mo-
dificação ou renovação, que estão embasadas nesse diálogo
interior. As “conversas internas” são os poderes emergentes
pessoais exercitados no mundo “natural, prático e social”
(ARCHER, 2000, p. 317).
Para Archer, cada um de nós precisa descobrir-se através
de práticas do “diálogo interior”, distinguir o “eu” e a “diver-
sidade”, o “sujeito” e “objeto”, antes de chegar à distinção
entre o “eu” e “outras pessoas”. O “diálogo interior” não seria

13 Ser humano.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

apenas uma janela sobre o mundo, e, sim, o que determina


nosso “ser no mundo” (ARCHER, 2000, p. 318). O mais im-
portante, na visão da autora, é conhecer-nos profundamente.
Somos nós que determinamos nossas prioridades e de-
finimos nossa identidade. Nada no mundo pode ditar como
devemos listar nossas prioridades, embora existam forças
externas nos induzindo a seguir outro caminho, principal-
mente os poderes discursivos da ordem social. é através da
informação externa e da deliberação interna que podemos
alcançar a identidade pessoal, incluindo nossos valores. Archer
assegura que o ser humano é altamente reflexivo e avaliativo.
Ao abrirmos para as “conversas internas”, “nós descobriremos
não apenas um rico campo de pesquisa, mas o encantamento
de todo ser humano” (ARCHER, 2000).
Nesse sentido, são os agentes sociais que delineiam as
deliberações reflexivas, através das “conversas internas”. O
“eu” reflexivo constitui, portanto, um mecanismo capaz de
conectar os poderes causais à agência.
Nessa mesma esteira, Bhaskar (1998) consolida que todo
o comportamento humano tem uma razão, e que, por isso, é
intencional. O agente (e outros) pode ou não estar consciente
das razões que causam seu comportamento intencional, por-
quanto as ações humanas podem ter mecanismos psicológicos,
indisponíveis à consciência. A capacidade para o automonito-
ramento das intervenções causais no mundo, segundo o autor,
está intimamente conectada com a linguagem, concebida como
um sistema de signos aptos para a produção e a comunicação
da informação. Nossa habilidade linguística de realizar algum
comentário retrospectivo referente a nossas intervenções cau-
sais no mundo é expressa por meio de sons e gestos.
A discussão acerca da agência é relevante aqui, consi-
derando nosso processo interno de construção de valores e
identidade – social e pessoal –. Somos agentes reflexivos e

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

ocupamos determinada posição na sociedade. Pensamos e


refletimos o nosso cotidiano e sobre o mundo ao nosso redor,
com vista a transformá-lo. Só nos tornamos quem somos
através do sentido que damos às reflexões que fazemos.

Segunda onda

Realismo Crítico Dialético

O realismo crítico dialético tem como marco a obra inti-


tulada Dialectic: The Pulse of Freedom14. O realismo crítico
dialético elabora uma metacrítica das filosofias anteriores, nos
domínios do ontológico, epistemológico e ético da realidade.
Trata-se de uma teoria que aborda a dialética, tematizando
conceitos acerca da não identidade, negatividade, totalidade
e agência transformativa. Ao criticar a redução do domínio
do Real ao domínio do Realizado, o autor situa a ausência
como ponto fulcral.
A bipolaridade do negativo (ausência) e do positivo
(emergência) implica colocar a ausência no coração da po-
sitividade. Central à dialética é o conceito de ausência, que
deriva da crítica bhaskariana à monovalência, que engloba a
redução do domínio do Real ao domínio do Realizado. Isto
situa a ausência no cerne da positividade e, assim, o não-ser
é a condição da possibilidade do ser, e a dialética é o processo
de ausentar a ausência (BHASKAR, 1998). Em suas palavras:

de maneira importante, se a ausência (negatividade)


é um polo do positivo, então o positivo não pode ser
positivizado de forma bem-sucedida [...] A dialética
torna-se o “grande afrouxador” (“great loosener”),
permitindo uma “textura aberta” do ponto de vista
empírico, [...] a fluidez estrutural e a interconectivi-
dade (BHASKAR, 1998, p. 564).
14 Dialética: o pulsar da liberdade.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Para o realismo crítico dialético, a emergência é uma ca-


tegoria que envolve alguma coisa nova que surge de repente,
ou seja, uma substância, entidade ou sistema que é dependente
de sua existência de alguma outra substância, entidade, pro-
priedade ou sistema.
Bhaskar também postula a propósito do realismo crítico
dialético em seu outro livro intitulado Plato, etc. Nesse tra-
balho, o filósofo resume sua obra em sete teses:

(1) A humanidade não é o centro do cosmo; (2)


Existem realidades que não são atuais; (3) Não seres
existem; (4) Entidades permeiam umas às outras;
(5) A causalidade intencional existe; (6) Valores
podem ser derivados de fatos; (7) A boa sociedade
está implícita no desejo elementar (BHASKAR,
1994, p. 161).

Bhaskar desenvolve um pensamento dialético que serve


de transição para a terceira onda do realismo crítico, denomi-
nado “realismo crítico transcendental”.

Terceira onda

Realismo crítico transcendental

Esta terceira onda é fortemente marcada através das obras


From East to West: the Odyssey of soul (2000)15, From Science
to Emancipation16(2002) e Reflections on Metareality17(2002a;
2012). Nessa terceira fase de seu pensamento, Bhaskar se
move para uma filosofia espiritual. “O realismo ontológico
acerca de Deus na dimensão intransitiva é consistente com o
relativismo epistêmico ou experiencial na dimensão transitiva”

15 Do Leste para o Oeste: a odisseia da alma.


16 Da ciência para a emancipação.
17 Reflexões sobre a metarrealidade.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

(BHASKAR, 2002b, p. 146). O filósofo traz um fundamento


acerca de Deus. Deus é o poder causal de todos os poderes
causais. Bhaskar (2000, p. 238) questiona: “quem somos
nós?”, “O que somos essencialmente? Ao apresentar essas
indagações, ele quer mostrar o “ser o ser”, o tornar-se ser
quando nos conectamos com uma realidade mais profunda
até alcançarmos nosso verdadeiro Eu (self ). E esse self se
encontra em seu “estado-base” (ground state) e, ao conectar
com todos os seres, torna-se, então, conectado com tudo que
existe no universo.
No livro From east to west: the Odyssey of soul, o fi-
lósofo desenvolve um pensamento acerca da reencarnação,
apresentando uma narrativa sobre suas vidas passadas, ao
incluir a autorrealização, denominada por ele de realismo
crítico dialético transcendental. Trata-se de jornada acerca
da transcendência da alma, numa sequência de experiências
de várias reencarnações. Foi uma “virada espiritual” em que
o filósofo passou a dar mais ênfase aos valores da alma. Essa
obra e outras surgidas causaram uma situação de ruptura com
o movimento do realismo crítico.
Ele argumenta que a “estrutura básica do homem e do
mundo – do qual o homem faz parte – é Deus” (BHASKAR,
2000, p. ix). Ou seja, Deus é o amor incondicional, uma paz
infinita e plena de felicidade, e todos os seres humanos são
essencialmente divinos. A postura mais correta e ética é a do
amor pleno para todos os seres vivos. Nesse sentido, o livro
constitui uma ampliação do realismo crítico dialético, atinente
a um pensamento transcendental radical sobre transcendência
e Deus, alicerçada em uma moralidade objetiva da natureza
intrínseca do ´eu´.
Em 2002, o filósofo publica o livro From Science to
Emancipation, com interesse de expor suas conferências
realizadas na Europa, ásia e América, de 1997 a 2002.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Nesse trabalho, Bhaskar dá mais visibilidade às questões


espirituais e transcendentais. O capítulo 11, o mais rele-
vante diga-se de passagem, é dedicado aos educadores.
Bhaskar (2002a, p. 299) faz o mesmo questionamento que
Marx fizera em sua terceira tese sobre Feuerbach: quem vai
educar os educadores? Quem vai empoderá-los? Quem vai
transformá-los?
O filósofo busca responder essas questões, a partir da
dialética da automudança, autotransformação. Em seu enten-
dimento, a mudança deve ocorrer de dentro para fora. Nesse
sentido, ele entende que não há contradição entre espiritua-
lidade e mudança social, e que a educação tem, portanto, o
compromisso com a transformação das estruturas sociais e a
emancipação de todos. Em suas palavras:

Emancipação não pode ser imposta de fora, a


emancipação sempre vem de dentro [...] Como isso
funciona exatamente? A partir de uma inspiração
espiritual, você passa a ter uma experiência política,
que o leve a um compromisso com a mudança social
radical (BHASKAR, 2002a, p. 301-302).

Nesse livro From Science to Emancipation, Bhaskar anun-


cia sua posição acerca de seu novo trabalho que é a Metarreali-
dade. Trata-se de uma filosofia que surge após o realismo crítico.
Publica nesse mesmo ano de 2002 Reflection on Meta-Reality
(BHASKAR, 2002a, 2012). Conforme o filósofo, Realismo
Crítico Transcendental ou Metarrealidade se refere a um nível
mais etéreo que transcende a realidade. Em suas palavras: “o
realismo que toca à transcendência leva à própria transcendência
do realismo” (BHASKAR, 2012, p. 16).

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Metarrealidade

Essa nova posição filosófica vai além do realismo crítico,


uma vez que enxerga a realidade em estados de não dualidade
e fases do ser, revelando todas as formas humanas, incluindo
a vida, fenômenos ligados à totalidade do cosmo. Para entrar
o mundo da Metarrealidade, é preciso compreender as limi-
tações deste mundo de dualidade, ou seja, de infelicidade,
opressão, conflitos.
Na visão de Bhaskar (2012, p. 8), “ é um mundo em que
nós estamos alienados de nós mesmos, uns aos outros”. O que o
ser humano está fazendo atualmente tende a empurrá-lo para a
autodestruição. A filosofia da Metarrealidade busca exatamente
o crescimento do ser humano, sustentado pela energia do amor,
em atividades não duais de nosso ser. Ao tornar-se consciente
disso, o ser humano passa, então, a buscar sua transformação,
derrubando as estruturas da opressão, alienação, miséria, etc.
Nesse sentido, é preciso expandir, conforme Bhaskar, a zona de
não dualidade, tornando-se seres não duais em um mundo de
dualidade. A não dualidade é de suma importância não apenas
para a ação e consciência, mas para o próprio ser.
Bhaskar argumenta que a estrutura fundamental do
homem e do mundo é Deus. Ou seja, Deus é o amor incon-
dicional, uma paz infinita e plena de felicidade, e que todos
os seres humanos são essencialmente divinos. A postura mais
correta e ética é do amor pleno para todos os seres vivos. Nesse
sentido, o livro “Reflexões sobre a metarrealidade” constitui
uma ampliação do realismo crítico dialético, abarcando um
pensamento transcendental radical sobre transcendência e
Deus, alicerçada em uma moralidade objetiva da natureza
intrínseca do “eu”.
Para o filósofo, todos os projetos emancipatórios envol-
vem pressupostos profundos acerca da natureza dos seres

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

humanos, seja o mundo social, seja o mundo natural. é im-


portante para o realismo crítico pensar o ser processualmente,
envolvendo “ausência” e “mudança”. Pensar o ser na qualida-
de de agência transformadora e reflexividade. A reflexividade
é importante porque contribui para monitorar as atitudes, bem
como explicar cada situação vivida.
Na visão de Bhaskar (2012), existem quatro dimensões
para o ser pensante. A primeira dimensão, denominada por ele
de “ontologia”, é o nível do ser como tal. A segunda se refere
à negatividade ou ausência. A terceira é o ser como totalidade.
A quarta envolve a intervenção humana transformadora como
uma parte essencial do todo.
A filosofia da Metarrealidade questiona uma ontologia
que está além da ciência, enxergando o ser como reencantado.
Nas palavras do autor:

[...] Nesta concepção vastamente expandida do ser, e


na própria ontologia expandida necessitada por esta
concepção, vemos agora o ser como reencantado, isto
é, valioso, sutil, misterioso e contendo qualidades e
conexões invisíveis (mais frequentemente desco-
nhecidas e até não manifestas), sutis, misteriosas
e até mágicas que nossas ciências contemporâneas
desconhecem completamente[...] (BHASKAR,
2012, p. 257).

Bhaskar expõe uma filosofia inspiradora para a autorre-


alização universal. Embora não tenha simpatia por nenhuma
prática religiosa, o filósofo entende ser perfeitamente possível
alguém sentir a necessidade disso. Ele não acredita que a cren-
ça em Deus seja a condição necessária para que o ser humano
seja bom. Há muitas pessoas más, por exemplo, que acreditam
em Deus. Bhaskar acredita muito mais na essência divina, na
espiritualidade da vida e na ação correta dos homens, do que
na fé baseada em uma teologia. A essência de Deus está em

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

todos os seres, conectados no universo, o qual ele denomina


de envelope cósmico, ou seja, o nível último do universo.
Conforme o filósofo, o envelope cósmico seria uma es-
pécie de “absoluto”, embora ele não afirme que este envelope
cósmico seja Deus. Na verdade, o que Bhaskar quer defender
é uma espiritualidade que está em consonância com todas as
religiões e não religiões.
Em suas palavras:

[..] Do mesmo modo que tudo no universo está impli-


citamente em mim, ou seja, todo objeto no universo
está contido em minha consciência, copresente a
mim [...] (BHASKAR, 2002a, p. 215)

Ao tomar consciência de que todo o universo está conectado


em cada um, em seu estado-base, de não dualidade, o ser humano
passa, então, a sintonizar com o envelope cósmico, unindo toda a
criação no universo em sua totalidade. Todos os seres humanos
são corporificados porque têm uma mente racional, emoções,
sentimentos e um corpo físico. Como ele mesmo diz:

[...] De fato, é a natureza física da nossa corporifica-


ção que define nossa separação e permite um grau de
validade para o sentido do ego que todos nós temos,
o qual é parte da lógica do capitalismo e da nossa
sociedade (BHASKAR, 2000, p. 239).

O “ego” é um “eu” separado que está em oposição a todos


os outros “eus”. O ego é essencial para o discurso filosófico
da modernidade, para o capitalismo e para muitas instituições
sociais existentes. Muitas coisas em nossa sociedade, segundo
o autor, pressupõem um sujeito isolado.
Conforme o autor, as estruturas profundas de opressão e
alienação, por exemplo, são estruturas de dualidade, fundadas

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

no princípio da não dualidade, as quais o realismo crítico tem


teorizado. Essas estruturas dominam não apenas o mundo da
dualidade, mas também a base não dual, que é o nosso estado-
base ou estado-fundamental de ser.
Bhaskar entende que uma sociedade livre só é possível se
o ser humano se libertar das estruturas da opressão, alienação
e exploração. A raiz de toda a alienação, segundo ele, é a auto-
alienação, que é a alienação de nós mesmos. Como Kant, ele
também assegura que, acima de nós, temos o céu estrelado,
e dentro temos uma lei moral. Todo sofrimento tem como
causa a alienação em nosso eu verdadeiro. A autorrealização
individual é o único caminho para a autorrealização universal.
Na visão do filósofo inglês, todo evento social envolve
quatro dimensões no que ele chama de Quadri-Planar do Ser
Social (BHASKAR, 2012, p. 150), a saber:

1. nossa transação material com a natureza;


2. nossa interação com os outros;
3. estrutura social; e
4. a estratificação de nossas personalidades corporificadas.

Tudo o que fazemos envolve a transação com a natureza,


ou seja, há sempre troca de energia com o mundo material.
Ocorre também interação com as pessoas. Estamos sempre
nos interagindo em qualquer evento social. Todo evento social
precisa, então, ser compreendido em termos do relacionamento
com as estruturas sociais – formas políticas, economia, lingua-
gem, etc. A estrutura social está intimamente ligada à agência
humana. Ela preexiste a agência, ou seja, nós não a criamos;
porém, podemos reproduzir ou transformar.
Há coisas que preexistem a nós, mas elas não existem
independentemente da agência humana. Tudo que acontece

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na sociedade, acontece em virtude da agência intencional. O


que os agentes fazem é reproduzir ou transformar. Não conse-
guiremos ser livres se existirem estruturas sociais opressivas
em nosso redor.
A estratificação de nossa personalidade, conforme
Bhaskar (2012, p. 150), envolve as “estruturas internas” que
existem em cada um de nós, como a raiva, a agressividade, o
ciúme, o ódio ou o amor. Para o autor, somos profundamente
alienados dessas quatro dimensões do ser social. Somos alie-
nados de nós mesmos, das interações com os outros. Somos
alienados das estruturas sociais e do mundo material. Um
exemplo claro, segundo o filósofo, é o problema ecológico
que a humanidade está sofrendo. Poucos resultados positivos
têm sido apresentados na prática. Porém, somos seres huma-
nos reflexivos, capazes de monitorar e mudar nosso modo
de agir no mundo. Na trilha de Archer (2000), os indivíduos
têm poderes para monitorar suas ações, tanto do self quanto
da sociedade. Nas palavras de Bhaskar:

[...]estamos globalmente interconectados com tudo,


e se nosso planeta precisa sobreviver, se as espécies
humanas precisam sobreviver, muitas mudanças
radicais na nossa transação material com a natureza
e com os outros são essenciais[...] (BHASKAR,
2012, p. 92).

Nos últimos anos, a proposta filosófica do realismo crítico


dialético transcendental defendida por Bhaskar tem revelado
convergência e divergência de opiniões no cenário acadêmi-
co, tanto nacional quanto internacional. De fato, essa terceira
onda trouxe certa descrença aos pesquisadores das diferentes
áreas do conhecimento que acenavam positivamente com nova
proposta do RC para as ciências sociais e naturais. Contudo,
entendo que a voz antecipada do filósofo acerca da metarrea-
lidade somente terá eco nas próximas décadas. Vandenberghe

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(2014) postula que o século xxI será espiritual ou não será.


Asseguro que será definitivamente espiritual.
Ao finalizar esta primeira parte do livro, destaco alguns
pontos importantes do RC, quais sejam:

• O mundo existe independentemente dos conceitos (co-


nhecimento) que temos sobre ele.
• O conhecimento possui dimensões transitivas e intran-
sitivas.
• O mundo é estratificado nos domínios do Real, Realizado
e Empírico.
• Os objetos que estudamos consistem de propriedades
emergentes, e que, portanto, são diferenciados e mutáveis,
ao invés de uniforme e fixo.
• A ontologia consiste da natureza da realidade, ou seja,
como nós a vemos, ao passo que a epistemologia diz
respeito sobre como e o quê conhecemos.
• Os mecanismos originam de estruturas, existem em função
delas.
• Os poderes causais existem independentemente se são
exercitados ou não.
• Os poderes causais das estruturas e sistemas culturais são
mediados através da agência humana.
• O mundo é constituído não apenas de fatos (crenças), mas
também de valores.
• O século XXI será definitivamente espiritual.

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PARTE II

ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

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Na década de 1970, na Grã-Bretanha, um grupo de lin-


guistas (FOWLER et al., 1979; KRESS; HODGE, 1979) ini-
ciou estudos sobre a “linguística crítica”, combinando teorias e
métodos da análise textual e da linguística sistêmico-funcional
com teorias sobre ideologia.
Nessa mesma época, na França, Michel Pêcheux e seus
colaboradores (PêCHEUx et al., [1979] 2009) também esta-
vam propondo uma abordagem crítica de discurso, tentando
combinar uma teoria social do discurso com um método tex-
tual. A principal base teórica de Pêcheux foi o pensamento
marxista de ideologia de Althusser ([1971] 1992). Todavia,
conforme assegura Fairclough (2001 p. 20), essa teoria pro-
posta pelo grupo de Pêcheux confere mais ênfase ao papel
ideológico dos textos, ou seja, procura desvelar apenas as
relações de poder existentes. Pouca atenção é dada à luta e
à transformação nas relações de poder instituídas por grupos
e organizações dominantes. Ou seja, não há, sob hipótese
alguma, a preocupação com mudanças sociais.
Em 1989, Norman Fairclough, em seu livro intitulado
Language and Power1, dá destaque à Teoria Social do Discur-
so, uma proposta teórico-metodológica que se convencionou
chamar de Análise Crítica do Discurso (ACD). Nesse traba-
lho, o autor procurou explicar e exemplificar sobre os efeitos
sociais que operam nos textos, bem como as mudanças que
pudessem superar as relações sociais de poder, sustentadas
pela ideologia.

1 Linguagem e poder.

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Para compreender o que vem a ser a abordagem da ACD,


é preciso fazer um questionamento crítico da vida social em
termos políticos e morais, isto é, em termos de justiça e poder,
visando contribuir para a superação das desigualdades e das
injustiças que ainda operam na sociedade. O interesse pela
ACD não deve se pautar apenas no desvelamento das relações
sociais existentes de poder e dominação que estão presentes
nos textos, mas também “agir sobre o mundo e especialmente
sobre os outros” (FAIRCLOUGH, 2001. p. 91), visando operar
transformações sociais. Ou seja, a ACD tem, em seu escopo,
uma teoria social crítica, interligada a um campo de pesquisa
que visa operar mudanças nas relações sociais de poder e
dominação, e que, finalmente, precisa basear-se em análises
linguísticas – análise de textos orais ou escritos.

ACD e a ontologia social realista

Bhaskar (1978) desenvolve uma crítica às visões racio-


nalistas e empiristas de ciência. O filósofo procura demonstrar
que a teoria humiana de leis causais levou a uma deterioração
da teoria e, consequentemente, da questão ontológica. Elabora
uma nova alternativa de explicação da ciência, valorizando
a “ontologia” que antes era desprestigiada pelas correntes
positivistas e empiristas.
Bhaskar (1978) assegura que a ciência deve servir para
revelar algo que sirva para transformar a realidade social.
Porém, a realidade possui dimensões profundas, as quais não
são diretamente observáveis. é dizer sobre “algo que está
abaixo da superfície”, ou seja, que existe alguma coisa mais
profunda que não é possível descobrir. é isso que interessa
aos cientistas sociais críticos que comungam o pensamento do
realismo crítico. O conhecimento precisa fazer sentido para
que a realidade possa ser transformada. é preciso penetrar nas
raízes dos problemas sociais, com suas estruturas, mecanismos

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e poderes, visualizando uma “crítica explanatória” que possa


gerar argumentos críticos à transformação social. Para ele,

a ciência é, de fato, um processo contínuo, mas é


um processo com um propósito central: aprofundar
o conhecimento dos mecanismos transfactualmente
ativos sempre mais profundos da natureza [e da
sociedade]. (BHASKAR, 1978, p. 50).

Ao defender a ontologia social, Bhaskar (1978) sustenta


que as práticas científicas devem ser estudadas transcendental-
mente. Conforme o filósofo, toda e qualquer prática científica
pressupõe uma visão de mundo antes mesmo da investigação.
Como já mencionado, Bhaskar formula a seguinte pergunta:
“Como deve ser o mundo para que a ciência seja possível?”
(BHASKAR, [1975] 1978, p. 36). A resposta para essa questão
filosófica ele dá o nome de ontologia.
Conforme Fairclough (2003a; cf. também Resende,
2009), a ACD está baseada numa ontologia social realista
posto que eventos concretos e estruturas sociais são parte da
realidade social. Oportuno suas palavras:

A perspectiva social em que me baseio é realista, fun-


damentada em uma ontologia realista: tanto eventos
sociais concretos como estruturas abstratas, assim
como menos abstratas “práticas sociais”, são parte da
realidade. Podemos fazer uma distinção do Real e do
Realizado – o que é possível devido à natureza (cons-
trangimentos e possibilidades) de estruturas sociais e
práticas, e o que acontece de fato. Ambos precisam
ser distinguidos do “empírico”, o que sabemos sobre
a realidade. (FAIRCLOUGH, 2003a, p. 14).

O mundo constitui em realidades que afetam e limitam a


construção textual (ou discursiva) do social. Podemos textual-
mente construir (representar, imaginar, etc.) o mundo social em

61
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modos particulares, porém, a nossa representação irá depender


de vários fatores contextuais. Por exemplo, os textos – orais
ou escritos – podem trazer mudanças em nosso conhecimento
(crenças, atitudes, valores, etc). Podem ainda produzir efeitos
causais, gerando guerras, perda de emprego, etc. Os textos
podem também contribuir para mudanças na sociedade. Seus
efeitos incluem mudanças no mundo material, mudanças na
arquitetura urbana, mudanças nas atitudes das pessoas, rela-
ções sociais e no mundo material (FAIRCLOUGH, 2003a).
Todavia, é preciso ter claro que não é uma causalidade
simples. Não podemos, por exemplo, dizer que exemplos par-
ticulares de textos podem trazer mudanças no conhecimento
ou comportamento das pessoas. Podemos aceitar, conforme
Fairclough (2003a, p. 9), que o mundo social é textualmente
construído, mas não numa versão extrema2.

