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1 COLÓQUIO INTERNACIONAL

PSICANÁLISE
E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS
IMPASSES E SOLUÇÕES
Carla Almeida Capanema
Flávio Durães
Hélio Cardoso Miranda Jr.
Juliaha Meirelles Motta
Marconi Martins da Costa Guedes
(Organizadores)

PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS: impasses e soluções

Editora CRV
Curitiba - Brasil
2020
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação da Capa: Designers da Editora CRV
Elaboração da capa: Luciana Nunes Nacif
Revisão: Analista de Escrita-e Artes da Editora CRV
Revisão: Carla Almeida Capanema (Cap. 1)
Tradução: Carla Almeida Capanema (Capítulos: 2), Luiz Morando (Cap. 1)

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária Responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/ l 506

P974

Psicanálise e psicopatologia lacanianas: impasses e soluções / Carla Almeida Capanema


(organizadora), Flávio Durães (organizador), Hélio Cardoso Miranda JR.( organizador), Juliana
Meirelles Motta (organizadora), Marconi Martins da Costa Guedes (organizador) - Curitiba :
CRV, 2020.
150 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-5578-976-8
ISBN Físico 978-65-5578-974-4
DOI 10.24824/ 978655578974.4

1. Psicanálise 2. Psicopatologia 3. Jacques Lacan I. Capanema, Carla Almeida. org. II.


Miranda Jr., Hélio Cardoso. org. III. Motta, Juliana Meirelles. org. IV. Guedes, Marconi Martins
da Costa. org. V. Título VI. Série.

CDU 159.923.2 CDD 150.195


Índice para catálogo sistemático
1. Psicanálise 150.195

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2020
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/ 12/2004
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Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Apoio:

-
UFmG

PUC Minas
Pós Psicologia
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS OU "CADA UM
TEM SEU GRÃO DE LOUCURA" .... .. ........ ....... ..... ..... .... ....... .............. ...... .. 11
Márcia Rosa

PARTE 1
A DESPATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE

CAPÍTULO 1
JACQUES LACAN , PRECURSOR DAS TEORIAS QUEER ...... .... .. .... ..... 17
Fabián Fajnwaks

CAPÍTULO 2
DESPATOLOGIZAR A TRANSEXUALIDADE .......... ............ ... .......... ... ... ... 35
Fabián Fajnwaks

PARTE 2
EXISTE A SAÚDE MENTAL?

CAPÍTULO 3
A SAÚDE MENTAL EXISTE? ........... ... .. ............... .. .... .. ...... .. .. .. ................ .. .. 49
Flávio Durães

CAPÍTULO 4
SAÚDE MENTAL: como avançar? .. ......... .... .... .. .. .... .... .... .. ...... ...... .. .... .. ... .. .. 61
Carlos Luchina

CAPÍTULO 5
O PROZAC E A HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA. .... ....... ........ .. ... .... .... .. .... ..... 71
Francisco Paes Barreto

PARTE 3
SOBRE O GRÃO DE LOUCURA QUE HABITA CADA UM DE NÓS!

CAPÍTULO 6
O GRÃO DE LOUCURA DA MATERNIDADE .... .. ...... ... .. .. .... ... ................ .. . 79
Cristina Moreira Marcos
CAPÍTULO 7
LAERTE-SE: nomear-se a partir de seu grão de loucura .. .... ....... ... ....... ...... 87
Carla Almeida Capanema
Ângela Maria Resende Vorcaro

CAPÍTULO 8
O GRÃO DE LOUCURA EM ANDRÉ: como escutá-lo? .. ..... ... ....... ... ... .... ... 95
Carla de Abreu Machado Derzi

CAPÍTULO 9
QUANDO A INDIGNAÇÃO ENLOUQUECE .. ... .. ............ ...... ... .... ... .......... 101
Juliana Meirelles Motta

PARTE 4
O IMPOSSÍVEL DO SEXO

CAPÍTULO 10
DAS HISTÉRICAS FREUDIANAS ÀS HISTÉRICAS LACANIANAS ..... 109
Márcia Rosa

CAPÍTULO 11
ABUSO SEXUAL E SEXUALIDADE INFANTIL: sob o olhar do outro
todos os adultos são suspeitos ... ..... ... ...... ... .............. ............... ...... ........ ..... 119
Hélio Cardoso Miranda Jr.

PARTE 5
PSICOPATOLOGIA LACANIANA: classes e inclassificavéis

CAPÍTULO 12
O MODELO E O EXEMPLO NA NOSOLOGIA PSICANALÍTICA ....... .... 129
Antonio Teixeira

CAPÍTULO 13
SOBRE O MODELO E O EXEMPLO NA NOSOLOGIA
PSICANALÍTICA: ecos de transmissão ......... .... ... .. .. ... .... ........... ... ..... .. ...... 139
1/ka Franco Ferrari

ÍNDICE REMISSIVO .. ................... ... ......... ..... .......... ... ... ... .... .... .... ..... .... ... . 145

SOBRE OS ORGANIZADORES ................ ... .. .... .. .......... .. ... .. ........ .... .... .... 149
APRESENTAÇÃO

PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA
LACANIANAS OU "CADA UM
TEM SEU GRÃO DE LOUCURA"
Márcia Rosa 1

Com este livro, convidamos você a manter vivo e pulsante o debate


proposto pelo "I Colóquio Internacional de Psicanálise e Psicopatologia Laca-
nianas: impasses e soluções". Psicanálise e psicopatologia, dois campos e, no
seu ponto de intersecção o texto freudiano e o ensino de Lacan! Dois campos
e seus pontos de conjunção e disjunção, suas entradas e suas saídas!
Com o ato de aproximar a 'psicopatologia' e a nossa 'vida cotidiana' a
psicanálise, seja ela freudiana ou lacaniana, coloca em suspenso "a dimen-
são normativa que o termo 'psicopatologia' implica" e toma evidente que "o
ensino de Lacan não nos autoriza a falar de 'psicopatologia' quando se trata de
acolher, como o fazemos em análise, o mais íntimo e central do ser falante",
nos termos de Fabián Fajnwaks (2019).
Que o termo "saúde mental" atravesse o debate dos profissionais de várias
áreas, a começar por aquela das ciências humanas - ciências conjecturais,
como bem o assinalou Lacan! -, que esse termo chegue mesmo a ser tomado
como bandeira de lutas muitas vezes desavisadas ou pouco cuidadosas com a
importância da formação clínica dos profissionais que se farão responsáveis
por acolher a voz dos que sofrem e que nos endereçam suas demandas de
tratamento, não nos impede, aliás, muito pelo contrário, nos impele a indagar:
"existe a saúde mental?" Essa uma das questões centrais que orienta o diálogo
proposto aqui entre a psicanálise e a psicopatologia.
No seu texto "Falar com seu corpo", o psicanalista Jacques-Alain Miller
(2012) evidencia que, embora o termo "saúde mental" sirva de mediação
na conversa entre o discurso do senso comum e o discurso psicanalítico, o
nosso ponto de partida é o de que a saúde mental não existe! Ela não existe na
medida mesmo em que cada um de nós tem seu grão de loucura! Ao enfatizar
que outrora a saúde mental era denominada uma sabedoria ou mesmo uma
virtude, de modo a melhor servir aos movimentos de restabelecimento da

Márcia Rosa. Psicanalista, membro da EBP/AMP. Pós-Doutorado em Psicanálise (Université Paris 8). Doutorado
em Literatura Comparada (UFMG). Psicóloga. Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG).
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ordem e da medida, Miller observa que se as paixões, as ilusões, os apetites


geram desequilíbrios, sob o termo 'saúde mental' reside uma ideia teleológica
fundada na boa vontade da natureza e na aposta em um bem-estar na nossa
vida civilizada ou normatizada, aposta sobre a qual Freud já nos advertiu ou
mesmo desiludiu. Em suma, o sintagma "saúde mental" opera sob o pressu-
posto de que uma parte do psiquismo, sua parte racional ou divina, estará no
comando. Posto isso, é importante observar como "a saúde mental surge desde
sempre do discurso do mestre. Ela é desde sempre assunto de governo. E é
seu destino imemorial que se realiza quando, atualmente, ela fica diretamente
sob a gestão de todos os aparelhos da dominação política" (MILLER, 2012, p.
128-129), em suas parcerias com o discurso da ciência e o discurso capitalista,
especialmente em sua vertente neoliberal.
Se, desde a perspectiva aqui denominada "psicopatologia lacaniana", a
saúde mental não existe, uma outra pergunta se impõe: posto isso, o que existe?
Como denominar, tratar, localizar, conceituar o que existe e o que fazemos
sob a égide da psicanálise e da psicopatologia? Para responder a essas per-
guntas nós os convidamos a percorrer conosco alguns temas tais como "uma
despatologização da transexualidade", a qual nos mostra Lacan como "um
precursor das teorias queer", a desdobrar o aforismo de que a saúde mental
não existe na sua conexão com a história e o exercício da psiquiatria, com as
noções de normal e patológico, com as nomeações que o grão de loucura pode
encontrar em cada um, bem como com a indignação e o enlouquecimento que,
uma vez semeado, esse grão pode fazer brotar, por exemplo na experiência
da maternidade. Além dessas, outras questões tais como o movimento que
leva das histéricas freudianas às histéricas lacanianas, bem ~orno a discussão
sobre os abusos sexuais e as fantasias de sedução, presente desde as origens
da psicanálise, também estão contempladas.
Com esses debates, as nuances nosológicas que a leitura psicanalítica
faz surgir no campo da psicopatologia nos conduzem a um questionamento
sobre o uso de modelos e exemplos quando se trata da clínica, evidenciando
assim as implicações epistêmicas, e mesmo políticas, que estiveram em jogo
no I Colóquio de Psicanálise e Psicopatologia Lacanianos.
PSICANÁLI SE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 13

REFERÊNCIAS
FAJNWAKS, F. "Despatologizar a transexualidade". Jn: CONFERÊNCIA
APRESENTADA NO I COLÓQUIO DE PSICANÁLISE E PSICOPATOLO-
GIA LACANIANAS: impasses e soluções, maio de 2019. Anotações pessoais.
[S.l.], 2019.

MILLER, J. A. "Parler avec son corps". Mental, Revue Jnternacionale de


Psychanalyse, n. 27/28, p. 127-133, 2012.
PARTE 1

A DESPATOLOGIZAÇÃO DA
TRANSEXUALIDADE
CAPÍTULO 1

JACQUESLACAN,PRECURSOR
DAS TEORIAS QUEER
Fabián Fajnwaks 2

Jacques Lacan não conheceu as teorias queer, nem os estudos de gênero,


já que se desenvolveram na década de 1980, mas é certo que, se tivesse vivido
mais alguns anos, teria seguramente se interessado por elas. O corpus teórico
dos estudos de gênero e seu avatar, como os chama minha amiga Anne-Emma-
nuelle Berger (2013), os estudos queer, se encontra constituído em grande
parte de desdobramentos que se nutrem na maior parte dafrench theory, isto
é, da leitura por universitários americanos de autores como Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Jacques Derrida ... e Lacan. Mas não é por pura curiosidade
de saber o que seu ensino se tomou nas universidades norte-americanas que
Lacan estaria interessado nos estudos de gênero, mas porque eles abordam o
que se encontra no cerne da experiência analítica desde sua criação por Sig-
mund Freud: a relação do ser falante com o real que constitui a sexualidade.
Lacan forjou o termo traumatismo para nomear o que não se pode dizer da
sexualidade e que determina em grande parte a relação do ser falante com
a existência. A questão de saber se a sexualidade entendida nesses termos é
equivalente ao sexo e a suas múltiplas práticas já introduz uma linha de fra-
tura entre o que interessa aos estudos queer e à psicanálise. Tanto mais que
os estudos queer estão interessados nas nomeações que as diferentes práticas
sexuais permitem promover para introduzir cortes na ordem normativa do
discurso fixado e determinado pela heterossexualidade durante séculos. Nesse
ponto preciso, existe um interesse comum na psicanálise lacaniana, já que
nos anos 1970 Lacan se interessou intensamente pelas nomeações que um ser
de linguagem poderia encontrar a partir de um modo singular de gozo. Mas,
ainda ali, aparece uma nova linha de fratura, já que o gozo sexual, entendido
como aquele que designa uma relação particular dos seres falantes com o
prazer, não é o gozo tal como Lacan o entende. A pulsão, enquanto conceito
fundamental da psicanálise, situa os seres falantes em uma relação particular
e irredutível com o Além do Princípio de prazer (FREUD, 1920/1989a).
Parece então que há pontos de convergência e de divergência entre os
estudos queer e a psicanálise lacaniana, ainda que não seja porque os primeiros
se constituíram contra uma leitura de Lacan por certos autores, os melhores.

2 Professor Doutor na Université Paris 8 e Membro da École de la Cause Freudienne/AMP (Paris-França).


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Devemos ler as críticas que Gayle Rubin, Monique Wittig, Judith Butler, Eve
Kosofsky Sedgwick fazem à teoria lacaniana dos primeiros anos do ensino de
Lacan para situar o falocentrismo e sua abordagem da perversão em termos
exclusivamente fálicos, assim corno a primazia concedida ao Nome-do-Pai
em sua função de «normalização do desejo». Poderíamos dizer que não ape-
nas o ensino de Lacan permite responder antecipadamente a muitas dessas
críticas, mas que Lacan coincide em muitas das críticas que os autores queer
dirigem à Psicologia do Eu, à adaptação às normas sociais e políticas, não
apenas no que concerne à sexualidade, mas de maneira mais geral à ordem
normativa do discurso habitada pelos seres falantes. Quando, em um dos textos
fundadores dos gender studies, Gayle Rubin (1975/2011 , p. 47) defende que
«os estudos de gênero se têm erguido contra a fetichização da genitalidade
produzida pela tradição clínica da psicanálise norte-americana», ela ecoa, sem
saber, as críticas que já nos anos 1950 Lacan dirigia ao «genital love», que
a Psicologia do Eu promovia buscando conciliar a satisfação pulsional e o
amor, dois termos estruturalmente em disjunção na obra de Freud. Isso para
tomar solúvel a psicanálise com a «busca da felicidade», inscrita no primeiro
artigo da Constituição dos Estados Unidos e imperante naquela cultura. Lacan
promoveu um «retomo a Freud» nos anos 50 justamente para despertar nos
psicanalistas da versão desviante da Psicologia do Eu, mas também de outras
formas que começavam a tomar corpo na Europa e a voltar desse modo ao
subversivo de seus princípios fundamentais freudianos .
É possível um diálogo entre autores queer e a psicanálise? Digo clara-
mente a psicanálise e não necessariamente os psicanalistas, já que Lacan dife-
renciava a psicanálise dos psicanalistas, e dizia preferir sempre a primeira aos
segundos. Ali onde os psicanalistas, certos psicanalistas ao menos, aderem a
preconceitos heteronormativos, não forçosamente porque sejam psicanalistas,
mas porque vivemos ainda em uma ordem simbólica, em declínio, certamente,
mas ainda imperante, regida por uma norma heterossexual. É necessária uma
dose importante de análise, o que implica autocrítica e reflexão, para não se
fazer, enquanto analista, porta-voz de tais preconceitos. Mas se adianto essa
distinção entre a psicanálise e os psicanalistas é porque a própria psicanálise,
a «verdadeira», como dizia Lacan (1958/2003, p. 174), não permite avançar,
nem se instalar em nenhuma norma, seja a fálica ou a centrada no Nome-do-
Pai, e é apenas ao preço de uma grande deriva ou uma franca traição dos con-
ceitos, de uma leitura mal orientada e de um desconhecimento determinado e
decidido que se pode supor à psicanálise de orientação lacaniana uma defesa
de normas ou de identidades heterocentradas. Que o Nome-do-Pai permita
normatizar o desejo, como o antecipa Jacques-Alain Miller na contracapa do
seminário O desejo e sua interpretação (LACAN, 1958-1959/2016), não quer
dizer que esse significante maior normatize o sujeito, já que ambas as noções
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 19

