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PSICANÁLISE
E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS
IMPASSES E SOLUÇÕES
Carla Almeida Capanema
Flávio Durães
Hélio Cardoso Miranda Jr.
Juliaha Meirelles Motta
Marconi Martins da Costa Guedes
(Organizadores)
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS: impasses e soluções
Editora CRV
Curitiba - Brasil
2020
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação da Capa: Designers da Editora CRV
Elaboração da capa: Luciana Nunes Nacif
Revisão: Analista de Escrita-e Artes da Editora CRV
Revisão: Carla Almeida Capanema (Cap. 1)
Tradução: Carla Almeida Capanema (Capítulos: 2), Luiz Morando (Cap. 1)
P974
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-5578-976-8
ISBN Físico 978-65-5578-974-4
DOI 10.24824/ 978655578974.4
DISPON(VEL NO
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2020
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/ 12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Conselho Editorial: Comitê Científico:
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Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
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Carlos Federico Dominguez Avila (Uni euro) Fauston Negreiros (UFPI)
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Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero-Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Eliane Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Marcelo Porto (UEG)
Elizeu Clementina de Souza (UNEB) Mareia Alves Tassinari (USU)
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Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
Gloria Farinas León (Universidade Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
de La Havana - Cuba) Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Vrrgínia Kastrup (UFRJ)
de La Havana - Cuba)
Helmuth Krüger (UCP)
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Lourdes Helena da Silva (UFV)
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília lrnbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Remandes (UN[FAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus ([FRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Apoio:
-
UFmG
PUC Minas
Pós Psicologia
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS OU "CADA UM
TEM SEU GRÃO DE LOUCURA" .... .. ........ ....... ..... ..... .... ....... .............. ...... .. 11
Márcia Rosa
PARTE 1
A DESPATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE
CAPÍTULO 1
JACQUES LACAN , PRECURSOR DAS TEORIAS QUEER ...... .... .. .... ..... 17
Fabián Fajnwaks
CAPÍTULO 2
DESPATOLOGIZAR A TRANSEXUALIDADE .......... ............ ... .......... ... ... ... 35
Fabián Fajnwaks
PARTE 2
EXISTE A SAÚDE MENTAL?
CAPÍTULO 3
A SAÚDE MENTAL EXISTE? ........... ... .. ............... .. .... .. ...... .. .. .. ................ .. .. 49
Flávio Durães
CAPÍTULO 4
SAÚDE MENTAL: como avançar? .. ......... .... .... .. .. .... .... .... .. ...... ...... .. .... .. ... .. .. 61
Carlos Luchina
CAPÍTULO 5
O PROZAC E A HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA. .... ....... ........ .. ... .... .... .. .... ..... 71
Francisco Paes Barreto
PARTE 3
SOBRE O GRÃO DE LOUCURA QUE HABITA CADA UM DE NÓS!
CAPÍTULO 6
O GRÃO DE LOUCURA DA MATERNIDADE .... .. ...... ... .. .. .... ... ................ .. . 79
Cristina Moreira Marcos
CAPÍTULO 7
LAERTE-SE: nomear-se a partir de seu grão de loucura .. .... ....... ... ....... ...... 87
Carla Almeida Capanema
Ângela Maria Resende Vorcaro
CAPÍTULO 8
O GRÃO DE LOUCURA EM ANDRÉ: como escutá-lo? .. ..... ... ....... ... ... .... ... 95
Carla de Abreu Machado Derzi
CAPÍTULO 9
QUANDO A INDIGNAÇÃO ENLOUQUECE .. ... .. ............ ...... ... .... ... .......... 101
Juliana Meirelles Motta
PARTE 4
O IMPOSSÍVEL DO SEXO
CAPÍTULO 10
DAS HISTÉRICAS FREUDIANAS ÀS HISTÉRICAS LACANIANAS ..... 109
Márcia Rosa
CAPÍTULO 11
ABUSO SEXUAL E SEXUALIDADE INFANTIL: sob o olhar do outro
todos os adultos são suspeitos ... ..... ... ...... ... .............. ............... ...... ........ ..... 119
Hélio Cardoso Miranda Jr.
PARTE 5
PSICOPATOLOGIA LACANIANA: classes e inclassificavéis
CAPÍTULO 12
O MODELO E O EXEMPLO NA NOSOLOGIA PSICANALÍTICA ....... .... 129
Antonio Teixeira
CAPÍTULO 13
SOBRE O MODELO E O EXEMPLO NA NOSOLOGIA
PSICANALÍTICA: ecos de transmissão ......... .... ... .. .. ... .... ........... ... ..... .. ...... 139
1/ka Franco Ferrari
ÍNDICE REMISSIVO .. ................... ... ......... ..... .......... ... ... ... .... .... .... ..... .... ... . 145
SOBRE OS ORGANIZADORES ................ ... .. .... .. .......... .. ... .. ........ .... .... .... 149
APRESENTAÇÃO
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS OU "CADA UM
TEM SEU GRÃO DE LOUCURA"
Márcia Rosa 1
Márcia Rosa. Psicanalista, membro da EBP/AMP. Pós-Doutorado em Psicanálise (Université Paris 8). Doutorado
em Literatura Comparada (UFMG). Psicóloga. Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG).
12
REFERÊNCIAS
FAJNWAKS, F. "Despatologizar a transexualidade". Jn: CONFERÊNCIA
APRESENTADA NO I COLÓQUIO DE PSICANÁLISE E PSICOPATOLO-
GIA LACANIANAS: impasses e soluções, maio de 2019. Anotações pessoais.
[S.l.], 2019.
A DESPATOLOGIZAÇÃO DA
TRANSEXUALIDADE
CAPÍTULO 1
JACQUESLACAN,PRECURSOR
DAS TEORIAS QUEER
Fabián Fajnwaks 2
Devemos ler as críticas que Gayle Rubin, Monique Wittig, Judith Butler, Eve
Kosofsky Sedgwick fazem à teoria lacaniana dos primeiros anos do ensino de
Lacan para situar o falocentrismo e sua abordagem da perversão em termos
exclusivamente fálicos, assim corno a primazia concedida ao Nome-do-Pai
em sua função de «normalização do desejo». Poderíamos dizer que não ape-
nas o ensino de Lacan permite responder antecipadamente a muitas dessas
críticas, mas que Lacan coincide em muitas das críticas que os autores queer
dirigem à Psicologia do Eu, à adaptação às normas sociais e políticas, não
apenas no que concerne à sexualidade, mas de maneira mais geral à ordem
normativa do discurso habitada pelos seres falantes. Quando, em um dos textos
fundadores dos gender studies, Gayle Rubin (1975/2011 , p. 47) defende que
«os estudos de gênero se têm erguido contra a fetichização da genitalidade
produzida pela tradição clínica da psicanálise norte-americana», ela ecoa, sem
saber, as críticas que já nos anos 1950 Lacan dirigia ao «genital love», que
a Psicologia do Eu promovia buscando conciliar a satisfação pulsional e o
amor, dois termos estruturalmente em disjunção na obra de Freud. Isso para
tomar solúvel a psicanálise com a «busca da felicidade», inscrita no primeiro
artigo da Constituição dos Estados Unidos e imperante naquela cultura. Lacan
promoveu um «retomo a Freud» nos anos 50 justamente para despertar nos
psicanalistas da versão desviante da Psicologia do Eu, mas também de outras
formas que começavam a tomar corpo na Europa e a voltar desse modo ao
subversivo de seus princípios fundamentais freudianos .
É possível um diálogo entre autores queer e a psicanálise? Digo clara-
mente a psicanálise e não necessariamente os psicanalistas, já que Lacan dife-
renciava a psicanálise dos psicanalistas, e dizia preferir sempre a primeira aos
segundos. Ali onde os psicanalistas, certos psicanalistas ao menos, aderem a
preconceitos heteronormativos, não forçosamente porque sejam psicanalistas,
mas porque vivemos ainda em uma ordem simbólica, em declínio, certamente,
mas ainda imperante, regida por uma norma heterossexual. É necessária uma
dose importante de análise, o que implica autocrítica e reflexão, para não se
fazer, enquanto analista, porta-voz de tais preconceitos. Mas se adianto essa
distinção entre a psicanálise e os psicanalistas é porque a própria psicanálise,
a «verdadeira», como dizia Lacan (1958/2003, p. 174), não permite avançar,
nem se instalar em nenhuma norma, seja a fálica ou a centrada no Nome-do-
Pai, e é apenas ao preço de uma grande deriva ou uma franca traição dos con-
ceitos, de uma leitura mal orientada e de um desconhecimento determinado e
decidido que se pode supor à psicanálise de orientação lacaniana uma defesa
de normas ou de identidades heterocentradas. Que o Nome-do-Pai permita
normatizar o desejo, como o antecipa Jacques-Alain Miller na contracapa do
seminário O desejo e sua interpretação (LACAN, 1958-1959/2016), não quer
dizer que esse significante maior normatize o sujeito, já que ambas as noções
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 19
não são as mesmas. Respondo assim a uma das críticas frequentes feitas à
psicánalise nesse sentido, confundindo essas duas perspectivas diferentes.