Realismo crítico e a negligência para com a semiose:


algumas implicações para a ACD

Conforme Fairclough, Jessop e Sayer (2010), os realistas


críticos têm negligenciado o estudo da semiose – linguagem
verbal, corporal, imagens visuais, etc.ao defenderem que ra-
zões podem ser causas. Conforme esses autores, a abordagem
do realismo crítico pode iluminar a semiose. Embora seja
perfeitamente possível se comunicar de maneira não inten-
cional, normalmente, quando alguém fala e escreve, faz isso
com o objetivo de produzir algum tipo de resposta. Todavia,
as respostas sobre como a semiose produz efeitos podem ser
consideradas sérias pela ausência de análise na ciência social.
A semiose é parte crucial da vida social. Embora ela seja
um aspecto de qualquer prática social – na medida em que as
práticas implicam semiose –, nenhuma prática social é redutí-
2 Para uma discussão mais ampliada sobre a construção do mundo social, conferir
Sayer, 2000.

62
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

vel apenas à semiose. Ou seja, a semiose não pode ser reduzida


somente ao jogo de sinais – como se ela sempre fosse uma
questão puramente intrassemiótica, sem referência externa –,
sem se identificar e explorar as condições extrassemióticas que
a tornam possível e garanta sua efetividade (FAIRCLOUGH;
JESSOP; SAYER, 2010).
Esses estudiosos têm chamado a atenção para as impli-
cações do realismo crítico em relação à semiose. Conforme
os autores, existem, pelo menos, três questões que precisam
ser consideradas.
Primeiro, o realismo crítico não pode negligenciar a
semiose por ser esta uma produção intersubjetiva de signifi-
cados nas relações sociais, isto é, incluem ações individuais,
relações entre as interações e propriedades emergentes das
ordens institucionais (ordens do discurso) e do mundo da vida.
Os realistas críticos defendem a tese de que razões podem
operar como causas e, com isso, elas podem ser responsáveis
para produzir mudanças. Ao defenderem essa posição, acabam
deixando de lado a semiose.
Contrariamente, Fairclough, Jessop e Sayer sustentam
que, dado o caráter semiótico de causas, razões não devem
ser tratadas como causas de comportamentos. “Razões são
proposições que precedem ou acompanham comportamento
e devem simplesmente ser entendidas” (FAIRCLOUGH;
JESSOP; SAYER, 2010, p. 204).
Segundo, igualmente importante para esses autores, é
a relevância de investigar as condições sociais e o contexto
social mais amplo da semiose. Mas essa ainda é uma questão
que precisa ser trabalhada na ACD, porquanto ela pode for-
necer contextualização da produção, comunicação e recepção
da semiose, bem como prover um meio de pensar sobre a
articulação do semiótico e extrassemiótico, na transformação
social. Nesse sentido, é necessário utilizar-se das ferramentas

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

da ACD, através de análises mais complexas dos domínios


extradiscursivos. A semiose está sendo estudada de maneira
isolada de seu contexto e isso pode levar a uma análise in-
completa da causalidade, correndo o risco de cometer um ou
mais tipos de reducionismo.
Terceiro, devem-se considerar também as estruturas se-
mióticas, a dialética e a “emergência”3 de textos, bem como
o papel da estruturação social. Esses estudiosos argumentam
a favor de uma análise semiótica crítica, por tratar-se de uma
análise de texto que não só é compatível com o realismo crí-
tico, mas também fornece relevantes insights sobre o papel
da semiose na estruturação social.
Emergência é um conceito utilizado no realismo crítico
(BHASKAR, 1998, p. 564), para explicar que nada surge
do nada. Envolve alguma coisa nova. é algo imprevisível
que emerge. Por exemplo, as relações na universidade são
entrelaçadas em diferentes discursos. Um novo discurso
pode emergir dentro de uma ordem de discursos que já
estavam institucionalizados como uma estratégia bem ou
mal sucedida.
Alguns teóricos sociais têm argumentado a respeito da
semiose. Para os cientistas sociais, explicar como a semiose
produz efeito requereria uma explanação causal que fosse
capaz de identificar as entidades sociais que estariam produ-
zindo os efeitos e, então, poder-se-ia atribuir responsabili-
dade a essas entidades em termos de mecanismos. Já outros
estudiosos sociais sustentam a tese de que a explanação é
inapropriada para o estudo da semiose. A hermenêutica, por
exemplo, rejeita a explanação causal em favor de entendi-
mentos interpretativos. A concepção acerca da explanação
causal está baseada na lei de Hume ([1721-1776]1985) sobre
as “conjunções constantes” de eventos. Para esse filósofo,
3 Conferir realismo crítico dialético (segunda onda).

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

as conjunções de eventos acontecem de maneira incessante


e fragmentariamente.

Estruturas sociais, práticas sociais e eventos

Na concepção de Fairclough (2003a), todas as estruturas


sociais (abstratas) e os eventos (concretos) são partes reais do
mundo, os quais têm sido analisados separadamente. Estrutu-
ras sociais são entidades abstratas como a estrutura econômica,
a escola, a própria língua, etc. Uma estrutura social define um
conjunto de possibilidades para a realização de eventos. Ao
considerar a estrutura social escola, é possível perceber que
existem várias redes de relações sociais existentes, desde a
direção, coordenação pedagógica, professores, alunos e co-
munidade.
Essas redes de relações ocorrem por meio de eventos sociais
no cotidiano da vida escolar, isto é, “acontecimento imediato,
individual ou ocasiões da vida social” (FAIRCLOUGH,
2003a, p. 22). Os eventos sociais são moldados, portanto, pela
rede de práticas sociais.
Eventos como o da sala de aula envolvem professores e
alunos que participam e interagem entre si. Da mesma forma
ocorre com a direção e os professores e coordenação pedagó-
gica. Fairclough (2003a) assegura que a relação entre estrutura
e evento é bastante complexa. Eventos não são simplesmente
efeitos de estruturas sociais abstratas. Para ele, a relação é
mediada por “praticas sociais”. Ou seja, entre a estrutura social
e os eventos sociais existem as “práticas sociais”.
Textos, como elemento semiótico dos eventos sociais,
são moldados por dois tipos de poderes causais, entendendo
causalidade, aqui, conforme o pensamento do realismo crítico
– visão não humiana – no sentido de não implicar regularida-
des. Isto é, um evento x pode ser dito como causa do evento

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

y, sem, contudo, implicar uma correlação regular de eventos


(x e y), uma vez que efeitos têm múltiplas causas que afetam
uma operação e outra. Eventos sociais (textos) são moldados,
de um lado, pelas práticas sociais e estruturas sociais, de
outro pelos agentes sociais. Ou seja, eventos sociais (textos)
são local e interacionalmente produzidos pelos agentes e de-
pendem da continuidade das estruturas e práticas, bem como
da continuidade do habitus4 das pessoas (FAIRCLOUGH;
JESSOP; SAYER, 2010, p. 75)
Uma pessoa que aprendeu uma língua, por exemplo,
possui um conjunto de poderes causais para se comunicar,
embora não as use todo o tempo. Esses poderes existem – de
forma latente– e podem ser ativados em determinada situação.
Ao serem ativados, os efeitos irão depender do contexto. Ao
perguntar a alguém o caminho para a universidade, os efeitos
da pergunta dependerão se a pessoa fala a mesma língua, se
conhece a universidade, etc. A resposta poderá ser “não sei”,
“próxima quadra” ou “por que quer saber?” etc. A causação é
sobre o que produz mudança – ativação dos poderes causais –
e não sobre a conjunção regular de eventos de causa e efeito.
O realismo crítico rejeita a tese de Hume sobre conjunção
constante de eventos (causação). Para os realistas críticos,
regularidades não são essenciais para a explanação causal.
A língua é uma estrutura considerada entidade abstra-
ta, dado que define certas possibilidades e excluem outras
(FAIRCLOUGH, 2003a, p. 24). Nesse sentido, os textos que
surgem nos eventos sociais podem ser reconhecidos através
de elementos linguísticos, que são construídos nas redes de
práticas sociais, as quais esse autor denominou de ordem do
discurso, expressão utilizada por Foucault ([1971] 2003).

4 Conceito formulado por Bourdieu (1991) que diz respeito às disposições incorporadas
pelos sujeitos sociais ao longo de seu processo de socialização. Atua como uma matriz
de disposições, apreciações e ações. Essa matriz ou conjunto de disposições fornece
os esquemas para a nossa intervenção no mundo da vida.

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A Figura 4, a seguir, ilustra a relação entre estruturação


social e discurso.

Figura 4 –Estruturação social e discurso

A língua na qualidade de estrutura social abstrata define


certas potencialidades e exclui outras. Ou seja, certos modos
de combinar elementos linguísticos são possíveis, outros
não. Por exemplo, ao dizer “este é o livro”, é perfeitamente
compreensível e possível. Porém, ao dizer “livro este é”, gra-
maticalmente não é possível (FAIRCLOUGH, 2003a, p 24).
Vale ressaltar, porém, que existe uma estreita ligação
entre língua e fala. Uma pressupõe a outra. Seria impossível
falar sem usar a língua, mas é possível usar a língua sem falar.
Ao considerar a língua independente da fala, pode-se assegurar
que a fala é historicamente anterior à escrita. Essa é, conforme
Lyons (1987), a posição da maior parte dos linguistas.
Na esteira de Fairclough (2001, p. 90), o discurso é “o
uso da linguagem como forma de prática social”. Ou seja, a
linguagem não pode ser entendida apenas como uma ativi-
dade puramente individual. O discurso é uma forma de agir

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

no mundo. é também o que Fairclough (2003a) denominou


de semiose.
Para os analistas críticos do discurso, olhar a linguagem
significa analisar sua materialidade linguística. Significa
também olhar para aquilo que pode estar ou não presente na
estrutura formal. Para esse autor, envolve quatro itens: voca-
bulário, gramática, coesão e estrutura textual.

Elementos das práticas sociais: gênero, discurso e estilo

Ao me posicionar discursivamente por meio de textos


(orais ou escritos), apresento minhas representações acerca do
mundo material, social e mental; expresso meus sentimentos,
emoções e identidade. Essas representações são sempre partes
das “práticas sociais”.
Conforme Fairclough (2003a), o discurso é entendido
como “prática social”. é uma forma de ação no mundo.
Não há como pensar no discurso de maneira estática, sem
movimento.
O conceito de “práticas sociais” foi concebido com base
no materialismo histórico-geográfico de Harvey (1996), pois,
conforme esse autor, o discurso é apenas um elemento das prá-
ticas sociais entre outros, como interações, relações sociais,
pessoas– com suas crenças, atitudes e identidades – e o mundo
material. Nesse sentido, as “práticas sociais” são articulações
de diferentes elementos sociais, associadas com alguma área
da vida social, a exemplo da prática social de sala de aula, de
reuniões políticas, de associações de bairros, etc.
qualquer prática social é, conforme Fairclough (2003a, p.
25), uma articulação de tipos diferentes de elementos sociais,
quais sejam:

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• Ação e interação
• Relações sociais
• Pessoas – com suas crenças, atitudes, etc.
• O mundo material
• Discurso ou Semiose

Na esteira desse autor, a única maneira de agir e inte-


ragir no mundo é através da oralidade ou da escrita. Desse
modo, o discurso se apresenta como parte da “ação” sobre o
mundo e a sociedade. O discurso é, portanto, um “modo de
representação”.
Como o termo discurso tem sido pouco compreendido,
Fairclough (2003a, p. 26) consegue expandir esse conceito
trazendo, de um lado, como substantivo abstrato e, de outro,
como substantivo concreto.
Na condição de substantivo abstratro, discurso é uma
categoria que está relacioanda com todos os elementos semi-
óticos, que fazem parte da vida social, na sua multimodali-
dade de significação: texto escrito, gestos, expressões faciais,
imagens, legenda, etc. Nesse sentido, o discurso é semiose,
termo esse de preferência do autor.
Como substantivo concreto, o discurso é uma categoria
que se reporta a diferentes maneiras de representar aspectos
da vida social. O discurso de partidos políticos (PT e PSDB),
por exemplo.
O ponto fundamental, aqui, é entender “práticas sociais”
como uma articulação entre o discurso e outros elementos da
vida social que estão intimamente interligados. Relações sociais,
por exemplo, são parcialmente discursivas por natureza. Ou
seja, o discurso é parcialmente constituído de relações sociais.
Ao fazer referência acerca de momentos de uma prática
social, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21) esclarecem:

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

[...] diversos elementos da vida são trazidos juntos


em uma prática específica, nós podemos chamá-los
“momentos da prática” e ver cada momento como
“internalizado” aos outros sem ser redutível a eles
[...]

Para Fairclough (2003a, p. 26), o discurso, como um


elemento da prática social, pode envolver também gêneros e
estilo. Gêneros, discursos e estilos são compreendidos como
diferentes modos de agir/interagir discursivamente. O discurso
se apresenta em três momentos da prática social:

• Gêneros – modos de agir


• Discursos – modos de representar
• Estilos – modos de ser

Na visão desse autor, textos como parte de eventos sociais


não são simplesmente efeitos definidos pela língua. Conforme
o autor, é preciso reconhecer os elementos linguísticos das
redes de práticas sociais, denominados de ordens do discur-
so. Ordens de discurso não são apenas estruturas linguísticas
(gramática, vocabulário, etc.), mas discurso, gênero e estilo.
Nesse sentido, é preciso reconhecer ordens do discurso
como um sistema, um potencial semiótico que limita o poder
gerativo da linguagem, impedindo determinadas conexões
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 151). As ordens
do discurso regulam nossas ações discursivas, da mesma
forma que as práticas sociais regulam nossas ações sociais.

Linguística sistêmico-funcional (LSF) e ACD

A LSF de Halliday (1994) é um tipo de abordagem que


fornece subsídios para uma compreensão mais clara sobre
como os textos estão organizados. As escolhas do falante/

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escritor, segundo Halliday, operam em todos os níveis do dis-


curso: lexical, sintático, modal. E é por meio delas que se pode
perceber o nível de expressividade presente em determinada
situação comunicativa. O léxico utilizado num texto carrega
traços da identidade do falante/escritor, visto que as escolhas
feitas por ele podem estar transparentes ou não, precisando,
portanto, ser desveladas. A análise linguística permite, dessa
forma, interpretar os significados presentes nos textos.
Em Analysing Discourse (2003a), Fairclough amplia
a discussão teórica ente ACD e LSF. O autor alvitra uma
articulação entre as macrofunções de Halliday (1994) e os
conceitos de gêneros, discursos e estilos, propondo, no lugar
das macrofunções da linguagem, três tipos de significados:
Acional, Representacional e Identificacional. Ao realizar
essa articulação, Fairclough (2003a), na verdade, modifica
sua versão anterior no que se refere às funções relacional,
ideacional e identitária.
O quadro 3, a seguir, é ilustrado por Resende e Ramalho
(2006, p.61) e mostra o desenvolvimento da perspectiva mul-
tifuncional da linguagem proposta por Fairclough (2003a).

Quadro 3 - Ampliação do diálogo teórico entre LSF e ACD

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Halliday (1994) propõe três macrofunções: ideacional,


interpessoal e textual. Essas macrofunções ocorrem simulta-
neamente nos textos. É por meio delas que se pode identificar
como o discurso está organizado. Os usuários da língua não
apenas interagem para trocar sons, palavras, sentenças, como
também para construir significados.
A ampliação do diálogo teórico entre LSF e ACD, pro-
posta por Fairclough (2003a), é para enfatizar que os três
significados do discurso atuam simultaneamente em todos e
qualquer enunciado. O discurso se apresenta como parte das
práticas sociais, na relação entre eventos e textos, nos modos
de agir (significado acional), nos modos de representar (re-
presentacional) e nos modos de ser (identificacional).
A seguir, explico cada um dos três significados do dis-
curso.

Significado acional: gêneros

Conforme Fairclough (2003a, p. 27), o significado acional


é localizado no texto como modo de (inter)agir nos eventos
sociais, aproximando-se da função relacional de Halliday
(1994). Ao analisar um texto, como parte de um evento social
específico (reunião política, sala de aula, etc.), realizo duas
coisas simultaneamente:

• Analiso o texto em termos dos três significados: Acional,


Representacional e Identificacional e como eles se apresen-
tam nos vários tipos de textos (vocabulário, gramática, etc.).

• Procuro também fazer uma conexão entre evento social


e prática social, cujos gêneros, discursos e estilos estão,
automaticamente, envolvidos. E, ainda, como os diferentes
gêneros, discursos e estilos estão articulados no texto.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A relação entre textos e gêneros, conforme Fairclough


(2003a, p. 34), é bastante complexa. Segundo o autor, um
texto pode não estar em um simples gênero, mas na mistura
ou hibridade de gêneros. Ou seja, em determinado tipo de
texto, pode existir uma variedade de gêneros ou “corrente”
de gêneros. Envolve diferentes tipos de textos.
No caso de um jornal, por exemplo, o jornalista escreve
diferentes textos, incluindo entrevistas, artigos, etc. O leitor,
ao ter contato com o jornal, pode se interessar em responder
para o editorial utilizando outras variedades de textos: cartas
de reclamação, sugestões, etc.
Fairclough (2003a) distingue os pré-gêneros dos gêneros
situados. Os pré-gêneros tais como narrativas, descrição, argu-
mentação e conversação, podem compor diversos tipos de texto.
Já os gêneros situados são mais específicos, como reportagem
de revistas, entrevistas, relatos, histórias de vida, etc.
Ao analisar um texto, é preciso considerar, conforme
Fairclough (2003a, p. 36-7), suas relações externas e inter-
nas. A análise de relações externas de textos inclui a relação
com outros elementos dos eventos sociais, de maneira mais
abstrata, envolvendo práticas sociais e estruturas sociais, atra-
vés da análise interdiscursiva de gêneros, discursos e estilos,
articulados juntos.
Nesse tipo de análise, é preciso olhar para os três signi-
ficados do discurso – acional, representacional, identifica-
cional. Há também outra dimensão de análise das relações
externas concernentes a um texto e outro (externo), como
elementos intertextualmente incorporados. é o caso da inter-
textualidade, como categoria de análise, envolvendo textos
de outras pessoas, ou seja, como as vozes estão incorporadas,
com quem estão dialogando.

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Fairclough (2003a, p. 39) assume uma visão ampla acerca


da intertextualidade que é “a presença de elementos atuali-
zados de outro texto em um texto – as citações”. Ou seja, ao
relatar um discurso, pode-se fazê-lo não apenas em discurso
direto, mas também parafraseando em um discurso indireto.
A análise das relações internas inclui:

• Relações semânticas – palavras, expressões, elementos


das orações.
• Relações gramaticais – substantivo, morfemas, adjetivos
• Relações de vocabulário (léxico) – ocorrências entre vo-
cabulários (palavras e expressões)
• Relações fonológicas – (texto falado) entonação, ritmo,
tamanho de fonte.

Significado representacional: discurso

Conforme Fairclough (2003a), o significado represen-


tacional de textos inclui aspectos do mundo físico – objetos,
relações, etc.– e aspectos do mundo mental – pensamento,
sentimentos, crenças, sensações, etc. Os outros significados
(acional e identificacional) ocorrem também simultaneamente
na oração, porém cada um tem uma categoria específica de
análise. O significado representacional de textos está relacio-
nado com o conceito de discurso como modo de representação
do mundo. Um mesmo aspecto de mundo pode ser repre-
sentado em diferentes discursos. A articulação de diferentes
discursos é denominada de “interdiscursividade”. Um mesmo
texto pode, por exemplo, apresentar diferentes discursos.
O significado representacional está relacionado com a
metafunção ideacional de Halliday (1994). A metafunção
ideacional se relaciona com a variável de registro (campo).

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Nesse caso, as orações envolvem três elementos: processos,


participantes e circunstâncias, denominados por Halliday
(1994, p. 104) de “sistema de transitividade”.
A função ideacional diz respeito ao uso da língua como
representação, estando relacionada com o mundo externo –
eventos, ações, estados, etc.– bem como o mundo interno,
incluindo crenças, representações, sentimentos etc.
Ao olhar a oração em termos de significado acional, deve-
se considerar as categoriais de funções da fala, como também
o modo gramatical – declarativa, interrogativa, imperativa. No
sistema de transitividade, cada proposição oracional consiste
de três elementos:

1. Processo (verbos)
2. Participantes (grupos nominais)
3. Circunstâncias associadas ao processo.

Por exemplo, ao dizer: “Eu vi Cleia na escola”, existe


nessa oração um processo (verbo ver), dois participantes (eu
e Cleia) e a circunstância “na escola”, como adjunto de lugar.
Há seis tipos de processos (verbos), segundo Halliday
(1994): três principais – material, mental e relacional– e três
intermediários – comportamental, verbal e existencial.

• Processos materiais – são processos de fazer, represen-


tando nossa experiência no mundo exterior, as ações do
mundo físico, como trazer, buscar, etc. Os participantes
desse processo são: Ator – quem realiza a ação – e Meta
– participante, isto é, o objeto da gramática tradicional.

• Processos mentais – são processos de sentir/experienciar.


Halliday (1994, p. 112) divide os processos mentais em

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três: cognição – aparece com os verbos saber, entender,


decidir; percepção (sentir) e afeição (gostar, amar). Os
participantes envolvidos nesses processos são: experien-
ciador (aquele que sente) e fenômeno (o que é sentido
pelo experienciador).

• Processos relacionais – são processos de “ser” (verbo


ser), explicitamente realizados por meio de: atribuição –
papéis de portador e atributo – ex.: “eu sou um menino
muito gente boa”, e identificação – papéis de identificador
e identificado – ex.: “eu sou professora da UFMT”.

Além dos processos material, mental e relacional,


Halliday (1994) apresenta outros tipos de processos, os quais
ocupam uma posição intermediária: comportamental, verbal
e existencial.

• Processos comportamentais – são ações que abarcam


comportamentos físicos ou psicológicos, tais como olhar,
assistir, encarar, preocupar-se, respirar, etc. Estão na posi-
ção intermediária, entre os processos materiais e mentais.

• Processos verbais – são processos de dizer. Estão na posi-


ção intermediária entre os processos mentais e relacionais.
Os processos verbais não precisam ter um participante
humano.

• Processos existenciais – são processos que se encontram


entre os processos relacionados e materiais. São realizados
tipicamente pelos processos haver e existir. Nesse tipo de
processo, há apenas um participante, o existente.

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Além dos processos como definição de categoria de


análise do significado representacional, Fairclough (2003a,
p.145) sugere a representação de atores sociais, com base
em Van Leeuwen (1997). Na esteira de Van Leeuwen, as
maneiras como os atores sociais são representados em textos
podem sinalizar marcas ideológicas. Nesse sentido, o autor
apresenta uma descrição sociossemântica dos modos pelos
quais os atores sociais são representados em textos. Os atores
sociais são participantes nas orações, embora possam não ser.
Nem todos os participantes são atores sociais. Eles podem se
apresentar como objetos físicos, por exemplo.
A seguir, apresento algumas categorias, com base em Van
Leeuwen (1997, p. 219):

• Inclusão/exclusão (supressão) – os atores sociais podem


estar incluídos ou excluídos. O ator social é incluído quan-
do se apresenta no texto. Ex.: “O aluno é excelente!”. A
exclusão se revela de dois tipos: supressão – quando não
aparece no texto; encobrimento – quando está colocado
em segundo plano. Aparece mencionado em algum lugar
no texto. Algumas exclusões (supressões) não deixam
marcas linguísticas, excluem tanto os atores quanto suas
atividades. quase sempre há o apagamento do agente. Ex.:
“surgiram preocupações”.

• Ativação – os atores sociais são representados como forças


ativas e dinâmicas em determinada atividade. A ativação
se realiza através da participação, ou seja, o papel ativo
do ator social é mais destacado no texto (ex.: “jovens
brancos malfeitores atacaram os vendedores ambulantes
africanos”).

• Passivação – os atores sociais são representados como


submetendo-se a uma atividade. é realizada no sistema de

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transitividade. O ator social é o ator do processo – alguém que


faz coisas e que faz acontecer –, o comportado em processos
comportamentais, o perceptivo em processos mentais, o
dizente em processos verbais, o atribuidor em processos rela-
cionais (cf. HALLIDAY, 1994, cap. 5). Ex.: “jovens brancos
malfeitores atacaram os vendedores ambulantes africanos”.

• Personalização – os atores sociais são representados


como seres humanos, através de pronomes pessoais ou
possessivos, nomes próprios ou substantivos.

• Impersonalização – os atores sociais são representados


através de substantivos abstratos, cuja significado não
inclui característica semântica humana. Há dois tipos de
impersonalização: abstração – quando os atores sociais
são representados por meio de uma qualidade – ex.: pobres,
negros, não qualificados” –; objetivação – quando os ato-
res sociais são representados por meio de uma referência
a um local ou coisa. é realizada através de uma referên-
cia metonímica. Ex.: “o relatório afirmou”. Fornece uma
espécie de autoridade impessoal aos enunciados. Muitas
vezes, são enunciados de porta-vozes oficiais.

• Indeterminação – ocorre quando os atores sociais são


representados como indivíduos ou grupos não especifi-
cados, considerados “anônimos”. Ex.: "alguém deixou
flores na mesa da secretária". Aparece explicitamente
através de pronomes indefinidos – alguém, alguns, etc.
Neste caso, a indeterminação “anonimiza” o ator social.
A indeterminação pode também aparecer através de uma
referência exofórica generalizada, atribuindo aos atores
sociais autoridade impessoal. Ex.: “Não te deixarão ir à
escola antes dos cinco anos”. Pode ainda aparecer como:
“muitos dizem...”, “alguns falam...”, etc.