não são as mesmas. Respondo assim a uma das críticas frequentes feitas à
psicánalise nesse sentido, confundindo essas duas perspectivas diferentes.
Normatizar o desejo supõe dar-lhe uma medida; normatizar o sujeito supõe
que essa medida opera de maneira ampliada em todas as instâncias de sua
vida, o que não é assim. A perspectiva do gozo que Lacan introduz na última
parte de seu ensino assim permite verificar, pondo um limite no próprio campo
do desejo que o Nome-do-Pai permite fundar. Isso certamente levou Lacan a
reduzir, a partir dos anos 70, o próprio alcance dessa metáfora fundamental
que ele mesmo havia introduzido no começo de seu ensino.
Tentando articular os elementos desse diálogo entre diferentes auto-
res, não pude formular as coisas de maneira mais irredutível que a seguinte:
existem verdadeiras e falsas divergências quanto à maneira de abordar «o ser
sexuado» (LACAN, 1958-1959/2016) entre os autores queer e a psicanálise
lacaniana. Existem desconhecimentos fundados por posições ideológicas e
existem finalmente também mal-entendidos criados por leituras que outras
posições ideológicas determinam. Trata-se de fazer um inventário modesto
dessas divergências, desses desconhecimentos e mal-entendidos para situar a
justa distância entre esses dois domínios sem buscar necessariamente reduzir
essas divergências e sem fazer dizer a cada um desses autores o que ele não
diz. Gosto da imagem que Fabrice Bourlez (2018) dá em seu livro Queer
psychanalyse: a de um combate entre a psicanálise e as teorias queer no
qual cada oponente deve permanecer no ringue, como dois boxeadores que
travariam uma luta sem fim. Não pense que algum dia um deles prevalecerá
sobre o outro porque um deles terá ganhado o combate, ou este terá cessado:
é uma partida sem fim.
Em geral, os psicanalistas não leem os autores queer e podem manifestar
certa preguiça intelectual na hora de pensar questões clínicas delicadas como
as que as pessoas trans trazem aos psicanalistas, e do lado dos autores queer
sua leitura se detém no Lacan do Seminário 5 (1957-1958/1999), como se os
seminários Mais, ainda (1972-1973/2008) ou O sinthoma (1975-1976/2007),
que permitem pensar de uma maneira completamente diferente a sexuação de
um ser falante não apenas em termos fálicos, não existissem.
Quais são as divergências, então?
As falsas divergências, primeiro: supor um essencialismo anatômico à
psicanálise, fundado na diferença sexual, a DS sexuaP, tal como ironizava
Jacques Derrida; um essencialismo que determinaria um real anatômico na
relação do sujeito com seu próprio sexo. Como se a psicanálise não tivesse
nascido a partir do encontro de Freud com as histéricas, que já não se adap-
tavam à norma da época que determinava como se devia ser mulher, sentir-se
mulher quando se tinha um corpo de mulher, e reciprocamente quando se

3 DS se engana com «déesse» , deusa, divinidade.


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tinha um corpo de homem. Toda a teoria freudiana sobre a sexualidade, os


Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1 989), especialmente com
a figura da criança perversa polimorfa, se encontra fundada no fato de que o
sujeito não se identifica necessariamente com o corpo anatômico que possui,
e que as identificações sexuais se constroem através de um largo trabalho que
pode ser posto em questão permanentemente, assim como as eleições de objeto
que podem variar ao longo de uma vida. Para dizê-lo em termos lacanianos,
as eleições de gozo de um sujeito se estabelecem ao nível de sua fantasia
fundamental, mas são lábeis e podem conhecer mutações desde que a fantasia
do sujeito se encontre questionada ou suspensa. Mesmo que Freud permaneça
incapaz de dar uma posição única, legítima à posição feminina, ficando esta
inteiramente cativa da primazia fálica, deixará ao sujeito a liberdade de realizar
o trabalho que o levará a escolher sob qual insígnia sexual deseja se colocar e
a quais escolhas de objeto procederá em um momento ou outro de sua vida.
Para isso, basta convencer-se lendo o famoso caso da jovem homossexual, no
qual Freud (192011989b) discute com um suposto leitor imaginário acerca da
impossibilidade de uma análise forçar um sujeito a inverter sua orientação
sexual. Evoco isso no momento mesmo em que no mundo inteiro se desen-
volvem protocolos comportamentalistas de adestramento para forçar pessoas
homossexuais a inverter sua orientação sexual e «voltam a ser heterossexuais.
Pode ainda ser evocada aqui a Correspondência de Freud (2015) com sua
filha, a célebre Anna, na origem da Psicologia do Eu, que numerosos auto-
res queer criticarão alguns anos depois, que se afirma progressivamente em
uma orientação homossexual até chegar a uma convivência com sua secre-
tária, a americana Dorothy Burlingham, quando moraram um andar acima
do de Freud, na rua Bergasse, 19, em Viena, com os filhos que sua assistente
teve de um primeiro casamento. Uma família homoparental avant la lettre!
Freud (1919/1989), que havia analisado a jovem Arma - como se sabe, é um
dos casos de mulheres que lhe permite estudar a fantasia - Espanca-se uma
criança - , aceitará essa relação sem muito preconceito.
As verdadeiras divergências são levantadas em relação à diferença de
abordagens no que concerne à sexualidade. Ali onde para os autores queer a
sexualidade se encontra absorvida cõmpletamente pela prática sexual, prá-
tica que permite fundar identidades por fora das categorias estabelecidas de
homens/mulheres, para a psicanálise o sexual implica um real impossível de
simbolizar e, por essa razão, irredutível a qualquer representação ou identifi-
cação. Isso não impede que a psicanálise considere que a sexualidade mobilize
o conjunto do ser do sujeito na hora de nomear-se sexual e sexuado.
Outra falsa divergência ainda supõe que a análise permaneceu no estágio
de reduzir o conjunto da experiência sexual ao Falo e em articular completa-
mente o desejo a este significante central que é o Nome-do-Pai nos primeiros
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 21

anos do ensino de Lacan. A crítica dos autores queer se concentra no falocen-


trismo da teoria analítica, presente na obra de Sigmund Freud e no ensino de
Jacques Lacan, crítica que não é nova: as analistas da primeira geração, como
Hélene Deutsch, Karen Homey, ou ainda Emest J ones e as feministas das
sucessivas ondas ao longo do século XX já haviam denunciado isso com certa
razão. Freud não deixou em sua teorização nenhuma especificidade quanto
à posição feminina, absorvida completamente pelo penis-neid e a equação
criança= Falo, bem como na resignação ou renúncia aconselhada pelo pai
da Psicanálise a não possui-lo.
O Lacan dos primeiros Seminários retoma a questão, instituindo-a com
o ensino de Ferdinand de Saussure em termos de «significante fálico» com a
formalização que a Linguística permite. Ele dividirá esse significante fálico
em duas posições de semblante, de sê-lo ou tê-lo, em posições que atribuem
ao sujeito uma certa paródia porque se envolvem em uma encenação. Sabe-se
que Judith Butler aplaude o que parece ser uma antecipação da paródia e a per-
formatividade de gênero, e assim o escreve em Problemas de gênero (2003),
em seu comentário ao texto de Joan Riviere, «Womanliness as a mascarade».
Que a feminilidade decai em uma mascarada, ou a masculinidade em
outra que imita a impostura fálica, não diz outra coisa a não ser que os sexos
declinam em um semblante, e aqui Butler abandona Lacan em uma iteração
dos estereótipos de gênero. Já no Seminário 6, O desejo e sua interpretação,
Lacan (1958-1959/2016) sublinhou o quanto o Édipo não é a solução única
do desejo, «mas sua forma normatizada pelo Nome-do-Pai, e que essa forma
não esgota o desejo». Entende-se, a partir daqui, porque Lacan fará um elogio
à perversão no final desse Seminário, por ocasião da publicação de Lolita,
do genial Vladimir Nabokov, destacando seu valor de prõtesto em relação às
normas estabelecidas. Mais tarde, Lacan diverge ao interpretar o equívoco
da «normâle», a «norma-masculino» a propósito do significante fálico, justa-
mente, buscando logificar com os quantificadores lógicos a posição feminina.
É verdade que Lacan dirá coisas infelizes sobre homens homossexuais
no Seminário 5, As formações do inconsciente (l 957-1958/1999), coisas que
já são conhecidas, como, por exemplo, que «os homossexuais são doentes que
devemos curam. Mas, em sua defesa, devemos evocar que Lacan era o único
analista que aceitava receber e analisar sujeitos homossexuais na Paris dos
anos 50, aos quais eram recusados os divãs, já que os analistas da I.P.A. os
consideravam perversos. E Lacan não os tomava em análise certamente para
«normalizá-los» e pô-los na via straight, ou ainda menos para se passar por
um analista gay friendly . Podemos ver a prova disso em um espírito iluminado
como o de Jean Beaufret, um dos filósofos introdutores da obra de Heidegger
na França, que não teria ficado mais de duas sessões em análise se Lacan não
tivesse mostrado uma escuta suficientemente ampla.
22

Mas concordo aqui com o espírito das criticas que Javier Saéz (2004)
dirige às escolas lacanianas, quando afirma em seu livro fundamental para
essas questões, Teoria queer y Psicoanalisis, que, se os lacanianos se inte-
ressam de agora em diante pelos homossexuais em um espírito de abertura,
o fazem mais para estar de acordo com a época, que dá progressivamente
mais espaço à homossexualidade, do que porque tenham elaborado um ver-
dadeiro trabalho de doutrina que lhes permita entender, por exemplo, porque
a homossexualidade não é necessariamente uma perversão. Basta ver quantos
analistas se declaram homossexuais nas escolas de psicanálise para apreciar
o caminho ainda a percorrer.
Para além dessa formalização, Lacan vai operar duas transformações que
destituíram a primazia fálica e o lugar central acordado ao Nome-do-Pai a par-
tir dos anos 70 no Seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-1970/1992).
Ele procederá a uma crítica a Totem e tabu enquanto mito fundador da civi-
lização e ao complexo de Édipo como estrutura central da organização do
desejo de um sujeito. Ele lhes dará um caráter de semblante, de versão fic-
cional para dar conta de um real: a articulação de uma perda de gozo, de uma
satisfação fundamental para o sujeito. Interpretará o complexo central da
teoria psicanalítica como um «sonho de Freud» (p. 134) de preservar o lugar
do Pai, acreditando-lhe o estatuto de «Pai da horda primitiva». Se Freud deu
tanto espaço a esse Pai mítico, que ele constrói, foi para fundar com esse mito
moderno - «o único mito criado na Modernidade», afirmará Claude Lévi-S-
trauss (1908/1982)- a perda do acesso à satisfação que o sujeito atribui como
existente a um Outro. Lacan recorrerá à segunda lei da Termodinâmica para
explicar a perda de gozo presente na compulsão à repetição e inscreverá as
grandes construções freudianas como um meio para traduzir na teoria uma
versão real dessa perda.
O complexo de Édipo já não será mais a única construção que dê uma
articulação ao desejo: os nós borromeanos, alguns anos mais tarde, virão res-
ponder a esse vazio deixado pelo abandono por Lacan do complexo central
das neuroses. Como Jacques-Alain Miller disse há alguns anos em um Coló-
quio das Seções Clínicas em Montpellier, Lacan teria escrito o Anti-Édipo no
seminário O avesso da psicanálise alguns anos antes que Deleuze e Guattari.
A absorção pelo falo do conjunto da experiência sexual, tal como Freud
o havia formulado e Lacan retomado desde seus primeiros seminários, dará
lugar ao Outro gozo no Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973 /2008) como
resposta também às críticas formuladas pelo Movimento pela Libertação das
Mulheres. Lacan reconhecerá, pela primeira vez na história da psicanálise e
contra a teorização freudiana, uma posição sexuada especificamente feminina
por fora do significante fálico . Ali onde as leituras feministas até essa época
buscavam encontrar uma posição para a feminilidade, frequentemente caindo
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 23

no impasse do falicismo, ou saindo completamente dele, como o fará Luce


Irigaray (1979) em sua teoria, formulando Ce sexe qui n 'est pas un, Lacan
será o primeiro a reconhecer um campo conexo ao falicismo, que se abre ao
mesmo tempo ao infinito, específico à posição feminina, ali onde o Universal
fálico encerra uma mulher em um conjunto fechado. Daí em diante a teoria
psicanalítica poderá reconhecer em uma boa parte dos seres falantes os arran-
jos feitos com a sexualidade sem enviá-los à medida fálica.