Normatizar o desejo supõe dar-lhe uma medida; normatizar o sujeito supõe
que essa medida opera de maneira ampliada em todas as instâncias de sua
vida, o que não é assim. A perspectiva do gozo que Lacan introduz na última
parte de seu ensino assim permite verificar, pondo um limite no próprio campo
do desejo que o Nome-do-Pai permite fundar. Isso certamente levou Lacan a
reduzir, a partir dos anos 70, o próprio alcance dessa metáfora fundamental
que ele mesmo havia introduzido no começo de seu ensino.
Tentando articular os elementos desse diálogo entre diferentes auto-
res, não pude formular as coisas de maneira mais irredutível que a seguinte:
existem verdadeiras e falsas divergências quanto à maneira de abordar «o ser
sexuado» (LACAN, 1958-1959/2016) entre os autores queer e a psicanálise
lacaniana. Existem desconhecimentos fundados por posições ideológicas e
existem finalmente também mal-entendidos criados por leituras que outras
posições ideológicas determinam. Trata-se de fazer um inventário modesto
dessas divergências, desses desconhecimentos e mal-entendidos para situar a
justa distância entre esses dois domínios sem buscar necessariamente reduzir
essas divergências e sem fazer dizer a cada um desses autores o que ele não
diz. Gosto da imagem que Fabrice Bourlez (2018) dá em seu livro Queer
psychanalyse: a de um combate entre a psicanálise e as teorias queer no
qual cada oponente deve permanecer no ringue, como dois boxeadores que
travariam uma luta sem fim. Não pense que algum dia um deles prevalecerá
sobre o outro porque um deles terá ganhado o combate, ou este terá cessado:
é uma partida sem fim.
Em geral, os psicanalistas não leem os autores queer e podem manifestar
certa preguiça intelectual na hora de pensar questões clínicas delicadas como
as que as pessoas trans trazem aos psicanalistas, e do lado dos autores queer
sua leitura se detém no Lacan do Seminário 5 (1957-1958/1999), como se os
seminários Mais, ainda (1972-1973/2008) ou O sinthoma (1975-1976/2007),
que permitem pensar de uma maneira completamente diferente a sexuação de
um ser falante não apenas em termos fálicos, não existissem.
Quais são as divergências, então?
As falsas divergências, primeiro: supor um essencialismo anatômico à
psicanálise, fundado na diferença sexual, a DS sexuaP, tal como ironizava
Jacques Derrida; um essencialismo que determinaria um real anatômico na
relação do sujeito com seu próprio sexo. Como se a psicanálise não tivesse
nascido a partir do encontro de Freud com as histéricas, que já não se adap-
tavam à norma da época que determinava como se devia ser mulher, sentir-se
mulher quando se tinha um corpo de mulher, e reciprocamente quando se
Mas concordo aqui com o espírito das criticas que Javier Saéz (2004)
dirige às escolas lacanianas, quando afirma em seu livro fundamental para
essas questões, Teoria queer y Psicoanalisis, que, se os lacanianos se inte-
ressam de agora em diante pelos homossexuais em um espírito de abertura,
o fazem mais para estar de acordo com a época, que dá progressivamente
mais espaço à homossexualidade, do que porque tenham elaborado um ver-
dadeiro trabalho de doutrina que lhes permita entender, por exemplo, porque
a homossexualidade não é necessariamente uma perversão. Basta ver quantos
analistas se declaram homossexuais nas escolas de psicanálise para apreciar
o caminho ainda a percorrer.
Para além dessa formalização, Lacan vai operar duas transformações que
destituíram a primazia fálica e o lugar central acordado ao Nome-do-Pai a par-
tir dos anos 70 no Seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-1970/1992).
Ele procederá a uma crítica a Totem e tabu enquanto mito fundador da civi-
lização e ao complexo de Édipo como estrutura central da organização do
desejo de um sujeito. Ele lhes dará um caráter de semblante, de versão fic-
cional para dar conta de um real: a articulação de uma perda de gozo, de uma
satisfação fundamental para o sujeito. Interpretará o complexo central da
teoria psicanalítica como um «sonho de Freud» (p. 134) de preservar o lugar
do Pai, acreditando-lhe o estatuto de «Pai da horda primitiva». Se Freud deu
tanto espaço a esse Pai mítico, que ele constrói, foi para fundar com esse mito
moderno - «o único mito criado na Modernidade», afirmará Claude Lévi-S-
trauss (1908/1982)- a perda do acesso à satisfação que o sujeito atribui como
existente a um Outro. Lacan recorrerá à segunda lei da Termodinâmica para
explicar a perda de gozo presente na compulsão à repetição e inscreverá as
grandes construções freudianas como um meio para traduzir na teoria uma
versão real dessa perda.
O complexo de Édipo já não será mais a única construção que dê uma
articulação ao desejo: os nós borromeanos, alguns anos mais tarde, virão res-
ponder a esse vazio deixado pelo abandono por Lacan do complexo central
das neuroses. Como Jacques-Alain Miller disse há alguns anos em um Coló-
quio das Seções Clínicas em Montpellier, Lacan teria escrito o Anti-Édipo no
seminário O avesso da psicanálise alguns anos antes que Deleuze e Guattari.
A absorção pelo falo do conjunto da experiência sexual, tal como Freud
o havia formulado e Lacan retomado desde seus primeiros seminários, dará
lugar ao Outro gozo no Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973 /2008) como
resposta também às críticas formuladas pelo Movimento pela Libertação das
Mulheres. Lacan reconhecerá, pela primeira vez na história da psicanálise e
contra a teorização freudiana, uma posição sexuada especificamente feminina
por fora do significante fálico . Ali onde as leituras feministas até essa época
buscavam encontrar uma posição para a feminilidade, frequentemente caindo
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 23
O gozo é q ueer
que dormem com homens». Essa lista não exaustiva tenta dar um panorama
geral do que é a sexualidade em sua diversidadee não reduzida a um binarismo,
que se inscreve na norma heterossexual, straight, ainda quando esta seja
defendida por vários grupos de associações gays. Essa lista, no fundo , lembra
a enumeração heteróclita que Jorge Luís Borges (2010) faz em sua célebre
<<Enciclopédia Chinesa», na «Língua analítica de John Wilkins», retomado por
Michel F oucault em seu prólogo de As palavras e as coisas (2002), no qual
classificava os animais em: a) Pertencentes ao Imperador, b) Embalsamados,
c) Domesticados, d) Leitões, e) Sereias, f) Fabulosos, g) Cães em liberdade,
h) Incluídos nesta classificação, i) Que se agitam como loucos, j) Inumeráveis,
k) Desenhados com um fino pincel de pelos de camelo, 1) Etcetera, m) Que
acaba de romper a crosta, n) Que de longe parecem moscas.
O que essa lista nomeia é a série de arranjos com a sexualidade por fora
do binarismo homem/mulher. Arranjos já que a sexualidade não supõe nem
para Kosofsky Sedgwick, nem para a psicanálise tampouco, uma posição
sexual prévia para o ser sexuado. Dou aqui como «arranjo» todo o relevo que
Lévi-Strauss lhe dá em O pensamento selvagem (1908/ 1989).
Pode-se opor a essa crítica pelo menos dois termos que têm valor axio-
mático na abordagem psicanalítica da sexualidade: a pulsão e a constatação
lacaniana da inexistência de relação sexual que possa ser escrita.
O conceito de pulsão, tal como Freud o introduz, implica a ausência de
um objeto predeterminado à sexualidade. Se no vir a ser biográfico de um
sujeito a pulsão se fixa em um objeto, ela o faz através de encontros con-
tingentes que a fantasia do sujeito se encarregará logo de fazer necessário
e sobretudo de fixá-lo . Esse é um ponto fundamental que Freud fez valer
desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, pelo fato de constituir
uma temporalidade específica da sexualidade humana. Temporalidade que
divide Freud nesse texto entre a infância (primeiro momento) e a puberdade
(segundo momento). Vamos ler Freud: «É provável que, de início, a pulsão
sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos
encantos deste» (FREUD, 1905/1989, p. 139).