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• Diferenciação – como o nome já diz, diferencia explici-


tamente um ator social individual ou um grupo de atores
sociais, mantendo a diferença entre o “eu” e o “outro”,
“nós” e “eles”.

• Nomeação – quando os atores sociais são representados


em termos de sua identidade única. Tipicamente, aparece
através de nomes próprios, podendo ser formal (próprio
nome) ou informal (apelido). Ex.: “Francis, 72 anos,
jornalista”

• Categorização – quando os atores sociais são representa-


dos em termos de identidades e funções que partilham com
outros. Neste caso, é preciso investigar quais são os atores
categorizados e quais os nomeados. é comum nas narra-
tivas em que as personagens sem nome se tornam papéis
passageiros e funcionais, não se tornando, portanto, ponto
de identificação para o leitor ou ouvinte. A categorização
se apresenta de dois tipos: funcionalização e identificação.

• Funcionalização – ocorre quando os atores sociais são


referidos em termos de uma atividade, uma ocupação
ou função. Aparece através de um substantivo, formado
a partir de um verbo, tendo sufixos como “ente” (ex.:
“correspondente”).

• Identificação – quando os atores sociais são definidos,


não em termos daquilo que fazem, mas em termos daquilo
que são mais ou menos permanente ou inevitavelmente. A
identificação se apresenta de três tipos: classificação, iden-
tificação relacional e identificação física. As categorias de
classificação variam de acordo com a história e a cultura.
Em determinado período de tempo, pode aparecer através
de verbos como “fazendo”/”acontecendo”. Nesse caso,

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o papel é mais temporário. Em outro período, pode ser


representado através de verbos como “estando”/”sendo”,
com uma identidade mais ou menos fixa.

As categorias de identificação relacional representam os


atores sociais em termos da relação pessoal de parentesco ou
de trabalho. Normalmente aparecem através de substantivos
possessivados (ex.: “amigo dela”) ou por um sintagma pre-
posicional pós-modificador introduzido pela preposição “de”
(ex.: “uma mãe de cinco”).
As categorias de identificação física ocorrem em termos
de caracterização física, identificada em determinado con-
texto. Por exemplo: “loiro”, “ruivo”, “coxo”, “alto”, etc. Os
atributos físicos tendem a ter conotações, sendo utilizadas para
classificar ou funcionalizar os atores sociais diretamente (ex.:
“grandes bigodes”).

Significado identificacional: estilo

O significado identificacional está intimamente relacio-


nado com o conceito de Estilo. Conforme Fairclough (2003a),
estilos compõem aspectos discursivos de identidades. As
discussões sobre identidade na pós-modernidade estão cada
vez mais centradas na concepção de um sujeito múltiplo, com
diferentes “eus”, não mais na visão de uma identidade única.
Conforme Hall (2000), habitam em nós identidades contradi-
tórias que se empurram para diferentes direções. Ou seja, não
é mais possível conceber a ideia de uma identidade unificada,
uma vez que há sistemas de significações e representações
que se multiplicam. Nessa perspectiva, nossas identidades ou
nossos “eus” estão, constantemente, em processo de mutação.
Hall (2000, p. 109) assegura que as identidades são
construídas dentro, e não fora do discurso. Nesse sentido,

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

cabe compreender suas produções em locais históricos e


institucionais específicos, isto é, as identidades “emergem no
jogo de modalidades específicas de poder”.
Essa mesma visão é defendida por Moita Lopes (2002, p.
32), que considera a identidade como fato social, resultado de
práticas discursivas. Na visão desse autor, “nossas identidades
sociais são construídas por meio de nossas práticas discursivas
com o outro”. é a presença do outro, com o qual estamos enga-
jados no discurso (oral ou escrito), que molda o que dizemos, e
percebemos o que o outro significa para nós. Devemos pensar
sobre identidade como uma produção inacabada, incompleta,
que está sempre em processo de transformação. Moita Lopes
(2002, p. 37) esclarece:

[...] as identidades sociais são construídas no discur-


so. Portanto, as identidades não estão nos indivíduos,
mas emergem na interação entre os indivíduos,
agindo em práticas discursivas particulares nas quais
estão posicionadas [...]

Nesse sentido, as relações de poder existentes entre os


indivíduos, por meio de atitudes ora opressivas, ora eman-
cipatórias, pode determinar a construção de identidades. A
construção de identidades sempre se dará em contextos de
relações de poder.
Para a ACD, é fundamental investigar como se dá o
embate discursivo em relação a identidades, uma vez que
discursos são inculcados em identidades. Conforme Castells
(1999, p. 23), a principal questão acerca da construção da
identidade é saber “como, a partir de que, por quem e para
quê isso acontece”.
O autor propõe três formas de construção de identidades:
identidade legitimadora – determinada por instituições domi-
nantes, com o objetivo de legitimar sua dominação; identidade

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de resistência – construída por agentes na estrutura de domi-


nação, constituindo-se, portanto, como focos de resistência;
identidade de projeto – construída por agentes que buscam
redefinir sua posição na sociedade, visando mudança social.
Na trilha de Fairclough (2003a), a identificação é consi-
derada processo complexo, pois envolve a distinção entre os
aspectos da identidade “pessoal” e “social”. Conforme esse
autor, a identidade não pode ser reduzida apenas à identidade
social. As pessoas não apenas estão pré-posicionadas em par-
ticipar nos eventos sociais e textos, mas também são agentes
sociais que podem criar e mudar as coisas. As pessoas têm a
capacidade de fazer as mudanças acontecerem. A identidade
social faz com que as pessoas assumam determinados papéis
na sociedade, revestindo-se de sua própria personalidade
(identidade pessoal).
Estilos podem ser investigados em textos, através dos
pronomes “eu” e “nós”. Envolvem a “individualidade” e
“coletividade”. Pennycook (1994), ao estudar os pronomes,
revelou que são sempre políticos e que implicam relações de
poder. Os pronomes são reflexos das relações sociais e, por
essa razão, há a necessidade de entender como eles estão repre-
sentados no discurso. O pronome “nós”, segundo esse autor,
é o mais problemático. O uso desse tipo de pronome marca
sempre inclusividade (falante + destinatário + outros) e ex-
clusividade (falante + outros). Trata-se de pronome que revela
solidariedade, rejeição, inclusão e exclusão (PENNYCOOK,
1994, p. 175-6).
Kitagawa e Lehrer (1990) também realizaram estudos
acerca do pronome “nós” e revelaram uma fronteira vaga e im-
pessoal, sendo, portanto, o mais problemático. Eles apontaram
o uso de “nós” (referencial), incluindo outros especificados;
o “nós” (vago) incluindo outros não especificados, e “nós”
(impessoal), incluindo todo mundo.

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Papa (2005) também identificou, em seu estudo, o uso dos


pronomes “nós” e “a gente”, configurados como “nós” (cole-
tivo). O uso de nós (coletivo) representa determinados grupos
sociais que partilham objetivos e propósitos semelhantes, (re)
contextualizados dentro de uma atmosfera de responsabilidade
e solidariedade coletivas.
Estilos podem ser identificados com características
fonológicas: entonação, pronúncia, ritmo, etc. Envolvem a
linguagem corporal – expressões faciais, gestos, etc.
Ainda na categoria de significado identificacional, pro-
posta por Fairclough (2003a), destacam-se a Modalidade e
Avaliação.

• Modalidade – é uma categoria que representa a atitude/


julgamento do falante/escritor sobre as possibilidades
ou obrigatoriedades envolvidas no que se diz. Conforme
Halliday (1994, p. 75):

Modalidade pode ser entendida como o julgamento


feito pelo falante a respeito das probabilidades ou
obrigações relacionadas com o que está dizendo.
Uma proposição pode se tornar discutível por ter sido
apresentada como provável ou improvável, desejável
ou indesejável – em outras palavras, sua relevância
especificada em termos modais.

Para a LSF, há dois tipos de modalidade: “modalização”


e “modulação”. A modalização diz respeito a enunciados que
visam à validade da troca de informações. Já a modulação se
refere a enunciados que apontam para troca de bens e serviços,
traduzidos em maior ou menor grau de certeza do autor do
enunciado. Por exemplo, alguém pode dizer: “Parece que vai
chover”. Esse enunciado, como troca de informação, trata de

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uma declaração, pois o uso de “parece” traz uma modalização


positiva do falante em relação à mensagem. Já o enunciado
“Você pode dormir aqui em casa” se refere a uma oferta de
serviço em que o uso de “poder” implica modulação.
A categoria de modalidade se subdivide em duas: proba-
bilidade e habitualidade. Essas duas subcategorias represen-
tam a veracidade da informação e a frequência. O exemplo
“parece que vai chover” se vincula à categoria de probabili-
dade. Já o enunciado “sempre chove no mês de dezembro”
se encaixa na categoria de habitualidade.
A categoria de modulação também se subdivide em duas:
“obrigação” e inclinação”, dependendo de como o ouvinte/
leitor vai desempenhar a troca de bens e serviços. O enunciado
“Você pode dormir aqui em casa” se encaixa na categoria de
obrigação, com menor ou maior grau. O enunciado “você deve
dormir aqui em casa” revela maior obrigação. A categoria de
“inclinação” depende de como o ouvinte/leitor vai desempe-
nhar a troca de produtos ou serviços. No enunciado “Você me
emprestaria seu carro?”, o ouvinte/leitor estaria inclinado a
emprestar o carro.
Nessa mesma esteira, Fairclough (2003a, p. 167)
apresenta a modalidade em termos de troca e funções
de fala. Está subdividida em modalidade epistêmica” e
modalidade “deôntica”. A modalidade deôntica, ou mo-
dulação nos termos de Halliday (1994), está relacionada
com a troca de bens e serviços, ocorrendo por meio de
demandas e ofertas. A modalidade epistêmica ou moda-
lização, conforme Halliday (1994), é apresentada por
meio de marcadores, como verbos, advérbios e adjuntos
modais, advérbios e locuções adverbiais (“na verdade”,
“obviamente”, “provavelmente”). Normalmente ocorre
por meio de declarações ou perguntas.

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• Avaliação – é uma categoria que está relacionada com o


significado identificacional (estilo), diz respeito a apre-
ciações/avaliações do falante/ouvinte sobre aspectos da
realidade, o que é bom ou ruim, etc.

As declarações avaliativas indicam o que é desejável


ou indesejável, bom ou ruim, sendo realizadas através de
processos relacionais atributivos. O elemento avaliativo está
no atributo que pode ser um adjetivo (ex.: bom) ou em um
sintagma nominal (ex.: livro ruim).
A avaliação pode aparecer também por meio de verbos
(ex.: “ele se acovardou”), ao invés de “ele é um covarde”. As
avaliações podem ainda ser formadas por adjetivos e advérbios
avaliativos, bem como por processos mentais afetivos (emo-
tivos), nos termos de Halliday (1994). As avaliações podem
ser de baixa ou alta intensidade (ex.: “eu gosto/amo/adoro
este livro ou “o livro é bom/maravilhoso/fantástico”). Pode
acontecer também com verbos (ex.: os soldados mataram/
massacraram/abateram os aldeões”).
A avaliação pode ser também estudada através da teoria
do Sistema de Avaliatividade (Appraisal System) proposta por
Martin e White (2005). Conforme os autores, o sistema de
avaliatividade é composto de três sistemas: atitude, gradação
e engajamento. No sistema de atitude, há três subsistemas:
afeto, julgamento e apreciação. O sistema de atitude traduz a
opinião ou avaliação do falante sobre determinado evento ou
descrição de algum fato. Diz respeito aos sentimentos. O afeto
expressa as emoções do falante – tristeza, irritação, ansiedade,
interesse ou chateação. O julgamento se refere às avaliações
feitas com base nas condutas morais de comportamento. é
um recurso semântico que destaca as qualidades do falante/
escritor. Por exemplo, ao dizer “Pedro é horrível”, mostra
um julgamento da aparência física. Já apreciação se refere

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às qualidades das coisas que são avaliadas. é utilizada para


revelar uma avaliação sobre coisas não conscientes, físicas ou
semióticas. Ao avaliar um carro, por exemplo, estou fazendo
uma apreciação.
O sistema de gradação refere-se ao fenômeno gradativo
cujos sentimentos são ampliados. Consiste em ajustar o grau
da avaliação, ou seja, se a expressão do sentimento é forte ou
fraca. Já o sistema de engajamento versa sobre as atitudes
e o papel da voz autoral sobre as opiniões no discurso. Ou
seja, como a voz do enunciador se posiciona aos enunciados
oriundos de outros (MARTIN; WHITE, 2005)
O Quadro 4, a seguir, ilustra os três significados do dis-
curso – acional, representacional e identificacional – e suas
principais categorias de análise.

Quadro 4 - Os três significados do discurso e suas


principais categorias de análise

Discurso e ideologia

Conforme Fairclough (2010, p. 59), “a linguagem é in-


vestida de ideologia”. A ideologia se materializa nos textos.
A forma e os conteúdos trazem uma marca de processos e
estruturas ideológicas que, muitas vezes, não é possível vê-las
nos textos. Para o autor, os significados são produzidos através
de interpretações de textos, que estão abertos a diversas inter-
pretações. Os processos ideológicos aparecem nos discursos

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como eventos sociais – não em textos que são produzidos –,


distribuídos e interpretados como momentos de tais eventos.
O discurso é, portanto, moldado pelas estruturas, contribuindo
para reproduzi-las e transformá-las.
As estruturas são de natureza discursiva/ideológica e
aparecem nas ordens do discurso, ou seja, através de códigos
e seus elementos. Na visão de Fairclough (2010), o estudo da
mudança discursiva necessita de um duplo foco nos eventos
discursivos e nas ordens do discurso das instituições e socie-
dade. A mudança nos eventos discursivos implica inovação
ou criatividade que, de alguma maneira, vai de encontro às
convenções e expectativas já sedimentadas. As mudanças en-
volveriam novas formas de transgressão, novas combinações
de ordens de discurso.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a desconstrução ide-
ológica de determinado texto pode contribuir para algumas
mudanças na sociedade, porquanto as relações de dominação
e controle podem ser desveladas.
Ao analisar um texto, é preciso ter em mente os efeitos
sociais mediados pela construção de significados. Ou seja, é
o significado do texto que tem efeito social, muito mais que o
texto propriamente dito (FAIRCLOUGH, 2003a, p.9). é pre-
ciso olhar o texto não apenas em sua materialidade linguística
(explícito), mas também no que está implícito (ideologia).
O debate mais influente sobre discurso e ideologia é,
certamente, o de Althusser (1971). Foi esse autor que forne-
ceu as bases teóricas para uma compreensão mais profunda
sobre ideologia.
Fairclough (2001, p. 116) descortina três importantes
afirmações sobre esse termo. Em primeiro lugar, a ideologia
possui uma existência material, ou seja, as práticas discursi-
vas são formas materiais de ideologia. Segundo, a ideologia

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“interpela os sujeitos”. E, terceiro, os “aparelhos ideológicos


do estado” (educação, mídia) são locais de luta de classe, as-
sinalando o embate no discurso, ressalvando que uma análise
deve ser orientada ideologicamente.
Conforme esse autor,

[...] ideologias são significações/construções da


realidade (mundo físico, as relações sociais, as
identidades sociais) que são construídas em várias
dimensões das formas/sentidos das práticas discur-
sivas e que contribuem para a produção, reprodução
ou transformação das relações de dominação [...]

Explicando de outra forma, se eu tivesse uma lente es-


pecial que me permitisse enxergar muito além do que meus
olhos pudessem alcançar, conseguiria olhar e discernir tudo
a meu redor, ou seja, poderia enxergar o que está além das
aparências, além do que me parecia tão óbvio. Isso é ideologia.
quando lemos um texto (oral ou escrito), por exemplo,
na maioria das vezes nos esquecemos de colocar essa lente
especial, não atentando para o que realmente está por trás das
aparências.
As ideologias apresentadas nos textos (orais ou escritos;
imagens visuais) são muitos eficazes, como nos assegura
Fairclough (2001, p. 117), visto vez que elas acabam se natu-
ralizando e atingem o status de “senso comum”. Tudo parece
natural. Nesse sentido, é importante ressaltar o efeito causal
de determinada representação em áreas particulares da vida
social. As legitimações decorrentes de representações contri-
buem para sustentar ou transformar relações de dominação.
As ideologias surgem nas sociedades caracterizadas,
conforme o autor, por relações de dominação com base na
classe, no gênero social, no grupo cultural e assim por diante.

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À medida que os seres humanos conseguem transcender às


sociedades, são capazes de transcender à ideologia.
Tomando o exemplo da sala de aula, onde professores e
alunos se reúnem, cotidianamente, pode-se compreender que
tanto os professores quantos os alunos usam a linguagem para
interagir no ambiente físico de sala de aula, expressando suas
visões de mundo, suas crenças e ideologias.
As relações sociais estabelecidas no ambiente de sala de
aula são, em parte, discursivas e ideológicas, pois, conforme
assegura Fairclough (2003a, p. 25), acabam enfeixando outros
momentos das práticas sociais: ação e interação; relações
sociais; pessoas; mundo material e discurso.
Vale evidenciar que a relação entre esses diferentes
momentos da prática social é dialética, articulando e interna-
lizando cada um deles.
A ACD corrobora o conceito de ideologia postulado por
Thompson (1995), por ser ela de natureza hegemônica, pois
estabelece e sustenta relações de dominação. Na visão desse
autor, formas simbólicas abarcam

um amplo espectro de ações e falas, imagens e tex-


tos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos
por eles e outros como construtos significativos.
(THOMPSON, 1995, p. 79)

As formas simbólicas servem para estabelecer e sustentar


relações assimétricas de poder e controle. Thompson (1995, p.
81-89; veja também RESENDE e RAMALHO, 2006) formula
cinco modos de operação da ideologia, quais sejam:

• Legitimação – as relações de dominação são apresentadas


como legítimas, sendo apresentadas como justas. A legiti-
mação está baseada em três estratégias de construção sim-

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bólica: racionalização, universalização e narrativização. A


racionalização se baseia na legalidade de regras que são
apresentadas a priori; a universalização é legitimada para
servir aos interesses gerais; e a narrativização se apresenta
por meio de histórias do passado para habilitar o presente.

• Dissimulação – as relações de dominação são ofuscadas


e negadas, sendo apresentada por meio de construções
simbólicas como deslocamento, eufemização e tropo. O
deslocamento é quando um termo é recontextualizado; a
eufemização refere-se às relações ou instituições, repre-
sentadas com valoração positiva; e o tropo alude ao uso
figurativo da linguagem para apagar relações conflituosas.

• Unificação – as relações de dominação se mostram sus-


tentadas por construções simbólicas relacionadas com a
unificação. São duas as estratégias de construção simbó-
lica: padronização – quando o referencial padrão é parti-
lhado; e simbolização – quando a construção simbólica é
de identificação coletiva.

• Fragmentação – as relações de dominação são sustenta-


das por meio de indivíduos ou grupos que, ao se unirem,
podem constituir obstáculos à manutenção do poder. Está
baseada nas estratégias de fragmentação e expurgo do ou-
tro. Na fragmentação, há impedimento na constituição de
um grupo coeso; e no expurgo do outro, em que o grupo
se constitui um obstáculo ao poder hegemônico.

• Reificação – as relações são representadas como perma-


nentes. As estratégias desse modo de operação da ideo-
logia são: naturalização, eternalização, nominalização
e passivação. A estratégia de naturalização é quando a
situação é tratada como natural; a eternalização se refere

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aos fenômenos históricos, retratados como permanentes;


já a nominalização e passivação favorecem o apagamento
de atores e ações, representados como entidades.

Essas estratégias de operação de ideologia, proposta por


Thompson, (1995) servem como ferramenta para a análise das
práticas discursivas ideológicas. é necessário entender como
as relações de poder dos grupos e as organizações dominan-
tes influenciam o conhecimento, os saberes, as atitudes e as
identidades, para, a partir dessas relações, buscar caminhos
para sua superação

Discurso e hegemonia

O termo hegemonia foi cunhado de Gramsci, sendo


considerado por Fairclough (2001) fundamental para analisar
a prática social em termos de relações de poder, isto é, se as
relações de poder “reproduzem, reestruturam ou desafiam as
hegemonias existentes” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 123).
Conforme o autor, hegemonia

[...] é o poder sobre a sociedade como um todo de


uma das classes economicamente definidas como
fundamentais em aliança com outras forças sociais,
mas nunca atingido senão parcial e temporariamente,
como um “equilíbrio instável” [...]

Pode-se afirmar que hegemonia é embate constante de


forças (econômicas, políticas, ideológicas) entre classes e blocos
(locais, nacionais e transnacionais) que procuram a todo instante
“construir, manter ou romper alianças e relações de dominação
/subordinação” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 122). A luta hegemô-
nica se localiza em diferentes frentes, incluindo instituições da
sociedade civil como educação, sindicatos, família, etc.

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Ao analisar um texto (oral ou escrito), é preciso con-


siderar as relações de poder existentes, isto é, se elas estão
sendo reproduzidas, reestruturadas no discurso ou se elas
estão sendo desafiadas, isto é, se elas contrariam as ordens
de discurso existentes.
As práticas discursivas, a produção, a distribuição e o
consumo de textos são tidos como aspecto da luta hegemônica,
pois, segundo o autor, contribui em graus variados para a re-
produção ou transformação não apenas da ordem de discurso,
mas também das relações sociais e assimétricas.
Vale salientar que as hegemonias guardam dimensões
ideológicas. Nesse caso, a análise ideológica das práticas
discursivas passa a ser de suma importância. Nesse sentido,
Fairclough (2001, p. 133) sugere, como categoria de análise,
a “intertextualidade”.
A intertextualidade, conforme o autor, implica uma
ênfase sobre a heterogeneidade dos textos, pois eles variam
muito em seus níveis, dependendo das relações intertextuais
complexas ou simples. Por exemplo, “a presença de elemen-
tos atualizados de outro texto em um texto – as citações”
(Fairclough, 2003a, p. 39) não apenas pode ser considerada
como um discurso direto, mas também pode ser utilizada para
parafrasear, resumir, etc. Nesse caso, a intertextualidade pode
envolver diversas possibilidades. Uma questão fundamental
é: quais textos e vozes estão incluídas e quais não estão?
quando um texto (falado ou escrito) é apresentado por
uma outra pessoa, dois textos, duas vozes são trazidas juntas.
Há, pelo menos, quatro maneiras de fazer citação de texto
(falado ou escrito), conforme Fairclough (2003a, p. 49):

• Citação direta – uso de aspas.


• (ex.: Ela disse: “brevemente ele estará aqui”.)

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• Citação indireta –aquilo que foi dito ou escrito, sem aspas.


• (ex. : Ela disse que ele estará aqui.)
• Citação indireta livre – intermediária entre citação direta
e indireta. Usada principalmente na linguagem literária.
• (ex.: Maria contemplou a janela. Ele chegará lá. Ela sorriu
para ela mesma.)
• Citação narrativa – sem reportar a seu conteúdo.
• (ex.: Ela fez uma previsão.)

Fairclough (2001) argumenta também que as pressu-


posições são suposições tomadas pelo produtor do texto, já
estabelecidas como tácitas pelos produtores do texto. A supo-
sição é relativa ao discurso e abriga um significado particular
em termos de trabalho ideológico de textos. Por exemplo, a
proposição introduzida pela conjunção “que” pressupõe ver-
bos como “esquecer”, “lamentar”, “perceber” (“me esqueci
que você chegaria a essa hora”, “lamento que tenha chegado
cedo”, etc.). Na visão do autor, as pressuposições são formas
efetivas de manipulação, uma vez que são muito difíceis de
ser desafiadas.
Na esteira de Fairclough (2003a, p. 55), há três tipos de
suposição:

• Suposição existencial – suposição do que existe (apresen-


tada através de artigos definidos e demonstrativos).

• Suposição proposicional – suposição sobre o que é ou


pode ser ou será o caso (marcada através de algum tipo de
verbo que revela determinado fato concreto. Ex.: perceber;
esquecer, lembrar).

• Suposição de valor – suposição sobre o que é bom ou


desejável (apresentada por meio de verbos valorativos.
Ex.: ajudar, contribuir, etc.).

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Da mesma forma, a negação pode carregar tipos espe-


ciais de pressuposição funcionando também intertextual-
mente e incorporando outros textos apenas para contestá-los
ou rejeitá-los. No exemplo “eu não matei o repórter”, o uso
da negativa tem uma finalidade polêmica, pois a oração
pressupõe a proposição de algum outro texto apresentado
anteriormente.
A seguir, apresento o modelo transformacional da ati-
vidade textual (MTAT). O MTAT foi idealizado a partir dos
estudos com base no RC e ACD. Trata-se de uma analogia
ao modelo transformacional da atividade social proposto por
Bhaskar (1998) sobre a relação sociedade/pessoa.