O gozo é q ueer

Recordemos que a teoria queer nomeia todo comportamento e identidade


sexual por fora da ordem normativa heterossexual. Desse modo, as comuni-
dades agrupadas sob o rótulo gay e lésbica se encontram estigmatizadas como
inscritas ainda na ordem que toma válida a lógica binária presente na heteros-
sexualidade. As identidades queer se propõem romper essa ordem, invertendo
o qualificativo queer (raro, bizarro), contra aqueles que os estigmatizavam
utilizando esse termo. Inscrever a psicanálise nessa ordem heteronormativa
participa de um enorme mal entendido, mas de uma "ignorância decidida"
e "consentida". Imputar à psicanálise tomar-se a garantia dessa ordem nor-
mativa, buscando preservar a diferença sexual e a ler todo fenômeno que se
apresente na clínica sob essa grade, não é mais do que projetar um princípio
de ordem ideológica, querendo fazê-lo existir ali onde ele não se encontra,
para preservar, no fundo, o princípio de um bom modo de gozo.
«Sexuality only means queer sexuality»4, enuncia Eve Kosofsky Sed-
gwick, que Anne-Emmanuelle Berger (2013) cita em Le grand théâtre du
genre: leio essa proposição como uma atualização, no final do século XX,
do «perverso polimorfo freudiano» (FREUD, 1905/1989). A sexualidade é
queer ou não existe. Freud poderia ter subscrito essa proposição. Lacan o
fez, afirmando que «o ser sexuado se autoriza de si mesmo» 5 , o que implica
que nem a «norma-masculina», a "normâle" 6, nem a «norma-feminina», que
situaria o gozo todo do lado não-fálico, e sem limites, então, mas que essa
orientação implica uma reação de invenção ao sexo.
Em uma lista não exaustiva que busca enumerar a variedade de gozos
sexuais, Eve Kosofsky Sedgwick ( 1998) estabelece em seu artigo «Construire
des significations queer» os seguintes: «maricas mistices», «fantasmadores»,
"drag queens ", "drag kings ", «clones», «leather», «mujeres en smoking»,
«mujeres ferneninas», «mujeres feministas», «divas», «snaps», «daddys»,
«camioneras», «locas», «homens que se definem como lésbicos», «lésbicas

4 Sexualidade apenas significa sexualidade queer. (NT)


5 Em seu seminário R.S.I (1974-1975) na lição de 9 de abril de 1974. Inédito.
6 Equívoco en francês entre norma e norma-macho.
24

que dormem com homens». Essa lista não exaustiva tenta dar um panorama
geral do que é a sexualidade em sua diversidadee não reduzida a um binarismo,
que se inscreve na norma heterossexual, straight, ainda quando esta seja
defendida por vários grupos de associações gays. Essa lista, no fundo , lembra
a enumeração heteróclita que Jorge Luís Borges (2010) faz em sua célebre
<<Enciclopédia Chinesa», na «Língua analítica de John Wilkins», retomado por
Michel F oucault em seu prólogo de As palavras e as coisas (2002), no qual
classificava os animais em: a) Pertencentes ao Imperador, b) Embalsamados,
c) Domesticados, d) Leitões, e) Sereias, f) Fabulosos, g) Cães em liberdade,
h) Incluídos nesta classificação, i) Que se agitam como loucos, j) Inumeráveis,
k) Desenhados com um fino pincel de pelos de camelo, 1) Etcetera, m) Que
acaba de romper a crosta, n) Que de longe parecem moscas.
O que essa lista nomeia é a série de arranjos com a sexualidade por fora
do binarismo homem/mulher. Arranjos já que a sexualidade não supõe nem
para Kosofsky Sedgwick, nem para a psicanálise tampouco, uma posição
sexual prévia para o ser sexuado. Dou aqui como «arranjo» todo o relevo que
Lévi-Strauss lhe dá em O pensamento selvagem (1908/ 1989).
Pode-se opor a essa crítica pelo menos dois termos que têm valor axio-
mático na abordagem psicanalítica da sexualidade: a pulsão e a constatação
lacaniana da inexistência de relação sexual que possa ser escrita.
O conceito de pulsão, tal como Freud o introduz, implica a ausência de
um objeto predeterminado à sexualidade. Se no vir a ser biográfico de um
sujeito a pulsão se fixa em um objeto, ela o faz através de encontros con-
tingentes que a fantasia do sujeito se encarregará logo de fazer necessário
e sobretudo de fixá-lo . Esse é um ponto fundamental que Freud fez valer
desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, pelo fato de constituir
uma temporalidade específica da sexualidade humana. Temporalidade que
divide Freud nesse texto entre a infância (primeiro momento) e a puberdade
(segundo momento). Vamos ler Freud: «É provável que, de início, a pulsão
sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos
encantos deste» (FREUD, 1905/1989, p. 139).
Em um texto posterior, «As Pulsões e seus destinos (1915/2013)», Freud
situa quatro elementos que fazem parte da Pulsão: seu «empuxo» (Drang),
o objeto, a satisfação e a fonte. Para diferenciar claramente a Pulsão de toda
noção de instinto animal, Freud avança sobre o quanto o objeto é indeter-
minado no nível da pulsão e se ele se fixa em um momento determinado da
história do sujeito, podendo muito bem, a partir da sublimação, alcançar metas
muito diferentes das primeiras. Elemento importante, a satisfação da pulsão
não é obtida do objeto ao qual se fixa, mas a partir de seu caminho autoerótico,
não estando o objeto, nessa rota, em um relé que permita essa satisfação. É
necessário, verdadeiramente, um enorme forçamento de leitura para encontrar
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 25

nesses termos uma inclinação do desejo ao sexo oposto ou ainda ao mesmo


sexo, já que a pulsão é parcial em seu caminho e não se satisfaz com isso: é
essencialmente autoerótica.
Tim Dean (2006), um autor muito bom, foi talvez um dos primeiros e
mais hábeis por ter sabido ler os autores queer à luz do ensino de Lacan no
mundo anglo-saxão. Ele sublinha quanto o conceito de Pulsão em sua relação
com a independência do objeto não permite de nenhum modo avançar que a
psicanálise proponha uma tendência heterossexuada ao desejo sexual, e faz
valer o quanto Freud, com sua criança «perversa polimorfa», mais do que
Michel Foucault, foi o verdadeiro precursor intelectual dos «estudos queer».
Dean avança sobre o quanto a teoria lacaniana do objeto (a) desheterosse-
xualiza o desejo, já que este, em seu estatuto de objeto causa do desejo, é
parcial e, por essa razão, desapegado de todo caráter masculino ou feminino.
Se o desejo é construído na relação com o objeto perdido, tal como Freud
escreveu em seu - Três ensaios, o desejo se encontra desconectado de todo
substrato anatômico ou biológico ou, por consequência, essencialista. Nesse
sentido, «a anatomia não é o destino», para parafrasear o grande Imperador
citado por Freud e é apenas numa leitura forçada que se pode encontrar em
Freud o fundamento de um substrato biológico ao que se particulariza da
maneira mais radical na experiência humana, como o é o desejo. Se a psica-
nálise não é essencialista, então não o é tampouco culturalista: não supõe que
o sexual se encontre estruturado univocamente a partir do discurso, como o
entendia Foucaulti por exemplo, e um conjunto importante de autores queer
que se orientam por sua obra. Se a pulsão se encontra submetida às variações
culturais que cada época determina, se em nível oral ou escópico existem
determinações inegáveis vindas do outro social, se existe-um modelo na rela-
ção de um ser falante a um objeto que determina a maneira de ver e o que
se vê, ou a relaciona à comida, por exemplo, há que considerar também que
o objeto da pulsão ocupa um estatuto de real e que por essa razão é irredu-
tível a toda determinação simbólica ou, para dizê-lo como Foucault, a toda
determinação discursiva. Se é permeável às variações da Cultura, permanece
invariável porque seu estatuto é precisamente o de estar «fora do discurso».
A pulsão é o eco no corpo pelo fato de haver «um dizem, e esse eco é irredu-
tível à noção de discurso, mesmo que possa ser ouvida nessa bela definição
de Lacan a presença do discurso no «dizem, ou seja, no lugar da enunciação.
Mas os efeitos do discurso são reais, isto é, inexoráveis, inevitáveis.
Quanto ao axioma «Não existe relação sexual» que possa ser escrita,
temos que, em primeiro lugar, assinalar que toda proposição que começa
por «Não existe» ou «Existe», em Lacan possui um valor universal. O que
esse axioma diz então? Que, no nível da sexualidade, não existe nenhum
acordo possível entre o sujeito e o objeto, que sendo cuidadoso, constitui
26

uma consequência direta da ausência de toda relação predeterminada entre a


pulsão e qualquer objeto. Acordo ou arranjo é a palavra que melhor corres-
ponde ao nomear o que apresenta de maneira estrutural como um desarranjo
profundo e inultrapassável.
Seria importante também lembrar aqui que essa ausência de relação
sexual concerne não apenas ao laço do sujeito ao parceiro, como também ao
laço do sujeito à sua própria identidade sexual e sexuada. Se a relação que
o liga ao tipo ideal de seu sexo não se pode escrever, é porque através das
identificações ou das performances que correspondem ao tipo de seu sexo
ou de seu gênero, apesar da mascarada ou da impostura, encontramos aqui
as duas posições que Lacan atribui à mulher e ao homem e que os coloca em
relação aos comportamentos típicos de seu gênero, nada assegura, nenhuma
escrita assegura o laço que o relacionaria a seu sexo. Constitui uma paródia
«performativa», para retornar aqui o termo de Judith Butler, uma paródia mais
ou menos adaptada. Mas no fundo, o que a experiência da análise coloca em
evidência é que os sujeitos não sabem como se comportar enquanto homens
ou mulheres. No fundo, sempre fazem semblante, de maneira mais ou menos
adaptada, e com um êxito discutível. E são eles mesmos os primeiros a con-
fessá-lo . De fato, então, a paródia que Butler incentivava em Problemas de
gênero (2003) se revela ser estrutural.
O encontro com um parceiro não atribui um sujeito a nenhum sexo:
pode inclusive abrir uma verdadeira pergunta acerca do que significa encon-
trar-se atribuído a um papel de sexo ou de gênero. Toda suspeita de essen-
cialismo a respeito da psicanálise vem abaixo diante dessa incapacidade de
escrever a relação sexual.
Mas, como apontávamos acima, não se inscreve tampouco numa perfor-
matividade que poderia ser completamente declinada no semblante ou na paró-
dia, como escrevia Butler em seu primeiro livro. Existe um real na maneira de
habitar o sexo para cada ser falante que o impede de tratar seu corpo sexuado
corno podendo encontrar-se liberado à plasticidade das transformações que
poderiam infringi-lo. Se o sujeito travesti pode buscar suscitar a intriga no que
diz respeito a levar ou não o órgão chamado fálico, o sujeito trans responde
melhor às exigências do gozo e à certeza de seu pertencimento a um sexo ou
outro, ou ainda ao seu não-pertencimento a nenhum sexo existente quando
se trata da não-definição (non-speófied sex).
Nesse único caso pode se dizer que o sujeito parece responder a essa
impossibilidade de escrita da não-relação sexual através de urna exceção, já
que parece encarnar a possibilidade de encontrar uma escrita para esse fato de
estrutura. O caráter da proposição universal parece aqui borrar-se e encontrar,
pelo forçamento que a ingestão de hormônios e o recurso à cirurgia permitem,
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 27

uma suspensão da premissa universal. Quando escrevemos «forçamento» aqui,


seguimos a análise muito justa que Paul Preciado faz em seu livro-testemu-
nho Testo Junkie (2018) de sua recusa de corresponder justamente ao que a
Ciência e a Lei permitem hoje como alienação para a classe «transexual»,
determinado pelo que esse autor chama de «regime farmacopornográ:fico-le-
gal», que denuncia no mesmo livro.
Inverter o argumento da alienação para separar-se dela não exime o
sujeito de dever passar pelos protocolos hormonais, cirúrgicos e legais para
uma redesignação de gênero.

A influência de Michel Foucault: prazer ou gozo?

Em seus trabalhos, Tim Dean (2006) valoriza o que chama «o erro indu-
zido por Michel Foucault» no que concerne à orientação que tem sido adotada
pelos principais textos de autores de teorias de gênero. Em que consiste esse
erro? É a partir da História da sexualidade por ter acentuado o prazer em
detrimento do gozo, tal como o entende Lacan, ou seja, como um ilimitado
que desborda o limite que o Princípio de prazer impõe ao desejo. O prazer
ou os prazeres, tal como F oucault o aborda a partir do termo aphrodisia na
Antiguidade, supõe uma harmonia que se abre para uma posição hedonista
que cria a ilusão da possibilidade de conciliar o sujeito com a tensão que
supõe o desejo. Essa temática foi largamente abordada por Freud em seus
escritos, desde o <<Projeto para uma psicologia cientifica (1895/1989)» até
«Além do principio de prazer (1920/1989)», com a projeção que a virada dos
anos 1920 iniciou a partir da introdução da Pulsão de morte, até o postulado de
um «Mal-estar na civilização (1929/1989)», irredutível, próprio à experiência
do ser falante e a sua maneira de habitar a linguagem.
A abordagem foucaultiana se situa para Tim Dean aquém dessa zona que
a compulsão à repetição e Tanatos instituem, verificando desse modo, como
o faz Lacan, que o prazer constitui uma barreira ao gozo. Em sua teorização,
Foucault não franqueia essa barreira, limitando-se a explorar as transfor-
mações históricas e discursivas às quais foi submetida a antiga aphrodisia.
Nessa abordagem, não existe negatividade, seja na própria concepção de
prazer, deixando Foucault de lado tudo o que pode escapar ao princípio de
prazer. O Inconsciente e a Pulsão de morte, especialmente. Mas no devenir
histórico também da noção de prazer não existe tampouco na teorização de
Foucault corte nenhum: o autor aborda os discursos como sendo contínuos,
uns sucedem-se aos outros, sem situar na História os cortes existentes. Sem
situar tampouco experiências de prazer que pudessem ter se apagado ou não
retomadas em experiências ulteriores. Pensemos nesse meteoro que foi o amor
28

cortês, por exemplo: nada sucedeu a essa prática historicamente e geografica-


mente localizada. Ou ainda, o movimento das Preciosas7, embora se tratasse
principalmente de uma experiência de palavra interessada na sexualidade.
São as transformações discursivas que mantêm o interesse de Foucault,
provavelmente como o destaca Dean, porque permitem seguir as mutações
que no nível do poder permitiram exercer. Não deixa de ser estimulante pensar
que nos mesmos anos 1970 nos quais Lacan articulava em seus seminários a
relação complexa do ser de palavra ao gozo, Foucault inaugurava no College
de France o vasto projeto da História da sexualidade, focando-se quase exclu-
sivamente em «O uso dos prazeres (1984/2006)». Devemos observar também,
como o fez com fineza Tim Dean, que «A vontade de saber (1976/1999)», sub-
título do primeiro volume, situa em primeiro lugar o problema da sexualidade
no domínio do saber em uma relação epistemofilica na qual se poderá aceder
enfim a um saber sobre a sexualidade. O que não é em si falso: a psicanálise,
desde Freud, se encontra voltada para esse saber, como plano fundamental
de que a relação com o sexual se encontra para Lacan inscrita no registro do
Real, e por essa razão marcada pelo selo de um impossível saber, inclusive
pela recusa do saber.
Mas essa posição veicula também uma utopia, e precisamente essa utopia
será retomada pelos autores queer: a utopia de uma boa relação sexual que a
noção de prazer veste. Uma reconciliação com o real do gozo representada
pela sexualidade, reduzido por Foucault à noção de prazer. Sobre o que se
apoia essa utopia? Certamente sobre a ideia de que existe um bom gozo, não
muito longe do que tematizavam os marxistas freudianos (H. Marcuse, W.
Reich, E. Fromm). Lacan os evoca em «Televisão» (1973-, p. 528) respon-
dendo a Jacques-Alain Miller quando lhe pergunta: «Há um boato que corre:
se gozamos tão mal, é porque existe uma repressão do sexo, e a culpa disso
é, primeiro, da família, segundo, da sociedade, e particularmente do capita-
lismo». Longe de Marx e dos filósofos marxistas, Foucault se interessara pelas
formas que o poder tem tomado através da sexualidade, certamente não para
tentar mudar a sociedade, mas para retraçar a arqueologia dos dispositivos de
saber/poder. A redução de seu interesse pela noção de prazer teria induzido,
segundo Dean, os autores dos estudos de gênero, nutridos pelafrench theory,
a assimilar esses dispositivos a dispositivos repressivos e alienantes dos quais
teria que se desfazer, interessando-se pela alienação particular que o gênero
e o sexo produziram enquanto normas, impondo esses dispositivos ao longo
da história do Ocidente.