Em um texto posterior, «As Pulsões e seus destinos (1915/2013)», Freud
situa quatro elementos que fazem parte da Pulsão: seu «empuxo» (Drang),
o objeto, a satisfação e a fonte. Para diferenciar claramente a Pulsão de toda
noção de instinto animal, Freud avança sobre o quanto o objeto é indeter-
minado no nível da pulsão e se ele se fixa em um momento determinado da
história do sujeito, podendo muito bem, a partir da sublimação, alcançar metas
muito diferentes das primeiras. Elemento importante, a satisfação da pulsão
não é obtida do objeto ao qual se fixa, mas a partir de seu caminho autoerótico,
não estando o objeto, nessa rota, em um relé que permita essa satisfação. É
necessário, verdadeiramente, um enorme forçamento de leitura para encontrar
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 25
Em seus trabalhos, Tim Dean (2006) valoriza o que chama «o erro indu-
zido por Michel Foucault» no que concerne à orientação que tem sido adotada
pelos principais textos de autores de teorias de gênero. Em que consiste esse
erro? É a partir da História da sexualidade por ter acentuado o prazer em
detrimento do gozo, tal como o entende Lacan, ou seja, como um ilimitado
que desborda o limite que o Princípio de prazer impõe ao desejo. O prazer
ou os prazeres, tal como F oucault o aborda a partir do termo aphrodisia na
Antiguidade, supõe uma harmonia que se abre para uma posição hedonista
que cria a ilusão da possibilidade de conciliar o sujeito com a tensão que
supõe o desejo. Essa temática foi largamente abordada por Freud em seus
escritos, desde o <<Projeto para uma psicologia cientifica (1895/1989)» até
«Além do principio de prazer (1920/1989)», com a projeção que a virada dos
anos 1920 iniciou a partir da introdução da Pulsão de morte, até o postulado de
um «Mal-estar na civilização (1929/1989)», irredutível, próprio à experiência
do ser falante e a sua maneira de habitar a linguagem.
A abordagem foucaultiana se situa para Tim Dean aquém dessa zona que
a compulsão à repetição e Tanatos instituem, verificando desse modo, como
o faz Lacan, que o prazer constitui uma barreira ao gozo. Em sua teorização,
Foucault não franqueia essa barreira, limitando-se a explorar as transfor-
mações históricas e discursivas às quais foi submetida a antiga aphrodisia.
Nessa abordagem, não existe negatividade, seja na própria concepção de
prazer, deixando Foucault de lado tudo o que pode escapar ao princípio de
prazer. O Inconsciente e a Pulsão de morte, especialmente. Mas no devenir
histórico também da noção de prazer não existe tampouco na teorização de
Foucault corte nenhum: o autor aborda os discursos como sendo contínuos,
uns sucedem-se aos outros, sem situar na História os cortes existentes. Sem
situar tampouco experiências de prazer que pudessem ter se apagado ou não
retomadas em experiências ulteriores. Pensemos nesse meteoro que foi o amor
28
7 Movimento das "Preciosas": Movimento literário das espirituosas e bem-educadas damas que freqüentavam
os salões da corte francesa, que surgiu das conversações e dos alegres jogos de linguagem para excluir
as palavras que evocavam o sexo.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 29
Para concluir
Não é certo que esse apoio sobre o princípio de prazer e essa promoção
identitária a partir de modos de gozo sexual, não leve certas teorias queer
a adotar uma posição ideológica. Da mesma maneira que atribuir ao prazer
um lugar preferencial no funcionamento do psiquismo conduz ao hedonismo
como perspectiva que exclui tudo o que concerne ao do~ínio da Pulsão de
morte e do negativo ali presente. Se, seguindo Tim Dean, falamos de posi-
ção utópica, é justamente porque sua leitura da obra de Foucault o levou
a acreditar que bastaria eliminar as barreiras externas da satisfação sexual
para que se chegasse a uma plena satisfação, desconhecendo completamente
a impossibilidade profunda do desejo (e não do prazer) de poder encontrar
uma satisfação. Ignorando também as complicações que Tanatos inflige à
obtenção mesma do prazer. No fundo, pode-se deduzir dessa proposição que
só a consideração ao gozo impede todo saber de cair na ideologia, pois o gozo
não pode ser confessado. Quando é capturado pela significação fálica, pode
encontrar um significante como representante, mas o verdadeiro gozo que é
o Outro gozo, o gozo feminino que escapa ao significante fálico , carece de
significante para tratá-lo.
«O conceito lacaniano de gozo poderia ser extremamente útil à aná-
lise queer» escreve Tim Dean fazendo o saldo do quanto as teorias queer
REFERÊNCIAS
IRIGARAY, L. Ce sexe qui n 'est pas un. Paris : Ed. du Minuit, 1976.
LACAN, J. O seminário: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Livro 20. Edição estabelecida por Jacques-Alain Miller.
DESPATOLOGIZAR A
TRANSEXUALIDADE
Fabián Fajnwaks 9
1O Desfazer o gênero.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 37
Do lado de Lacan
Valérie veio ver-me faz alguns meses, enviada por um colega que é um
amigo próximo dela. Tem quarenta anos e está casada faz vinte anos. Tem
40
dois filhos adolescentes. É uma bela mulher, fina, delicada, feminina. Veste-se
com muito cuidado, e elege com o mesmo cuidado as palavras para expres-
sar-se. Aborda diretamente, uma vez sentada no consultório, o que a traz:
sente às vezes um pênis entre suas pernas. A violência dessas palavras, seu
caráter abrupto, contrasta fortemente com sua apresentação. Diz não senti-lo
em permanência, somente depois das brigas com seu marido, cada vez mais
frequentes. Relata haver pensado consultar um médico ou um sexólogo: mas
uma vez consultado seu amigo, este lhe aconselhou vir consultar-me. Per-
gunta-se se não será uma transexual e o que deveria fazer em consequência.
Valérie desenvolve, ainda na primeira sessão, as razões bastante banais
de conflito com seu marido: que não toma para si a organização de certas
tarefas domésticas; que não sabe às vezes falar com seus filhos (um menino
e um bebê) e colocar-lhes limites claros; que não sabe, enfim, tomar posição
frente a certas decisões no que concerne a seus filhos, que às vezes lhe falte
«b» ... 11 - acrescenta com um sorriso mais irritante que irônico, como para
sustentar o que está dizendo, indicando com esse sorriso que sabe perfeita-
mente o laço disso com o que a levou a me consultar e que não encontrara
melhor maneira de me dizer.
Valérie falou também nessa sessão que não havia sido sempre desse
modo, que esse marido, encontrado em sua juventude e que foi seu único
homem, era mais enérgico no começo. Era justamente esse seu lado firme e
viril que a havia atraído em seus primeiros encontros, mas também sua ternura
e assim ele se apresentou para ela como «o equilíbrio perfeito» que um homem
precisava ter, já que jamais suportou um verdadeiro «macho» e sua impostura
resolutamente viril. Mas com o tempo esse lado decidido havia deixado lugar a
um homem que se enternece de maneira progressiva e se furrde em uma suave
passividade, manifesta sobretudo nos momentos em que dele se esperaria
que fosse um verdadeiro homem que tomasse decisões. Não somente a irrita
ter que decidir em seu lugar, senão que isto lhe toca profundamente, sendo
o resultado dessa atitude a sensação bizarra que sente entre as pernas. Essas
palavras vêm como dar um ponto de estofo, um «point de capiton» ao que ela
havia desenvolvido nessa primeira sessão, e lhe proponho que voltássemos a
nos encontrar para explorar o que lhe acontece.
Ela compartilha com esse marido um ideal humanista e uma espécie
de sensibilidade ao outro, à alteridade, ao dom que os une. Quase como em
uma fraternidade fundada sobre esse ideal. Esse ideal provavelmente tem
mais consistência para ela do que para seu marido, mas em todo caso é bem
em seu nome que a relação se mantém ao longo dos anos e que permite velar
a dissimetria radical que poderia se abrir mais além dos limites desse ideal.
Dissimetria que poderia aparecer com esse parceiro imaginário, no caso em
11 Que às vezes lhe faltem culhões (testículos), quer dizer coragem, firmeza nas atitudes.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 41
As crianças trans
12 Esta expressão «nascido de um repolho» não é usual no Brasil, mas tem sua origem em uma lenda contada
às crianças sobre «de onde vêm os bêbes?»: Os pais vão à fazenda, escolhem um repolho bem grande, e a
mãe tem que comer ele todo, então o bebê vai para a barriga dela, cresce e depois sai. (Nota da tradutora)
13 Casta de homens castrados que se vestem de mulher e existem há séculos na Índia.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS : impasses e soluções 43
14 Uma muxe (ou muxhe) é uma pessoa de corporalidade testiculada que não se identifica como homem nem
como mulher, porém com expressão de gênero feminina. É um gênero não-ocidental; podem ser vistas como
um terceiro gênero.