Modelo transformacional da atividade textual (MTAT)

O MTAT pode ser entendido como um conjunto de estru-


turas, práticas e convenções que as pessoas podem reproduzir
ou transformar através da linguagem. é importante pontuar
aqui que, ao usar o termo “texto”, estou me referindo tanto
à atividade textual quanto ao produto da atividade. Entendo
que não existe uma única atividade textual. A maior parte da
atividade social é, parcialmente textual, parcialmente concei-
tual e parcialmente material.
De acordo com o MTAT, a sociedade existe em virtude
dos indivíduos, que podem reproduzi-la ou transformá-la.
No entanto, isso só é possível se considerar os textos que são
produzidos. Texto pode trazer mudança em nosso conheci-
mento, em nossas crenças, etc. Fairclough (2003a) também
assegura que texto pode iniciar guerras, bem como contribuir
para mudar o mundo material, relações industriais, educação, e
assim por diante. Os indivíduos produzem textos, constituindo
esses parte de eventos sociais que são moldadas por poderes
causais das estruturas sociais. Para interpretar seus significa-

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dos, é necessário relacionar o discurso de seus referentes e


o contexto. O MTAT está representado na Figura 5, a seguir.

Figura 5 – Modelo Transformacional da Atividade Textual (MTAT)

O texto se refere tanto à atividade textual quanto ao


produto da atividade. Entendo que não existe uma única ati-
vidade textual. A questão crucial é saber como os textos são
reproduzidos ou transformados? Nesse sentido, é preciso levar
em conta as maneiras diferentes de olhar os textos. Exemplo:
T1 – Texto como um produto social e T2 [T3, T4, Tn] – Texto
como uma atividade social. A figura abaixo ilustra como eles
estão representados.

Figura 6 – Modelo Transformacional da Atividade Textual

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Sayer (2000, p. 20) tem postulado que “a realidade social


é parcialmente textual”. Existe uma multiplicidade de me-
canismos sendo operados e muito deles são despercebidos.
Algumas abordagens de pesquisa têm se concentrado no
aprofundamento dos significados. Métodos como análise do
discurso, etnografia, narrativas de vida, etc. têm sido provei-
tosos para explicar os mecanismos subjacentes.
Ao considerar os textos como parte da vida social, com
seus mecanismos e poderes causais, proponho um ”sistema
laminado” (BHASKAR; DANEMARK, 2006), em hierarquia,
de uma escala macro para uma escala micro, quais sejam:
Global, Interação Macrossocial, Interação Microssocial,
Individual e Subindividual, dialeticamente relacionados,
conforme o Diagrama 1 a seguir.

Diagrama 1 – Sistemas laminados para o MTAT

96
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Global – está relacionado com tradições e civilizações


inteiras e em nível planetário (ou cosmológico) preocupado
com o planeta (ou cosmos) em seu todo. é importante conside-
rar os efeitos causais da estrutura global, que podem inculcar
e sustentar ideologias. As ideologias, por exemplo, podem
ser decretadas em maneiras de agir, sendo incorporadas nas
identidades das sociedades do capitalismo.
Interação Macrossocial – é orientada para a compreen-
são do funcionamento de sociedades inteiras ou de suas regi-
ões. Se considerarmos a instituição educacional de uma região
em particular, por exemplo, o poder realizado pelo professor
e alunos depende de sua relação dentro da sala de aula. Além
disso, existem outros contextos (interior e exterior) que podem
estar envolvidos. Problemas enfrentados pela comunidade, tais
como abuso sexual, discriminação racial, meio ambiente, etc.
poderiam ser trazidos à tona, através de projetos relacionados
com o currículo, previamente organizados pelo corpo docente.
Interação Microssocial – refere-se aos papéis funcio-
nais, tais como um capitalista e um trabalhador, um professor e
um aluno, etc. As relações sociais entre os indivíduos ou entre
professor e alunos ocorrem em um contexto social particular.
Fairclough (2003a) argumenta que uma forma de interagir
em um evento social específico é através da fala ou da escrita
(linguagem). Assim, quando estamos usando a linguagem/
semioses, podemos agir e interagir de maneiras diferentes.
Por exemplo, professores e alunos em sala de aula (ensino e
aprendizagem) usam a linguagem para interagir uns com os
outros. Eventos sociais são moldados pelas redes de práticas
sociais que articulam formas de agir. Assim, as formas de
(inter)agir podem ser figuradas em gêneros (palestras, semi-
nários, entrevistas , cartas , poemas , etc.)
Individual – está relacionada com estruturas fisiológicas,
biológicas e psicológicas. As estruturas psicológicas incluem

97
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

aspectos do “consciente” e do “inconsciente” (subindividual).


De acordo com Bhaskar, as estruturas envolvendo o fisioló-
gico e o biológico não devem ser consideradas como tipos
diferentes de eventos, mas distintos tipos de mecanismos.
Num evento de sistema aberto, essas estruturas podem ser
simultaneamente aplicáveis.
Subindividual – refere-se ao “consciente” e ao “incons-
ciente”, incluindo emoções, valores, sentimentos e identidade.
Ambas as estruturas individuais e subindividuais podem se
sobrepor. Isso nos possibilita reconhecer quem somos, como
agimos no mundo e para quem.
Para o analista crítico do discurso interessado em des-
velar um desses sistemas laminados, é importante considerar
os mecanismos e os poderes causais. Ao procurar desvelar
um determinado sistema laminado, o analista do discurso
pode também considerar outro(s) sistema(s), dado que exis-
tem também mecanismos e poderes que não são observados,
estando subjacentes.
A seguir, traço breves considerações acerca da abordagem
qualitativa de pesquisa, considerada de suma importância para
o pesquisador critico, interessado em desvelar desigualdades
e injustiças sociais.

98
PARTE III

ABORDAGEM DE PESQUISA
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PESqUISA qUALITATIVA

A pesquisa qualitativa consiste em um conjunto de práti-


cas materiais e interpretativas que garantam maior visibilidade
ao mundo em uma série de representações, incluindo notas
de campo, entrevistas, fotografias, etc. O objetivo é compre-
ender o fenômeno em termos de significados que as pessoas
a ele conferem (DENZIN;LINCOLN, 2006). Na pesquisa
qualitativa, a realidade é subjetiva e múltipla, sendo, nesse
caso, diferente para cada pessoa. O pesquisador interage com
o objeto e sujeito, com objetivo de construir significados. Os
valores pessoais, ou seja, a visão de mundo do pesquisador
acaba fazendo parte desse processo.
Na pesquisa qualitativa, o pesquisador pode se valer
de vários métodos para assegurar maior confiabilidade. Os
métodos mais utilizados em estudos qualitativos, na visão
desses autores, são: estudo de caso, etnografia, narrativas de
vida e pesquisa-ação. As técnicas de coleta são a entrevista e
a observação participante. As técnicas de análise utilizadas
são: análise de discurso, análise de conteúdo e análise de
narrativa.
O processo de pesquisa qualitativa arquiva três conjuntos
de decisões, relacionados com ontologia, epistemologia e
metodologia. Nesse contexto, conforme asseguram Denzin
e Lincoln (2006, p. 32-3), o pesquisador vê o mundo como
“um conjunto de ideias, esquemas (teoria, ontologia), bem

101
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

como uma série de questões (epistemologia), as quais são


examinadas em aspectos específicos (metodologia, análise)”.
Mason (2002) entende que toda definição de um projeto
de pesquisa deve envolver primeiro a ontologia, ou seja, nossa
percepção acerca da realidade social. São os pressupostos
ontológicos que irão determinar as decisões de cunho episte-
mológico e metodológico.
Nessa mesma esteira, Danemark, Ekström, Jakobsen e
Karslsson (1997, p. 18), assinalam que a busca científica para
compreender e explicar o mundo começa com nossos con-
ceitos acerca dele. Cada projeto de pesquisa tem um aspecto
importante que é influenciar, melhorar ou revolucionar nossos
conceitos da realidade. O que supomos acerca da realidade,
daquilo que existe e da essência das coisas, são questões on-
tológicas. E aquilo que supomos sobre a natureza do conheci-
mento, ou seja, de como adquirimos conhecimento e de como
podemos conhecer a realidade são questões epistemológicas.
A realidade existe independentemente do nosso conhecimento
dela. A maneira como ela se comporta nem sempre pode ser
observada. Se a realidade fosse transparente, não haveria a
necessidade da ciência. Não é transparente porque ela tem
poderes e mecanismos que não podem ser observados, mas
podem ser experienciados através das causas, pois são estas
que fazem as coisas acontecer no mundo.
As orientações ontológicas, epistemológicas e metodo-
lógicas acerca da abordagem qualitativa são relevantes para o
pesquisador preocupado com desigualdade e injustiça social.
Nesse sentido, a abordagem da ACD adota uma posição on-
tológica crítico-realista.

102
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Observação participante

A observação participante tem sua origem na antropologia


social, nas primeiras três décadas do século xx. O antropólogo
Malinowski foi quem fez referência aos métodos de campo,
principalmente em relação à observação participante. Seu
principal e relevante trabalho encerra detalhes acerca dos
nativos da Ilhas Trobiand, no Pacífico.
O uso dessa técnica se tornou a mais conhecida, porquan-
to o contexto social é visto pela perspectiva interna, nas ações
cotidianas dos participantes. O pesquisador, ao integrar-se ao
grupo, acaba se envolvendo mais diretamente na pesquisa,
propiciando interações de forma não intencional.
Ross e Kyle (2001) asseveram que, na observação par-
ticipante, o pesquisador deve permanecer no mínimo seis
meses para melhor conhecimento do contexto social a ser
pesquisado, bem como para tornar-se membro do grupo. Sua
saída de campo deve ser definida de acordo com o objetivo
da pesquisa.
é importante registrar que, na observação participante, o
pesquisador faz seus registros em notas de campo para não
perder as informações mais relevantes e detalhadas sobre o
modo de observar e compreender.

Entrevistas

Conforme Bogdan e Biklen (1994, p. 134), as entrevistas


podem ser utilizadas nas pesquisas de duas formas: como es-
tratégia dominante para coletar dados, ou em conjunto com a
observação participante, análise de documentos e outras técni-
cas. é comum, no período de observação de campo, o pesqui-
sador conhecer os participantes, permitindo que as entrevistas
“se assemelhem a uma conversa entre amigos”. Esses autores

103
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

asseguram que na entrevista, o investigador pode transformar


uma situação informal em entrevista. A opção por determinado
tipo de entrevista está baseada no objeto de investigação. No
início da pesquisa, pode parecer importante ao pesquisador
utilizar uma entrevista mais livre e exploratória, pois nesse
momento o mais significativo é ter uma compreensão geral das
perspectivas sobre o tópico a ser investigado. Após o trabalho
de investigação, pode aflorar a necessidade de melhor estruturar
a entrevista. Nesse caso, ao pesquisador cabe lançar mão de
outros tipos de entrevistas para obter dados, detendo-se num
tipo de amostragem mais alargada.
Bogdan e Biklen (1994, p. 136) asseguram que as boas
entrevistas se caracterizam pelo fato de os participantes se
sentirem à vontade e falarem livremente. Na visão desses
estudiosos, “as boas entrevistas produzem uma riqueza de
dados, recheados de palavras que revelam as perspectivas
dos respondentes”.
A entrevista não estruturada, por exemplo, carrega um
caráter de conversa informal, pois permite criar “rapport”
(MERRIAM, 1998, p. 39) entre o pesquisador e os partici-
pantes envolvidos na pesquisa. Nesse tipo de entrevista, os
sujeitos se sentem mais à vontade e falam mais livremente
sobre seus pontos de vista.

Narrativas de vida

O filósofo e sociólogo francês Benjamim (1994) defende


que a narrativa é uma forma artesanal de comunicação. A
narrativa busca conhecer a vida do narrador, obter uma in-
formação ou relatório. é através de narrativas que as pessoas
se comunicam, trocam experiências, etc.
Nessa mesma esteira, Clandenin e Connelly (2004, p.
59) afirmam que “as pessoas por natureza protagonizam vidas

104
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

cheias de histórias e contam histórias dessas vidas”. Ao narrar


uma história, por exemplo, o narrador tem condições de (re)
contar as experiências que vivenciou.
Para o filósofo e sociólogo Barthes (1976), a narrativa
sempre começa com nossa própria história e está presente
em todos os tempos, em todas as sociedades. Nas palavras
do autor:

A narrativa está presente em cada idade, em cada


lugar, em cada sociedade; ela começa com a própria
história da humanidade e nunca existiu, em nenhum
lugar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa
[...] ela está simplesmente ali, como a própria vida
(BARTHES, 1976, p. 19-20)

Entendo que as narrativas são descrições de eventos


ocorridos em algum momento histórico. Nelas são apreendi-
dos os significados das ações dos participantes, suas crenças,
valores e experiências vividas e como elas se desenvolvem.
Conforme Clandinin e Connelly (2004), as experiências são
as histórias de vida das pessoas e consiste não apenas de fatos,
mas também de valores, emoções e memórias.
Nessa mesma perspectiva, Goodson e Sike (2001) argu-
mentam também que as histórias são memórias e que todas
as memórias são histórias. Ou seja, quando falamos sobre nós
mesmos, estamos nos referindo à nossa identidade, sentimen-
tos, e emoções, etc. Contudo, nem sempre o pesquisador con-
segue capturar toda a história de vida do sujeito, participante
da pesquisa. quase sempre há um ocultamento de experiências
tristes que foram por ele/ela vivenciadas. Nesse caso, os ele-
mentos discursivos que poderiam ser cruciais para a análise
deixam de ser revelados, e o analista acaba não conseguindo
capturar outros significados que, certamente, fazem parte da
vida desse sujeito.

105
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Papa (2005, 2008), Barros (2009, 2010, 2011, 2014)


têm utilizado narrativas de vida como uma ferramenta para
complementação da análise dos dados. A pesquisadora não
usa a abordagem teórico-metodológica das narrativas de vida,
posto que esta não coaduna com a ACD1. As narrativas de
vida podem contribuir com pesquisas em ACD, apenas para
fornecer pistas ao analista sobre outros significados que podem
ou não estar presentes nos textos. Na condição de instrumento
de coleta para geração de dados, o uso de narrativas pode ser
utilizado pelo analista do discurso para melhor compreensão
dos contextos micro e macrossociais.
Uma das professoras envolvidas nas pesquisas realizadas
por Papa (2005, 2008), Barros (2009, 2010, 2011, 2014), não
aceitou gravar todas as conversas informais. Em determina-
dos momentos, ela solicitava que o gravador fosse desligado.
Convivendo com ela na escola Meninos do Futuro, a pesqui-
sadora pode perceber, através das narrativas de vida, outros
significados que não estavam presentes durante as sessões de
entrevistas. Nesse caso, a confiança mútua entre pesquisador
e participante é crucial para o uso desse tipo de ferramenta.

ACD e a abordagem crítico-realista

Pesquisas de cunho realista têm como objetivo realizar


análise causal (SAYER, 2000), ou seja, explicar porque o que
acontece na realidade, de fato acontece. As relações causais
subjazem a vários tipos de eventos – em outras palavras, explica
como os eventos surgem –, e tem sido central para a ciência.
Existe um nível de realidade abaixo do nível de eventos onde
1 Em conversa informal com o professor Fairclough, na Universidade de Lancaster,
no ano de 2003, tive a oportunidade de defender meu ponto de vista acerca do uso
de narrativas de vida para as pesquisas em ACD. Argumentei que as narrativas de
vida podem contribuir com a ACD, desde que se considerasse apenas como uma
ferramenta de coleta de dados e não como uma abordagem teórico-metodológica de
pesquisa. O referido pesquisador acatou a minha posição. Ele também argumentou
que a abordagem das narrativas de vida não coaduna com a ACD.

106
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ocorrem as observações empíricas. é uma dimensão profunda


cujos mecanismos fazem os eventos acontecerem. As causas
são sobre os objetos ou as relações e suas naturezas. Os poderes
causais podem ser localizados nas relações sociais ou estruturas
que as pessoas constroem (ex.: relação professor/aluno).
Nesse sentido, uma pesquisa de base realista não denota uma
causação, com sucessão regulares de eventos. Sua explanação
não depende da descoberta de leis universais. Na visão de Sayer
(2000), o que causa ocorrência de algo não tem nada a ver com
o número de vezes que ela acontece. O interesse em querer pro-
var a causação por meio de regularidades repetidas é, portanto,
equivocado. A explicação, conforme esse autor, vai depender
da identificação de mecanismos causais, ou seja, de como eles
operam e se eles foram ativados e sob quais condições.
Ao explicar porque determinado mecanismo existe, deve-
se, em primeiro lugar, descobrir a natureza da estrutura ou
objeto que possui tal mecanismo ou poder. Sayer (2000) cita
o exemplo do professor que possui poder institucionalizado
para corrigir os trabalhos dos alunos, uma vez que detém o co-
nhecimento e é qualificado para exercer esse ofício na escola.
O modelo proposto por Sayer, apresentado na Figura 6 a
seguir, mostra como a análise causal pode ser realizada:

Figura 6 – Adaptado de Sayer (2000)

107
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Na pesquisa em ACD, ao realizar uma análise linguística,


por exemplo, os mecanismos causais podem ser identificados
através de processos (verbos), pronomes, metáforas, adjetivos,
etc. Sayer (2000, p 14) cita um exemplo utilizando verbos
transitivos: “eles construíram uma rede de conexões”. Cada
mecanismo tem seu próprio poder causal e tendências que
podem “bloquear ou modificar a ação dos objetos a que se
referem” (SAYER, 2000, p. 15). Considerando a variedade
de contextos da vida social, é de se esperar, portanto, que a
regularidade entre “causas” e “efeitos” deve ser descartada.
A pesquisa social é um sistema aberto, sem condições de
controle pelo pesquisador, o mesmo poder causal pode produ-
zir resultados totalmente diferentes, uma vez que os eventos
não são pré-determinados, dependem das condições contin-
gencias. Se o mundo social é aberto, tudo pode acontecer.
Conforme o autor, o mundo tem profundidade ontológi-
ca. Os eventos derivam da operação de mecanismos, os quais
derivam das estruturas dos objetos, e estes localizam-se em
contextos geo-históricos (SAYER, 2000, p. 15).
Ao contrário da ciência social, a ciência natural confere
mais ênfase aos registros do mundo através de padrões de
eventos denominados “variáveis”, buscando sempre identificar
as regularidades entre esses eventos.
Chouliaraki e Fairclough, em conformidade com Bhaskar,
entendem que a pesquisa em ACD deve concentrar-se nas
questões práticas da vida social, visando a uma crítica expla-
natória, fundamentada em observações de problemas sociais,
com vista à sua superação. Fairclough (2003a) propõe uma
abordagem de análise de discurso que pode contribuir para
a pesquisa social crítica, uma vez que a ACD enfatiza outras
formas de semiose.

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Inspirados no Realismo Crítico de Bhaskar (1998), Chou-


liaraki e Fairclough (1999) desenvolveram um modelo de aná-
lise que pudesse identificar problemas sociais materializados
em textos orais ou escritos. Essa abertura de possibilidades
transdisciplinares permitiu que a ACD se disseminasse na
ciência social crítica, conferindo aos analistas de discurso
uma compreensão mais ampla da vida social, relacionando
os elementos micro e macrossociais.
O modelo de análise proposto por Chouliaraki e Fairclou-
gh (1999) e Fairclough (2010) é baseado na crítica explana-
tória de Bhaskar (1998), formulado em cinco estágios. Neste
trabalho, proponho um outro estágio (estagio 6). São eles:

1. Dar ênfase a uma injustiça social.


2. Identificar os obstáculos para que a injustiça seja resolvida.
3. Função do problema na prática.
4. Considerar se a injustiça social é um problema ou não.
5. Refletir criticamente sobre a análise.
6. Definir novo problema de pesquisa.

Explico, a seguir, cada um desses estágios.


Primeiro– Dar ênfase a uma injustiça social. Conforme
Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2010), o analis-
ta crítico do discurso precisa identificar um problema que afeta
a vida social em algum nível (por exemplo: pobreza, formas
de desigualdade, racismo, etc.). Esse primeiro estágio pode
ser subdividido em duas etapas: (a) selecionar uma questão
que aponte uma injustiça social, podendo ser abordada de
maneira transdisciplinar, com enfoque nas relações dialéticas
entre momentos semióticos e outros; (b) definir os objetos de
pesquisa, cujos temas indentifiquem tópicos que possam ser
teorizados de forma transdisciplinar.

109
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Segundo –Identificar os obstáculos para que a injustiça


seja resolvida. Os autores sustentam que o “ponto de entrada”
é a análise de textos, abordando as relações dialéticas entre
semiose e outros elementos. Neste estágio, três etapas devem
ser consideradas: (a) analisar as relações dialéticas entre
semiose e outros momentos da prática social; (b) selecionar
textos e categorias para sua análise; (c) continuar com a análise
de textos, tanto a análise interdiscursiva e linguística quanto
a semiótica.
Terceiro – Função do problema na prática. Chouliaraki
e Fairclough (1999) e Fairclough (2010) apontam para a ne-
cessidade de avaliar “como” e “se” o aspecto problemático
do discurso– que tipo de análise seria mais relevante em um
determinado tipo de prática social, por exemplo. Isso significa
dizer que o pesquisador deve se concentrar apenas em um
aspecto analítico, buscando solucionar o problema. Ao iden-
tificar, por meio de uma análise crítica, que a injustiça social
está gerando uma série de problemas, isso só irá fortalecer as
razões para uma mudança radical.
quarto –Considerar se a injustiça social é um problema
ou não. Os estudiosos argumentam para a necessidade de
olhar para os efeitos geradores das práticas. Deve-se conside-
rar, aqui, as contradições, lacunas, deficiências dos aspectos
considerados dominantes da injustiça social, isto é, casos
de contradições existentes nos diferentes tipos de interação
dominante.
quinto – Refletir criticamente sobre a análise. Os autores
defendem uma abordagem reflexiva, questionando sua eficá-
cia, sua contribuição para a emancipação social.
Sexto e último –Definir novo problema de pesquisa. O
pesquisador crítico, preocupado com transformação social,
deve enraizar-se em um contexto social, permanecendo por um
período de tempo prolongado, considerando os reais proble-

110
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

mas que emergem a cada investigação. As pesquisas em ACD,


nesse viés, devem ser cíclicas, ou seja, para cada investigação
realizada, o pesquisador já saberá identificar seu novo objeto,
com ênfase em uma outra injustiça social, procurando sanar ou
minimizar os problemas sociais existentes naquele contexto
social. Um aspecto relevante destacado por Chouliaraki e
Fairclough (1999, p. 61) para a pesquisa analítica é o traba-
lho com outros métodos científicos sociais, particularmente
a etnografia. Segundo esses estudiosos, a etnografia requer a
presença do pesquisador, por um período de tempo no contexto
da prática social, contribuindo para o conhecimento, além do
texto. Asseguro também que as narrativas de vida são ferra-
mentas úteis para uma melhor compreensão da análise dos
níveis micro e macrossociais.
A ACD tem procurado expandir seu modelo de análise,
na relação entre os níveis textual e social. A ênfase na “aná-
lise interdiscursiva” de textos – em termos de hibridade de
gêneros, discursos e estilos –, é uma tentativa, por exemplo,
de suprir o espaço existente entre texto e contexto, isto é, entre
linguagem e contexto social.
Em um enquadre apresentado pelos autores (cf. também
RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 29), as três dimensões
do discurso – texto, prática discursiva e prática social – são
mantidas, porém dando mais ênfase na análise da prática
social. A centralidade do discurso como destaque na análise
da prática social passou considerado como “um” momento
das práticas sociais.
Essa descentralização do discurso é relevante para a ACD,
considerando, fundamentalmente, seu caráter emancipatório.
A estrutura analítica é representada na Figura 8 a seguir,
onde são clareados os seis estágios para a pesquisa em ACD.

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Figura 8- Adaptado de Chouliaraki e Fairclough (1999)


e Fairclough (2010), tendo como base a crítica explanatória
de Bhaskar (1989)

A seguir, descortino algumas experiências vivenciadas em


um contexto de exclusão social. Desde 2006, tenho procurado
desvelar os problemas apresentados na escola Meninos do
Futuro, com objetivo de promover reflexões e algum tipo de
mudança. Nos últimos anos, as pesquisas envolveram a par-
ticipação de professores e alunos. Outros projetos ainda estão
sendo executados com os agentes da segurança e autoridades
do sistema socioeducativo, da secretaria de direitos humanos
(SEJUDH) e da secretaria de educação (SEDUC), visto que
essa escola está intimamente ligada a esses órgãos.