7 Movimento das "Preciosas": Movimento literário das espirituosas e bem-educadas damas que freqüentavam
os salões da corte francesa, que surgiu das conversações e dos alegres jogos de linguagem para excluir
as palavras que evocavam o sexo.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 29

A utopia em questão implica também que se poderia abandoná-los,


invertendo a norma ou retomando-a sem se perceber que, procedendo dessa
maneira, recai-se em uma nova norma que dita: a cada um sua forma de pra-
zer e de identidade que o acompanha. Novas identidades para subverter as
antigas, as identidades «heteronormativas», sem observar que se permanece,
no entanto, no domínio das «identidades» e em consequência disso no terreno
da segregação. Enquanto se entra no terreno identitário, convocam-se formas
mais ou menos sutis de segregação: por que essas identidades seriam melhores
que as outras? A corrida exponencial de novas identidades, criadas a partir
de práticas sexuais que subvertiam o encontro normatizado entre um homem
e uma mulher, obriga necessariamente a um reconhecimento e a uma nova
consideração. O que por si não seria um problema se esse reconhecimento
não fosse feito em detrimento de outras identidades, ainda que não fosse mais
da velha identidade heterossexual.
O erro apontado por Dean em Foucault concerne também a uma forma
de reconciliação veiculada através do próprio movimento identitário: de agora
em diante um pode nomear-se mais «sapatão», leather, ou qualquer outro
nome que as práticas queer instauram, na medida em que essas práticas e
esses estilos de vida permitem promover uma nova identidade a partir de uma
prática sexual. Mas essa identidade reforça a dimensão da alienação, pois
permite não só fundar grupos de pares que compartilham a mesma prática
sexual, como também reforçar a identificação do sujeito consigo mesmo, sua
identidade então, fundada a partir de uma prática sexual particular.
Deve-se enfatizar que uma análise procede em sentido diametralmente
oposto: levando o sujeito a falar, convida-o a fazer a volta de suas identifi-
cações e de sua alienação ao Outro que o determina para separar-se dele. A
análise não busca reforçar a identidade sexual ou de gênero do sujeito. Uma
análise não propõe romper o espelho que permite a um sujeito reconhecer-se
como é, mas o leva mais a fazer uma volta do outro lado do espelho, do lado
do gozo que permite dar consistência à imagem que o sujeito reconhece no
espelho. Esse argumento bastaria para descartar as críticas dirigidas aos psi-
canalistas, imputando-lhes manter a ordem heteronormativa e dar garantia
da diferença sexual. De fato, Lacan falava em seu último ensino de «homens
e mulheres». Mas esses termos já faziam parte de seu ensino, os nomes de
modos de gozo particulares, inscritos no universal que o significante fálico
representa, ou do lado do infinito do gozo que escapa à captura fálica e à
linguagem, gozo suplementar que não se pode dizer. Mas Lacan não falará
nesses anos 70 da diferença sexual enquanto tal, e devemos assinalar que a
perspectiva do sinthoma borra de algum modo a fixidez da diferença sexual,
já que esta se encontra inscrita na e pela ordem simbólica. O significante
fálico é encontrado no enodamento entre Real, Simbólico e Imaginário, mas o
30

registro simbólico já não possui nenhum privilégio particular sobre os outros


dois. De fato, sem borrá-la completamente, a diferença sexual se encontrará
relegada a um segundo plano em relação aos arranjos que o ser falante faz
com o gozo, encontrando seu lugar no nó que permite o sinthoma. Mas temos
que lembrar que no nível do gozo não existe verdadeiramente diferença, pois
ela se sustenta em uma premissa simbólica que atribui um órgão ali onde se
percebe uma falta.
Nesses anos também é que Lacan dirá que «o ser sexual se autoriza de si
mesmo», acrescentando logo, «e de alguns outros».8 Autorizar-se de si mesmo
implica todo franqueamento de uma determinação por um Outro, seja este a
norma, a lei ou ainda e sobretudo a anatomia. Embora ele acrescente «e de
alguns outros» para evocar quanto o desejo do Outro vem marcar nossa rela-
ção com o corpo sexuado: o fato de que o Outro nos tenha desejado homem,
mulher ou que não tenha tido nenhum desejo em particular em relação a nós.
Essa proposição basta para mim para pôr em questão qualquer suspeita de
inscrição do ser falante em uma ordem simbólica heteronormativa que muitos
dos autores que citamos atribuem à psicanálise.

Para concluir

Não é certo que esse apoio sobre o princípio de prazer e essa promoção
identitária a partir de modos de gozo sexual, não leve certas teorias queer
a adotar uma posição ideológica. Da mesma maneira que atribuir ao prazer
um lugar preferencial no funcionamento do psiquismo conduz ao hedonismo
como perspectiva que exclui tudo o que concerne ao do~ínio da Pulsão de
morte e do negativo ali presente. Se, seguindo Tim Dean, falamos de posi-
ção utópica, é justamente porque sua leitura da obra de Foucault o levou
a acreditar que bastaria eliminar as barreiras externas da satisfação sexual
para que se chegasse a uma plena satisfação, desconhecendo completamente
a impossibilidade profunda do desejo (e não do prazer) de poder encontrar
uma satisfação. Ignorando também as complicações que Tanatos inflige à
obtenção mesma do prazer. No fundo, pode-se deduzir dessa proposição que
só a consideração ao gozo impede todo saber de cair na ideologia, pois o gozo
não pode ser confessado. Quando é capturado pela significação fálica, pode
encontrar um significante como representante, mas o verdadeiro gozo que é
o Outro gozo, o gozo feminino que escapa ao significante fálico , carece de
significante para tratá-lo.
«O conceito lacaniano de gozo poderia ser extremamente útil à aná-
lise queer» escreve Tim Dean fazendo o saldo do quanto as teorias queer

8 Em seu seminário R.S.I. (1974-1975) na lição de 9 de abril de 1974. Inédito


PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 31

norte-americanas foram induzidas ao erro pela definição foucaultiana de pra-


zer. E acrescenta: «a única maneira de lutar eficazmente contra a ingenuidade
dos discursos políticos e culturais em matéria de sexo consistiria em refor-
mular estes mesmos discursos do ponto de vista da psicanálise». Se é difícil
fazer os políticos se interessarem pela formalização dos discursos aos quais
Lacan procede, parece bem, ao contrário, como as reivindicações sociais e
políticas das Culturas queer poderiam encontrar nos conceitos da psicanálise
um apoio para esclarecer melhor suas demandas. Se a reivindicação identi-
tária se faz em nome de um significante mestre que procura se fazer ouvir na
corrida generalizada das minorias identitárias pelo reconhecimento, o poder
do alcance é muito mais limitado que assumindo completamente a dimensão
radical e irredutivelmente Outra da queerness, do raro ou do bizarro. E, à
maneira dos artistas que não reivindicam nenhuma outra identidade senão
aquela que se produz com o arranjo próprio de cada um e de seu produto,
apenas uma diferença verdadeira a fazer reconhecer pelo Outro social. Outro
social, devemos lembrar, que se encontra em decomposição acelerada. Esse
movimento inspirado nos artistas se apoia não na particularidade do gozo
sexual, erguido em significante mestre, mas sobre uma identidade sinthomal,
e supõe uma verdadeira subversão de todas as outras identidades que buscam
fazer-se escutar hoje, porque se encontra fundado sobre o que o ser falante
consegue fazer com o vazio fundamental que o habita.
32

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34

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PRECIADO, P. B. Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na era farmaco-


pomográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018

RUBIN, G. The traffic in women. ln: RUBIN, G. Deviations: The Gayle


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SAÉZ, J. Teoria queer y Psicoanalisis. Madrid: Ed. Sintesis, 2004.


CAPÍTULO 2

DESPATOLOGIZAR A
TRANSEXUALIDADE
Fabián Fajnwaks 9

Se escolhi falar da transexualidade é porque ela nos obriga a interrogar o


termo «psicopatologia lacaniana» que nos reúne neste Colóquio. Eu sei que os
organizadores não escolheram esse termo sem levar em conta a precaução e a
distância que se pode ter com a palavra «psicopatologia» quando se pratica a
psicanálise orientada pelo ensino de Jacques Lacan. Há quase uma contradição
entre as palavras, como dizem os lógicos: falar de psicopatologia lacaniana é
não aceitarmos essa dupla, pois o ensino de Lacan não nos autoriza falar de
«psicopatologia» quando se trata de acolher, como o fazemos em análise, o
mais íntimo e central do ser falante.
Aceitamos essa dupla de «psicopatologia lacaniana» porque permite
inverter toda a dimensão normativa que o termo «psicopatologia» implica.
Freud (1901/1989) inaugurou essa perspectiva, ao falar da «psicopatologia
da vida cotidiana», para demonstrar que a dimensão do sintoma implica a
existência da psicopatologia nos lapsos e atos falhos, que são escutados de
forma diferente quando levamos em conta o ponto de vista do inconsciente.
Lacan interrogou, seguindo os trabalhos de Georges Canguilhem
(1943/2010), a oposição entre o normal e o patológico, bem-como permitiu
colocar em questão o Complexo mais central da teoria psicanalítica para
afastar toda perspectiva normativa que a norma edipiana enseja.
Falarei do sujeito «trans» e não do «transexual», para deixar aberta a
possibilidade de abordar os casos de transgênero, mas também para encerrar
toda dimensão patológica que o termo transexual e «transexualismo» repre-
sentou no passado. Catherine Millot (1984) intitulou um de seus primeiros
ensaios sobre esse tema, no começo dos anos 80, como Exsexo: ensayo sobre
el transexualismo. Nesse trabalho, o uso do termo transexualismo deixava
escutar uma certa patologização da questão com o sufixo «ismo». A aborda-
gem que ela fazia se encontrava, apesar da fineza de Catherine Millot, carre-
gada de certo preconceito por fazer do sujeito transexual alguém que, por se
situar fora da lógica fálica, incorria em um erro pelo fato, como indica Lacan
(1971-1972/2012, p. 17), de «tomar o significante fálico por um significado»,

9 Professor Doutor na Université Paris 8 e Membro da École de la Cause Freudienne/AMP (Paris-França).


36

como se um ser falante devesse necessariamente colocar-se do lado fálico da


sexuação. Lacan assinalava isso no Seminário 19, ... ou pior, comentando os
casos de Robert Stoller ( 1968), que, como sabem, foi o primeiro a diferenciar
o sexo do gênero em seu livro Sex and gender.
Catherine Millot em seu livro já sublinhava o quanto a questão trans foi
possível pelo desenvolvimento cada vez mais afinado da cirugia: neste ponto,
a medicina é wn parceiro privilegiado e primeiro na experiência «trans». Cer-
tamente, não é sempre o melhor parceiro, porque as exigências dos protocolos
de redesignação do sexo são frequentemente muito rígidos - o sujeito deve
provar aos psiquiatras e psicólogos que o entrevistam que não delira e que
não é psicótico. Um novo parceiro se adicionou faz alguns anos, parceiro mais
respeitoso, em geral, que o parceiro médico: a lei, o sistema jurídico, que,
segundo os países, reconhecem ou não a possibilidade de mudança de sexo
de acordo com a demanda em questão. O jurídico aqui é sensível à singula-
ridade das demandas, e, quando wn juiz deve intervir, se pode muitas vezes
verificar a sensibilidade ao singular da demanda. Seguramente, é um triunfo
indireto da existência da psicanálise na civilização ter conseguido fazer passar
ao jurídico wna sensibilidade à singularidade da demanda. O jurídico segue
aqui a medicina, adaptando-se aos progressos e validando-os, e o movimento
se dá nesse sentido preciso.
O sujeito «trans» obriga não somente o psicanalista a abandonar todos
os seus preconceitos, como Jacques-Alain Miller (2003) falava, faz alguns
anos, no Colóquio Des Gays en analyse? a respeito da homossexualidade.
Mas a questão «trans» obriga a repensar wna boa parte da teoria psicanalítica,
sobretudo no que concerne aos arranjos do ser falante com o gozo, tal como
o último e ultimíssimo ensino de Jacques Lacan permite abordá-lo. Nesse
sentido, a questão «trans» é uma questão que interroga a teoria analítica, que
permite lê-la a «contrejour», ao avesso, e examinar se ela é deprovida verda-
deiramente de toda abordagem normativa. A questão «trans» nos permite ler
de outra maneira, contrária à perspectiva de que a psicanálise se tomaria um
vetor da ideologia edipiana e conservadora, querendo ajustar o sujeito ao gozo
que corresponderia ao tipo ideal do seu sexo, seja esse tipo ideal lacaniano.
O título deste texto, "Despatologizar a transexualidade", foi inspirado
no escrito de Judith Butler "Desdiagnosticar o gênero". Nesse artigo de 2004,
publicado em francês numa reunião de textos que leva como título Défaire !e
genre 10 (2006), «desfazer» ressoa com a desconstrução derrideana, descons-
truir o gênero, em que Butler se interroga sobre a necessidade e a pertinên-
cia de se retirar a «disforia sexual» (nome com que a questão da mudança
de gênero estava presente) do DSM-IV. Para os membros da comunidade

1O Desfazer o gênero.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 37

LGBTQI que reivindicam mantê-lo no Manual Diagnóstico e Estatístico


de Transtornos Mentais (DSM), esse diagnóstico permite autentificar urna
patologia e facilitar o acesso aos meios médicos e tecnológicos para operar
uma transição. Sobretudo, porque muitas companhias de seguro dos Estados
Unidos não reembolsam uma parte dos custos que o tratamento hormonal e
as intervenções cirúrgicas supõem, a não ser que esteja estabelecido que essas
mudanças de sexo impliquem uma necessidade médica.
Como vocês sabem, a «disforia sexual» do DSM-IV tornou-se, na última
versão do DSM-V, uma «disforia de gênero», para acentuar a dor da pessoa
transgênero frente ao sentimento de inadequação entre seu sexo designado e
sua identidade de gênero. As expressões «transexualismo» ou «incongruên-
cia do gênero» foram utilizadas e depois afastadas nas sucessivas edições
desse manual da Associação Psiquiátrica Americana (APA), para não indicar
a dimensão de patologia, justamente o que o sufixo «ismo» implica no «tran-
sexualismo», a dimensão normativa que a «incongruência» supõe. Desde a
última edição do DSM em 2013, a APA insiste frente à ação das associações
LGBTQI: «a não conformidade do gênero não é o mesmo que um transtorno
mental. E que o que caracteriza a disforia de gênero é a presença de um sofri-
mento psíquico associado a não conformidade do gênero».
A questão diagnóstica que Butler discute nesse artigo pode ter corno
consequência a patologização da vivência «trans», especialmente quando o
sujeito se encontra confrontado, como é o caso muito frequentemente, com
médicos transfóbicos. Ela discute então o interesse em se guardar esses ter-
mos no marco de uma patologia para poder beneficiar-se dos protocolos de
mudança de redesignação de gênero e de sexo. O que não é-a mesma coisa,
e discutiremos adiante como a lei segue essas mutações.