44
Para concluir
REFERÊNCIAS
LACAN, J. O seminário: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Livro 20. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
:MILLER, J.-A. Des Gays en analyse? La Cause Freudienne. Paris, 2003. n. 55.
15 Psicólogo e psicanalista, com mestrado em Filosofia (UFMG). Doutorando em Psicologia (Puc Minas). Pro-
fessor da Puc Minas e FCMMG. Coordenador do Curso Clinica Psicanalítica na Atualidade: contribuições
de Freud e Lacan IEC/Puc Minas.
50
O animal, como tem uma mente, não se dirige sobre o puro real, mas faz
dele uma realidade. A diferença entre o real e a realidade é a interposição
do mental. Pode-se, dessa maneira, descrever perfeit~mente o mundo da
mosca. Lacan cita uma descrição que desperta em nós a vontade de ser
uma, porque se vê que a mosca tem uma perfeita saúde mental, uma
vez que a definimos como a harmonia, o equilíbrio do /nmwelt e do
Unmwelt (MILLER, 1999, p. 16, grifo nosso).
saúde opera uma inversão das dualidades platônicas que opõem doxa e epis-
téme (opinião e ciência). Contudo, segundo Miller, trata-se de uma "opinião
justa" que leva em conta o entendimento da própria subjetividade no que
tange aos parâmetros para pensar a saúde e a doença, o normal e o patológico.
Canguilhem (2009) antecipa as criticas, o que, décadas mais tarde, iria cons-
tituir-se como o campo das definições bioestatísticas enunciado por Boorse
(1975). Para Canguilhem, a saúde não pode ser reduzida aos parâmetros de
normalidade e desvios estatísticos.
No texto "A saúde: conceito vulgar e questão filosófica", Canguilhem
analisa o conceito de saúde a partir da filosofia kantiana. Kant sugere que a
saúde é um conceito alheio ao campo do saber objetivo, portanto um conceito
que pertence à língua vulgar. Com base nesse enunciado, Canguilhem (2005,
p. 37) pôde sustentar a tese de que "não há uma ciência da saúde". A saúde
"como fenômeno não contabilizado, não condicionado, não mediado por apa-
relhos" não é exclusiva dos especialistas em saúde (CANGUILHEM, 2005,
p. 44). Nesse sentido, ele fala de uma "saúde subjetiva" em oposição à "saúde
pública". Segundo Miller, Canguilhem aproxima o médico da figura do ana-
lista, destacando a transferência e sua condição de um exegeta, um leitor de
sintomas. Miller opõe a afirmação de Canguilhem de que "a saúde é a verdade
do corpo" a outra que ele considera mais apropriada: "a doença é a verdade do
homem"; em termos mais precisos para a psicanálise, "o sintoma é a verdade
do homem" (MILLER, 2011, p. 65).
Ao contrário do discurso do mestre, que quer interditar a fantasia, norma-
lizar o desejo, a psicanálise reivindica "o direito da singularidade", o direito
de subverter o ideal da "saúde para todos", pois reconhece _que há algo irre-
dutível no sintoma que escapa à avaliação generalizada e às classificações
diagnósticas atuais .
real e do mental através do aforismo lacaniano "A relação sexual não existe"
(LACAN, 1972/2003). Portanto, a impossibilidade de inscrever a relação
sexual na linguagem "é o que faz objeção a toda ideia de saúde mental"
(MILLER, 2011 , p. 58).
Lacan tentou nomear o recalque primordial de muitas formas até chegar
ao "não há relação sexual", formulando que essa questão não tem solução
pela via do significante. Segundo Maleval (2002), há uma lógica dissimétrica
entre as posições do homem e da mulher. Essa lógica retrata a impossibili-
dade de plenitude no encontro com seus objetos de desejo, aludindo igual-
mente à linguagem, a sua incapacidade de tudo expressar. A relação entre o
homem e a mulher não é harmoniosa porque está em jogo a impossibilidade
de o objeto desejado corresponder ao objeto final da pulsão. Desse modo,
a satisfação pulsional é sempre parcial e os objetos substitutivos nunca são
plenamente satisfatórios. A afirmação de que "a relação sexual não existe"
seria a representação limite da incompletude do desejo e do resto produzido
pela linguagem em todo discurso. Nesse sentido, todo sujeito está submetido
à falta de um significante, ou seja, para todo sujeito falta o significante do
Outro, que constitui o furo na linguagem, a impossibilidade de a linguagem
dizer tudo, de dizer toda a verdade. Nessa direção, Miller diz que a "harmo-
nia nunca é alcançada pelo ser falante, a doença lhe é intrínseca e essa
doença se chama 'foraclusão'. Ela comporta não haver relação sexual."
(MILLER, 2011, p. 31, grifo nosso).
Com efeito, o ser falante é um animal doente, cuja doença não é um aci-
dente, mas faz parte de seu ser. A linguagem não é suficiente para dar conta
do real. Assim, diante da ambição daquilo que se designa como uma relação
de complementaridade, Lacan responde com a fórmula "todo mundo é louco,
isto é, delirante" (LACAN, 1978/201 O, p. 31 ). Diante da impossibilidade de
um saber verdadeiro sobre o recalque primordial, o desejo surge como fruto
dessa desarmonia entre o real e a realidade. Ele indica que há uma reconfi-
guração do conceito de sintoma enquanto "resto irredutível". Assim, o que
Lacan chamou "sinthoma" vem designar como elemento irredutível o "nome
do incurável" . Logo, o "sinthoma" faz objeção à saúde mental, pois está do
lado oposto de qualquer normalidade e expressa o que cada ser falante porta
em sua diferença e singularidade mais absoluta. Portanto, a ausência de relação
sexual nos faz questionar a crença de uma saúde mental e de qualquer noção
de terapêutica como restituição da normalidade anterior.
58
REFERÊNCIAS
BERAUD, A. Saúde. Scilicet A ordem simbólica no século XXI - Não é mais
o que era. Quais as consequências para o tratamento ? Belo Horizonte: Scrip-
tum, 2011. p. 336-339.
FORBES, J. Prefácio. ln: MILLER, J.-A.; MILNER, J.-C. Você quer mesmo
ser avaliado? São Paulo: Manole, 2006. p. IX-XII.
MALEVAL, J. -C. Laforclusión de! Nombre de! Padre. Buenos Aires: Pai-
dós, 2002.
Introdução
Foram criadas novas instituições para acolher, dar suporte aos doentes e
famílias na comunidade, com centros de atenção e de ação social. Em 1995, as
primeiras leis foram promulgadas, e os primeiros centros de atenção na Saúde
Mental, no Brasil, foram inaugurados em 2000. O modelo proposto comporta
o objetivo de inclusão social e antissegregação. Propõe-se uma política atenta
à globalização universal com diretrizes generalizadas.
que possa perturbar, que tenha a invenção jocosa de inventar, à sua maneira,
o suposto saber que faça esclarecer o sentido dos sintomas. Uma vez que o
sintoma está aliviado do seu sentido, pode continuar existindo de uma forma
que não tem mais esse plus de sentido.
Nesse ponto de impasse onde o campo da saúde mental se esvai, é preciso
atravessar os ideais. O mental que se esvazia para desnudar o real. Especial-
mente, é preciso franquear o imaginário, o mental do imaginário que está
condicionado pela percepção dos semblantes e a percepção no espelho do eu
como instância distorcida. A paranoia do discurso do mestre que oferece ao
ego uma miragem delirante que não consegue reformular as instâncias auto-
ritárias. É preciso também franquear o mental do simbólico que se encontra
na refração do significante na face especular que nomeamos o sentido. Este
pode ser concebido como fugindo, indeterminado, metonímico e sensível
de fazer um lugar às metáforas, às tentativas de criar efeitos de sentido que
sustentem a decifração da verdade como meta final.
Lacan une, de forma essencial, a verdade com as falsidades que podem
envolver o sujeito. Atravessar o campo último que está além das falsidades
do mental, a parte opaca daquilo que Freud nomeava libido, significa fran-
quear o sentido simbólico. O sentido da libido é o desejo, o qual se ~rticula
simbolicamente. Mas o desejo conhece a deflação, pode se espalhar como
semblantes especialmente fálicos.