112
PARTE IV

EXPERIÊNCIAS NA ESCOLA MENINOS DO


FUTURO (CENTRO SOCIOEDUCATIVO DO
POMERI)
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REFLExãO INTRODUTóRIA1

Compreender o modo como vivemos e como pensamos


a vida tem sido a tônica nos trabalhos apresentados por teó-
ricos sociais críticos da pós-modernidade (GIDDENS, 1991;
TOURAINE, 2006; SOUZA SANTOS, 2007). Às vezes, não
temos a dimensão da vida social, do modo como vivemos e
agimos no mundo. Sabemos que a organização da vida social
tem gerado um caos, onde imperam a violência, a guerra, a
dominação dos mercados, etc. Por causa desse caos, conhecido
como “globalização”, a sociedade não consegue mais reerguer-
se. Conforme Touraine (2006, p. 25), é “embaixo”, num apelo
ao indivíduo e não mais à sociedade, que se encontra a força
capaz de resistir às diferentes formas de violência. Conhecer
como a vida social está organizada faz parte do pensamento
crítico de teóricos, que vão desde os clássicos, como Marcuse,
Horkheimer, e Habermas, até os mais contemporâneos como
Giddens, Touraine, Souza Santos, entre outros.
Nos últimos anos, tenho refletido sobre a formação crítica do
educador de línguas. qual a importância da teoria social crítica
para a compreensão dos fenômenos sociais existentes na moder-
nidade? De que maneira os professores podem ser agentes críticos
de mudança na escola e na comunidade? Tais questionamentos
são relevantes para os formadores de educadores de línguas que
desejam, assentados numa perspectiva social crítica, repensar seu
papel profissional na sociedade em que vivemos.
1 Texto originalmente publicado na Revista Papia (UnB), v. 21, p. 9 – 24, 2011.

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Teoria crítica da sociedade moderna

A teoria crítica da sociedade2 permeia todas as discussões


sobre a vida social. Trata-se de abordagem teórica que utiliza
pressupostos do Marxismo para explicar o funcionamento da
sociedade. A teoria crítica está associada à Escola de Frank-
furt, nome dado a um grupo de filósofos e cientistas sociais
de tendências marxistas (ADORNO; HORKHEIMER, 1947;
HORKHEIMER, 1972; MARCUSE, 1968; HABERMAS,
1972). Esses pensadores da Escola de Frankfurt usaram, em
seus estudos, a “dialética” como método para entender os
fenômenos estruturais da sociedade, como o capitalismo, a
industrialização, o terrorismo, etc. Compreender o terroris-
mo, através das atrocidades cometidas por Hitler, na segunda
guerra mundial, por exemplo, era um dos objetivos apregoados
por eles.
Os teóricos sociais críticos também receberam influência
da psicanálise, principalmente dos trabalhos de Freud (1950),
passando pela arte e pela economia de Marx (1867), uma vez
que tentavam intervir com suas teorias sobre a prática social,
buscando compreender as relações sociais existentes a partir
da ordem estabelecida no cenário histórico, construído pelo
nazismo e pelo fascismo.
Numa visão mais contemporânea da vida social, teóricos
críticos têm se aprofundado nas discussões sobre temas básicos
da vida social. questões como globalização, distribuição de
renda, pobreza, racismo, exclusão social, etc. passam a ser
pauta na agenda de teóricos da pós-modernidade (GIDDENS,

2 Surge com o texto de Horkheimer intitulado “Traditional and Critical Theory” (1972).
A Teoria Crítica está ligada ao Instituto de Pesquisas Sociais, criado pelo próprio
Horkheimer, em Frankfurt, na Alemanha, durante um período histórico marcado pelo
nazismo, stalinismo e pela segunda guerra mundial, com o objetivo de promover
pesquisas a partir das obras de Marx. Os pressupostos teóricos do Instituto (Escola
de Frankfurt) se estenderam a diferentes áreas do conhecimento, como Comunicação
Social, Direito, Psicologia, Filosofia e Antropologia dentre outras.

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1991; IANNI, 2003; TOURAINE, 2006; SOUZA SANTOS,


2007, entre outros).
Para o sociólogo Ianni (2003), a globalização tem en-
gendrado várias formas de alienação, que se desenvolvem e
multiplicam com o capitalismo, provocando a emergência de
outras formas de sociabilidade. Para o autor, algumas formas
são inovadoras e libertadoras, dado vez que permitem ações
individuais e coletivas. Novos ideais filosóficos e científicos
emergem, criando condições de mobilização social, organi-
zação de movimentos sociais, etc. Contudo, paralelamente à
emergência de formas de sociabilidade inovadoras e liberta-
doras, afloram também formas que aniquilam e alienam os
indivíduos e coletividades, tais como o capital, a divisão do
trabalho, o mercado, a violência, compondo, conforme Ianni
(2003), um complexo movimento integrado e, ao mesmo
tempo, contraditório.
Nessa perspectiva, Souza Santos (2007), em um debate
teórico e ético-político, fomenta não apenas uma discussão
sobre a emancipação política, mas, principalmente, sobre a
emancipação humana e social. Ao falar da “democracia de alta
intensidade”, Souza Santos (2007, p. 83) propõe a inserção
dos movimentos populares como alternativa de luta contra as
diferentes formas de opressão. Para esse autor, quanto maior
for a competição entre as elites do poder, mais brechas haverá
para a existência dos movimentos populares e da democracia
participativa. Essas articulações de ações coletivas, segundo
o autor, são possíveis, haja vista os movimentos que já vêm
sendo organizados nos últimos anos por feministas, indige-
nistas, ecologistas, gays, etc.
Esses teóricos críticos inserem relevantes contribuições
acerca da emancipação humana. A importância de considerar
os movimentos sociais é uma tentativa de engendrar novos
caminhos que permitem a travessia para alcançar a emanci-

117
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

pação social plena. Contudo, tratar a luta dos movimentos


sociais como forma de minar as estruturas sociais mais amplas
de poder é ainda uma estratégia tímida, se considerarmos os
jogos “ocultos” do poder e de interesses dentro dos próprios
movimentos sociais. Giddens (1991, p. 162) chama a atenção
para o outro lado do poder, em seu sentido mais amplo, ao
levar em conta a política emancipatória e a política da vida.
Oportuno é o pensar desse autor:

A solidariedade para com as aflições dos oprimidos


é integral a todas as formas de política emancipa-
tória, mas alcançar as metas envolvidas depende,
com frequência, da intervenção da influência dos
privilegiados. (GIDDENS, 1991, p. 162)

Giddens (1991) vai além. Para o autor, há confirmações


de que muitas pessoas nos estados economicamente avan-
çados vivenciam a “fadiga do desenvolvimento”. Parece
haver uma consciência geral, segundo Giddens (1991, p.
165), de que “o crescimento econômico continuado não
vale a pena, a menos que melhore ativamente a qualidade
de vida da maioria”.
Nesse sentido, é de suma importância compreender os
fenômenos sociais que ocorrem na pós-modernidade, mais
notadamente questões relacionadas com os comportamentos
interacionais bem como com as estruturas sociais mais amplas.
Atualmente, parece prevalecer uma insistência metafísica na
tese de Homans (1961) de que a realidade social é comporta-
mento e as instituições sociais nada mais são que a soma de
comportamentos.
O sociólogo Wilson (1978) aduz um argumento ontológi-
co mais forte para explicar a questão dos fenômenos sociais.
Para esse autor, a ciência social crítica deveria assumir temas
próprios, como emoções, atitudes e disposições. Nesse sen-

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

tido, é preciso considerar as relações sociais no nível mais


ontológico, ou seja, a questão do “ser”.
A importância de trazer à tona reflexões sobre a teoria
crítica da sociedade moderna é fazer com que, de alguma
forma, nós, pesquisadores críticos e formadores de educado-
res, pensemos nos caminhos que devemos trilhar quando se
trata da questão da formação do professor, numa sociedade
em que ainda impera a violência em todos os sentidos (física,
psicológica, moral, etc.). Essas questões são necessárias, uma
vez que os educadores precisam, na prática, repensar seu papel
de agente crítico que almeja uma sociedade mais humanista.

Formação crítica de educadores de línguas

Papa (2005; 2008) e Barros (2009; 2010; 2011; 2014)


têm defendido que as práticas pedagógicas emancipatórias
devem estar conectadas com o contexto social mais amplo.
Temas com enfoque nos problemas sociais da escola e na
comunidade, por exemplo, poderiam contribuir para formar
educadores mais críticos, posicionando-os próximos da rea-
lidade social. Nesse sentido, a autora considera três níveis de
reflexão que poderiam contribuir para a formação do educador
crítico de línguas, a saber: (i) estrutura interna; (ii) relações
microssociais; (iii) relações macrossociais. Esses três níveis
são ilustrados no Diagrama abaixo:
No primeiro nível — estrutura interna —, conside-
rar, conforme Bhaskar (1998), as emoções, os valores, os
sentimentos, etc. Ou seja, o educador pode engajar-se em
projetos sociais e de responsabilidade solidária, através de
um ato de vontade ou, conforme Bhaskar (1998, p. 410),
através do desejo, um sentimento interior que toca nossas
emoções. Isso, necessariamente, implicaria o educador reco-
nhecer quem somos, como agimos no mundo e para quem,

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

comprometendo-se, radicalmente, com as causas sociais e


reconhecendo que as mudanças não podem se dar apenas
com a mudança da consciência, mas, principalmente, através
da “ação”, num exercício coletivo e de solidariedade. Um
exemplo desse primeiro nível seria os educadores críticos e/
ou pesquisadores optarem pelo trabalho envolvendo narrati-
vas de vida. As narrativas se caracterizam como descrições
de eventos em que são apreendidos os significados das ações
dos participantes, suas crenças, seus valores e experiências
vividas, e como elas se desenvolvem. quando falamos sobre
nós mesmos, estamos nos referindo a nossos sentimentos,
imagens, identidade, e as narrativas de vida revelam o modo
como vemos e vivenciamos o mundo.

No segundo nível — relações microssociais —, dar


relevância para questões inerentes à sala de aula. O trabalho
do professor estaria em identificar os problemas que estão
afetando a sala de aula. Uma vez identificados tais proble-
mas, o educador poderia compreender suas causas e seus
efeitos, buscando atividades práticas que consigam remover
os obstáculos.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

No terceiro nível — relações macrossociais —, olhar


para além dos muros e portões que se fecham em torno da
escola. Nesse nível, é fundamental atentar para questões mais
abrangentes. Problemas vividos pela comunidade, tais como
abuso sexual, discriminação racial e meio ambiente poderiam
ser postos em discussão, ancorados em projetos vinculados ao
currículo escolar, previamente organizado por todo o corpo
docente. Entidades de classe, políticos e organizações não
governamentais seriam convidados a participar das discussões,
através de palestras e cursos. Esse tipo de ação social fortale-
ceria o elo entre a estrutura escolar e as estruturas sociais mais
amplas de poder, objetivando ações mais efetivas e coletivas
que poderiam trazer mudanças significativas para a escola e
para toda a comunidade.
Nesse processo, todo o corpo docente e comunidade es-
colar conseguiriam desenvolver, além da consciência crítica,
um sentido de responsabilidade social, permitindo-lhes que
todos caminhem juntos rumo à emancipação e transformação
social. Um exemplo para esse nível estaria na organização do
currículo, elaborado com a participação de todo o corpo do-
cente e comunidade escolar. Além disso, envolveria também
a participação dos professores em grupos de estudos sistema-
tizados na escola. Os grupos de estudos contribuiriam para
fomentar discussões frutíferas sobre os problemas que surgem,
cotidianamente, na escola. A partir das discussões feitas pelo
conjunto dos professores, novas ideias e ações podem aflorar e
ser postas em prática na sala de aula e na comunidade escolar.
A seguir, exponho algumas experiências realizadas na
Escola Meninos do Futuro.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

A Escola

Localizada no Centro Socioeducativo do Pomeri3, em


Cuiabá/MT, a escola “Meninos do Futuro” atende jovens e
adolescentes de 12 a 18 anos, privados de liberdade, encami-
nhados pela delegacia especializada de adolescentes ou juiza-
do. A Escola é mantida pela Secretaria de Estado de Educação
(SEDUC). Oferece o Ensino Fundamental, o Ensino Médio e
a Educação de Jovens e Adultos.
Sabe-se que o nome Meninos do Futuro foi uma escolha
feita pelos próprios adolescentes, em um concurso integrado
a uma oficina de pintura e desenho. O nome escolhido se afei-
çoa ao futuro buscado pelos jovens, perseguido pelos sonhos,
pois esperam, por meio da escola, alcançar uma vida melhor.
A escola integra ao Centro Socioeducativo4. A liberação dos
alunos para as atividades educativas e recreativas é de compe-
tência do agente orientador que segue critérios de segurança.
A escola tem como objetivo principal o desenvolvimento de
uma educação democrática, transformadora, comprometida
e humanizada. Promove a formação integral do educando,
visando desenvolver o senso crítico. Em 2011, a Secretaria
de Estado de Educação (SEDUC/MT) em parceria com a
Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Mato
Grosso (SEJUDH/MT), observando os direitos preconizados
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as diretrizes
previstas no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
3 De acordo com algumas etnias indígenas, é um cerimonial onde os jovens e adoles-
centes passam por um processo de “reclusão” em torno de 18 meses, com o objetivo
de se preparar para o exercício da cidadania em suas comunidades. O complexo
Pomeri é o primeiro centro integrado de atendimento à criança e ao adolescente de
Mato Grosso (art. 88, Lei Federal n. 8.069/90).
4 Atende as unidades de internação provisória bem como a masculina e feminina. A
internação provisória recebe os alunos por um período curto de tempo (no máximo
quatro meses). São crianças e jovens que cometeram pequenos delitos. Nos últimos
anos, o Centro Socioeducativo tem apresentado sérios problemas, tais como ausência
de agentes orientadores, segurança, precariedade das instalações físicas, suspensão
das atividades pedagógicas e punição contra os jovens e adolescentes (cf. Miranda,
2014).

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(SINASE), propôs, através do Projeto EDUCAR, a estrutura-


ção e implementação de todas as unidades socioeducativas de
Mato Grosso, com o objetivo de unificar as ações educativas
(MIRANDA, 2014).
O objetivo do projeto é realizar um atendimento diferen-
ciado aos jovens e adolescentes, desde sua entrada na escola.
É feita uma avaliação diagnóstica, com o intuito de verificar
se há defasagem de aprendizagem, respeitando as capacidades
cognitivas de cada aluno. Possui uma metodologia diferencia-
da, organizada por meio de eixos temáticos, buscando articular
as diferentes áreas do conhecimento (Linguagens, Ciências
Humanas e Ciências da Natureza e Matemática).
Alguns projetos desenvolvidos na escola são mantidos
com recursos do governo federal e estadual. O Projeto “Mais
Educação: letramento, música, violão, teatro e dança” envolve:

• Percussão
• Artes Plásticas
• Jornal
• Leitura
• Informática
• Padaria “Mão na Massa”
• Olimpíadas esportivas.

Os professores e a formação continuada

Em março de 2006, engajei-me nessa escola com o ob-


jetivo de formar grupos de estudos com os professores desse
contexto de exclusão social. Apresentei o projeto intitulado
“Formação contínua do educador: (re) construindo a prática
pedagógica”. Expliquei a eles meu interesse em enraizar-me
no terreno da escola, visando aprofundar discussões e reflexões
acerca da formação crítica de educadores.

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Dos vinte professores que trabalham na escola, apenas


três se interessaram em participar do grupo de estudos. Reuní-
amos, quinzenalmente, para refletir e debater temas inerentes
ao ensino e aprendizagem, sob a ótica emancipatória e de trans-
formação social. A curiosidade, somada ao interesse desses
poucos educadores, acabou contagiando os demais colegas.
Transcorridos dois meses de estudos já contávamos com vinte
participantes. O curso foi realizado durante o ano 2006.
O primeiro momento do curso esteve voltado para refle-
xões filosóficas acerca da emancipação humana. O segundo se
centrou nas questões pedagógicas. Além dos textos apresenta-
dos a eles, propus que todos poderiam contribuir com outros
de seu interesse, visando ao enriquecimento do curso, o que
acabou ocorrendo. Essa experiência ensejou a organização de
vários seminários na escola. Após o término do curso, os pro-
fessores continuaram a se reunir, quinzenalmente. Formaram
seus próprios grupos, com a liberdade de selecionar temas de
interesse de todos.
Durante o período em que ministrei o curso de formação
continuada, procurei conhecer mais sobre a estrutura da escola
e do centro socioeducativo. Convivendo com os professores,
passei a compreender melhor as experiências aí vivenciadas.
Procurei também conhecer como eles agiam em favor dos
excluídos. Desde então, com a confiança adquirida, passei a
fazer parte da escola, ministrando palestras e participando de
eventos organizados por eles.
Com a realização desse curso, a SEDUC tomou conhe-
cimento e implantou, no segundo semestre de 2006, o Projeto
Sala do Educador, em todas as escolas estaduais de Mato
Grosso.
A maioria dos professores da Escola Meninos do Futuro
não possui cargo efetivo. Todo ano é feito um seletivo para a
entrada de novos profissionais. Com isso, a Sala do Profes-

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sor tornou-se de suma importância. Alguns educadores que


participaram da pesquisa já não se encontram mais na escola,
com exceção da professora Keila que assumiu a coordenação
pedagógica e tem recebido total apoio da SEDUC. Keila5
trabalha na escola desde 2003. é professora de espanhol. Ao
narrar suas experiências pessoais, sem o uso de gravador6,
Keila mencionou sobre a sua família. Disse que nunca conhe-
ceu sua mãe biológica. Fora criada pelo pai biológico e sua
madrasta desde tenra idade. Por não ter tido uma filha mulher,
sua madrasta adotou-a como legítima, dando-lhe todo o amor
e carinho. Keila relatou-me que também vivenciou, ainda
criança, o drama da sua madrasta com o filho legítimo, ao
vê-lo se envolver com drogas. Afirmou ter sofrido, juntamente
com a mãe adotiva, ao se deparar com seu irmão submergindo
nesse mundo de drogas e violência.

Seminário de literatura

Nesse mesmo ano de 2006, os professores decidiram or-


ganizar o I Seminário de Literatura7, um projeto desenvolvido
com os alunos, em parceria com o sistema socioeducativo.
Tem como proposta incentivar a prática da leitura e a produ-
ção textual. A escolha do tema é feita entre os educandos. A
partir da seleção do tema, os professores organizam pesqui-
sas, debates e produções textuais com os alunos. é realizado
um grande evento, com a participação de toda a comunidade
escolar, o Poder Judiciário, secretarias, conselhos e órgãos de
defesa dos direitos da criança e do adolescente, bem como as
famílias dos alunos.

5 Os nomes são fictícios para proteção de identidade.


6 Keila não autorizou que fossem gravadas suas histórias de vida. As narrativas foram
feitas de forma reservada, e, posteriormente, registradas etnograficamente como
anotações de campo.
7 Atualmente o projeto é intitulado “Seminário de leitura,” por envolver os professores
de outras áreas do conhecimento.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Ao tomar conhecimento acerca do projeto, a professora


Keila, em entrevista informal8, relatou-me o que tinha ocorrido
na reunião com o superintendente do sistema socioeducati-
vo. Procurei desvendar os significados construídos por esses
agentes e seus poderes. O meu interesse era saber quem eram
e que “poderes causais” possuíam9. A tentativa em desvelar
esses influxos causais permitiu melhor compreensão desse
contexto social.
No exemplo apresentado a seguir, Keila comenta sobre o
Seminário de Literatura realizado pela primeira vez na escola,
no ano de 2006. Ela diz:

Exemplo 01
[...] Esse seminário de literatura, desde 2004 era pra
acontecer....só que aqui ...pra nos desenvolvermos
qualquer tipo de evento ...nós temos que ter apoio...
da segurança...quanto do financeiro mesmo...por
que? Porque se nós quisermos a sós não temos como,
temos o livro paradidático... temos como oferecer...
mas pra está expondo esse trabalho...sempre há
dificuldade....de que forma? ...nós temos que ter
autorização ..pros meninos levarem os livros...igual
nós tivemos...pra levá os livros pra ala...pros quar-
tos....pra levá o lápis ....a borracha...existe assim
toda assim uma formalidade... uma responsabilidade
da escola

Conforme Keila, a dificuldade era realizar qualquer tipo


de atividade na escola. Ao usar o processo relacional “era”,
Keila faz referência a um período de tempo existente no pas-
sado, em que já se tinha uma proposta embrionária para que
o Seminário de Literatura pudesse ser desenvolvido com os
alunos. Ao dizer “ qualquer tipo de evento nós temos que ter

8 Gravada e transcrita.
9 Trabalho originalmente publicado na revista Polifonia (UFMT) – IV GELCO, n. 17,
p. 141-154, 2009.

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apoio da segurança”, Keila emprega alto grau de modulação


“temos que ter” , revelando a proibição da escola para esse
tipo de evento. Ao afirmar também “nós temos que ter autori-
zação”, uma outra modulação alta é utilizada em seu discurso
para revelar a impossibilidade da escola em fomentar qualquer
tipo de atividade para os alunos.
Conforme Keila, quase sempre há dificuldades para que
seja autorizada qualquer atividade na escola. A estrutura social
do centro socioeducativo do complexo Pomeri, composta por
chefes e subordinados “disciplinados”, impede que qualquer
evento social possa ser realizado no ambiente escolar.
Do ponto de vista da análise macrossocial, é possível
apreender outros significados que não estão presentes no dis-
curso de Keila. Para o RC, há a necessidade de compreender
as camadas mais profundas da realidade. é exatamente nas
camadas mais profundas que se escondem os determinantes
causais, incluindo os agentes causais e seus poderes. O dis-
curso de Keila autoriza que desvelemos uma outra realidade.
é preciso que nos transcendamos aos fatos e às aparências.
Assim, se analisarmos mais criticamente os enunciados de
Keila, se formos além das aparências, é possível perceber
os agentes causais e seus poderes. quem são esses agentes
causais e que poderes possuíam?
Conforme Keila, os alunos não levam os livros para a
ala (quarto) porque não lhes é permitido. Nesse caso, não há
leitura. É preciso ter autorização, apoio, inclusive do financei-
ro para que seja autorizado qualquer evento dessa natureza,
na escola. Os alunos são privados de liberdade. Não podem
levar o livro, o lápis e a borracha a seus aposentos. Há que se
perguntar então: quem é o agente causal, responsável pelo
apoio financeiro e pela autorização de qualquer tipo de evento
realizado na escola?

127
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No exemplo ilustrado a seguir, Keila fala sobre a autori-


zação feita pelo superintendente do centro socioeducativo do
Pomeri. Vejamos o que ela diz:

[...] Tem que ter autorização...né?...por que?....


porque de repente esse lápis ele pode transformar
numa arma...queiramos ou não....nós sempre temos
que pensar dessa forma...não generalizando....que
irão fazer...mas se algo aconteça....sobre cai... na
escola ....que este ano o Cristiano acreditou e re-
solveu apoiar... a educação.. ele viu a proposta ...a
proposta veio do Cristiano...nos envolvemos junto
a ele...sentamos junto....e ele falou... “se vocês
acreditam eu vou apoiar [...]

Keila, ao se reportar à autorização para a realização do


Seminário, menciona o superintendente Cristiano (nome
fictício)10, um agente causal, com poder para (des)autorizar
qualquer atividade pedagógica na escola. Ao dizer “o Cristia-
no acreditou e resolveu apoiar”, Keila usa processo mental
“acreditar” para sinalizar uma atitude de decisão sobre a
proposta de realizar o Seminário. Percebe-se, nesse exemplo,
que a proposta de realização do Seminário surge a partir de
Keila. é ela a responsável pela tentativa de aprovação da
proposta. Ao usar o processo mental “ver”, Keila revela que
a proposição foi apresentada ao Cristiano. Nesse caso, ela
mesma, na qualidade de agente causal, revestida de poder
como educadora e comprometida com essa realidade social,
tornou-se a responsável pela negociação da proposta com
o superintendente. O processo material “apoiar” sinaliza a
autorização para a realização do Seminário. Na condição de
agente causal, com poderes que lhe são atribuídos pelo Centro
Socioeducativo do Pomeri, caberia somente a ele dar a voz de
comando para autorizar a realização desse evento.

10 Não foi possível realizar entrevistas com o superintendente Cristiano.

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Percebem-se, aqui, os agentes causais e seus poderes


(Cristiano e Keila), responsáveis pela realização do Seminário
de Literatura. Como superintendente, Cristiano (des)autoriza
as atividades que são realizadas na escola, educativas, cultu-
rais, ou não. é ele o responsável pela manutenção da ordem
em todo o Centro Socioeducativo do Pomeri. Já Keila, na
condição de agente causal, educadora e comprometida com
a escola e com seus alunos, demonstrou ter atitude corajosa
para negociar sua proposta inovadora e ao mesmo tempo
desafiadora, tendo em vista que ela estava violando as regras
impostas pelo superintendente do Centro Socioeducativo.
é importante salientar que as narrativas de vida de Keila
colaboraram para melhor compreensão das camadas mais pro-
fundas da realidade social vivida por ela. Como nos assegura
Bhaskar (1998), é preciso conhecer as causas dos fenômenos
para transcender os fatos e as aparências dos eventos.
O esforço de Keila em prol da melhoria de vida desses
jovens que vivem o dia a dia no Centro Socioeducativo está
intimamente imbrincado às suas experiências de vida. Keila
também vivenciou o drama de sua mãe, ao ver seu irmão
adotivo se envolver com drogas. Assim como ele, no período
de sua adolescência, vários jovens que vivem, hoje, no Po-
meri têm procurado esse mesmo caminho para esquecer seu
passado triste e desalentador. Esses jovens, quase sempre, são
de origem humilde, vendo, no seio familiar, pais socialmente
desajustados.