Do lado de Lacan

Existe uma tensão entre a psicanálise lacaniana e os sujeitos trans. Lacan


abordava a transexualidade a partir da lógica fálica, falando do erro que conduz
o sujeito trans a tomar o significante fálico pelo significado e querer então
suprimi-lo. Isso determinou que durante muito tempo se abordasse sistemati-
camente a transexualidade como urna forma de psicose em que a significação
fálica estava reduzida a zero por esse erro. Há que se assinalar que não é
sempre que o sujeito demanda a castração real. Encontrei, há muitos anos, um
sujeito que se apresentava como transgênero, e que me explicava que ele não
precisava passar pela cirurgia, porque na verdade se sentia mulher sem ter que
suprimir o pênis. É certo que em algumas sessões me explicou que quando
adolescente se olhava no espelho e que várias vezes não via o órgão masculino
38

e que tinha o que os psiquiatras chamam uma alucinação negativa (isto é, a


ausência do órgão). Essa percepção alucinatória do corpo, que afirmou não ter
mais agora, já sendo adulto, lhe permitiu evitar a intervenção. Nesse caso, o
significante não funcionava como significado porque a certeza de ser mulher
era mais forte que a necessidade de ter que se fazer operar.
Penso que, da mesma maneira que durante muito tempo os analistas
rejeitaram analisar os sujeitos homossexuais porque acreditavam que eram
todos perversos, não se pode hoje suspeitar de psicose em todos os sujeitos
trans que incorrem nesse erro que Lacan assinalava.
Quando se lê os últimos seminários de Lacan, surpreende-se talvez
que ele fale de «homens» e «mulheres». Esses termos correspondem a uma
modalidade de gozo: um que encontra no significante fálico sua medida, e
o outro, que excede o limite que o falo impõe, e que se apresenta como um
suplemento, um «a mais» ao gozo fálico. Quero dizer do Lacan do Semi-
nário 20, Mais, ainda (1972-1973/2008), onde ele reparte os gozos como
gozo masculino - todo absorvido pelo significante fálico, e gozo feminino
- como aquele que excede a medida fálica e coloca um não-todo fálico, um
suplemento de gozo sem limite. Nesse caso, teríamos uma norma lacaniana
que preconizaria corresponder a uma maneira ou outra do gozo, quando se é
homem ou mulher. Nada mais longe disso o que Lacan propõe com as fórmulas
do Seminário 20, sobretudo porque evocava que os místicos homens e ele
mesmo em seu Escritos se colocavam claramente do lado feminino. Sabemos
também que o lugar do analista como semblante de objeto é mais feminino,
para homems e mulheres.
Mas Lacan avança a partir das fórmulas da sexuação po Seminário 20,
onde encontramos duas modalidades de gozo estabelecidas para homems e
mulheres, até dizer dois anos mais tarde que «o ser sexuado se autoriza de si
mesmo[ ... ] e de alguns outros» (LACAN, 1973-1974, inédito). Autorizar-se
de si mesmo implica reconhecer que o ser sexuado não precisa procurar no
Outro sua nomeação sexual, mas que ele pode articular ele mesmo o modo de
gozo que vai defini-lo sexuado. De alguma maneira, essa definição nova do
ser sexuado implica centrar a sua relação com o gozo a partir do UM só, e já
não mais do Outro, como era o caso até esse momento no ensino de Lacan.
Recordemos que o falo é o Outro que o transmite, tanto do lado do pai para o
menino, porque a saída do Édipo permite ao menino de se identificar à posição
de ser que o leva, como para a menina, porque é o pai que o transmite sob a
forma da criança a vir. Aqui já não se trata de se nomear sexuado a partir do
Outro, mas do gozo do UM só e para isso o sujeito pode se autorizar no gozo
que o convém, mas também de alguns outros, agrega Lacan, porque existe
o registro civil, por exemplo, a maneira como esse sujeito foi significado
sexualmente em relação ao Outro social.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 39

O ser sexuado poderá então encontrar os arranjos com a sexualidade que


lhe convém na medida em que Lacan abre o foco da questão para além da
divisão gozo masculino / gozo feminino. Assim, cada um deverá encontrar
sua maneira de se nomear sexuado. Eu sublinho «se nomear» e não «se dizem
porque a sexualidade implica sempre uma dimensão real, que a nomeação
implica mais além do ato de se dizer sexuado num sentido ou noutro. Pode-
ríamos assinalar então que a via na solução que cada um encontra sob a forma
do sinthoma está aberta a partir daqui, para entender então a sexualidade
como sendo sempre sinthomática, e já não mais dividida no modo masculino
e feminino de ser sexuado.
Se chamamos a atenção para a sexualidade sinthomática que se desenha
a partir daqui isso implica uma resposta mais que uma pergunta, como foi o
caso nos primeiros seminários de Lacan, seja sob a forma histérica (o que é ser
mulher?) ou obsessiva. A forma positiva que caracteriza Lacan em seu último
ensino se declina aqui como as soluções que os seres sexuadas encontram
para se nomear sexuadas. A sexualidade será assim entendida não de maneira
negativa, como uma questão, como na obra de Freud e na primeira parte do
ensino de Lacan, mas será agora definida do lado das soluções encontradas
para lidar com o furo da sexualidade: de maneira positiva, então.
O Lacan dos anos 70 avançava que a loucura não era somente privilégio
do sujeito psicótico: que todo mundo delira na medida que não existe um
sentido do sentido. Que a promoção do fora de sentido que a consideração
do registro do real do gozo impõe nos faz a todos delirantes de certo modo,
e que a partir daí não se trata, de maneira evidente, de ajustar-se a nenhuma
norma, senão a saber como cada um encontra um «saber fazer» com essa
parte insensata que habita os seres falantes e que Lacan chamou «o gozo».
Neste ponto preciso a psicanálise não pode ser suspeita, "de nenhum modo, de
aderir a nenhuma norma, seja esta edípica ou ainda «hetero», como denunciam
Judith Butler e os «estudos de gênero». É somente por um forçamento que
ignora verdadeiramente o que acontece em uma análise lacaniana que se pode
denunciar sua adesão às normas sociais ou sexuais. Uma psicanálise leva um
sujeito a encontrar suas próprias soluções, as mais singulares, porque é ele
mesmo que as inventa e não correspondem a nenhuma outra. Ela não procura
impor nenhuma solução standard, nem no que concerne à sexuação, quer dizer
a relação do sujeito com seu próprio sexo, nem sobre a sexualidade, aquilo
que introduz um buraco na relação do sujeito ao mundo.

Um sujeito trans: a presença do órgão como


regulação da relação imaginária ao outro

Valérie veio ver-me faz alguns meses, enviada por um colega que é um
amigo próximo dela. Tem quarenta anos e está casada faz vinte anos. Tem
40

dois filhos adolescentes. É uma bela mulher, fina, delicada, feminina. Veste-se
com muito cuidado, e elege com o mesmo cuidado as palavras para expres-
sar-se. Aborda diretamente, uma vez sentada no consultório, o que a traz:
sente às vezes um pênis entre suas pernas. A violência dessas palavras, seu
caráter abrupto, contrasta fortemente com sua apresentação. Diz não senti-lo
em permanência, somente depois das brigas com seu marido, cada vez mais
frequentes. Relata haver pensado consultar um médico ou um sexólogo: mas
uma vez consultado seu amigo, este lhe aconselhou vir consultar-me. Per-
gunta-se se não será uma transexual e o que deveria fazer em consequência.
Valérie desenvolve, ainda na primeira sessão, as razões bastante banais
de conflito com seu marido: que não toma para si a organização de certas
tarefas domésticas; que não sabe às vezes falar com seus filhos (um menino
e um bebê) e colocar-lhes limites claros; que não sabe, enfim, tomar posição
frente a certas decisões no que concerne a seus filhos, que às vezes lhe falte
«b» ... 11 - acrescenta com um sorriso mais irritante que irônico, como para
sustentar o que está dizendo, indicando com esse sorriso que sabe perfeita-
mente o laço disso com o que a levou a me consultar e que não encontrara
melhor maneira de me dizer.
Valérie falou também nessa sessão que não havia sido sempre desse
modo, que esse marido, encontrado em sua juventude e que foi seu único
homem, era mais enérgico no começo. Era justamente esse seu lado firme e
viril que a havia atraído em seus primeiros encontros, mas também sua ternura
e assim ele se apresentou para ela como «o equilíbrio perfeito» que um homem
precisava ter, já que jamais suportou um verdadeiro «macho» e sua impostura
resolutamente viril. Mas com o tempo esse lado decidido havia deixado lugar a
um homem que se enternece de maneira progressiva e se furrde em uma suave
passividade, manifesta sobretudo nos momentos em que dele se esperaria
que fosse um verdadeiro homem que tomasse decisões. Não somente a irrita
ter que decidir em seu lugar, senão que isto lhe toca profundamente, sendo
o resultado dessa atitude a sensação bizarra que sente entre as pernas. Essas
palavras vêm como dar um ponto de estofo, um «point de capiton» ao que ela
havia desenvolvido nessa primeira sessão, e lhe proponho que voltássemos a
nos encontrar para explorar o que lhe acontece.
Ela compartilha com esse marido um ideal humanista e uma espécie
de sensibilidade ao outro, à alteridade, ao dom que os une. Quase como em
uma fraternidade fundada sobre esse ideal. Esse ideal provavelmente tem
mais consistência para ela do que para seu marido, mas em todo caso é bem
em seu nome que a relação se mantém ao longo dos anos e que permite velar
a dissimetria radical que poderia se abrir mais além dos limites desse ideal.
Dissimetria que poderia aparecer com esse parceiro imaginário, no caso em

11 Que às vezes lhe faltem culhões (testículos), quer dizer coragem, firmeza nas atitudes.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 41

que, por exemplo, sua virilidade tão reivindicada buscasse se manifestar, ou


se Valérie se obstinasse em se fechar em sua sensibilidade feminina.
Valérie começara a frequentar bares de lésbicas com a ideia de que
essa leve atração que sente por algumas mulheres a determina a uma eleição
homossexual. Mas logo termina por reconhecer que não é essa a via que
sexualmente lhe interessa. Faz da alucinação cinestésica do órgão peniano um
indicador que lhe permite orientar-se a respeito da debilidade de seu marido,
com quem permanecera em uma pacífica convivência, escandida de certas
sacudidas que, de tempos em tempos, ela lhe dará para tirá-lo de sua tema
passividade. Sua pergunta inicial encontrara no marco de sua relação com
seu parceiro um lugar no qual se possa inscrever, mais além da perspectiva
centrífuga que se abria para ela a partir de sua presença, a causa da dissimetria
sexual. De algum modo, encontrara a maneira de tratar pelo imaginário da
relação a seu companheiro o real do fenômeno de corpo e uma maneira de
velar o fenômeno alucinatório.

As crianças trans

A questão muito espinhosa das crianças trans se levanta aqui porque


justamente elas parecem fazer sua eleição de sexo independentemente do
Outro. A questão do desejo do Outro parece não se colocar aqui, como se
justamente para elas «o ser sexual se autorizaria de si mesmo» sem saber de
onde, em qual desejo essa eleição, essa demanda primeira ou reivindicação
encontra a sua origem.
Como se sabe, os protocolos de mudança de sexo não são possíveis até
o fim da adolescência por causa da transformação hormonãl. Mas a questão
da eleição aparece como um curto-circuito sobre a questão a que esse desejo
responde. Na minha experiência, os pais seguem, em geral, as demandas das
crianças, muito surpreendidos num primeiro momento, mas condescendentes
depois. Porém, existe a possibilidade em alguns países, como a Argentina
por exemplo, em caso de desacordo parental, que as crianças se enderecem
diretamente ao juiz para pedir a troca de gênero, esperando poder começar os
protocolos de redesignação de gênero. A autorização de um Outro, o Outro
da lei, se substitui ao Outro parental.
A questão da demanda de mudança de gênero em crianças é cada vez mais
frequente e já existem nos Estados Unidos três centros especializados para
tratá-los. A abordagem ali é comportamental e simplesmente factual: ensina-se
aos pais a abandonar seus preconceitos de gênero e aceitar que um menino
possa brincar com as bonecas e as meninas com os carrinhos e interessar-se
pelo football americano. Trata-se então de uma educação das flutuações de
gênero do entorno familiar. A parte de angústia que possa surgir nos pais que
42

não se acomodam a essa mudança de gênero das crianças é tratada de maneira


unicamente educativa, sem interrogar sequer o desejo de sua parte que, tal-
vez, contribuiu para dar consistência a essa mudança de gênero nas crianças.
O que simplesmente poderia ajudar, talvez, a entender algo dessa demanda
por parte das crianças em mudar de gênero. Essa demanda é tratada como se
tivesse «nascido de um repolho» 12, ou seja, de nenhuma parte.
Trata-se, segundo os princípios do liberalismo, que cada sujeito, mesmo
uma criança, é dono de seus atos e o único arquiteto de sua vida, já que não
há Outro, sobretudo não os pais, e ainda menos Deus, que como se sabe, no
mundo protestante deixa livre cada indivíduo para decidir sobre seus atos e
avaliar se suas ações se encontram de acordo com os princípios morais, já
que não há juízo final como no catolicismo.
Que me entendam bem: uma criança é um sujeito íntegro e inteiro, dono
de seus atos e de suas ações. Mas abordá-lo como se fosse um sujeito sem
um Outro parental que o invista, que lhe diz coisas e inclusive que deseje que
se inscreva ou não no sexo que corresponde a sua anatomia. Que seja «eis»,
como se diz agora para não discriminar os sujeitos «trans», abordá-lo dessa
maneira é deixá-lo livre ao que Freud chamava «Hilflosigkeit», o desam-
paro fundamental que encontra o sujeito quando não encontra alguém que
o porte, que tenha um desejo por ele, um sentimento mais além da angústia
que produz sujeitos desenlaçados, errantes muitas vezes e completamente
desorientados em suas vidas.
Uma pergunta quando se aborda a questão trans na infância e na adoles-
cência é de poder avaliar que posição deve tomar um analista ou um terapeuta
frente à demanda pela troca de sexo. De sexo, já que a questão do gênero
intervém a nível do semblante com o qual um ser falante elege apresentar-se.
De fato, existem casos - não são raros, certamente-, existem sujeitos que
decidiram mudar de gênero civil a nível de sua identidade, para alguns anos
depois retomar o gênero civil inicial ou ainda para buscar melhor nomear-se
de gênero indeterminado. Vocês conhecem, seguramente, Norry May Welby,
um homem escocês emigrado da Austrália que, após várias mudanças, con-
seguiu ser reconhecido pelo estado australiano de sexo indeterminado, «non
specifi,ed». Não somente conseguiu isso, como também fazer inscrever na
Constituição australiana a possibilidade deste «terceiro sexo», que na rea-
lidade não é nenhum. O que não é inédito, já que desde 2014 os hijras 13

12 Esta expressão «nascido de um repolho» não é usual no Brasil, mas tem sua origem em uma lenda contada
às crianças sobre «de onde vêm os bêbes?»: Os pais vão à fazenda, escolhem um repolho bem grande, e a
mãe tem que comer ele todo, então o bebê vai para a barriga dela, cresce e depois sai. (Nota da tradutora)
13 Casta de homens castrados que se vestem de mulher e existem há séculos na Índia.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS : impasses e soluções 43

podem gozar do mesmo estatuto em um país onde se reconhecia socialmente


há muito tempo esse terceiro sexo, ou ainda no sul do México, em Oaxaca,
os muxesi4, que embora não tenham um estatuto civil reconhecido, gozam
de certa complacência de parte da população, ou em todo caso não são tão
maltratados como as mulheres.
Quanto à mudança de sexo, a entrada em um protocolo hormonal na ado-
lescência produz na maioria das vezes um efeito de apaziguamento. Sabe-se,
na clínica progressiva que se começa a ter com os sujeitos «trans», que quanto
antes se apresente a certeza da não-correspondência entre sexo e gênero de
origem, maiores as possibilidades, em geral, de que o sujeito aderirá a um
protocolo de redesignação do sexo. A reeleição do sexo apresenta variantes
maiores quanto mais tarde se afirme ao sujeito essa certeza.
Muitas vezes as coisas se passam bem, e os seres falantes que se encon-
tram transformados pela cirurgia vivem bem com seu novo corpo. Certamente,
é difícil generalizar e o «um por um» que nos ensina a clínica psicanalítica se
impõe. Mas a vida depois da transformação de sexo não é sempre esse paraíso
esperado. É frequente encontrar quadros de depressão ou de melancolização
do sujeito, uma vez que vive a perda da luta por sua transformação como a
perda da causa principal de sua vida. A rejeição do Outro social ao seu novo
estatuto pode também contribuir para essa melancolização do sujeito. Ou
então, pode surgir o desencadeamento de um ativismo reivindicatório de sua
nova identidade, que o reenvia a uma luta que vem cobrir a vivência tranquila
da realização de seu novo ser.
Mais difícil é precisar a posição de analista quando a demanda por rede-
signação sexual se coloca na idade adulta. O «um pôr um» aqui é de rigor.
E se deve pensar dentro das coordenadas do caso, o lugar que vem ocupar a
intervenção cirúrgica de mudança de sexo. Já o fato de que um sujeito venha a
falar desse processo a um analista implica dirigir de algum modo essa demanda
de transformação a um Outro. Às vezes, esse processo é adiado, projetando o
sujeito em uma vida «trans» em que a transformação implica colocar em jogo
uma bateria de semblantes, de máscaras e de performances, para falar como
Judith Butler, sem dever passar necessariamente pela cirugia. A demanda
de normalidade desse proceder e de uma autorização por parte do analista
acompanha muitas vezes e constitui a razão principal da consulta. Muitas
vezes, é depois da cirurgia de redesignação que o sujeito procura um analista
pelos efeitos não esperados, o qual enumeramos, e que motivam a consulta.