Embaixo do desejo, uma vez que a tela do fantasma foi atravessada,
encontra-se aquilo que não mente, mas que não é uma verdade: o gozo. Gozo
produzido pelo encontro do corpo com o significante. Embora esse encontro
mortifique o corpo, ele solta uma parcela de carne. No ~ntanto, animada
pelo universo mental que estabelece uma forma articulada a essa ficção que
chamamos o campo do Outro. Nessa articulação que marca um reencontro
entre o corpo e o traço, ocasiona-se o acontecimento do corpo que é um gozo.
A partir desse gozo fixado que não fala, Freud nomeia as pulsões. A partir
desses acontecimentos do corpo, desse gozo fixado , estruturar a fala. Essas
experiências de gozo do ser falante, às quais chegamos, podem nos permitir
visar as barreiras que temos a atraves_sar.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 69
REFERÊNCIAS
ANSERMET, F. As promessas do DSM V. A Saúde Mental, existe? Mental,
Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n. 27-28, p. 35-41, 2012.
MILLER, J.-A. Falar com seu corpo. A Saúde Mental, existe? Mental - Revista
da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n. 27-28, p. 127-137, 2012 .
O PROZAC E A HISTÓRIA
DA PSIQUIATRIA
Francisco Paes Barreto 17
A psiquiatria clássica
discurso médico e moralista (FOUCAULT, 195 8/1 975, p. 52-60). Prova disso
são as suas hipóteses célebres: a loucura como distúrbio funcional do sistema
nervoso central (SNC), as causas morais e o tratamento moral.
Como era a psiquiatria clássica? O método clínico era puramente des-
critivo e classificatório, o que ficou posteriormente definido como clínica do
olhar. Do ponto de vista etiológico, as causas mais importantes das alienações
mentais eram as causas morais. Quanto ao substrato, embora Pinel concebesse
as alienações como alterações funcionais do SNC (hipótese funcionalista) , a
partir de Griesinger, toda a psiquiatria clássica tomou-se visceralmente orga-
nicista, ou seja, "as doenças mentais são, antes de tudo, doenças cerebrais"
(hipótese anatomista). Na terapêutica, prevalecia amplamente o tratamento
moral proposto e teorizado por Pinel. Finalmente: do ponto de vista institu-
cional, a psiquiatria clássica realizou-se nos grandes asilos para alienados.
A psiquiatria clássica teve um percurso de aproximadamente um século.
Seu trabalho descritivo e classificatório conheceu o apogeu com Kraepelin,
cujo Compêndio de Psiquiatria, de 1913, após oito edições, transformou-se
num tratado de quatro volumes e 2.500 páginas.
A psiquiatria do DSM
A pílula da felicidade
REFERÊNCIAS
O GRÃO DE LOUCURA
DA MATERNIDADE
Cristina Moreira Marcos 18
Quando se diz que a mulher quer um filho do pai, de que objeto se trata?
Trata-se de um objeto cuja característica essencial é que ele passe pela
demanda, isto é, seja simbolizado por essa demanda. Assim a operação real
dessa privação implica um objeto transformado e introduzido no desejo
pela demanda. Esse episódio, essa peripécia reconstruída por Freud acerca
do pedido que a criança faz a seu pai, é essencial, porque introduz a
dimensão de um objeto impossível: sua existência só se dá a partir dessa
demanda. Se as mulheres estão privadas, podem pedir um objeto impos-
sível (LAURENT, 2007, p. 19).
significação ligada à maternidade se impõe: " Eles querem que meu filho
morra" . Dominique Laurent afirma que "a criança que ela carrega, realiza o
objeto a. O Outro é real e quer gozar do sujeito" (LAURENT, 2004, p. 90).
Sucedem-se passagens ao ato violentas contra o marido e contra outros. Nasce
uma menina morta fazendo eco a seu próprio nascimento após o falecimento
de um irmão. Entretanto, o delírio já estava em marcha desde antes do nas-
cimento da criança. A convocação do significante pai pela maternidade basta
para mobilizar a significação mortal. A certeza delirante de ameaça de morte
sobre o seu filho é correlata à significação identificatória que ela atribui ao
filho: não se trata da equivalência "filho-falo" mas "filho-morto". Da segunda
gravidez, nasce seu filho, objeto, ao mesmo tempo, de um cuidado exclusivo
e ciumento e de uma grande indiferença. Os transtornos psicopatológicos se
acentuam, e seu delírio persecutório se organiza em tomo de uma significação:
"todos ameaçam meu filho" . Sua perseguidora, a atriz que será golpeada na
porta do teatro, é uma ameaça constante ao filho . Aimée confessa a potencia-
lidade criminosa de seu delírio materno: "Eu temia, diz ela, muito pela vida
de meu filho, se lhe acontecesse uma desgraça agora, seria mais tarde por
minha causa. Eu seria uma mãe criminosa" (LACAN, 1957/1975, p. 163).
Por trás da passagem ao ato contra a atriz, o que se desvela é a mãe criminosa.
Lacan sugere que "a perversão do instinto materno com a pulsão ao assassi-
nato explicaria a organização centrífuga do delírio que faz a atipia do caso
[...] e permitiria compreender uma parte do comportamento delirante como
uma fuga para longe do filho" . Por isso ele considera que "o apaziguamento
autopunitivo, na base da cura, teria sido determinado em parte pela realização
de uma perda definitiva do filho" (LACAN, 1957/1 975 , p. 265). Aqui, o ato
tem um estatuto diferente daquele que vemos em Medeia. No caso Aimée, a
passagem ao ato realiza uma separação do filho como objeto de gozo.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 85
REFERÊNCIAS
BASSOLS, M. Entrevista a Miquel Bassols realizada por Gloria Gonzáles.
Boletín LaLeo, n. 13, s.d. Disponível em: http://x.jomadasnel.com/Boleti-
nes/013.html. Acesso em: 29 set. 2019.
23 Documentário sobre a cartunista Laerte. Direção: Eliane Brum, Lygia Barbosa da Silva. Elenco: Laerte.
Disponível Nelflix.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 89
R
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 91
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Gender trouble: feminism and subversion of identity. London:
Routledge, Chapman and Hall, 1990.
O GRÃO DE
,
LOUCURA EM
ANDRE: como escutá-lo?
Carla de Abreu Machado Derzi2-1
,..
REFERENCIAS
LACAN, J. O seminário: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1983. Livro 1.
QUANDO A INDIGNAÇÃO
ENLOUQUECE
Juliana Meirelles Motta 25
Esse momento funda uma posição desse sujeito em relação ao Outro: ela se
depara concretamente com esses dois pontos, onde se localiza o digno e onde
se localiza o indigno, e a inscreve em uma outra posição: indignada. Podemos
pensar aqui em outra posição?
Nina cresce e vai estudar em Nova York para dar continuidade à sua
carreira de pianista clássica. Mas se faz necessário trabalhar para sobreviver, e
assim ela começa a tocar blues e jazz em clubes noturnos muito frequentados
pela comunidade negra e pelos melhores músicos e instrumentistas da época.
Aqui um acontecimento se faz: uma identificação com esses grupos no que
diz respeito à condição deles naquele tempo e naquele país. Música e protesto
se constituem significantes que possibilitam uma construção de solução para
o sujeito Nina para que se acomode em um mundo injusto. O afeto encontra
aí uma localização para ela nesse binário.
A partir desse momento e cada vez mais engajada nos movimentos de
resistência, Nina se toma a cantora de protesto e dos direitos humanos dos
negros americanos. Martin Luther King e Malcom X a reconhecem nessa
posição. A função da operação da posição de indignação a localiza e ela tem
por onde escrever e cantar sobre isso, tratando seu gozo e através disso fazendo
um laço com o Outro, não sucumbindo, não se mortificando na identificação
que ser negro é ser indigno.
Lembra-se aqui do esforço de Schreber de aceitar a experiência de femini-
zação que ele acreditava ser impingida por um Deus indignante. Ele se indigna
com Deus, ele se indigna para sobreviver a esse Outro devastador, mas que
ao mesmo tempo não suportava sua distância. Schreber produz uma invenção
que o alivia da experiência de desamparo. Para Lacan, se sua feminização,
ordenada em tomo da experiência de eviração, faria parte de sua reconstrução
no campo imaginário, a identificação ideal reordenaria toda a sua produção
simbólica. Pensa-se ser o mesmo trabalho que Nina Simone faz. A identifica-
ção ideal nesse lugar da cantora e artista de protesto, desa forma reconhecida
por todos. Cai a menina negra musicista clássica dos brancos e se produz uma
mulher negra porta-voz das denúncias contra o racismo insano americano.