Projeto Sala do Educador

O projeto Sala do Educador foi implantado pela SEDUC,


através do CEFAPRO11, com o objetivo de promover a
formação continuada dos professores da rede estadual de

11 Centro de Formação de Educadores.

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ensino, por meio de grupos de estudos na própria escola.


Busca envolver os professores nas discussões e reflexões
acerca da escola e do ensino e aprendizagem, visando
conhecer a realidade social onde estão inseridos, bem como
melhorar a qualidade da educação. O projeto propõe envolver
os educadores e demais profissionais da unidade escolar.
São realizados estudos de textos predefinidos, pesquisados
e apresentados em grupos. O projeto abrange também a
participação de professores formadores do CEFAPRO,
localizado em várias cidades de MT, bem como técnicos da
SEDUC, assessores pedagógicos, conselheiros, professores
pesquisadores da UNEMAT e UFMT.
Ao final de cada ciclo de estudo, é feita uma avaliação
reflexiva, posta em prática no ano seguinte. A certificação é
expedida pelo CEFAPRO/CUIABá, com duração de 80 horas.
O curso garante, aos educadores de toda a rede estadual de
ensino, pontuação na seleção e atribuição de classe e jornada
de trabalho.
Num dos encontros organizados na escola, através do
Projeto Sala do Educador, expus aos professores um trabalho
apresentado em congresso científico, sobre a formação crítica
do educador12. Tratava-se de texto construído pelos alunos da
escola. Algumas representações estavam claramente materia-
lizadas em quase todas as produções escritas dos alunos, tais
como “eu quero mudar de vida”; “não quero isso pra mim”;
“eu tô aqui porque roubei”; “tô tão arrependido”, etc.
Três perguntas nortearam nossa reflexão coletiva:

1. O que e como nós, professores, podemos fazer para que a


realidade desse jovem possa, de alguma maneira, mudar?

12 Texto originalmente publicado em “Identidades Silenciadas e (in)visíveis: entre a


inclusão e exclusão”, organizado pela Professora Dra. Maria José Coracini, 2011, p.
229-246, Pontes.

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2. que atividades educativas poderiam ser implementadas


em curto, em médio e em longo prazos?
3. Como educadores, o que precisamos fazer para mudar
nossas ações, atitudes e comportamentos diante dessa
realidade?

Os professores leram as perguntas atentamente e, com


base nelas, passaram a fazer comentários sobre os alunos e
sobre sua prática pedagógica. Apresento a seguir, as contribui-
ções das professoras Mariza, Leda e Cleia (nomes fictícios),
a respeito do que foi exposto em nossa reunião:

Mariza: as atividades com eles que eu trabalho ...essa


coisa de honestidade... tanto com eles quanto eu...eles
têm mania de pegar folha de caderno ...esconder...eu
falo gente...comigo professora ...eu escrevo meu nome
...não esconda folha de caderno...pede pra mim que
eu aviso para o orientador ...vocês estão aqui para ser
recuperado...vocês continuam roubando ..não quero
ninguém pegando folha escondido [...]

é interessante destacar a ênfase apresentada por Mariza


sobre valores humanos. Ao dizer: “tanto com eles quanto eu”,
a professora reforça a importância da honradez perante esses
jovens. O uso de expressões negativas e imperativas como
“não esconda folha de caderno”, “não quero ninguém pegando
folha escondido” sinaliza cobrança para que a honestidade seja
de fato estabelecida entre eles. Esse tipo de atitude parece ser
uma prática social cotidiana na sala de aula. Ao se referir à
avaliação, Mariza assim se expressou:

[...].se eu falo oh Breno amanha eu trago sua


avaliação corrigida...eu trago... nem que eu não
durma a noite mas eu tenho que cumprir com ele
pra mostrar que eu tenho palavra com eles...então
eu trabalho isso aí [...]

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Mariza usa expressões afirmativas como “eu trago”, “eu


tenho palavra” para reforçar sua honestidade perante os alu-
nos. Ao dizer “eu tenho que cumprir”, a professora utiliza a
modulação “ter que”, fazendo cumprir o prazo estipulado por
ela mesma, para a entrega da avaliação. A atitude de Mariza
nos remete, conforme Bhaskar (1998, p. 410), ao nível de
estrutura interna, posicionando-se como uma educadora que
deseja estar engajada em ações de responsabilidade solidária,
através de um ato de vontade. Seus enunciados desvelam
comprometimento para com esses jovens. Ela reconhece a
necessidade de trabalhar valores humanos, posicionando-se
como protagonista da experiência cotidiana de sala de aula,
fazendo-lhes compreender que a honradez é valor que deve
ser exercido plenamente perante os cidadãos.
Trilhando essa mesma linha, a professora Leda expõe
também as conversas informais com os alunos, antes do início
das atividades, na sala de aula. Ela disse:

[...] ao entrar na sala de aula eu converso...não tem


como você chegar e começar com o conteúdo com
ele ...primeiro eles querem ouvir o que o professor
tem pra eles...entendeu? e muitas vezes não é nem
professor...eles querem falar com a Leda...eu quero
falar com a Leda...porque eu chego neles eu pego na
mão dele...outra hora eu passo a mão nele...porque
é uma afetividade... às vezes tem que fazer isso ...

Leda ressalta a necessidade de fazer com que os alunos


sejam ouvidos antes das atividades pedagógicas. O enunciado
na forma negativa “não tem como” é demonstração clara sobre
a necessidade de o professor estar atento e predisposto a ouvi-
los. A professora faz também referência à atitude proxêmica.
Ao mencionar “eu chego neles, eu pego na mão dele...outra
hora eu passo a mão nele”, ela expressa a importância desse
tipo de postura para com os alunos. é interessante destacar

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
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o uso dos pronomes, ora no plural “neles”, ora no singular


“nele” e “dele”, sinalizando a existência não de um aluno ape-
nas, mas de outros que precisam também desse tipo de afeto.
A professora Cleia também traz à tona aspectos interes-
santes sobre a necessidade da afetividade e da valorização da
pessoa humana. Ela se expressou:

[...] primeiro de tudo tem que mostrar o contexto lá


fora...aí vem o lado da afetividade ...cumprimentar...
eles querem entrar ...você está ali na porta ...eles
querem dar a mão ...aí tem uns que passam assim
né? ...aí você vai lá próximo deles...eles adoram...
adoram...primeiro lugar vocês têm que ver eles
como uma pessoa humana...porque eles estão ali
dentro... eles acham que estão fora...que eles não
fazem parte da sociedade...aí sim...aí você começa
como a Leda tocou ...aí funciona...

À luz do pensamento de Cleia, o trabalho assentado na


afetividade também é fundamental para o desenvolvimento
humano, reforçado no início das atividades pedagógicas. Ao
dizer: “primeiro de tudo tem que mostrar o contexto lá fora”,
Cleia enfatiza, através da modulação “tem que”, a relevância
de conversar com eles sobre outros contextos de seu interesse,
ou seja, sobre o que acontece extramuros, fora dos portões da
escola. A professora sinaliza, aqui, a necessidade de trazer para
dentro da sala de aula questões que podem ser significativas
para eles. Os enunciados “eles estão ali dentro eles acham
que estão fora...que eles não fazem parte da sociedade” são
demonstração de quanto esses alunos querem ser ouvidos pela
escola e pelo Centro Socioeducativo, no tocante à sua própria
situação ali dentro.
Evidencia-se, aqui, uma sinalização, por parte da Cleia,
de que os professores e a direção do Centro Socioeducativo
precisam, ainda, estabelecer e ampliar de maneira expressiva

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

o elo — estrutura da escola e as estruturas sociais mais am-


plas de poder de todo o sistema do centro socioeducativo—,
objetivando ações mais efetivas e coletivas, a fim de trazer
relevantes mudanças para os alunos, para a escola e para toda
a comunidade. Vale ressaltar, porém, que, para alcançar esse
nível, há ainda muitos caminhos a serem trilhados ali den-
tro, concernentes a relações de poder, autoridade, controle e
opressão, etc.
Os caminhos permeados de poder e opressão existentes
nesse contexto de exclusão social nos chamam a atenção para
a indispensável “ação política”. Infere-se, dos enunciados das
professoras, que elas conhecem os reais interesses dos alunos,
porém esbarram no controle severo realizado pelos agentes
sociais que estão acima da escola, numa relação hierárquica
de poder. Tanto esta pesquisadora quanto as professoras, aí me
incluindo, ficamos atentas não apenas aos trabalhos que são
desenvolvidos em sala de aula, mas também às atividades que
são realizadas em todo o complexo do centro socioeducativo.
Na esteira de Papa (2005; 2008), Barros (2010; 2011;
2014), a prática pedagógica emancipatória deve estar dia-
leticamente conectada com o contexto social mais amplo.
Compreender os mecanismos e poderes causais existentes
nos eventos sociais da escola Meninos do Futuro é desafio
tanto para formadores de educadores críticos, quanto para
pesquisadores que desejam enveredar para a descoberta de
novos caminhos em busca da emancipação e da transfor-
mação social.

Letramento crítico

Em 2011, o curso intitulado Letramento Crítico13 foi reali-


zado na escola, também pelo projeto “Sala do Professor”. Esse
13 O curso Letramento Crítico foi ministrado em novembro de 2011, na Escola “Meninos
do Futuro”.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

tema partiu do interesse dos próprios professores. Correa (2013)


também esteve engajada, em virtude de sua pesquisa focalizar
a questão da formação continuada. Além de listarem os temas
a serem discutidos, os professores decidiam como seriam as
apresentações. Os encontros ocorreram nas manhãs de sábado,
no auditório do Centro Socioeducativo, das 8 às 12 horas.
Investigamos as experiências14 dos professores, mesmo
porque o trabalho de formação continuada já vinha sendo
desenvolvido desde 2006. Discutimos, planejamos e reali-
zamos atividades práticas sobre como trabalhar letramento
crítico. Em se tratando de jovens e adolescentes em situação
de exclusão social, o curso se concentrou, basicamente, numa
abordagem metodológica que envolvesse o trabalho com
gêneros textuais, deslocando do eixo de formação crítica
para o eixo mais pedagógico, com atividades práticas de
sala de aula.
Em entrevistas realizadas com Cravo, Violeta e Hor-
tência15 (nomes fictícios), evidenciamos a preocupação de
cada um desses professores em socializar os acontecimen-
tos ocorridos na escola, de forma a resolver os problemas
em conjunto. Destacaram a importância dada à reflexão do
trabalho coletivo.
A seguir, apresentamos as etapas do planejamento do
curso de Letramento Crítico:

14 Texto originalmente publicado em Recortes em linguística Aplicada – Estudos em


homenagem à professora Ana Antonia de Assis Peterson, organizado por Fernando
Zolin-Vesz, Editora Pontes, 2015.
15 Os nomes são fictícios para preservar a identidade.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Planejamento, realização e carga horária


Neste contexto ampliamos nossas leituras
acerca da linguagem, do tema letramento
crítico, incluindo a formação crítico-reflexiva
do professor, nos três níveis: “estrutura in-
terna”, “relações microssociais” e” relações
macrossociais”1. Ao optarmos por trabalhar
com professores de diversas áreas do conhe-
cimento, selecionamos textos e atividades
PLANEJAMENTO que viessem a contribuir para o melhor
entendimento de todos os professores. Vale
ressaltar que essa etapa do planejamento foi
muito importante, uma vez que nem todos
os professores são da área de linguagem.
Dessa forma, tivemos que aprofundar nossos
estudos com objetivo de atender a todos os
docentes possibilitando entendimento, hábil
a propiciar a eles novas possibilidades de tra-
balho em suas disciplinas. Nesta preparação,
ficou acordado que, após as explanações dos
temas, os professores no final do curso iriam
planejar atividades e expor ao grupo.
O curso foi realizado no auditório, em no-
vembro de 2011, ministrado por duas pesqui-
REALIZAÇÃO sadoras, orientadora e mestranda em Estudos
Linguísticos na Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).

O curso teve um total de 40 (quarenta horas),


ministrado nas segundas e terças-feiras, das
CARGA HORÁRIA 16 às 19 horas (aulas expositivas e dialoga-
das) e, aos sábados, das 8 às 12 horas (leitura
e discussão dos textos).

Nas entrevistas realizadas com esses professores, perce-


bemos a preocupação deles em socializar os acontecimentos

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

ocorridos na escola, de forma a resolver os problemas em


conjunto. Os enunciados revelaram inquietude em tentar
sanar as dificuldades do dia a dia, por meio do trabalho em
equipe, pautado em oferecer aos alunos melhores condições
de aprendizagem. Essa preocupação se estendeu também aos
demais colegas comprometidos com o contexto social onde
trabalham. Demonstraram interesse em promover algum tipo
de mudança nesse ambiente de ensino.
Tais características estão em consonância com a pers-
pectiva de professor crítico-reflexivo, presente neste estudo.
A reflexão crítica, na qualidade de atividade coletiva, envolve
processo de “autocrítica”, com interesse libertador, em que o
professor age diante de um problema, buscando solução no
coletivo. Além de refletirem sobre suas ações, os professores
questionam as estruturas sociais em que trabalham.
Na sequência abaixo, os dizeres de Violeta sinalizam
sua visão acerca dos colegas da escola, a respeito do trabalho
coletivo, em que as palavras se entrelaçam com as ações e
atitudes reflexivas, no sentido de construir o contexto escolar.

[...] às vezes nós juntamos fazemos grupos de


professores houve a ideia fala sim não hoje nos
precisamos dar uma aula diferenciada a qual os
alunos não estão querendo assistir aula então nos
juntamos todos os professores unimos escolhemos
alguma coisa para ta trabalhando com eles.
(Entrevista com a professora Violeta, em 18/4/2012)

Nesse exemplo, Violeta expressa que as ações realizadas,


coletivamente, entre ela e seus colegas, têm como objetivo
melhorar o processo de aprendizagem dos alunos. Segundo
ela, em alguns momentos os estudantes não querem assistir
às aulas. Ao enunciar “nós juntamos”, Violeta demonstra
atitude de solidariedade entre ela e seus colegas. O uso do

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

pronome “nós” tem caráter coletivo/inclusivo, demonstran-


do que Violeta se inclui no grupo de professores. As formas
verbais “juntamos” e “unimos” revelam sentido de união.
Violeta também recorre à modalidade “precisamos”,
expressando, dessa forma, seu comprometimento e dos co-
legas com a necessidade em ministrar aula “diferenciada”,
dado o fato de que as aulas eram sempre iguais e, em alguns
momentos, causava insatisfação nos alunos. As condições de
trabalho nesse cenário educacional deveriam ser diferentes,
para alcançar melhores resultados. Isso envolve a busca cons-
tante de atividades motivadoras e relevantes para a sala de aula,
atividades que promovam interação e que sejam adequadas
ao nível do aluno.
é interessante destacar aqui que, ao ler os documentos da
escola (Sala do Professor), verificamos a importância dada à
reflexão do trabalho coletivo, o que entrelaça as palavras da
professora Violeta. Na justificativa do projeto, consta que ser
educador na Escola Meninos do Futuro exige muito mais que
preparação técnica: é necessário esforço coletivo direcionado
a uma prática menos irreal e mais humanizada, atendendo às
especificidades dos adolescentes. A preocupação exposta no
Projeto Político-Pedagógico instaura uma forma de organiza-
ção do trabalho pedagógico que busque superar os conflitos
e dificuldades.
A forma verbal na terceira pessoa do plural “unimos”
deixa claro a aproximação entre ela e os professores que acre-
ditam poder realizar ações em conjunto, possibilitando melhor
interação com os alunos em sala de aula. Relação cooperativa
com objetivo de superar as dificuldades, uma tentativa de não
apenas valorizar o trabalho em conjunto, mas, principalmente,
de se apresentarem como agentes críticos de mudanças.
Nesse exemplo, Violeta parece fundamentar sua fala nos
princípios da perspectiva crítico-reflexiva, ligada à reflexão

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

como resultado de uma vontade que o professor pode expressar


e de uma provável busca por soluções. Isso segue a trilha do
pensamento de Prestes (1994), em que o professor deve ter
compromisso com o desenvolvimento do pensamento crítico
do aluno, sendo o mediador de seu processo de construção
intelectual. Violeta sabe que é possível ensinar em ambiente
de socioeducação, apesar de todos os desafios que existem. Ao
perceber que seus alunos não estão correspondendo às ativida-
des propostas, ela para, conversa, procura manter uma sintonia
com os alunos, para que eles não se sintam desmotivados.

Não gosto de trabalhar só com livros, não gosto de


trabalhar só com aquilo ali que Fala, ás vezes isso
é bom, mas tem algo melhor e esse algo melhor é a
minha pesquisa, Saber é fazer essa coisa de refletir
o que o aluno fez na aula anterior pra eu trazer
Coisas melhores pra ele na próxima aula.
(Entrevista com a professora Hortênsia, em
02/05/2012)

Hortênsia usa o advérbio de negação “não”,revelando a


maneira como ela se vê como professora pesquisadora e de
como acredita que essa postura pode melhorar seu trabalho.
Inicia sua fala utilizando-se do advérbio de negação “não”,
seguido do verbo “gostar”, para expressar como desenvolve
seu trabalho: “Não gosto de trabalhar só com livros”. Ao dizer
isso, Hortênsia desvela como ela vê seu próprio trabalho, sina-
lizando o desejo de expandir seu processo de preparação das
aulas. Assim, revela não concordar que suas aulas se pautem
apenas em livros.
O uso do advérbio de exclusão “só” expressa o sentido
de somente, sugerindo outros recursos, além dos livros, para
auxiliá-la na preparação de suas aulas. Em seguida, o advérbio
“só” aparece, novamente, com o mesmo sentido do anterior,
acompanhado da expressão “com aquilo”, o que denota não

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ser considerado bom para o trabalho do professor pautar-se


apenas em livros didáticos.
Hortênsia, ao dizer “algo melhor”, utiliza-se do adjetivo
de superioridade “melhor”, expressão que ocorre três vezes
em sua fala. Tal atitude demonstra, conforme o pensamento de
Perrenoud (2002), que esse professor reflete sobre sua ação,
questiona sua prática e busca formas de melhorá-la, como
ser diferente em relação aos demais colegas. Tal atitude da
professora corrobora que não é qualquer coisa que ela quer
levar para sala de aula, o que requer conhecimentos metodoló-
gicos, saber se a atividade proposta desenvolve as habilidades
necessárias aos alunos.
Em um dos encontros da formação continuada, foi
destacada a relevância da formação do professor, voltado ao
compromisso político, ou seja, em reafirmar a necessidade de
pensar de forma crítico-reflexivo. Para tal, o professor precisa
conhecer a escola, a família, promover reuniões e palestras
com os pais e a comunidade. Na próxima sequência, a pro-
fessora pontua algumas dificuldades contextuais, ao tentar
trabalhar de forma criativa. Demonstra que necessita ser ainda
mais criativa para lidar com as dificuldades que encontra em
uma unidade socioeducativa.

Às vezes não podia levar uma tesoura para


recortar revistas, certo tipo de revista não podia
levar... uma vez, em um trabalho com jornais, eles
tinham que saber o que era uma reportagem...
uma noticia no jornal. Peguei, levei pra sala. Quan-
do viram eu indo pra sala com este jornal fizeram
eu voltar urgente [...] prá resolver o problema eu
passei uma noticia no quadro.
(Entrevista com a professora Hortênsia, em
02/05/2012)

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Nessa sequência, Hortênsia inicia sua fala empregando


a modalidade “podia” com o advérbio de negação “não”, re-
corrente duas vezes, expressando, dessa forma, que não havia
possibilidade de levar algum material pedagógico para a sala
de aula, o que dificultava o desenvolvimento de seu trabalho
em meio aos alunos.
A criatividade pauta o trabalho da professora Hortênsia,
que conta com mais um desafio em ambiente escolar: as es-
pecificidades do ambiente de Centro de ressocialização. Além
de necessitar de muita criatividade para o trabalho, pois parte
do material (tesoura, estilete, reportagens), utilizado para
fins didáticos em ambiente escolar, é restrita ao ambiente da
Escola Meninos do Futuro. A professora parece valorizar a
criatividade como aspecto a ser estimulado entre seus alunos.
Ser crítico e reflexivo é indispensável para lidar com as difi-
culdades encontradas nesse contexto educativo.
O pronome “eles” nomeia os alunos da escola e a modu-
lação “tinham que” expressa a convicção de Hortênsia quanto
a algo que os alunos tinham que saber. Essa atitude revela
seu comprometimento com a obrigatoriedade para modificar
a situação de desigualdade, principalmente na condição de
educadora reflexiva, consciente de seu papel sociopolítico e
de sua responsabilidade com os alunos.
Quanto ao uso dos identificadores, destacamos o uso do
pronome “eu” (autorreferencial), expressando afinidade de
Hortênsia com a proposição. Isso sinaliza sua certeza de que
o posicionamento do professor é fundamental, refletindo a
respeito da possibilidade e eficácia da aplicação de um mate-
rial. Mostra sua preocupação em fazer o trabalho docente de
melhor maneira possível, mesmo com todos os percalços, de
cuja existência ela demonstra ter conhecimento. As atitudes da
professora se entrelaçam ao pensamento de Contreras (2002),
quando foca a reflexão como suporte em que o docente, além

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de refletir sobre sua ação, analisa e questiona as estruturas em


que trabalha e as imposições às quais obedece.

[..] eu uso a borracha EVA pra construir o próprio


texto no EVA grande e corto esse EVA também em
pequeno pedaço pra poder registrar, as silabas,
registrar as palavras e ajudar na alfabetização e se
pode levar não da problema.
(Entrevista com professor Cravo, em 11/12/2011)

Assim como Hortênsia, o professor Cravo pauta sua cria-


tividade na elaboração das atividades a serem desenvolvidas
com os alunos. Ressalta a relevância do trabalho com o EVA16.
Cravo tece comentários específicos do que é desenvolvido
com o material. Cravo usa o pronome “eu”(autorreferencial),
associado à forma verbal “usar”, para relatar suas ações em
relação ao material didático, o que pode ser caracterizado
como uma proposição para assumir o que ele diz.
Cravo faz uso do modalizador “poder”, como possibilida-
de que ele tem para desenvolver suas atividades pedagógicas.
Mais adiante, utiliza novamente esse mesmo modalizador
“poder”, expressando permissão, ressaltando que o material
pode ser levado para a sala sem problemas. Denota-se que,
ao preparar suas aulas, o professor precisa ter ciência do que
pode ou não ser levado para o contexto de sala de aula, e, após
isso, elaborar suas atividades, o que requer planejamento.
Percebemos que há uma preocupação dos professores na
elaboração das atividades. Material didático como revistas,
jornais, música, tesouras, etc. são proibidos em sala de aula.
O impedimento de trabalhar com esse material não vem da
parte pedagógica, mas da instituição socioeducativa que pri-
16 EVA — sigla que corresponde a Etil Vinil Acetato. Trata-se de produto químico de
material diversificado tais como resinas, agentes de expansão, cargas, ativadores,
auxiliares de processo, pigmentose outros polímeros como borracha ou termoplásticos.
Também compreendido como borracha não tóxica, aplicada em diversas atividades
artesanais e pedagógicas.

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ma pela segurança tanto dos alunos quanto dos professores.


Assim como Freire (2006), Cravo também se orienta por uma
educação libertadora, em que os alunos possam ter condições
de serem conscientizados longe da opressão e dominação,
conforme exemplificado na sequência, a seguir.