14 Uma muxe (ou muxhe) é uma pessoa de corporalidade testiculada que não se identifica como homem nem
como mulher, porém com expressão de gênero feminina. É um gênero não-ocidental; podem ser vistas como
um terceiro gênero.
44

Para concluir

O que podemos sublinhar é que os sujeitos «trans» confrontam a psica-


nálise ao mais central que ocupa uma análise para todo ser falante, seja este
hétero, homo, trans ou inclusive a-sexual: o gozo. O que representa sua «parte
maldita», para evocar alguém que teve uma percepção dessa parte obscura
que habita os seres falantes: Georges Bataille para nomeá-lo, quem fez do
«gasto improdutivo» o que poderíamos chamar um precedente fundamental
desse conceito central no ensino de Lacan. A «parte maldita» ou a parte «rara»,
indomesticável, irracional, queer. O gozo é queer, e a psicanálise se ocupa
justamente desta parte queer dos seres falantes que não se deixa submeter a
nenhuma norma, a nenhuma educação, nem a nenhuma terapeutização. Acei-
tar a parte queer que o habita permite a um ser falante começar a projetar-se
mais além dos impasses e da impotência a que atribui sua neurose, o peso dos
emaranhados dos enredos de seus sintomas. Encontrar um «saber-fazem com
essa parte maldita permite colocar-se à altura do real que o habita e, longe
de querer eliminá-lo, dar-lhe melhor uma forma que lhe permita fazer laço
social a partir do mais singular que o ser falante tem. Despatologizar a tran-
sexualidade implica colocar-se à altura desse real, do qual o sujeito «trans»
não é mais que um mártir, no sentido que Lacan falava do sujeito psicótico
como «mártir do inconsciente», quer dizer, etimologicamente, «testemunha»;
testemunha, então, do real do gozo, o mais queer que temos os seres falantes .
Serão os psicanalistas aqueles que, uma vez concluída urna cura analítica,
encontraram um «saber fazem com o opaco de seu gozo, o suficientemente
queer para estar à altura desse real?
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 45

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LACAN, J. O seminário: .. ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.


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PARTE2

EXISTE A SAÚDE MENTAL?


CAPÍTULO 3

A SAÚDE MENTAL EXISTE?


Flávio Durães 15

A saúde mental existe? Testemunhamos, no momento atual, analistas


e praticantes da psicanálise que a saúde e, particularmente, a saúde mental
se tomou um dos significantes do discurso mestre contemporâneo. A saúde
mental passou a ser um assunto de governo, da gestão, objeto constante de
uma "avaliação generalizada" por parte das burocracias sanitárias, também
nomeada por Foucault como o campo da biopolítica (FOUCAULT, 2002).
Se o mal-estar da civilização na época de Freud estava marcado pela ideia de
renúncia à satisfação, hoje ele se apresenta como o máximo de satisfação pelo
gozo dos objetos de consumo em nome do bem-estar e da saúde para todos.
Desse modo, para abordar a questão "A saúde mental existe?", partiremos
da hipótese de que há uma antinomia entre saúde mental e psicanálise. Essa
antinomia remete a nossa condição de seres falantes, ou seja, a incidência da
linguagem sobre o corpo: o "corpo falante" (MILLER, 2015). Por conseguinte,
a adequação entre o real e o mental estará radicalmente perturbada. Dessa
aproximação, pretendemos demonstrar como a orientação lacaniana descons-
trói toda referência à saúde mental expressa através do aforismo lacaniano
"A relação sexual não existe" (LACAN, 1972/2003).
Presenciamos atualmente, no campo da saúde, uma grande atenção vol-
tada para as patologias que concernem ao mental. No século XXI, as doenças
mentais, munidas pelo discurso da ciência, são apresentadas quase sempre
com interesse pela mídia e, consequentemente, no cotidiano das pessoas com
as mais diversas nomenclaturas: transtorno psicótico, esquizofrenia para-
noide, borderline, transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo ... ou qualquer
outro nome que designe em menor ou maior grau o que Lacan nomeou como
"loucura". Sabemos que um grande número de psicanalistas tem trabalhado
em instituições de saúde mental mantendo um debate permanente e muito
necessário sobre esse conceito.
Podemos dizer que o campo da saúde mental é polissêmico, heterogê-
neo, uma "comunidade moderna por excelência" (LAURENT, 2000). Nesse
sentido, encontramos dificuldades para delimitar as fronteiras, saber onde
começam ou onde terminam seus limites. Essa imprecisão, que retoma como

15 Psicólogo e psicanalista, com mestrado em Filosofia (UFMG). Doutorando em Psicologia (Puc Minas). Pro-
fessor da Puc Minas e FCMMG. Coordenador do Curso Clinica Psicanalítica na Atualidade: contribuições
de Freud e Lacan IEC/Puc Minas.
50

problemática de fundo, é a tentativa sempre recomeçada do questionamento


sobre "o que é saúde mental" enquanto um problema conceitua!.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que não existe defini-
ção "oficial" de saúde mental, uma vez que as diferenças culturais, valores e
teorias relacionadas e concorrentes afetam o modo como a "saúde mental" é
definida. Contudo, a importância da saúde mental é reconhecida pela OMS
(1986) desde a sua origem e está refletida na definição de saúde como "não
simplesmente a ausência de doença ou enfermidade", mas como "um estado
de completo bem-estar físico, mental e social".
Na conferência de Sevilha, publicada no texto "Psicanálise e ordem
pública", Miller ( 1999) diz que a saúde mental se encarrega de assegurar
a ordem de nossos dias, assim como o seu lugar na expansão do discurso
capitalista, cujas instâncias como a OMS são porta-vozes. Através de cifras,
protocolos, questionários que envolvem estudos populacionais, ao lado de
medidas estatísticas, escalas e classificações, fica franqueada a ambição do
discurso do mestre contemporâneo de "domesticar o gozo", colocá-lo aces-
sível "para todos". A saúde como "estado de bem-estar" tomou-se, para além
de um índice ou medida, um fator político, devendo agora ser prescrito em
nome de todos.
No texto "Televisão", Lacan (1973/2003, p. 516) afirma que os traba-
lhadores de saúde mental "aguentam as misérias do mundo"; como conse-
quência, estão inseridos "no discurso que a condiciona, nem que seja na
qualidade de protestar contra ela", denunciando a impostura do discurso do
mestre na sua vertente capitalista. Nas palavras de Lacan: "ao relacionar essa
miséria ao discurso do capitalista, eu o denuncio" (LACAN, 1973/2003, p.
516). Assim como Freud em "O mal-estar na civilização" (1930/1987), Lacan
preocupa-se com o mal-estar na modernidade como efeito desses discursos
dominantes em nossa civilização e, principalmente, questionando a junção
deles ao discurso da ciência no que diz respeito aos seus efeitos de controle
e segregação na vida cotidiana.
No campo da saúde, a ordem pública é deslocada pelo novo estatuto do
mestre contemporâneo em que tudo é cifrado e avaliado. "Vivemos a febre
do ciframento, do tudo tem preço; logo tudo é passível de ser comparado,
avaliado; nada é singular" (FORBES, 2006, p. IX). Segundo Laurent (2000),
os comitês de ética tentam a todo custo apreciar, avaliar esses efeitos, pois
o mestre contemporâneo se encontra "embaraçado com a medida" diante do
fracasso do ideal de saúde como estado de bem-estar e felicidade.
Desde Freud, a psicanálise vem questionando a separação entre o normal
e o patológico e as concepções de saúde e doença. Os atos falhas, sonhos e
sintomas evidenciam a inexistência de uma diferença fundamental entre o
homem neurótico e o homem normal. Assim, Freud (1901 /1987) é levado a
PSICANÁLI SE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 51

declarar que "todos somos mais ou menos neuróticos", sublinhando a proxi-


midade, apontada pelo próprio título do seu livro Sobre a psicopatologia da
vida cotidiana ( 1901/1987), entre o "patológico" e o "cotidiano". A vida do
homem normal também se encontra marcada por sintomas e traços neuróticos.
Para Canguilhem, a saúde implica poder adoecer e sair do estado pato-
lógico. "A saúde perfeita não passa de um conceito normativo, de um tipo
ideal." (CANGUILHEM, 1966/2009, p. 54). Não obstante, as definições dos
conceitos de saúde e doença, normal e patológico comportam uma dimensão
ética cujas consequências para o campo da saúde mental não deixam de con-
vocar a psicanálise. As figuras do "Outro da saúde mental" - representadas
pelas classificações diagnósticas atuais, o Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de
Doenças (CID)- têm promovido uma diluição dos diagnósticos e ampliado
em escala o número de "transtornos mentais". Programas de triagem e ava-
liação, desde a mais tenra infância, fazem com que todos sejam "suspeitos"
e, portanto, objeto de intervenção e medicalização por parte do saber psiquiá-
trico. Segundo Beraud, "tal programa para todos visa o ' homem mediano '
e tenta pôr em xeque a singularidade e o fracasso inerentes ao falasser, que
sempre perturbarão a ordem social. [... ] Desta forma a avaliação tenta nor-
malizar a humanidade e objetivar seus desejos" (BERAUD, 2011 , p . 337).
Com efeito, a psicanálise aplicada ao campo da saúde mental interroga sua
relação com o discurso do mestre a partir dos conceitos de saúde e doença,
normal e patológico.

A saúde mental, inserção social e a ordem públic~

O texto "Saúde mental e ordem pública" é considerado um marco da


discussão da saúde mental e da psicanálise lacaniana. Miller (1999) esta-
belece aproximações entre saúde mental e ordem pública, situando ambas
em relação à psicanálise. A saúde mental é definida como uma questão de
ordem pública, não obstante a perturbação da ordem pública passar a ser um
critério que estabelece se um indivíduo tem ou não saúde mental. Trata-se
de verificar se o indivíduo é capaz de circular, transitar sem afetar a ordem
pública. De modo bastante simples e provocador, Miller diz que esse critério
"é andar bem pela rua" e "retomar para casa" (MILLER, 1999, p. 15). Cabe
aos trabalhadores da saúde mental decidir "se alguém pode circular entre os
demais pelas ruas" (MILLER, 1999, p. 15). Gozar de boa saúde mental seria
não perturbar essa circulação.
Podemos nos perguntar: qual seria o critério que situa o indivíduo de um
ou outro lado - da saúde mental ou da ordem pública? Se, por um lado, como
Miller nos diz, há perturbações que concernem à polícia e à justiça, de outro
52

lado, a diferença entre essas categorias de trabalhadores não é suficiente para


estabelecer uma simples equivalência entre saúde mental e ordem pública. É
necessário dizer que a conversão da "loucura" como uma questão de polícia
em uma questão de saúde não implicou nenhuma modificação da sua concep-
ção como um fenômeno da perturbação da ordem pública e de suas estratégias
de vigilância, como atesta Foucault (1978) naquilo que nomeou de "Grande
Internação". Ainda hoje, conservam-se essas estratégias para as pessoas em
sofrimento mental a partir, essencialmente, do que podemos chamar de impor-
tância da circulação pública, ou seja, aperfeiçoaram-se o que outrora foram
os mecanismos de contenção física que hoje são nomeados como "clínicos",
pelos quais permite-se controlar a "perturbação da circulação pública" através
do refinamento dos dispositivos de vigilância. De acordo com Miller (1999),
saúde mental tem como objetivo a inserção social, reintegrar o indivíduo
à comunidade através de um critério operativo, que é a responsabilidade.
Miller cita o texto "Criminologia e Psicanálise", de Lacan, para acentuar o
critério da responsabilidade como um conceito essencial na demarcação entre
os campos da saúde mental, da ordem pública e da psicanálise. "Parece-me
bastante evidente que a melhor definição de um homem em boa saúde mental
é que se pode castigá-lo por seus atos" (MILLER, 1999, p. 15). O sujeito
responsável é aquele que pode responder por si mesmo e pelos seus atos.
Temos, portanto, outro apontamento entre psicanálise, saúde mental e ordem
pública: a psicanálise é um tratamento que se dirige ao sujeito de direito . "Se
o sujeito é considerado responsável, pode-se castigá-lo; mas, se é irrespon-
sável, deve-se curá-lo" (MILLER, 1999, p. 15). Por outro lado, nesse caso,
o interesse da psicanálise pela criminologia está na questão do limite tênue
entre a enfermidade mental e o sujeito de direito.
No mesmo texto, Miller corrige aquela primeira equivalência entre saúde
mental e ordem pública para dizer que saúde mental é parte do conjunto da
ordem pública, uma "subcategoria" na qual não há exclusão mútua entre
o patológico e a normalidade. A título de exemplo, ele nos diz que a neu-
rose obsessiva e a paranoia poderiam ser perfeitamente compatíveis com a
ordem pública.

Até o ponto, inclusive, de podermos nos perguntar se os inventores da


ordem pública não foram neuróticos obsessivos. Um juiz que pensa todo
o tempo no ato sexual nem por isso deixa de atuar como juiz. Pode julgar
perfeitamente e, entretanto, não ter outra coisa em seu pensamento que
obsessões sexuais. Também a paranoia, às vezes, é perfeitamente com-
patível com a ordem pública, mais em umas profissões que em outras.
Somente de um paranoico pude escutar dizer, em meu consultório, que
estava em perfeita saúde mental. Não sei se isso poderia dizê-lo alguém
que não fosse paranoico (MILLER,1999, p. 16).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOG IA LACANIANAS: impasses e soluções 53

Nesse sentido, podemos afirmar que a psicanálise e a saúde mental estão


em campos distintos. De acordo com Miller ( 1999, p. 16), "o psicanalista não é
um trabalhador da saúde mental"; ele não é um agente da ordem pública, "não
pode prometer, não pode dar a saúde mental". Eis o "segredo da psicanálise"
revelado através do seguinte paradoxo: a psicanálise é um tratamento que se
dirige a enfermidades mentais nas quais há um sujeito de pleno direito. Para
a psicanálise, o termo 'sujeito' não se introduz a partir do mental, mas a partir
do direito. Dessa forma, a responsabilidade como capacidade de resposta do
sujeito pelos seus atos se vincula diretamente ao que fundamenta o laço social,
ou seja, ao sentimento de culpa. O sentimento de culpa seria, assim, ''pathos
da responsabilidade, a patologia essencial do sujeito" (MILLER, 1999, p. 17).