Neste ponto do trabalho, mais uma questão se coloca: a indignação como
laço social da psicose tentando fazer um Outro existir, uma tentativa de operar
simbolicamente sobre o gozo, uma maneira de fazer laço e de endereçamento
ao campo do Outro, em oposição à solução de passagem ao ato.
Uma presença estética irretocável e uma música sem comparação a nada
então até produzida.
Lembra-se aqui o texto de Miller (2010), "A salvação pelos dejetos", que
pontua o seguinte: quando o gozo é elevado à dignidade da Coisa, ou seja,
quando ele não é rebaixado à indignidade de dejeto, ele é sublimado, ele é
104
REFERÊNCIAS
BARROSO, S. F. O que a psicose nos ensina sobre a indignação. Disponível
em: https ://ix. enapol. org/ o-que-a-psicose-nos-ensina-so bre-a-indignacao.
Acesso em: 8 ago. 2019.
MILLER, J.-A. A salvação pelos dejetos. Correio, Revista da EBP, São Paulo,
n.67,p. 19-26,dez.2010.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires:
Paidós, 2005.
Em seu último comentário sobre a histeria, Lacan (1978) disse não estar
certo de que a neurose histérica ainda existisse, embora não tivesse dúvi-
das sobre uma neurose que certamente existe, a neurose obsessiva. Se, com
Freud, a neurose obsessiva é apenas um dialeto da histeria, indagamos: com
as mudanças ocorridas no estatuto do amor ao pai tomado como armadura e
no estatuto do Outro, a partir do qual a histérica fabrica suas identificações,
diríamos que a histeria sobrevive atualmente apenas enquanto dialeto?
O dialeto é uma variante de uma língua oficial própria de determinadas
comunidades e que, em princípio, existe simultaneamente à língua oficial.
Com o dialeto, além do universal da língua, temos o particular da comuni-
dade, seja, por exemplo, a comunidade dos sujeitos histéricos. Em que pese
isso, dois outros termos poderiam ser acrescentados a esta série - o discurso
histérico, que diz de um enlaçamento social ao Outro a partir de uma posi-
ção sintomática, e a lalangue, que diz do modo absolutamente singular de
cada sujeito histérico. Teríamos, portanto, a língua, o dialeto, o discurso e a
lalangue histéricos.
Que a histeria possa não existir mais no estatuto universal da língua
classificatória e da nosologia não deixa de nos evocar Lacan e a sua proposta
de uma linguisteria, ou seja, de uma língua que, ultrapassando qualquer pre-
tensão de científicidade, leve em conta o sujeito em suas particularidades.
Lacan, ele próprio, introduziu variações na histeria enquanto tipo clínico
sem, no entanto, chegar a dissolvê-lo. Ele o fez, por exemplo, ao formular um
discurso histérico. Com esse discurso temos um operador clínico importante
que nos permite interrogar os significantes-mestres e as (des )identificações
de nossa época. Além dele, Lacan introduziu outras variações no campo da
histeria, tal como a 'histeria rígida' , uma histérica que vai sem o Outro,
bem como uma ' histeria perfeita' , com a qual unificou o inconsciente com o
consciente e transformou a histérica, a histórica, em historisteria, reduzindo
26 Para compor este artigo fiz uma montagem a partir de recortes do livro Por onde andarão as histéricas de
outrora ?: um estudo lacaniano sobre as histerias, cujas referências encontram-se no fi nal.
27 Márcia Rosa. Psicanalista, membro da EBP/AMP Pós-doutorado em Psicanálise (Université Paris 8). Douto-
rado em Literatura Comparada (UFMG). Psicóloga. Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG) .
110
Frente a essa pergunta de Lacan, evoco uma figura topológica para pro-
duzir o que diria ser uma metodologia tórica, ou seja, para passar e repassar
algumas vezes por alguns pontos, gerando, com isso, algumas possíveis
respostas para a pergunta formulada por Lacan. Mais do que produzir as
melhores respostas ou as mais corretas, sejam elas clínicas ou teóricas, ou
mesmo mais do que produzir um giro completo e final sobre a questão prin-
cipal, o desafio da pesquisa de pós-doutorado que relato neste artigo, - pes-
quisa realizada no decorrer de 2018 na Université de Paris 8 Vincennes-Saint
Dennis, sob a orientação do prof. Dr. Fabián Fajnwaks - , esteve em poder
abrir e seguir alguns caminhos na produção de respostas, na maioria das vezes
sem saber aonde eles nos levariam ou mesmo correndo o risco de chegar
e, muitas vezes chegando, em conclusões e achados inesperados ou mesmo
indesejados. Em vista disso, arriscamo-nos a querer saber não apenas por
aonde andarão as histéricas de outrora, mas também por onae andaram essas
histéricas e como o seu encontro com a psicanálise repercutiu no rumo que
suas vidas tomaram a partir daí.
No que se segue, apresento de modo sucinto algumas das respos-
tas encontradas.
Para Laurent, é possível articular o comentário feito por Lacan de que "o
inconsciente é a política" (LACAN apudLAURENT, 2015, s. p.) à proposta
lacaniana de leitura do sintoma como um acontecimento de corpo. Isso se
justificaria, inclusive, pelo fato de que, no mesmo momento em que afirma
que o inconsciente é a política, Lacan redefine o Outro e, por conseguinte, o
inconsciente, propondo que o Outro é o corpo. Como extrair consequências
disso politicamente? Em que medida um fato ou acontecimento político toca o
falasser na sua existência, no seu corpo? Nesse novo contexto, ultrapassamos
a afirmação de que o inconsciente é a política do discurso do Outro e encon-
tramos a possibilidade de pensar o inconsciente associado a um acontecimento
de corpo, a uma política do sinthome. Opera-se aí um deslocamento que leva
do campo do Outro, dos ideais, da ideologia, do inconsciente como verdade
recalcada, ao sinthome como noção que implica a psicanálise naquilo que
114
ela pode ter como ponto de chegada: a produção do mais singular que tem
ressonância, que afeta cada corpo em sua existência.
Para discuti-lo, retomo o sociólogo Georg Simmel (1957 /2014), em
um artigo intitulado "O indivíduo e a liberdade", no qual ele propõe duas
vertentes políticas surgidas a partir do individualismo moderno identifica-
das com momentos distintos da modernidade. Para ele, duas revoluções
individualistas surgem com a modernidade e elas dão lugar a dois tipos de
individualismo: um que ele menciona ser um individualismo quantitativo,
para o qual usa o termo singleness, e outro, um individualismo qualitativo,
ao qual denomina uniqueness.28
Single, em inglês, quer dizer "um só", "um único", "solteiro", "indivi-
dual" . Teríamos aí o individualismo como uma posição que corresponde ao
indivíduo como cidadão livre e autônomo, algo no estilo "todos iguais perante
a lei". Uma segunda revolução individualista dá lugar a outra concepção de
individualismo para a qual Simmel usa o termo uniqueness. Portanto, não
basta ser um cidadão livre, autônomo, com direitos iguais; mais do que isso,
interessa ser único, ter um traço, um elemento que marque a diferença com o
"todos iguais", "todos livres", com o "todos" de uma suposta homogeneidade
e universalidade. O individualismo do uniqueness diz respeito à excepcio-
nalidade e à singularidade do indivíduo moderno, posto que o termo unique
diz de algo único, ímpar, sem paralelo, exclusivo, raro, singular. Com isso,
o sujeito moderno se transforma em um indivíduo livre, mas também e, ao
mesmo tempo, singular e insubstituível.
Impossível não vermos que a análise desses dois individualismos é inte-
ressante para que possamos pensar a própria psicanálise. Nossa hipótese é que
podemos nos servir dessas duas categorias de individualismo - singleness e
uniqueness - para pensar a psicanálise e a política. Uma política do singleness
seria urna política do SI' e uma política do uniqueness seria uma política do
Un tout seul, do Um absolutamente só, uma política do sinthome, na qual
opera aquilo que o sujeito tem de mais singular.
Portanto, os acontecimentos políticos afetam os sujeitos em seus traços
de identificação a uma comunidade. No entanto, esses acontecimentos também
os afetam em seus corpos de modo absolutamente singular. Tomados a partir
do traço (S 1) que os identifica e os coletiviza (S 1-----+S 2) , os sujeitos seriam con-
siderados apenas no contexto político da singleness. Entretanto, eles surgem
28 No texto original em alemão, o termo para o individualismo qualitativo é Einzigkeit e para o individualismo
numérico é Einze/heit. O tradutor para o português se referiu a um individualismo da singularidade (Einzi-
gkeit) em oposição a um individualismo da parte, do simplesmente livre (Einzelheit) . Optamos por manter
os termos da tradução para o inglês, uniqueness para o individualismo qualitativo, que designa o indivíduo
no que ele tem de singular e único, e singleness para o individualismo numérico, que aponta o sujeito como
livre e igual aos outros indivíduos, designando-o, portanto, no que ele tem de comum com os outros. Cf.