Ser um professor crítico reflexivo é ter humildade,


que nem sempre você sabe tudo e,nem sempre, sua
aula foi boa e você tem que procurar modificá-la
certo, procurando recursos através de livros didáti-
cos e através de colegas mais experientes e também
o professor crítico-reflexivo; é ele ter condição de
criticar aquilo que não deu certo e propor aquilo
que poderá dar certo e não basta falar que não dá
certo; bom,você tem que explicar porque que não
é bom entendeu, então você tem que ter condição
de ver que aquilo não foi bom e propor uma nova
alternativa.
(Entrevista com professor Cravo, em 11/12/2011)

Nessa sequência, Cravo faz uso da forma verbal “ser”


denotando o sentido do que ele considera ser professor crítico
reflexivo. Mais adiante, ele utiliza a forma verbal “ter”, segui-
da pelo substantivo “humildade”, para complementar sua ideia
de que “ser um professor crítico-reflexivo é ter humildade”, ou
seja, não ter orgulho de pedir ajuda ou dizer que não domina
determinado assunto.
Cravo se vale do pronome “você” de maneira genérica.
Ao fazer uso desse pronome, o professor parece nomear ele
mesmo como autor de seu próprio dizer. O uso de “você parece
sinalizar atitude de humildade, denotando que esse professor
procura auxílio de outros colegas para sanar suas dúvidas.
Cravo se coloca no grupo de professores, reconhecendo que
não sabe tudo. Isso, Contreras (2002) qualifica como uma ati-
tude de reflexão, que serve de reforço a uma atitude crítica. O

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professor assegura modificar suas atitudes por meio da ajuda


de colegas e outros recursos.
O uso do pronome de intensidade “mais” revela que uns
colegas sabem mais, e que podem auxiliar. O uso da forma
verbal “ter” indica obrigatoriedade, seguido pelo substantivo
“condição”, apontando que o professor precisa estar preparado
para criticar. A expressão “aquilo” se torna um dêitico, pois
expressa algo que o professor está pensando, em particular as
aulas ministradas por eles.
Cravo utiliza a modalidade “poderá”, no futuro do
presente, expressando possibilidade de que algo venha a dar
certo. Usa também o pronome “você” (inclusivo), seguido
da modulação “tem que”, revelando o comprometimento do
que é ser um professor crítico-reflexivo. Cravo também usa
a modulação “tem que”, expressando uma obrigação interna,
ditada pela consciência de que o professor “tem que ter con-
dição” de perceber seu trabalho e refletir sobre ele, buscando
sempre melhorar.
A fala desse professor ilustra o que é ser um professor
crítico, ou seja, aquele que se utiliza das experiências atuais e
passadas como parâmetro para decidir-se sobre o que buscar,
tendo por base uma análise dos pontos fortes e das fragili-
dades percebidas. Seus enunciados se articulam em torno da
ideia de que a reflexão crítica pode levar à emancipação, com
interesse libertador de pessoas e grupos sociais, não se limi-
tando apenas a mostrar as formas libertadoras, mas também a
auxiliar grupos sociais a interpretarem a si mesmos, elevando
sua autoconsciência.

ser crítico não é só discordar, ser crítico, você tem


que entender da situação que não deu certo, propor
uma nova situação que poderá dar certo e defender
essa ideia, que poderá dar certo.
(Entrevista com professor Cravo, em 11-12-2011)

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Percebe-se, nessa sequência, o uso da forma verbal “ser”


para expressar o que considera ser um professor crítico. Ao
dizer “não é só discordar”, utiliza-se do advérbio de negação
“não”, seguido do advérbio “só”, indicando que tem algo a
mais do que meramente discordar de algo. Ao usar a modu-
lação “tem que”, expressa obrigatoriedade do professor em
buscar compreensão de determinado assunto relacionado com
a prática pedagógica.
Cravo utiliza o modalizador “poder” no futuro do presente
“poderá”, indicando a possibilidade de refletir sobre o que
não deu certo, tentar propor uma solução, não ficar alheio ao
que acontece na escola, e sim envolver-se e apontar possíveis
soluções. A conotação das palavras de Cravo pontua que se
deve tentar realizar seu trabalho como professor na busca de
estar de sempre melhorando, pois tentar é uma possibilidade
de que se pode alcançar seus objetivos, que, como ele afirma,
poderá dar certo.
As experiências com esses professores permitiram-nos,
enquanto pesquisadoras, compreender que a formação conti-
nuada no contexto da escola é condição básica para a reflexão
crítica da prática pedagógica do professor e, consequentemen-
te, para seu aperfeiçoamento profissional. São reflexões que
levam o educador a repensar e a aprimorar as ações didático-
pedagógicas no cotidiano escolar, em especial no que tange
aos processos de ensino e aprendizagem da leitura, letramento
crítico e preparação dos jovens à (re)inserção na sociedade.
Os professores demonstraram ter conhecimentos, ex-
periências e vivências acerca da profissão, entre os quais se
destacam: os saberes oriundos das experiências acumuladas
em sala de aula; saber científico; saber articulador da teoria e
prática; saber que promove a interação professor-aluno inter-
ligado pelo conhecimento. Seus dizeres revelam que primam
por uma educação de qualidade, preocupando-se em, além

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de estarem preparados teoricamente, colocar em prática todo


ensinamento absorvido, de forma a contestar os obstáculos
encontrados e tentar saná-los. Isso é expresso pelo conteúdo a
ser ensinado, constituído pelos métodos e técnicas de ensino.
Demonstraram valorizar a formação continuada, uma vez que
esta contribui para promover reflexões relacionadas com a
prática de sala de aula. A “reflexão na ação” e “reflexão sobre
a ação” instigam a buscar novas práticas para o processo de
ensino e aprendizagem. Ao mesmo tempo, fazem referências
a vários métodos que aplicam em sala de aula. Esse processo
de reflexão é concretizado pelas ações dos professores, através
de seus enunciados, expressando comprometimento/obriga-
toriedade em suas ações.
Ao relatarem sobre suas experiências na escola, com os
alunos e colegas, esses educadores nos fizeram refletir acerca
de conceitos teóricos que balizaram este estudo. Percebemos
uma conexão entre as teorias do professor crítico reflexivo,
bem como o conhecimento na ação e sobre a ação. Os pro-
fessores evidenciaram que é necessário conhecer o contexto
no qual está inserido, ter domínio do conteúdo do que deve
ser ensinado e estar preparado para a prática do dia a dia.
A formação continuada privilegia a teoria e a prática, o que
implica a relação entre a produção do conhecimento e a or-
ganização do curso, pautado no professor como elo para seu
crescimento profissional e desenvolvimento sociocognitivo
de seus alunos.
O curso de formação continuada, atinente a letramento
crítico, possibilitou aos professores um espaço de formação
com vista a proporcionar troca de experiências entre os
professores, voltadas à valorização do próprio professor
como mediador no processo de ensino e aprendizagem.
Além disso, o curso ofereceu oportunidade de os profes-
sores serem agentes de sua própria formação, contribuindo
para fortalecer relações coletivas e duradouras, melhorando

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sua prática pedagógica no exercício da docência. é rele-


vante destacar que os cursos de formação não privilegiam
apenas os saberes específicos de cada disciplina. Também
considera o contexto da instituição e dos alunos, o que
permite ao professor articular seus saberes didáticos aos
disciplinares, na construção do trabalho de criações e (re)
construção de sua prática pedagógica.
Denotaram a oportunidade de discutir, coletivamente, as
dificuldades vivenciadas na escola e na sala de aula, tecendo
comentários e reflexões que puderam auxiliar a própria or-
ganização do curso, pautados na construção de um trabalho
conjunto, bem como fomentando contribuições acerca do
trabalho de toda equipe. Nesse sentido, o curso possibilitou
a reflexão coletiva, na tentativa de buscar sanar possíveis
obstáculos existentes na sala de aula.

Os alunos

Além de pesquisas realizadas com os professores, pro-


curei, de igual, conhecer as experiências dos alunos. Sentia a
necessidade de dar voz a eles.
A seguir, exponho e analiso17um texto produzido por
Pedro (nome fictício), 16 anos, aluno do 8º ano do ensino
fundamental, da Escola Meninos do Futuro. Foi pedido a
todos os estudantes que escrevessem um texto intitulado
“Quem sou eu?”. Meu objetivo era conhecer cada um eles.
Pedro escreveu:

Eu sou um menino muito gente boa eu sei tem vez


as pessoas faz coisa errada que nunca fez. Agora tô
aqui e tô arrependido do que eu fiz sempre tive tudo
roupa de marca carinho da minha família etc. Se eu
pudesse volta atrás né gosto de baladas. Namorar.

17 Texto originalmente publicado nos Anais da Abralin em cena MT, p. 101-120, 2012.

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A minha história começa assim/ aos 13 anos comecei


uma rixa de gangue no Bairro Dom Aquino entre
morro e aldeia O começo era massa quere da nome
no Bairro foi indo foi indo aos 15 anos tentei matar
o primeiro guri lá dei 4 tiro nele no dia seguinte os
cara da Aldeia tentaram me matar graças a deus o
revolver /// isso era um aviso pra mim muda de vida
aos 16 anos atirei em 2 guri lá de novo comecei a
roubar passando um dia os caras me pegaram eu de
novo deram uma coronhada na minha cabeça fiquei 5
dia na UTI graça a Deus fiquei bem e hoje eu tô aqui
porque roubei vixe professora to tão arrependido ave
Maria sem o carinho da minha namorada que amo
minha coroa a Família é DiFícil mais graças a Deus
vou mudar não quero isso pra mim.
F.I.M.

Os enunciados de Pedro foram analisados através da


categoria Significado Identificacional, relacionada ao con-
ceito de estilo, proposto por Fairclough (2003a). Esse autor
sugere que a identificação seja compreendida como identi-
dade, uma vez que pressupõe representação, em termos do
que se é. Vale ressaltar, porém, que os significados Acional
e Representacional também estão, simultaneamente, opera-
cionalizados no texto.
Pedro, ao dizer “eu sempre tive tudo, roupa de marca,
carinho da minha família”, usa processo relacional atributivo
possessivo ter para sinalizar interesse em avaliar positivamen-
te sua família. O atributo possuído carinho denota juízo de
valor, sinalizando afeto por parte de sua família.
Religiosidade também é identificada nos enunciados de
Pedro. Ao fazer uso de interjeições como Ave Maria (1 ocor-
rência) e Graças a Deus (3 ocorrências), Pedro demonstra sua
fé através de elementos avaliativos afetivos.

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Hall (2008, p. 109) assegura que as identidades são


constituídas por meio da linguagem, história e cultura, para
produção não do que somos, mas do que nos tornamos. Nessa
mesma esteira, Castells (1996, p. 23) entende que as identida-
des são “processo de construção de significados com base em
um atributo cultural”. Conforme o autor, as identidades são
também formadas a partir de instituições dominantes, assumin-
do tal condição quando e se os atores sociais as internalizam,
construindo significados com base nessa internalização. No
caso em tela, Pedro demonstra ter internalizado a religiosida-
de através de sua participação nos cultos que são realizados,
semanalmente, no Centro Socioeducativo.
O Texto de Pedro também evidencia a violência, forte-
mente pontuada através de processos materiais “tentei matar
o primeiro guri lá, dei 4 tiro nele, atirei em 2 guri lá, de novo
comecei a roubar”. São processos que denotam ações reali-
zadas no mundo físico. O ator, no caso o sujeito elíptico “eu”
(Pedro) é quem realiza a ação. Halliday (1994, p. 316) aponta
a elipse como forma de fazer a coesão do texto. Assegura tam-
bém que a elipse contribui para manter a estrutura semântica
do discurso, embora seu uso esteja mais relacionado com a
estrutura léxico-gramatical.
é interessante considerar aspectos socioafetivos. Ao va-
lorizar textos dessa natureza, por exemplo, o professor pode
ensejar aos alunos para a construção de novos significados,
representações e identidades, permitindo-lhes o desejo em
querer mudar de vida. é preciso, conforme Bhaskar (1998),
atentarmos para valores, emoções, sentimentos e identidade.
é comum, por exemplo, eles mostrarem atitudes e emoções
que, muitas vezes, nada mais são do que tristes experiências
vivenciadas no seio familiar, como violência física, psicoló-
gica, alcoolismo, incesto etc.

149
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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Alguns elementos linguísticos podem ser destacados


no texto. é possível perceber, por exemplo, a ausência de
concordância, ortografia e coesão. Pedro ao dizer “quere
dá nome no bairro”, “prá mim muda de vida”, os processos
“querer dar” e “mudar” aparecem sem a desinência “r”, que
expressa o infinitivo. Esses traços podem estar relacionados
com o uso oral e coloquial da língua. Normalmente dizemos
tô bem, tô indo, vô indo, etc. São traços culturais que revelam
sua identidade, sua pertença social.
Com relação à concordância verbal, ela é, para Pedro,
uma norma variável, pois, às vezes, ele não a realiza, como
em “as pessoas faz coisa errada”. Contudo, predomina o uso
da norma de concordância como em “os caras da Aldeia ten-
taram me matar, os caras me pegaram, deram uma coronhada
na minha cabeça”.
A ausência de pontuação também é observada no texto de
Pedro. Apenas o ponto-final é apresentado ao término de cada
período e/ou parágrafo. O texto de Pedro evidencia, pois, que
há um longo caminho a ser percorrido no processo de desen-
volvimento da competência comunicativa no que diz respeito
aos gêneros que demandam o uso da língua escrita formal.
Vale ressaltar que o engajamento do educador em proje-
tos político-pedagógicos na escola é de extrema importância,
bem como sua participação em grupos de estudos. Esse tipo
de trabalho favorece discussões frutíferas, trazendo à baila
problemas que surgem, cotidianamente, na sala de aula e
na escola. Trata-se de uma ação coletiva visando fortalecer
a relação “escola” e as “estruturas” políticas e ideológicas
mais amplas de poder existentes em seu interior. Percebo, por
exemplo, que Pedro finaliza seu texto clamando por mudança
em sua vida. Ele diz: “vou mudar não quero isso pra mim”.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Sócrates, Platão e Aristóteles18

Os alunos Sócrates, Platão e Aristóteles (nomes fictícios)


participaram da pesquisa realizada por Miranda (2014), na
Escola Meninos do Futuro. Este trabalho19 é apenas uma parte
da pesquisa realizada pela autora. Desvela o que esses jovens
e adolescentes pensam acerca da instituição e dos professores,
mediante análise das produções escritas e entrevistas, com
base em Van Leeuwen (1997, 2008). São jovens entre 15 e 17
anos. Sócrates é filho de pais separados, usuários de drogas que
atualmente, estão desempregados. Platão é reincidente, devido
à influência de um tio. Foi usuário de drogas. Mora com os pais
e tem três irmãs bem mais velhas do que ele. é considerado
o temporão da família. Aristóteles se encontra atualmente em
liberdade assistida, mora com a mãe, o padrasto e uma irmã.
As produções escritas e as entrevistas mostram quanto
a escola é importante na vida deles. Apontam aproximação
com os professores e uma aprendizagem significativa. Afir-
maram gostar de seus professores pela atitude de confiança
e de aconselhamento. A escola é considerada um espaço de
diálogo com os professores, oportunizando novas possibili-
dades de inserção social.
No trecho da redação apresentada a seguir, Sócrates
expressa suas representações acerca da unidade escolar que
frequenta.

A minha escola aqui é tudo, consegui superar minhas


dificuldades, aprendi muitas coisas com os professo-
res que pegam no meu pé, porque querem ensinar o
melhor para mim. Acredito, eu se tivesse na rua não
iria estar interessado para estudar como estou aqui.
(Sócrates, redação, em 20/01/2011)
18 Os nomes dos alunos são fictícios para proteção de identidade.
19 Miranda e Barros (2015). Adolescentes e jovens em contexto de exclusão social:
representações de atores sociais (no prelo).

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Ao falar sobre a escola, Sócrates evidencia sua importân-


cia no contexto de privação de liberdade. Assim, na frase “a
minha escola aqui é tudo” ocorre a exclusão por supressão do
Centro Socioeducativo de Cuiabá — Pomeri, ele exclui tanto
os atores sociais — diretores, gerentes, agentes orientadores
e técnicos — quanto às atividades desempenhadas por eles.
No caso da inclusão, observamos a relevância dos papéis atri-
buídos à escola, os quais podem ser ativados ou passivados.
Os atores sociais são representados como ativos em relação
a determinada atividade, ao se referir à escola como “minha
escola é tudo”. Demonstra, em suas palavras, que a escola
participa ativamente de sua vida.
Observamos que o item léxico-gramatical “minha” se
refere à escola (escola de quem fala). A palavra “minha” in-
dica posse, atribui o sentido de pertencimento e concorda com
a coisa possuída —no caso a “escola”. Conforme sugere Van
Leeuwen (1997, 2008), ao utilizar o pronome pessoal “eu”,
exerce a função de sujeito protagonista do processo escolar.
Desse modo, o uso do pronome possessivo “minha” acompa-
nha o substantivo “escola” e, por isso, é pronome possessivo
adjetivo, chamado assim por se comportar semelhantemente
a um adjetivo, acompanhando o substantivo, referindo-se e
concordando com ele em gênero e número. Verificamos ainda
a utilização do pronome indefinido “tudo”, que assume o lugar
do ator social ou da quantidade aproximada dos atores sociais
da frase. O aluno considera em sua totalidade que naquele
contexto vivenciado, a escola é o que há de melhor, ou seja,
aquilo que é essencial para sua vida.
Sócrates, ao enunciar: “acredito, eu se tivesse na rua não
iria estar interessado para estudar como estou aqui”, o uso
do advérbio de lugar “aqui” significa escola, atuante e signi-
ficativa no contexto de privação de liberdade. Verificamos que
os atores sociais — diretores, gerentes, agentes orientadores
e técnicos do Pomeri —não estão presentes na oração, são

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

excluídos do texto por supressão, não há referência a esses


atores em qualquer parte do texto. Integrada à frase, a palavra
“rua” significa para Sócrates a “sociedade” e/ou a “escola
da comunidade”, remetendo à ideia de fracasso, por conta
da exclusão do ambiente pedagógico e por suas condições
sociais. Sócrates inclui apenas a escola “aqui” no contexto
de privação de liberdade, como único espaço de liberdade
enquanto possibilidade objetiva, apesar das dificuldades postas
pelo ambiente hostil e repressivo do sistema socioeducativo.
Sócrates ressalta a importância dos professores como
forma de aproximação. Ele assim se expressou:

[...] aprendi muitas coisas com os professores que pe-


gam no meu pé. (Sócrates, redação, em 20/01/2014)

Ao afirmar “aprendi muitas coisas com os professores


que pegam no meu pé”, Sócrates revela que os professores
estabelecem limites e regras, e que seriam, sim, bons profes-
sores. Atribui a boa formação ao professor que se faz respeitar,
mantém a disciplina do grupo, atitude considerada determi-
nante para o sucesso do aprendizado.
As escolhas léxico-gramaticais “aprendi”, “muitas coi-
sas” e “professores que pegam no meu pé” demonstram que,
na relação professor-aluno, os limites puramente da sala de
aula são ultrapassados, e isso provoca formas distintas de
aceitação do “eu” e do “outro” que, inegavelmente, atingirá a
vida deles na sociedade. O uso do verbo “aprender” demonstra
que Sócrates se apropria de conhecimentos necessários acerca
dos aspectos subjetivos presentes na relação professor-aluno,
que modulam o sucesso do processo de ensino-aprendizagem.
Ao dizer “muitas coisas”, valoriza o impacto qualitativo desse
processo. Já na frase “os professores que pegam no meu pé”,
o professor se mostra que é ele quem regula o tempo, o espaço
e os papéis desta relação. Observemos na fala de Sócrates,

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

que não é uma relação autoritária, e sim dialógica, pautada


em atingir as necessidades intelectuais e afetivas dos alunos.
Neste caso, ocorre a inclusão por ativação dos atores sociais
“professores”, pois estão representados de forma ativa em
seu texto.
Sócrates ao escrever a respeito de sua aprendizagem na
escola, revelou o seguinte:

Tudo que fiz estou bastante contente com o que


aprendi sobre os estudos e vou sair digno sem dever
nada a sociedade não como um menor infrator e sim
como Sócrates. (Sócrates, redação, em 20/01/2011)

Percebemos que ao dizer“ tudo que fiz estou bastante


contente com o que aprendi sobre os estudos e vou sair digno
sem dever nada a sociedade não como um menor infrator e
sim como Sócrates”, evidencia a articulação com as seguin-
tes falas: estudos/educação e dignidade. Os estudos parecem
assumir um significado próprio para ele, relacionados com
a ideia de liberdade, felicidade e dignidade. Assume que a
essência da escola está no cerne da relação professor-aluno e
ensino-aprendizagem, centrada no diálogo capaz de promover
transformações como forma de intervenção na sociedade.
Desse modo, Sócrates se representa no texto de forma ativa,
ocorrendo a representação por nomeação, revelando sua
identidade única.
O uso da expressão “não como menor infrator e sim
como Sócrates” , marca a necessidade de mostrar mudança
de atitude perante a sociedade, conforme Bhaskar (1998, p.
410). Ocorre aqui, a representação de atores sociais por es-
pecificação, por individualização. Para Sócrates, a sociedade
representa a coletividade.
Sócrates se apresenta ao mundo, ou seja, mostra seu
ethos (a imagem de si), de um cidadão que arcou com suas

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

responsabilidades e está pronto para a vida social. Notamos


o emprego da ativação no lugar da passivação. No discurso
do aluno, isso ocorre pela necessidade de ele se representar
discursivamente como sujeito social ativo “digno” em um
processo de transformação, desenvolvimento e progresso na
“sociedade”. Em seu texto, ele faz essa relação com a escola,
os professores e a aprendizagem.
Reitera-se, ainda, o ideal de aprendizagem ao escrever
“estou bastante contente com o que aprendi sobre os estudos”.
Sócrates expressa sua gratidão quanto ao que aprendeu na
escola e destaca a importância de estudar (aprender). Ideo-
logicamente, inspira-se e imprime a ideia da aprendizagem
significativa, que se inscreve numa formação discursiva de
esperança, mudança e autotransformação. A aprendizagem
significativa parece ser uma prática social presente no coti-
diano de professores e alunos da escola Meninos do Futuro.
Ao afirmar “aprendi sobre os estudos”, Sócrates desfruta de
liberdade incondicional nos momentos de aprendizagem e
valorização dos estudos.
Na entrevista, Sócrates revelou aspectos interessantes so-
bre a aproximação com os professores. Vejamos o que ele diz:

Aqui na verdade os professores têm muita mais pa-


ciência para ensinar a gente, eles são legais, ficam
contentes quando a gente aprende. O professor daqui
é melhor, dá até vontade de assistir aula.
(Sócrates, entrevista, em 18/12/201)

Os enunciados de Sócrates assinalam que, no interior


da sala de aula da E. E. Meninos do Futuro, a paciência é a
premissa fundamental para que o professor crie um clima e
laços propícios para o desenvolvimento pedagógico de suas
atividades. Ao dizer, por exemplo “aqui na verdade os profes-
sores têm muita paciência para ensinar a gente”, ele reconhece

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que, apesar de todos os entraves do contexto de privação de


liberdade que se apresenta, cada um deles é superado pela har-
monia e consenso, protagonizado pela paciência do professor.
Observamos na fala de Sócrates que a atitude pacienciosa é
exercida de forma ativa pelos professores, ocorrendo a repre-
sentação de atores sociais por ativação.
é interessante destacar a frase “Eles são legais, ficam
contentes quando a gente aprende”. Ao usar do pronome na
3ª pessoa do plural “eles”, atribui-se a todos os professores
a qualidade de “legais”, o que se traduzem amorosos, gentis
e solidários. Neste caso, ocorre a personalização através do
pronome “eles”. Ao mencionar “ficam contentes quando a
gente aprende”, percebemos aspectos de afetividade e valori-
zação do conhecimento do aluno adquirido ao longo da vida.
Os enunciados de Sócrates evidenciam atitudes de afeti-
vidade, comprometimento e valorização dos professores para
com os alunos. Percebemos o “engajamento” dos professores
junto com os reais problemas da vida no Pomeri, sempre
buscando soluções práticas para superá-los. Ele reconhece
boa vontade e dedicação dos docentes que atuam na unidade
escolar socioeducativa. Fairclough (2001, p. 289) assegura
que, “ao sermos capazes de identificar a natureza da prática
social, seremos capazes de explicar seus efeitos sobre a prá-
tica social”.
Na entrevista, Sócrates também tem a oportunidade de
fazer essa mesma reflexão acerca da escola. Para ele a unidade
escolar é de suma importância. Ele diz:

Acho que aqui a escola é a única coisa boa, o resto


não vou nem dizer, é só tristeza, é só a escola é que
vai me ajudar a ter um futuro melhor lá fora.
(Sócrates, entrevista, em 18/11/2012)

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Nesse trecho da entrevista, Sócrates diz: “acho que aqui


a escola é a única coisa boa”. Para ele a escola é apontada
como o único e o mais importante elemento do contexto de
privação de liberdade. Ao dizer “é só a escola é que vai me
ajudar a ter um futuro melhor”, Sócrates atribui à escola um
valor subjetivo e inalienável, pois reconhece que o acesso
a ela o torna o principal favorecido. Essa estrutura léxico-
gramatical desvela a representação de dois atores sociais. Um
deles está representado por inclusão e, portanto, explicitado:
a escola. é apontada como exclusiva. Já o outro ator social
está representado por exclusão, uma vez que não se encontra
presente: o Pomeri.
A palavra “única” demonstra exclusividade, qualidade e
singularidade, pois promove algum tipo de mudança. Há um
participante ativo nessa frase: “a única coisa boa”, atribuído
à escola. Encaixada no participante há outra oração – “é só a
escola que vai me ajudar” –, referindo-se a ela como instru-
mento que alicerça e projeta um ideal em relação ao futuro.
A ativação ocorre porque a escola é representada de forma
ativa. Já a passivação ocorre porque os atores sociais estão
submetidos às atividades, ou receptores dela, nesse sentido,
Sócrates é o sujeito receptor ao dizer: “só a escola que vai
me ajudar”, sendo assim, ocorre a passivação por sujeição.
A sujeição pode ser realizada por participação, em que o ator
social passivado é o próprio Sócrates.
Ao se referir sobre aprendizagem significativa, ele se
expressou:

Aqui escola tem um ensino diferente, o jeito dos


professores ensinarem é outro. Sempre tem músi-
ca, poesia e um jogo na aula, também sempre tem
apresentações de trabalhos, teatro e dança para os
alunos fazerem. (Sócrates,15 anos, entrevista em
18/12/2012)

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Sócrates estabelece, neste contexto, uma comparação


entre ensino da comunidade e ensino da escola no Pomeri. Ao
enunciar: “aqui a escola”, o ator social representado “escola”
é incluído de forma ativa em sua fala. Sócrates evidencia que
a escola oferece um “ensino diferente”, reconhece que o con-
teúdo abordado é trabalhado nas situações da vida prática do
aluno ou de algo que lhe cause um conjunto de sensações e/ou
percepções, como modos particulares de representar parte do
mundo (FAIRCLOUGH, 2003a, p. 3-4). Observamos que os
atores sociais “alunos” são representados por coletivização,
pois dão a ideia de coletividade.
Sócrates pondera que “o jeito dos professores ensinarem é
diferente”. Traduz aqui a ideia de professores que atuam como
mediadores entre os alunos. Os conhecimentos que estes detêm
e o mundo, levam os alunos a elaborar conceitos, valores, ati-
tudes e habilidades que lhes permitam crescer como pessoas.
A análise da representação dos atores sociais “professores”,
no enunciado de Sócrates, permitiu a observação da categoria
de inclusão por ativação dos atores sociais.
De acordo com Sócrates, as aulas são recheadas de “mú-
sica”, “poesia”, “jogos”, “apresentações de trabalhos”, “teatro”
e “dança”. Isto reforça a proposta acerca da aprendizagem
significativa: torna-se, então, um argumento plausível acerca
da utilização da interdisciplinaridade em sala de aula como
recurso metodológico de apoio ao processo de aprendizagem.
Para Bhaskar (1998), o educador crítico consideraria as emo-
ções, os valores, os sentimentos dos alunos.
Assim como Sócrates, Aristóteles, que atualmente é
egresso do sistema socioeducativo, também expressa suas
representações acerca da escola. Ele escreveu:

quando fala de escola, tem que falar dos professores.