O inconsciente não é o mental

Miller (1999, p. 15) assinala que o "mental" é considerado "um órgão


que não seria exclusivamente do ser humano". A mente é um aparato sensorial
que completa o físico do ser vivente; nesse sentido, haveria uma dimensão do
mental nos animais permitindo que esse físico possa se adequar ao mundo.
"Há mental em um ser vivo desde o momento em que há sentidos, desde que
há o aparato sensorial" (MILLER, 1999, p. 15). Ele questiona se poderíamos
pensar um ser vivo sem o mental.

O animal, como tem uma mente, não se dirige sobre o puro real, mas faz
dele uma realidade. A diferença entre o real e a realidade é a interposição
do mental. Pode-se, dessa maneira, descrever perfeit~mente o mundo da
mosca. Lacan cita uma descrição que desperta em nós a vontade de ser
uma, porque se vê que a mosca tem uma perfeita saúde mental, uma
vez que a definimos como a harmonia, o equilíbrio do /nmwelt e do
Unmwelt (MILLER, 1999, p. 16, grifo nosso).

O inconsciente, segundo Miller, não se confunde com o mental. O mental


não está restrito ao ser humano. Em qualquer ser vivo há o mental, desde que
esteja munido de um aparelho sensorial e lhe permita viver em seu ambiente.
Haveria, assim, uma "perfeita passagem do real para a realidade" que geraria
um mundo onde reinaria a harmonia do Inmwelt e do Unmwelt. Dessa forma,
diante de tal equilíbrio seria possível falarmos da existência da saúde mental.
Estes dois termos, Inmwelt e Unmwelt, remetem à obra do biólogo e
filósofo estoniano Jacob Johann von Uexküll. O termo alemão Innenwelt
se refere ao "mundo interior"; no uso de Lacan, contrasta com o Unmwelt -
"ambiente" - para sugerir a experiência mental de "interioridade". Contudo,
no mundo desnaturalizado dos seres falantes, o modelo de saúde mental não
54

é o do animal. Para os seres falantes, essa adequação entre o real e a realidade


estará perturbada pela incidência da linguagem, instalando-se, assim, desde
o princípio, como pathos. Isso impede a ideia mens sana in corpore sano,
pois "o inconsciente não é da ordem mental" (MILLER, 1999, p. 16). Nesse
sentido, a saúde definida como o "silêncio dos órgãos" é incompatível com
o "inconsciente que nunca se cala" (LAURENT, 1999), assinalando o índice
desse desequilíbrio constitutivo entre Jnmwelt e Unmwelt.
Laurent (2000) desenvolve esse argumento ao dizer que saúde mental
pouco tem a ver com o mental e muito menos com a saúde. Se a saúde pode
ser definida como o "silêncio dos órgãos", por consequência a saúde mental
seria o que garante "o silêncio do Outro", sendo este o "Outro do controle" da
ordem pública. Logo, a antinomia entre saúde mental e psicanálise incide sobre
o conceito de saúde e doença tomado a partir da incidência da linguagem sobre
o corpo enquanto "corpo falante" (MILLER, 2015). Desse modo, a adequação
entre o inconsciente e o mental - em termos filosóficos, a questão de fundo
entre "coisa e espírito" - estará para sempre perturbada. A noção de saúde
mental como "o silêncio do Outro" é antinômica à noção de "o inconsciente
que nunca se cala", pois não há sujeito sem Outro.

O avesso do ideal de saúde

No Seminário 8 (1960-1961/1992), Lacan faz referência à obra de Can-


guilhem Essai sur quelques problemes concernant le normal et le pathologique
para colocar em questão o conceito de saúde.

O que é a saúde? Estariam enganados se acreditassem que, mesmo para


a medicina moderna, que em relação a todas as outras se crê científica,
a coisa esteja plenamente assegurada. De tempos em tempos, a ideia do
normal e do patológico se propõe como tema de tese a algum estudante, em
geral por pessoas que têm uma formação filosófica. Temos aí um excelente
trabalho do Sr. Canguilhem, seu Essai sur quelques problemes concernant
le normal et le pathologique, mas cuja influência é, evidentemente, muito
limitada nos meios propriamente médicos. Sem procurar especular num
nível de certeza socrática sobre a saúde em si, o que demonstra, por si
só, especialmente para nós psiquiatras e psicanalistas, até que ponto a
ideia de saúde é problemática, são os próprios meios que emprega-
mos para alcançar o estado de saúde (LACAN, 1960-1961/1992, p.
75, grifos nossos).

Ao questionar o conceito de saúde, Lacan também coloca em questão


se há uma ciência da saúde, mais especificamente se a medicina moderna
poderia assegurar esse lugar. É importante destacar que a leitura de Lacan, no
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 55

início dos anos 60, se antecipa àquela de Foucault em O nascimento da clínica


(2011) e do próprio Canguilhem (2005), 20 anos depois. Segundo Lacan, a
medicina, que "sempre se acreditou científica", encontra aí sua "fraqueza"
(LACAN, 1960-1961/1992, p. 75), pois "há alguma coisa sequer elucidada
por ela, pela medicina, uma coisa que não é das menores, já que se trata
da ideia de saúde" (LACAN, 1960-1961/ 1992, p. 75, grifo nosso). Nesse
sentido, a ideia de saúde é problemática, não é uma questão menor e precisa
ser melhor investigada. A elucidação dessa ideia se toma indispensável, haja
vista os próprios meios empregados para alcançar esse estado de saúde. O
mesmo ocorre com a ideia de "harmonia" como um suposto retomo ao estado
de bem-estar, daquilo que separaria o normal do patológico.

A saúde mental e o discurso do mestre

A psicanálise é "o avesso do discurso do mestre" (LACAN, 1969-


1970/1992), uma vez que ela introduz o laço social específico que se tece em
tomo do analista como representante do que do gozo resta de não socializável.
O analista está diante de uma questão que remete à "ética da psicanálise",
pois não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. Segundo Lacan,
o discurso do mestre tem função civilizatória à medida que exige a renún-
cia pulsional e promove rechaço do gozo, não obstante retome sob a forma
do "supereu" e do sentimento de culpa. Podemos reconhecer na atualidade
o "supereu" no imperativo que todos - sem exceção - têm que gozar da
melhor saúde possível através das normas estabelecidas pelo discurso do
mestre contemporâneo.
No seminário "Coisas de fineza em Psicanálise", Miller (2011) cita Can-
guilhem como uma referência para dizer que o conceito de saúde é essen-
cialmente social e que ele decorre do discurso do mestre. Contudo, nesse
momento, a referência ao filósofo é direta e a filiação teórica explicitada.
Reverenciado como "meu velho mestre", Miller toma como ponto de partida
a conferência de Canguilhem realizada na Sorbonne, em 1980, intitulada "A
saúde: conceito vulgar e a questão filosófica", posteriormente publicada em
Escritos sobre Medicina . Miller é enfático ao dizer que a proposição de Can-
guilhem sobre o conceito de saúde, "como eminente epistemólogo da biologia,
é, para mim, uma referência absolutamente essencial" (MILLER, 2011, p.
63, grifo nosso).
A proposição canguilhemeana afirma que a saúde é um objeto fora do
campo do saber, do qual não há ciência propriamente dita, assim como Aris-
tóteles afirmava não haver ciência do contingente. No entanto, o conceito de
saúde poderia ser pensado numa perspectiva outra à validação científica, às
estatísticas, aos questionários e às classificações. Desse modo, o conceito de
56

saúde opera uma inversão das dualidades platônicas que opõem doxa e epis-
téme (opinião e ciência). Contudo, segundo Miller, trata-se de uma "opinião
justa" que leva em conta o entendimento da própria subjetividade no que
tange aos parâmetros para pensar a saúde e a doença, o normal e o patológico.
Canguilhem (2009) antecipa as criticas, o que, décadas mais tarde, iria cons-
tituir-se como o campo das definições bioestatísticas enunciado por Boorse
(1975). Para Canguilhem, a saúde não pode ser reduzida aos parâmetros de
normalidade e desvios estatísticos.
No texto "A saúde: conceito vulgar e questão filosófica", Canguilhem
analisa o conceito de saúde a partir da filosofia kantiana. Kant sugere que a
saúde é um conceito alheio ao campo do saber objetivo, portanto um conceito
que pertence à língua vulgar. Com base nesse enunciado, Canguilhem (2005,
p. 37) pôde sustentar a tese de que "não há uma ciência da saúde". A saúde
"como fenômeno não contabilizado, não condicionado, não mediado por apa-
relhos" não é exclusiva dos especialistas em saúde (CANGUILHEM, 2005,
p. 44). Nesse sentido, ele fala de uma "saúde subjetiva" em oposição à "saúde
pública". Segundo Miller, Canguilhem aproxima o médico da figura do ana-
lista, destacando a transferência e sua condição de um exegeta, um leitor de
sintomas. Miller opõe a afirmação de Canguilhem de que "a saúde é a verdade
do corpo" a outra que ele considera mais apropriada: "a doença é a verdade do
homem"; em termos mais precisos para a psicanálise, "o sintoma é a verdade
do homem" (MILLER, 2011, p. 65).
Ao contrário do discurso do mestre, que quer interditar a fantasia, norma-
lizar o desejo, a psicanálise reivindica "o direito da singularidade", o direito
de subverter o ideal da "saúde para todos", pois reconhece _que há algo irre-
dutível no sintoma que escapa à avaliação generalizada e às classificações
diagnósticas atuais .

A saúde mental existe?

Por que colocar em questão a existência da saúde mental? No seminário


"Coisas de fineza em Psicanálise", em 2008-2009, 20 anos depois da con-
ferência "Saúde mental e ordem pública", Miller retoma a questão da saúde
mental, agora articulada à "segunda clínica de Lacan" (MILLER, 2005), para
desenvolver duas proposições fundamentais . A primeira diz respeito ao con-
ceito de "normalidade". A "segunda clínica de Lacan" desconstrói a oposição
entre o normal e o patológico, "põe abaixo a referência à normalidade, à saúde
mental. [... ] Seria preciso ser cego e surdo para não perceber que se trata de
arruinar qualquer chance de fazer emergir uma noção de normalidade, de
modo a não retomarmos a ela" (MILLER, 2011, p. 30). A segunda aponta
para a impossibilidade de o ser falante dar conta da radical inadequação do
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 57

real e do mental através do aforismo lacaniano "A relação sexual não existe"
(LACAN, 1972/2003). Portanto, a impossibilidade de inscrever a relação
sexual na linguagem "é o que faz objeção a toda ideia de saúde mental"
(MILLER, 2011 , p. 58).
Lacan tentou nomear o recalque primordial de muitas formas até chegar
ao "não há relação sexual", formulando que essa questão não tem solução
pela via do significante. Segundo Maleval (2002), há uma lógica dissimétrica
entre as posições do homem e da mulher. Essa lógica retrata a impossibili-
dade de plenitude no encontro com seus objetos de desejo, aludindo igual-
mente à linguagem, a sua incapacidade de tudo expressar. A relação entre o
homem e a mulher não é harmoniosa porque está em jogo a impossibilidade
de o objeto desejado corresponder ao objeto final da pulsão. Desse modo,
a satisfação pulsional é sempre parcial e os objetos substitutivos nunca são
plenamente satisfatórios. A afirmação de que "a relação sexual não existe"
seria a representação limite da incompletude do desejo e do resto produzido
pela linguagem em todo discurso. Nesse sentido, todo sujeito está submetido
à falta de um significante, ou seja, para todo sujeito falta o significante do
Outro, que constitui o furo na linguagem, a impossibilidade de a linguagem
dizer tudo, de dizer toda a verdade. Nessa direção, Miller diz que a "harmo-
nia nunca é alcançada pelo ser falante, a doença lhe é intrínseca e essa
doença se chama 'foraclusão'. Ela comporta não haver relação sexual."
(MILLER, 2011, p. 31, grifo nosso).
Com efeito, o ser falante é um animal doente, cuja doença não é um aci-
dente, mas faz parte de seu ser. A linguagem não é suficiente para dar conta
do real. Assim, diante da ambição daquilo que se designa como uma relação
de complementaridade, Lacan responde com a fórmula "todo mundo é louco,
isto é, delirante" (LACAN, 1978/201 O, p. 31 ). Diante da impossibilidade de
um saber verdadeiro sobre o recalque primordial, o desejo surge como fruto
dessa desarmonia entre o real e a realidade. Ele indica que há uma reconfi-
guração do conceito de sintoma enquanto "resto irredutível". Assim, o que
Lacan chamou "sinthoma" vem designar como elemento irredutível o "nome
do incurável" . Logo, o "sinthoma" faz objeção à saúde mental, pois está do
lado oposto de qualquer normalidade e expressa o que cada ser falante porta
em sua diferença e singularidade mais absoluta. Portanto, a ausência de relação
sexual nos faz questionar a crença de uma saúde mental e de qualquer noção
de terapêutica como restituição da normalidade anterior.
58

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Introdução

Em 2011, em Bruxelas, ocorreu um encontro europeu da Associação


Mundial de Psicanálise (AMP) com o título "Saúde Mental, existe?". O artigo
que elaborei foi feito a partir das contribuições ao tema, publicadas na revista
Mental, com as principais discussões trabalhadas naquele encontro.
Para atingir a "Saúde Mental", muitos esforços são alinhados a fim de
conseguir um melhor tratamento, mais humanizado, mais igualitário e "para
todos". O termo na sua ambiguidade foi utilizado com o sentido do que
abrange o "campo da saúde mental" e suas diversas manifestações. "Deseja-
mos uma rede de assistência em saúde mental democrática, capaz de respeitar
a cidadania dos sujeitos inseridos nesse campo", escreve Laurent em seu artigo
"O analista cidadão". Considerando que o analista "precisa entender que há
comunhão de interesses entre o discurso analítico e a democracia", o analista
cidadão necessita "tomar partido, participar, manifestar o tipo de saúde mental
que acredita ser o melhor". "Não uma instituição ou lugar utópico, mas sim
formas compatíveis com a constatação de que, quando não há mais ideais,
resta apenas o debate democrático" (LAURENT, 2007, p. 146).
Na nossa época dos semblantes, os conceitos devem ser revisados em sua
consistência, o que provoca uma crise, um mal-estar. "A imersão do sujeito
contemporâneo nos semblantes problematiza o real [... ] sobre um fundo de
angústia" (MILLER, 2012, p. 127) O discurso da ciência, que, desde a Idade
Clássica, fixou para nossa civilização o sentido do real, se encontra então
desorientado. 'O que é o real? ' surge como a pergunta-chave uma vez que os
semblantes desvendam a ficção na qual acreditamos.
A hegemonia científica e capitalista, de influência totalizante e totalitária,
se organizou como globalização. A "subjetividade contemporânea se encontra
envolvida, seduzida dentro de um movimento que a submerge industrialmente
em semblantes (os que podem ser pensados como objetos de gozo, gadgets)
de produção cada vez mais acelerada" (MILLER, 2012, p. 128).