Simmel (1957/2014).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 115
"
REFERENCIAS
LACAN, J. O seminário: L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre. [S.l.],
(1976-1977). Livro 24. Inédito.
LAURENT, É. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. ln: TEXTOS DO
VI ENAPOL, 2013. Anais[ .. .]. [S.l.] , 2013. p. 10-20. Disponível em: www.
enapol.com/pt/Textos.pdf. Acesso em: jan. 2019.
Bibliografia
30 A definição do que é abuso sempre tangencia uma zona cinzenta na qual a racionalidade se submete
aos afetos relacionados aos posicionamentos subjetivos e ideológicos. Podemos citar como exemplos,
de um lado, a exposição de arte que foi duramente criticada por muitas pessoas por expor crianças à
nudez de atores em performance, em 2017 (cf. https://g1 .globo.com/sao-paulo/noticia/interacao-de-
-crianca-com-artista-nu-em-museu-de-sp-gera-polemica .ghtml) e, de outro, a pouca crítica e aceitação
passiva do público em geral de um concurso de miss mirim no Programa Silvio Santos, em 2019, no
qual o narrador dizia que os jurados deviam prestar atenção às pernas, aos colos e ao rosto de meni-
nas abaixo de 10 anos de idade que desfilavam de maiô (cf. https://emais.estadao.com.br/noticias/
tv,silvio-sa ntos-e-criticad o-por-exibi r-desfile-com-criancas-de-ma io,70003022719).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 121
31 Criou-se uma sigla para se referir a este fenômeno: FOMO (Fear Of Missing Out), que significa a preocupa-
ção intensa de perder eventos supostamente emocionantes que outras pessoas vão assistir, especialmente
relacionados a postagens nas mídias sociais (cf. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/fomo).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 123
REFERÊNCIAS
MILLER, J.-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, Eolia, n. 42, p.
7-18, 2004.
O MODELO E O EXEMPLO NA
NOSOLOGIA PSICANALÍTICA
Antonio Teixeira 32
32 Professor adjunto / UFMG (Minas Gerais, Brasil). Doutor em Psicanálise / Universidade de Paris VIII (Paris,
França). Mestre em Filosofia / UFMG (Minas Gerais, Brasil). Médico / UFMG (Minas Gerais, Brasil). E-mail:
amrteixeira@uol.com.br
130
Não por acaso ela deve sua origem à consideração clínica, por parte de Freud,
da loucura histérica no que ela tinha de mais desconcertante para o saber
classificatório: doença inclassificável, por excelência, a histeria se modifica
constantemente com relação a ela própria, colocando a perder todo esforço
de objetivação da patologia mental por sua capacidade de exibir, de maneira
aparentemente aleatória, os sinais clínicos de todas as classes diagnósticas.
Para decifrar o enigma da histeria, objetivá-la, no nível pretensamente
científico de uma psicologia dos fenômenos mentais, não nos leva muito
longe; é preciso, antes de tudo, escutar o que o sujeito histérico tem a dizer.
Ao ouvir suas primeiras pacientes histéricas, Freud nota de saída que a cisão
patológica dos conteúdos de consciência não derivava de uma falha de síntese,
como se formula na hipótese objetivante de Pierre Janet, mas antes de um ato
de vontade inconsciente do sujeito que dela não quer saber. Se não passou
despercebida a Freud, conforme observa P. Tavares, a derivação do léxico
alemão Krankung, que significa literalmente "ofensa", para o adjetivo Krank
(doente), é por ele notar, na etiologia do padecimento mental, a pressão de um
desejo cuja satisfação é interpretada como uma ofensa que o sujeito decidiu
esquecer (FREUD, 2016, p. 194). A solução histérica (e não sua deficiência
inata, como diria uma vez mais P. Janet) consiste em transpor o fator libidi-
nal dessa satisfação incompatível para o corpo, na forma da conversão, com
vistas a desembaraçar a unidade egoica do elemento desarmônico, que passa
assim a parasitar uma função corporal onde se forma o núcleo de outro grupo
psíquico, inacessível à consciência.
Não é apenas na loucura histérica que Freud identifica a inadequação
entre a apresentação dividida do sujeito e a unidade em qQe ele se representa.
Ele a identifica igualmente na loucura obsessiva, que tende a ser tanto mais
grave quanto mais normal o indivíduo busca ser. No lugar de transpor o fator
libidinal incompatível para o corpo, a defesa consiste agora em manter sua
representação mental distante das associações do pensamento consciente,
fazendo com que o afeto dali desligado venha habitar ideias aparentemente
absurdas que parasitam a consciência. Mas há também, para além da loucura
histérica e da loucura obsessiva, a loucura propriamente dita, ou seja, alou-
cura psicótica onde o fator pulsional recebe um destino diverso. Em vez de
ser enquistado num pensamento parasita ou transposto para algum compo-
nente somático de valor simbólico, o elemento recusado se encontra de tal
modo enredado na realidade externa que o Eu termina por dela se desligar.
As autorrecriminações do obsessivo e a satisfação impedida da histérica se
deslocam, via projeção, para os sentimentos delirantes de desconfiança e
perseguição, situando no campo do Outro o excesso pulsional incompatível
com a representação do sujeito.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 133
pelo FMI. Mas quando nos orientamos, por outro lado, pela via do exemplo,
em vez de tentarmos impor ao real uma representação abstrata da realidade,
operamos com algo que já se apresenta no nível, por assim dizer, de uma rea-
lidade provisória, no sentido em que nos servimos de elementos já dados na
situação presente, ao mesmo tempo que os destinamos a uma função distinta
daquela que prescreve o seu uso ortodoxo.
Retomando, então, uma terminologia cara a Lévi-Strauss, diríamos que
a referência ao modelo se aproxima da atividade do engenheiro, que opera
com objetos idealmente concebidos para a função padronizada de seu projeto,
ao passo que o recurso ao exemplo estaria mais próximo ao trabalho do bri-
coleur, que inventivamente desloca os objetos que tem à mão de sua função
original e os converte em gambiarras, no sentido em que se vale, pela via do
improviso, de modos imprevistos de utilização. Assim como o bricoleur se
serve de uma caneta enquanto instrumento perfurante ou de uma enciclopédia
como escada para trocar uma lâmpada, o psicanalista recorre aos romances de
Flaubert e James Joyce como exemplos paradigmáticos para pensar a histeria e
a solução psicótica, a partir de aspectos alheios ao que normalmente se espera
do trabalho de crítica literária, sem esgotar a possibilidade deslocada de seu
uso. Pois é pela impossibilidade de completar seu projeto, no sentido em que
completá-lo seria tomá-lo integralmente conforme ao ideal que preside o seu
uso, que o bricoleur (e o psicanalista, se Lévi-Strauss assim o permite) sempre
ali colocam algo de si (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 32).