Na Escola Estadual Meninos do Futuro tem vários

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profissionais capazes de passar para mim algo muito


importante que um homem tem que ter. O caráter,
educação, respeito, conhecimento e preciso das ma-
térias. (Aristóteles, redação, em 20/01/2011)

Ao dizer “quando fala de escola, tem que falar dos


professores”, ocorre a categoria de inclusão por ativação e
passivação. A passivação se dá quando o ator social é repre-
sentado como aquele que se submete à atividade ou é afetado
por ela. Nesse caso, “quando fala de escola” a passivação se
realiza por meio da participação, pois o ator social “escola” é
o centro da fala de Aristóteles. Outros atores sociais explicita-
mente representados de modo ativo na frase do jovem são os
professores: “tem que falar dos professores”, pois a concepção
de “escola”, para Aristóteles, se restringe à valorização dos
professores no processo educativo.
Ao ressaltar “na Escola Estadual Meninos do Futuro
tem vários profissionais capazes de passar para mim algo
muito importante que um homem tem que ter”, Aristóteles
revela que os atores sociais são representados por nomeação
e categorização. O que diferencia a nomeação da categori-
zação é o fato de a primeira representar os participantes por
sua identidade individual, única, e a segunda representar os
participantes pelas funções e identidades que eles compar-
tilham com outros participantes. A nomeação, segundo van
Leeuwen (1997), é geralmente reconhecida pelos substan-
tivos próprios, usados de maneira formal ou informal. No
início da frase: “Na Escola Estadual Meninos do Futuro”, o
ator social é representado por nomeação. Nesse caso, à luz
do entendimento van Leeuwen (1997), ocorre a nomeação
tipicamente de maneira semiformal —nome próprio e ape-
lido. Na frase “tem vários profissionais capazes de passar
para mim algo muito importante que um homem tem que
ter”, verificamos a ocorrência da categorização por funcio-

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nalização, “profissionais”, por força de um substantivo que


denota profissão.
Os itens lexicais “capazes” e “homem” são usados
para identificar algo ou alguém, portanto se registra aqui a
categorização por identificação. Nesta, o participante não é
representado pelo que faz, mas pelo que ele é. A designação
“capazes” traduz os profissionais da escola —professores,
coordenadores, gestores, etc. Eles estão na posição temáti-
ca, funcionando como ponto de partida para a mensagem,
orientando argumentativamente a leitura. Ao representá-la
de forma classificatória, sua identidade passa a ser definida
e determinada. Já a palavra “homem” representa uma classe
social beneficiária com os ensinamentos mediados pelos pro-
fissionais da escola.
Aristóteles demonstra mais uma vez, em suas palavras, que
os ensinamentos acontecem simultaneamente com a compre-
ensão e a valorização dos profissionais envolvidos no processo
educativo, no espaço de privação de liberdade. Nesse sentido,
remete-nos a entender que, no âmago da educação escolar, está
o entrelaçamento entre o professor, a educação e a vida.
Aristóteles destaca, em seu texto, a importância de ser
tratado com amor e atenção pelos professores:

[...] Todos os professores, eu me dou bem, pois


percebo que eles fazem o que fazem bem feito e
por amor. [...] O relacionamento deles são bons com
os adolescentes. [...] eles dão uma grande atenção
para nós, parabéns professores da Escola Meninos
do Futuro. (Aristóteles, redação, em 20/01/2011)

Aristóteles apresenta informações sobre o seu relaciona-


mento com os professores. O adolescente afirma que a relação
professor-aluno é pautada pela reciprocidade, compromisso e
disposição do educador em doar-se emocionalmente.

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

é interessante acentuar a ênfase que ele dá para a questão


da aproximação com os docentes, respaldada na efetividade
e no amor para com ele e os colegas. Ao dizer, por exemplo:
“Todos os professores, eu me dou bem, pois percebo que eles
fazem o que fazem bem feito e por amor”, usa a expressão
“eu me dou bem” para expressar o vínculo afetivo com os
professores. Ele reconhece o engajamento dos educadores
ao mencionar: “fazem o que fazem bem feito e por amor”,
atribuindo afeto à ação pedagógica. Ao mencionar: “o rela-
cionamento deles são bons com os adolescentes”, Aristóteles
pontua o sucesso da relação afetiva entre professores “eles” e
alunos “nós”. Ao dizer: “eles dão uma grande atenção para
nós”, põe em relevo a atenção concentrada dos professores
aos alunos, demonstrando aproximação e respeito. Ocorre a
representação de atores sociais por coletivização. Finalmente
demonstra gratidão ao expressar: “parabéns professores da
Escola Meninos do Futuro”, reconhecendo o compromisso
dos professores.
Os atores sociais são representados por ativação. Segun-
do van Leeuwen (1997, p. 187), a ativação “ocorre quando
os atores sociais são representados como forças ativas e di-
nâmicas numa atividade”, ou seja, participam ativamente do
processo em questão.
Na entrevista, Aristóteles também expressa sua opinião
acerca da escola e dos professores. Adiciona as seguintes
considerações:

A Escola Meninos do Futuro é melhor que a escola


de fora, os professores me tratavam com respeito e
educação, tipo ouvia a minha opinião, e as aulas
eram diferentes, tinha sempre um projeto, atividade
diferente para apresentar, pra falar a verdade os
professores de lá me deram muita ajuda quando
eu estava trancado. (Aristóteles, entrevista em
07/01/2013).

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Ao enunciar “a Escola Meninos do Futuro é melhor que


a escola de fora”, observa-se uma carga ideológica implícita.
O aluno aponta a importância da escola para os privados de
liberdade, guardando especificidades que a diferenciam de
outras escolas quanto à aquisição de conhecimentos e ao pre-
paro para a vida em sociedade. Remete-nos a entender que a
escola, fora do espaço privativo de liberdade, já não consegue
responder à demanda das urgências que se fazem necessárias
no momento presente, especialmente aos egressos do sistema
socioeducativo. Nesse sentido, é possível afirmar que o discur-
so enseja uma prática social que veicula ideologias, constitui
e é constituída pelos sujeitos.
Ao declarar “a Escola Meninos do Futuro”, verifica-se,
assim, que a representação do ator social ocorre por nomeação,
representada, principalmente, em termos de sua identidade
única, de forma semi-informal —nome próprio. Na sequência,
a frase é completada pelo seguinte argumento: “é melhor que
a escola de fora”. Ao dizer “é melhor”, o aluno inclui por
ativação a escola no sistema socioeducativo, deixa explícito,
portanto, o caráter participativo que a escola desenvolve em
seu processo educativo, respeitando a forma de agir e pensar
do socioeducando, buscando atingir suas expectativas de vida
em sociedade. O paradoxo que se observa está relacionado
ao uso do “que”, usado para comparar as duas escolas, a de
dentro do contexto socioeducativo, analisada anteriormente,
e a de fora. Portanto, ocorre a exclusão por encobrimento dos
atores sociais —professores, gestores e técnicos da escola—
fora do contexto socioeducativo, ou seja, “a escola de fora”.
Em consonância com van Leeuwen (1997), a exclusão
por encobrimento ou colocação em segundo plano não é total,
podendo ser parcialmente representada, pois os atores sociais
excluídos podem não ser mencionados em relação a uma de-
terminada atividade, mas são mencionados em outras partes
do texto, podendo ser recuperados, dando a possibilidade de

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o leitor inferir que eles estão sendo incluídos em algum ponto


do texto. Ou seja, os atores sociais estão pouco visíveis, porém
seu papel é secundário.
Pode-se dizer, assim, que a exclusão por encobrimento
do ator social (escola) enfatiza a ideia de esvaziamento da
função educativa, tornando-se ineficaz, já que o educando
tem atendidas as suas necessidades imediatas.
Aristóteles revela o estabelecimento de vínculos de
consideração e afeto na relação com os professores da Escola
Estadual Meninos do Futuro. Assim se pronunciou:

Os professores da escola de lá falavam a mesma


língua da gente, tratavam a gente com educação e
respeito, a gente podia dar opinião que eles aceita-
vam, tinham muita paciência... é isso aí, eram de boa
com a gente. (Aristóteles, entrevista, em 07/01/2013)

Percebe-se, aqui, a importância da boa convivência entre


o professor e o aluno, conduzida pela humildade e diálogo em
constante interação com os aspectos cognitivos e afetivos. Ao
dizer: “os professores de lá falavam a mesma língua da gente”,
Aristóteles ressalta que a interação entre professor-aluno da
E.E. Meninos do Futuro ultrapassa, desse modo, a mera condi-
ção de ensinar. Observamos aqui, a inclusão dos atores sociais
“alunos”, “professores” e “escola” por ativação. Ao utilizar
o advérbio de lugar “lá”, prefere não mencionar o nome da
escola Pomeri, ocorrendo a exclusão por supressão desse ator
social. O adjetivo de lugar “lá” é uma marca de quando ele
estudava na escola. Para ele, “lá” havia respeito. Esse item
lexical desnuda a dificuldade em que ele está enfrentando em
relação a sua nova vida fora do Pomeri.
A expressão “tratavam a gente com educação e respeito”
é demonstração clara de que os professores da escola tinham
o respeito como base na relação humana, e a sala de aula se

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ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

tornou um espaço de favorecimento dessa virtude de sen-


timento. Aristóteles, ao dizer, por exemplo: “a gente podia
dar opinião que eles aceitavam, tinham muita paciência”,
assina que os professores respeitavam seu ponto de vista,
pensamentos e suas experiências, que traziam lições de vida
aos professores e aos colegas. Aristóteles se refere a ele e aos
outros jovens da escola, quando emprega a expressão pro-
nominal indefinida “a gente”, que desponta com frequência
em sua fala. Observamos aqui a ocorrência de representação
de atores sociais por indeterminação. é interessante vincar a
ênfase que ele dá à “paciência” dos professores, atributo quase
que obrigatório para os professores que atuam no contexto de
privação de liberdade. Dessa forma, ao falar: “eram de boa
com a gente”, reconheceu as boas relações manifestadas por
meio de diálogo, troca, paciência, compreensão e tolerância.
Aristóteles revelou aspectos interessantes sobre a apren-
dizagem:

Me esforço bastante para aprender ao que é passado


aqui pois sei que as intenções são as melhores e
sei que necessito do aprendizado e a educação tem
que vir em primeiro lugar. [...] Os trabalhos são
diferenciados para conosco. (Aristóteles, entrevista,
em 20/01/2011)

Embora esteja em um espaço repressivo, Aristóteles ao


dizer “me esforço bastante para aprender ao que é passado
aqui”, demonstra vontade de aprender, dedicação, esforço e
cobrança a si mesmo. quando o jovem alude a ele mesmo,
utiliza-se do pronome pessoal, ocorrendo a representação do
ator social por beneficiação. Trata-se da forma de o jovem se
evidenciar no evento discursivo, cuja identidade é fortalecida
de modo efetivo, internalizada pelos valores, crenças e dese-
jos. Ao dizer: “ao que é passado aqui”, há uma demonstração
de afeto pela escola, que é expresso pela presença do verbo

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“passado”, caracterizando conteúdo desenvolvido em sala


de aula, e ainda reforçado pela circunstância de localização
“aqui” (lugar – escola),que representa a escola no contexto
socioeducativo. Nesse caso, ocorre a inclusão do ator social
“escola” por ativação e exclusão, por supressão do ator social
Pomeri.
Ao falar de forma resumida “pois sei que as intenções
são as melhores”, reporta-se às boas práticas do professor, o
qual sustenta, na sala de aula, a valorização da dimensão social
e afetiva no relacionamento com os alunos, uma vez que a
riqueza da relação pedagógica se baseia, independentemente
do contexto em que a escola esteja inserida, nas formas dialó-
gicas de interação. Aristóteles, ao enunciar “sei que necessito
do aprendizado”, corrobora uma avaliação de afeto positiva e
consensual sobre a importância da aprendizagem escolar. Ele
reconhece que “a educação tem que vir em primeiro lugar”,
para que possa fazer valer seu direito à cidadania, expectativas
que os internos demonstram em relação ao acesso ao conheci-
mento e melhoria das condições de vida, quando em liberdade.
Ao dizer: “os trabalhos são diferenciados para conosco”,
reconhece que as ações pedagógicas da escola são respaldadas
por práticas mais democráticas, cidadãs e emancipadoras com
base em propostas pedagógicas significativas para os adoles-
centes que cumprem medidas socioeducativas. Para Bhaskar
(1998, p. 462), a emancipação não pode ser alcançada apenas
pela mudança da consciência; em contrário, deve ela ocorrer
na prática.
é importante frisar que, mesmo estudando em uma escola
da comunidade, Aristóteles encampa considerações sobre a
aprendizagem significativa da Escola Estadual Meninos do
Futuro:

165
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Os ensinamentos da Escola Meninos do Futuro


eram diferentes. Lá eu participava de várias ati-
vidades, tipo percussão e pintura. As atividades
eram bem legais, não tinham provas e as tarefas
eram feitas só na sala. (Aristóteles, entrevista,
em 07/01/2013)

Ao mencionar “os ensinamentos da Escola Meninos do


Futuro eram diferentes”, revela que a escola buscou alterna-
tivas significativas de trabalho para superar as dificuldades
encontradas no Centro Socioeducativo. O substantivo “ensi-
namentos” e o adjetivo “diferentes” funcionam como resposta
à pergunta: qual a diferença entre a Escola Estadual Meninos
do Futuro e a escola “aqui de fora”? Trata-se de uma resposta
dada sobre o processo de ensino-aprendizagem da escola,
avaliando, de forma positiva, a proposta pedagógica específica
para escola inserida no sistema socioeducativo.
Na fala de Aristóteles “lá eu participava de várias ati-
vidades, tipo percussão e pintura”, o advérbio “lá” designa
outro lugar, atualmente distante dele, que, no entanto, lhe
deixou marcas que revelam seus sentimentos de afeto, atenção
e respeito no tocante a essa escola. Reconhece que participava
ativamente de outras atividades pedagógicas além das aulas:
“Eu participava de várias atividades”, referindo-se a ele
mesmo como o beneficiado, ao usar o pronome pessoal na
1ª pessoa do singular. Observamos que Aristóteles evidencia
as atividades de que mais gostava: “percussão e pintura”,
demonstrando que esse tipo de aprendizagem lhe causou um
conjunto de sensações e/ou percepções, algo significante e
pleno na aquisição de novos conhecimentos, no caso a arte.
No enunciado “as atividades eram bem legais”, pelo
atributo “legais” o jovem faz uma avaliação positiva e afetivo-
significativa sobre as atividades —oficinas e projetos—de-
senvolvidas na escola. Trata-se de avaliação que representa

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

experimentar novas práticas e novos conhecimentos como


forma de resistência ao processo de perdas a que o sistema
socioeducativo submete o jovem.
Ao afirmar “não tinham provas”, Aristóteles revela o
medo que sente da prova, deixa transparecer o apreço negativo
que esta representa. é um instrumento avaliativo que contribui
para a escola reproduzir um discurso dominante e excludente.
Aos jovens não lhes é permitido levar material pedagógico
(lápis, cadernos e livros) às aulas. Nesse caso, Aristóteles,
sem entender o engendramento do sistema socioeducativo,
engendra uma avaliação positiva.
Constatamos, pelos enunciados desses jovens, que a
escola do sistema socioeducativo tem cumprido seu papel de
proporcionar conhecimento e afetividade. Observamos, nas
falas dos alunos, que a escola é um lugar aprazível, capaz de
contribuir para a vida dos adolescentes e jovens privados de
liberdade e da sociedade em geral, fazendo-o por meio da
aprendizagem significativa e participativa, assim como da
convivência baseada na valorização e no desenvolvimento
do outro e de si mesmo. A escola, nesse contexto, parecer ser
oportunidade de inclusão, espaço onde as tensões se mostram
aliviadas, o que justifica sua existência e seu papel na inserção
social dos adolescentes e jovens do sistema socioeducativo. A
escola passa a oferecer aos alunos a possibilidade de resgatar
ou manifestar outra forma de se relacionar, contribuindo para
a desconstrução da identidade de infrator.

Ainda não é um ponto final...

As experiências vivenciadas na “Escola Meninos do Fu-


turo”, durante todos esses anos, permitiram-me compreender
que a formação continuada no contexto da escola é de suma
importância para a melhoria da prática escolar. São reflexões que

167
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

permitem ao professor repensar suas ações didático-pedagógicas.


Os professores da escola demonstraram ter conhecimentos, expe-
riências e vivências acerca da instituição, dos alunos e do ofício
de ensinar. Os educadores revelaram que é necessário conhecer
o contexto no qual está inserido, ter domínio do conteúdo a ser
ensinado e estar preparado para a prática do dia a dia. A formação
continuada privilegia a teoria e a prática, o que implica a relação
entre a produção do conhecimento e a organização do curso,
pautando no professor o elo para seu crescimento profissional e
desenvolvimento socioafetivo de seus alunos.
Os cursos de formação continuada, atinentes a letramento
crítico, por exemplo, abriram espaço à troca de experiências
entre os professores, bem como à valorização de si mesmo.
Possibilitaram também novos saberes e técnicas para a me-
lhoria da qualidade do ensino na escola.
É relevante mencionar que os cursos não beneficiaram
apenas a formação de saberes de cada disciplina, mas, fun-
damentalmente, o contexto da instituição e dos alunos, o que
permitiu que cada professor articulasse seus saberes didáticos
com as experiências vividas pelos jovens e adolescentes, no
cotidiano da escola.
Na qualidade de pesquisadora e participante da escola,
procurei olhar os obstáculos enfrentados pelos professores e,
a partir deles, propor mecanismos de superação. Os encontros
realizados para a discussão e debates nos grupos de estudos
foram de fundamental importância para enfrentar as dificul-
dades existentes.
A experiência com os alunos me fez compreender quanto
a escola é relevante na vida deles. Suas produções escritas e
entrevistas revelaram aproximação com os professores e uma
aprendizagem bastante significativa. A escola “Meninos do
Futuro” é um espaço não apenas de aprendizagem formal,
mas, fundamentalmente, de ações humanizadoras.

168
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Novas pesquisas estão sendo desenvolvidas neste ano. O


programa de formação continuada, alicerçada na emancipação e
transformação social para os agentes coordenadores (seguranças)
está sendo implementado. Da mesma forma, uma investigação
acerca das relações existentes entre o sistema socioeducativo,
SEJUHD, SEDUC e a Escola. Parece haver um descompasso
nas relações sociais dos agentes coordenadores com os alunos,
bem como nas relações desses órgãos com a escola.
Reconheço que há ainda muitos fios entrelaçados nas
redes ocultas de poder, controle e dominação no centro so-
cioeducativo. A experiência com os professores e alunos é
apenas uma pontinha entre tantos fios emaranhados que, aos
poucos, começou a ser desprendida.

Considerações finais

Neste livro, desfilei contribuições ontológicas e epistemo-


lógicas do RC para os estudos da ACD, buscando uma apro-
ximação em meio a essas duas abordagens contemporâneas.
Na primeira parte, dediquei-me aos pressupostos teóricos
do RC com o propósito de torná-los mais acessíveis aos lei-
tores iniciantes que desejam enveredar nessa seara. Procurei
destacar a relevância desse pensamento filosófico, dando
ênfase à ontologia. O RC tem servido de base para muitos
cientistas sociais que pretendem compreender as inter-relações
entre indivíduos e sociedade. Na visão de Bhaskar (1998), há
um equívoco metafísico em querer adotar questões ontológi-
cas como epistemológicas. Esse pensamento errôneo levou
à dissolução da ontologia. Na visão do filósofo, os objetos
de conhecimento não são os fatos ou eventos atômicos, nem
os fenômenos apreendidos por meio de construções mentais.
Antes, são estruturas reais que operam e agem no mundo,
independentemente de nosso conhecimento.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

Ao apresentar a sua filosofia do realismo crítico dialético


transcendental, Bhaskar evidenciou coragem e desprendimen-
to. Essa terceira onda tem demonstrado certa incredulidade
por parte de alguns pesquisadores das diferentes áreas do
conhecimento que acenavam positivamente para uma nova
proposta do realismo crítico, centrado nas ciências sociais e
naturais. Porém, asseguro que a voz antecipada do filósofo
acerca da metarrealidade somente terá eco nas décadas futu-
ras. Bhaskar faleceu em 19 de novembro de 2014, deixando
valioso legado às gerações que virão, seja de pesquisadores,
seja de estudiosos interessados no RC.
Na segunda parte do livro, dediquei-me aos procedimen-
tos teórico-metodológicos da ACD. Entendo que esse tipo de
abordagem não deve se pautar apenas no desvelamento das
relações sociais existentes de poder e dominação que estão
presentes nos textos. Em contrário, cabe-lhes “agir sobre o
mundo e especialmente sobre os outros” (FAIRCLOUGH,
2001, p. 91), visando operar transformações sociais. Ou seja, a
ACD tem em seu escopo uma teoria social crítica, interligada a
um campo de pesquisa que visa operar mudanças nas relações
sociais de poder e dominação. Nesse sentido, ela deve centrar-
se nas questões práticas da vida social, objetivando uma crítica
explanatória, fundamentada em observações de problemas
sociais cotidianos, visando superação. Esse é um desafio
que tem sido perseguido pela maioria dos pesquisadores que
corroboram o mesmo pensamento proposto por Fairclough.
Na terceira parte, explanei acerca da abordagem quali-
tativa de pesquisa. Argumentei que esse tipo de abordagem
arquiva três conjuntos de decisões, relacionados com a on-
tologia, a epistemologia e a metodologia. As pesquisas em
ACD procuram desvelar problemas sociais materializados
em textos orais ou escritos. O modelo de análise proposto
por Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2010) é
baseado na crítica explanatória de Bhaskar (1998) e formulado

170
Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso

em cinco estágios. Neste estudo, apresentei mais um estágio


(Estagio 6). Entendo que o pesquisador crítico, preocupado
com mudança social, deve embrenhar-se em um contexto
social, permanecendo por um período prolongado de tempo,
considerando os problemas que emergem no cotidiano da
escola. Nesse sentido, as pesquisas em ACD devem der cícli-
cas. A cada estudo realizado, o pesquisador já terá em mente
qual será a sua próxima investigação, visualizando sanar ou
minimizar as injustiças sociais existentes
Na quarta e última parte, expus algumas experiências
vivenciadas na escola Meninos do Futuro. Destaquei algumas
pesquisas já realizadas na escola, desde 2006. As experiências
me permitiram compreender o sentido primacial da forma-
ção continuada no próprio contexto da escola. As reflexões
desencadeadas com os professores revelaram a necessidade
de repensar as ações didático-pedagógicas cotidianamente.
Trouxeram a lume o real contexto onde estão inseridos.
A escola é espaço que contribui, de maneira significa-
tiva, para tornar a vida dos adolescentes e jovens privados
de liberdade mais agradável e prazerosa. A aprendizagem é
significativa e participativa, cimentada na boa convivência,
na valorização e no crescimento de todos.
Com este livro, espero ter contribuído para ampliar os
horizontes de leitores críticos, interessados em conjugar a cor-
rente filosófica do RC com os preceitos teórico-metodológicos
da ACD.

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Realismo CRítiCo e emanCipação Humana
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