Interessante notar, no que tange ao ideal de uma ciência biológica que
se busca impor à clínica psiquiátrica, que a própria evolução da vida que lhe
serve de modelo antes procede por bricolagens, e não por formas ideais. A
configuração anatômica do organismo é fiel ao princípio do-bricoleur, observa
Viveiros de Castro (2017), ao comentar a negociação biomecânica que preside
a formação de nossa coluna vertebral na transição da condição quadrúpede
à postura ereta. Se nos importa, assim, considerar a distinção entre modelo e
exemplo, tal como Viveiros de Castro a desenvolve a partir de sua leitura de
O pensamento selvagem, é na medida em que buscamos conceber uma visão
não normativa da nosologia psicanalítica que leve em conta o que o sujeito
que tem a dizer de sua experiência. Diversamente do modelo nosológico que
opera com um saber sobre a patologia do indivíduo, o recurso ao exemplo
nos auxilia a pensar a condução clínica como uma prática guiada pela consi-
deração de elementos que se apresentam concretamente na história e no saber
construído pelo próprio paciente. É por isso que no lugar da simplificação
homogênea do modelo, valemo-nos do exemplo como chamado para fazer
algo diferentemente igual, no sentido em que uma situação clínica pode ser
tomada como paradigmática para se pensar o que cada caso comporta de
absolutamente inédito.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOG IA LACANIANAS: impasses e soluções 137
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
A
Analista 4, 16, 19, 36, 40, 41 , 53 , 54, 57, 59, 95, 96, 97, 108, 109, 140
Angústia 39, 40, 59, 62, 63 , 67, 87, 88, 90, 99
e
Ciências Humanas 9
Civilização 20, 25, 30, 34, 47, 48, 56, 59, 67, 74, 93
Clínica 9, 10, 16, 21, 41 , 47, 53 , 54, 56, 60, 62, 63 , 64, 65, 69, 70, 73 , 74,
80, 90, 91 , 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 109, 117, 130, 131, 132, 133,
134,140, 149
Complexo 20, 33
Criança 18, 19, 23 , 30,36, 40, 77, 78, 79,80, 81,82, 83 , 93 , 94,95, 96, 99,
117, 118, 120, 121 , 123
D
Delírio 80, 81 , 82
Desajo 16, 17, 18, 1~20,23,25,28, 31, 39, 40, 54, 55, 57, 66,77, 78, 79,
80,84, 87, 89, 96, 97, 102, 117, 122, 127,1 29,130,132,133 , 138, 140
Despatologização 7, 1O, 13
Diagnóstico 35, 49, 60, 61 , 63, 71 , 93 , 109, 127, 128, 129, 131, 132, 133,
135, 137, 139, 140, 141
Discurso 9, 10, 15, 16, 23 , 47, 48,49, 53 , 54, 55, 56, 59, 64, 65, 66, 70, 72,
93 , 94, 95, 99, 102, 107, 108, 109, 110, 111 , 114, 117, 118, 119, 122,
127, 129, 138, 139
Doença 48, 49, 52, 54, 55, 61,62, 63 , 64,69, 73, 74,1 27,130
DSM 34, 35, 49, 60, 63, 64, 67, 71 , 72, 73
E
Equivalência 50, 77, 79, 80, 82
Esquizofrenia 47, 63, 109
Existência 15, 33 , 34, 51 , 54, 78, 79, 80, 81 , 99, 103, 111, 112, 113, 122,
132, 139
F
Fantasia 18, 22, 54, 72, 78, 80, 99, 117, 123, 139, 140
146
G
Gênero 15, 16, 19,24,25,26,27,30,34,35,37,39,40,41,85, 86,92
Gozo 15, 17, 18,2~21,2~25,2~27,28, 2~ 3~ 36, 37,42,47,48, 53,
57,59,60,62,64,66, 78,80,81,82,84,85,86,87,88,89,90,91,94,
95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 110, 111, 118, 119, 120, 121, 122,
127, 139
H
Histeria 107, 108, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 130, 131, 132, 134
História da Loucura 56, 138
Homossexualidade 20, 34, 87, 88, 89, 110
I
Identidade 21, 24, 27, 29, 35, 40, 41, 86, 89, 92
Imaginário 18, 27, 38, 39, 63, 66, 86, 101, 111
Inconsciente 19, 25, 31, 33, 42, 51, 52, 57, 77, 78, 83, 89, 90, 107, 108, 110,
111, 130
Individualismo 112
Indivíduo 40,49,50,65,85, 112,115,119,121,129,130,133,134,138,139
Infantil 8, 117, 119, 120, 121, 122, 123
J
Jacques Lacan 4, 7, 15, 19, 33, 34, 116
L
Linguagem 15,25,26,27,47,52,55,63,69, 85, 89,90,94,99, 100
Loucura 7, 8,9, 10,37,47,50,56,65,69, 70, 71, 75, 77, 79,80, 85,86,90,
91, 93, 96, 97, 128, 129, 130, 138
M
Maternidade 7, 10, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 84
Medicina 34, 52, 53, 56, 62, 63, 64, 69, 70, 71, 127, 137
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 147
N
Neurose 42, 50, 107, 109, 132, 133, 135
Nó borromeano 86, 87, 88, 90, 91
Nome-do-Pai 16, 17, 18, 19, 20, 90
Normalidade 41, 50, 54, 55, 65
Nosologia 8, 107, 127, 131, 134, 135, 137
o
Outro 8, 17, 18, 20, 23, 24, 27, 28, 29, 36, 37, 38, 39, 40, 41 , 47, 49, 50, 52,
55,60, 62,63 , 64,65, 66, 72, 77, 79,80,82,85,86,87,89,90,91,93,
94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 107, 110, 111, 112, 113, 117,
118, 119, 120, 121, 122, 127, 128, 130, 131, 134, 137, 140
p
Paranoia 50, 66, 81, 133
Perversão 16, 19, 20, 79, 80, 82, 135
Prazer 15,25, 26,27,28,29,30
Psicanálise 3, 4, 7, 9, 10, 11 , 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 , 24, 26, 28,
29,31,33, 34,35,37,42,47,48,49,50,51,52,53,54,57,59,62,64,
65,67,69, 70, 72, 74, 77, 79, 84, 85,86, 87,92, 93,96,97, 107,108,
110, 111, 112, 113, 115,117,118, 123, 127, 129,131, 132, 133, 137,
138, 139, 140, 141
Psicofármacos 60, 61, 67, 71 , 72, 73
Psicologia 9, 16, 18, 25, 47, 74, 77, 83, 84, 85, 93, 99, 107, 117, 123, 130,
140,149
Psicopatologia 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 33, 43, 49, 56, 77, 125, 127, 129, 137,
138, 140
Psicose 35, 36, 64, 99, 101, 104, 109, 110, 128, 135
Psiquiatria 7, 10, 60, 61, 62, 63, 69, 70, 71, 73, 74,111,131
Pu~ão 15,22,23,24,25,28,55,77,82,83,96, 119,120,140
Q
Queer 7, 10, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 42, 64,
85,86,92
R
148
66,78,79, 80, 81,82, 85, 86, 89, 90, 91 , 94, 95, 96, 97, 109, 111 , 113,
119, 133, 134, 139
s
Satisfação 16, 20, 22, 28, 47, 55, 85, 86, 130
Saúde Mental 7, 9, 10, 45 , 47, 48, 49, 50, 51 , 52, 53 , 54, 55, 57, 59, 60, 61 ,
62,65, 66,67,69, 71 , 72, 74, 93 , 99, 149
Segregação 27, 48, 60, 61 , 64, 129,138
Semblante 19, 20, 24, 36, 40, 85, 108, 114
Sexo 8, 15, 17, 21 , 23, 24, 26, 29, 32, 34, 35, 37, 39, 40, 41 , 89, 105, 110, 122
Sexualidade 8, 15, 16, 18, 21 , 22, 23, 25, 26, 30, 31 , 37, 77, 79, 80, 87, 89,
117, 121, 122, 123
Sigmund Freud 15, 19, 30, 43 , 56, 83, 114, 123, 135
Significante 16, 18, 19,20, 27, 28, 29, 33, 35, 36, 55, 66,82, 93 , 95, 99, 100,
102, 111 , 127, 137
Simbólico 27, 28, 66, 77, 86, 89, 91 , 96, 111, 122, 130
Singularidade 34, 49, 54, 55, 65, 78, 86, 112, 131
Sintoma 33 , 54, 55, 62, 66, 67, 78, 80, 81 , 84, 86, 90, 91 , 92, 11 1, 114, 115,
127, 139
Subjetividade 54, 59, 70, 71 , 78, 94
Sujeito 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23 , 24, 25 , 27, 33, 34, 35, 36, 37, 40, 41 , 42,
50, 51 , 52, 55 , 59,60, 62, 63, 64, 66, 72, 77, 79, 80,~2, 85, 86, 90, 91 ,
93 , 95, 96, 97, 101 , 102, 103, 107, 109, 111, 112, 113, 119, 120, 121 ,
122, 127, 128, 129, 130, 131 , 133, 134, 137, 138, 139, 140
T
Transexualidade 7, 10, 11 , 13, 33 , 34, 35, 42
Transferência 54, 57, 65, 97, 132
Tratamento 9, 35, 50, 51 , 56, 59, 60, 61, 62, 70, 71 , 72, 86, 93 , 95, 96, 97,
100, 102, 104, 110, 117, 133
V
Verdade 19, 35, 54, 55, 62, 66, 78, 81 , 110, 111 , 113, 122, 128, 131 , 132,
135, 140
Violência 38
SOBRE OS ORGANIZADORES
Flávio Durães
Psicólogo e psicanalista, com mestrado em Filosofia (UFMG). Doutorando
em Psicologia (Puc Minas). Professor da Puc Minas e FCMMG. Coordenador
do Curso Clínica Psicanalítica na Atualidade: contribuições de Freud e Lacan
IEC/Puc Minas.