16 Psicanalista. Médico (UBA). Psiquiatra. Mestre me Psiconeurofarmacologia (Instituto Universitário de Ciências


Biomédicas - Fundación Favaloro) . Psiquiatra no CEPSI (BH).
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A época freudiana que promovia o dever, o proibido especialmente do


gozo que levava a culpabilidade, foi superada. Com isso, aparecem os impe-
rativos do gozo; e com estes, os impasses das práticas e como avaliá-las. A
Saúde Mental pode ser pensada como um imperativo destinado a dar normas
a esse gozo desregrado? Como avançar?

Do modelo manicomial à saúde mental para todos

A partir da década de 1980, os planejadores em Saúde se colocaram


uma meta: a "Saúde Mental para todos". Ela se caracteriza por uma fórmula
de alcance universal, sustentada na revolução científica dos medicamentos,
com objetivos cada vez mais exigentes em termos de eficácia e de avaliação
de qualidade. Os problemas devem ser resolvidos em curto lapso de tempo,
com melhoras sustentáveis e baixos custos.
A partir da crítica ao modelo médico hegemônico, centrado no hospital,
de tratamentos biológicos e internações asilares, muitos países começam a pro-
duzir novos modelos de atenção em Saúde Mental. Originou-se um movimento
de reforma psiquiátrica. Foram produzidas mudanças das instituições assis-
tenciais e a inclusão de diversos profissionais na atenção. O modelo passou
a ser concebido como pluridisciplinar, e a atenção não ficou exclusivamente
vinculada ao hospital, nem ao modelo médico. Pensou-se numa atenção com
centros na comunidade e ações multidisciplinares. Propôs-se liberar os doen-
tes de seu encerramento asilar, oferecendo-lhes instituições com a marca da
luta contra a segregação do passado. A luta definiu-se como antimanicomial.
Podemos percorrer o fio que marca o caminho do capitalismo moderno à
globalização pautando as exigências dos novos modelos sanitários. Em 1978,
principalmente na Itália, mas também na França e na Inglaterra, novos modelos
em saúde mental foram pensados e efetivados para impedir o funcionamento
de verdadeiros campos de isolamento de mortos-vivos à espera da morte.
Colocou-se a meta da socialização como objetivo de tratamento. Tratou-se
de inclusão social com direitos e oportunidades para todos. Os pacientes
passaram a ser considerados sujeitos de direito.
Em 1980, o DSM III foi publicado. Esse Manual de Diagnóstico fun-
damentou uma tentativa de nomear o real baseando-se em reagrupamentos
estatísticos de sintomas sem causa explicitada, nomeando-se a-teórico. Tra-
tou-se da língua do Outro que organiza "classes" que dissolvem o sujeito. Para
a psiquiatria baseada nas neurociências, tratava-se de uma clínica reduzida a
sintomas agrupados estatisticamente, utilizando algoritmos de tratamento. O
sujeito no DSM desapareceu. O objetivo era atingir os sintomas, para os quais
se apelava aos psicofármacos baseados em estudos de eficácia: os ensaios
clínicos randomizados.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOG IA LACANIANAS: impasses e soluções 63

Foram criadas novas instituições para acolher, dar suporte aos doentes e
famílias na comunidade, com centros de atenção e de ação social. Em 1995, as
primeiras leis foram promulgadas, e os primeiros centros de atenção na Saúde
Mental, no Brasil, foram inaugurados em 2000. O modelo proposto comporta
o objetivo de inclusão social e antissegregação. Propõe-se uma política atenta
à globalização universal com diretrizes generalizadas.

O modelo das diretrizes para todos

Em 1998, a aliança política de diversos interesses e grupos que visam à


globalização dentro das Nações Unidas foi reforçada partindo-se da convicção
de que o bem-estar social poderia ser avaliado através do bem-estar sanitário.
A meta proposta pela OMS era, e ainda é, equilibrar os interesses econômi-
cos e financeiros dos países definindo critérios de eficácia para os sistemas
de cuidado em saúde. A lógica da avaliação generalizada foi uma primeira
consequência, lançando o sistema sanitário como uma ferramenta econômica
e de estabilização social, baseada numa gestão eficiente e humanizada.
O ponto de vista da saúde, em geral, em termos de combate à doença,
foi acrescentado ao ponto de vista do bem-estar social. O cientificismo bio-
logista que se endereça aos psicofármacos deixou uma parte dos problemas
relativos à saúde sem resolver, para a qual se estabeleceu a ação social. O
estudo "Health and Care" da ONU, de 2002, propôs prever as evoluções do
sistema sanitário. A perspectiva sanitária prevista era, e ainda é, atender uma
população mais extensa e idosa com o aumento de doenças crônicas, portanto
com um aumento da demanda de serviços. Em Saúde Mental, concluiu-se que
uma doença qualquer pode levar ao suicídio e que a cada nõve minutos uma
pessoa tenta suicídio no mundo. A escolha da OMS trata de manter o equilí-
brio entre o empuxo competitivo do mercado e as exigências dos governos
em relação aos índices assustadores supracitados.
Como 50% dos problemas de Saúde Mental começam na adolescência,
foi lançada uma campanha de reconhecimento de sintomas precoces para
estender o diagnóstico aos mais jovens e colocá-los em tratamentos antide-
pressivos precoces. O uso míope do cálculo de probabilidades e a exasperação
das tecnologias de avaliação, junto a um empuxo a um universal de signifi-
cação econômica, constituíram uma mistura que levou a fabricar segregação
sem freio e sem descanso. Foram separados para tratamento os jovens que
apresentam caraterísticas "de risco", o que levou a colocar-lhes uma etiqueta
e a medicá-los cada vez mais precocemente.
Com a Psiquiatria Baseada em Evidências (PBE), a prática se define de
maneira generalista, como uma maquinaria normativa principalmente com
medicamentos . Uma das consequências desse modelo é a segregação, o que
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leva à implementação de diversos serviços sociais principalmente para evitar


o desequilíbrio nos orçamentos.
O panorama atual se orienta por teorias de ordem "prática" e de curta
duração. Dentro dos serviços públicos a orientação é falar a língua da norma-
tização (o Outro social): o cognitivismo. O saber estatístico como alternativa
para elevar o saber ao absoluto: sem ínvenção, sem deixar ao acaso nenhuma
alternativa. Pensadas para favorecer a compreensão e dimínuir as dificuldades
adaptativas, foram ínstrumentalizadas as terapias cognitivo-comportamentais.
Parte-se da ideia do síntoma como erro cognitivo, como alguma coisa que
não tem nada a ver com a verdade. Ela se opõe radicalmente ao que considera
como um erro da consciência, do cognitivo. A pessoa, sua psique, seu pensa-
mento, sua consciência, podem e devem adaptar-se à realidade.
As orientações normativas, os fármacos usados abusivamente para abolir
as manifestações síntomáticas e as terapias que visam à norma deixam proble-
mas, evidenciando que os sujeitos e seus síntomas não se encaixam facilmente
nas diretrizes. Diante da lógica de custo/beneficio do mercado, a psicanálise
se esforça em nome do sujeito, em nome do sintoma, de um "aquilo rateia" no
ponto mesmo aonde se supõe que deveria andar. Sem mais se perder dentro da
oposição bem-estar/sofrimento, a psicanálise oferece um meio de fazer com
a opacidade incurável do gozo na raiz do sintoma, que resiste ao tratamento,
à avaliação e aos cálculos do governo.

A angústia dos gestores

A tentativa de criar novas saídas para problemas de difícil solução levou


as burocracias sanitárias contemporâneas, baseadas na tecnologia, a ter um
poder de cálculo inegável: alimentam um sonho de saber tudo sobre cada um
e de poder calcular aquilo que o outro quer ou necessita.
A psiquiatria " baseada em evidências" calcula, por comparação de
dados homogêneos, as variáveis que asseguram o sucesso ou :fracasso dos
tratamentos. Mas a própria Medicina Baseada em Evidências (MBE) não
tem os conhecimentos para produzir sucesso: baseia-se numa maneira de
gerenciar os procedimentos com base em protocolos dificilmente transpor-
táveis a pacientes reais. Os pacientes não são sintomas de uma doença, têm
sintomas. Eles têm história pessoal, vida afetiva, projetos, desejos - o que
constitui o sujeito que fica sem emergir tamponado pela normatização para
todos. Aqueles que acreditam que a decisão colhida por uma base de dados é
melhor que a discussão em equipe querem desconhecer que os profissionais
da saúde mental, numa conversação clínica, podem ter ações criativas fora
do engessamento normativo. É difícil acreditar que alguma vez a psiquiatria
possa se transformar, como a aviação, em um "voo por instrumentos", sem a
intervenção corriqueira dos profissionais.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 65

A concepção de estruturar os tratamentos com base em dados estatísticos


leva a fazer diagnósticos e estruturar tratamentos normatizados (fluxos de
gestão) que servem para acalmar e manter a ordem social: por isso, são nor-
mativos. Surge uma posição generalizada de etiquetar com a qual os pacientes
se identificam: "Eu sou bipolar, eu sou fluoxetina". Trata-se de uma verdadeira
destituição subjetiva.
De outro ponto de vista, produz-se um efeito real da destituição subjetiva
dos profissionais substituídos pelas práticas standard, o qual deve ser diferen-
ciado do efeito imaginário da ferida narcísica que se produz na concorrência
do homem com a máquina. O narcisismo do clínico que acha que é "o único
que topa" . A partir dessa enfatuação, certos psiquiatras, mas não apenas eles,
tentam acalmar a angústia do seu ato com algoritmos e cálculos permanentes.
No entanto, não conseguem acalmar a angústia e podem produzir o efeito de
aumentá-la, ao ponto de provocar crises nos profissionais e nas equipes, desde
que essas práticas anulem o sujeito.
A Big Pharma é a única que pode financiar e promover os estudos esta-
tísticos utilizados como "justificação conceituai post-hoc, pelo novo comércio
criado para vender informação clínica" (BERRIOS apudLAURENT, 2007, p.
25). O efeito de adotar os protocolos universais de prescrição levou a destruir
a espontaneidade terapêutica da psiquiatria, a depreciar a arte de prescrever,
que deixa então de ser criativa e :flexível e passa a ser mecânica e uniforme.
Trata-se, assim, da transformação de uma Medicina Baseada em Evidências
em uma Medicina Baseada no Marketing.
A dupla ensaios clínicos randomizados / nomenclatura DSM produziu
um misto de efeitos angustiantes. N. Andreassen, responsável pela parte da
esquizofrenia do DSM, escreveu: "o DSM teve um impãcto sobre a prática
de desumanização da psiquiatria" (apud LAURENT, 2007, p. 25). O DSM
levou os psiquiatras a desconhecer os detalhes dos pacientes para preencher
os protocolos. Assim, a validade ( o aprofundamento), se perdeu em função
da ideia de que o diagnóstico deve ser entendido e aceito pelos pares, o que
se chama confiabilidade, oferecendo à comunidade psi uma nomenclatura
comum: a linguagem epidemiológica universal.
O abuso da psicofarmacologia se sustenta na crença de que o modelo
medicamento alvo não funciona linearmente. A consideração de que a sero-
tonina é responsável pela depressão não encontrou essa fundamentação, nem
pode se falar de desequilíbrio químico. Aparecem as fundamentações liga-
das à neuromodulação e à plasticidade neuronal, o que reformula a ideia de
depressão como doença exclusivamente somática. Verifica-se o alto índice
de episódios depressivos recorrentes em relação às relativamente baixas per-
centagens de remissões. Esse índice de depressão que não tem remissão gera
uma altíssima prevalência, transformando-a em doença crônica recorrente.
66

A depressão como categoria surgiu com o DSM; com os antidepressivos, ela


ganhou fama de doença possível de ser controlada. Ela foi caraterizada a partir
de uma tristeza de duas semanas de duração. Verifica-se que, em decorrência
da perda dos ideais, o sujeito se perde, se instala o sentimento de anonimato.
Trata-se do sujeito não mais norteado pelos ideais, querendo se identificar a
um modo de gozo.
Outro campo de preocupação são os sintomas subclínicos: pessoas
potencialmente doentes que precisam ser avaliadas e medicadas como ação
preventiva. Esses novos "segmentos de mercado" deixam transparecer uma
população susceptível de ser tratada precocemente e a cada vez por mais
tempo. Os perigos da medicação preventiva geram diversas questões: quando
prescrever de maneira preventiva? Em qual dosagem? Com quais critérios? E
o mais importante: quando definir que a medicalização pode ser interrompida?
Na medicina defensiva atual não há outra resposta para esta pergunta senão
"ainda um pouco mais de tempo". A medicação preventiva tem como objetivo
"evitar ou retardar ou minimizar o risco de transição para a psicose" (ANSER-
MET, 2007, p. 31 ), entre outros, como a prevenção de recaídas. A consigna
de vigilância e prevenção se parece a um método de controle populacional.
Os novos sintomas são paradigmáticos da decadência das referências
ligadas ao Ideal. Caracterizados pelo gozo ilimitado, em função do declínio
do discurso dos ideais de autoridade, amplificam-se em rápida expansão em
função do empuxo ao gozo, que tem o funcionamento do discurso capita-
lista. É interessante destacar que o discurso capitalista cria a ilusão de que a
falta pode ser preenchida. Essa falta de gozo se relança ao infinito porque o
sujeito preso nesse discurso acha que nada é impossível. Só a falta de gozo é
impossível de aceitar: deprime.
O Mercado amplifica os gozos sem limite: o consumo de tóxicos, a
anorexia e a bulimia, entre outros, é a pauta que vigora; e certos ideais religio-
sos tentam dirigi-lo. As comunidades terapêuticas para toxicômanos são um
exemplo de utilização da segregação, isolando os pacientes e colocando-os a
trabalho de maneira sacrificial, para dominar o gozo autista e desnorteado dos
toxicômanos. Também se ensaiam novas tentativas de caraterísticas religiosas
que tentam impor um modelo segregativo frente aos novos modos de gozo
queer, como os transexuais, por exemplo.
Frente a essas mudanças, a psicanálise tenta produzir uma invenção
dentro da clínica que possa servir de limite ao excesso e ao gozo que sai dos
limites. A psicanálise pode oferecer recursos para recuperar o sujeito e se
posicionar como parceiro para ajudar a manter fora dos muros o cavalo de
Troia do Outro. Ao sustentar seu saber- fazer com a prática da contingência
- , a psicanálise pode demonstrar sua utilidade tanto no nível clínico como no
campo social. Dentro da formação nas instituições, o objetivo é demonstrar
PS ICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 67

a utilidade da psicanálise de orientação lacaniana para reformular as possibi-


lidades em cada caso, numa prática que visa à singularidade de cada um, de
inventar seu próprio neologismo.

Saúde mental: o franqueamento dos ideais

Pensar a normalidade como apego às normas leva a desconhecer o que


têm de singular os sujeitos. Para a psicanálise, existe, em cada um de nós, um
grão de loucura. Por causa disso, tentamos reduzir sua presença, entender suas
particularidades. Entendemos que o caso clínico, para nossa orientação, é de
uma objetividade enganosa se não se considera que somos implicados nos
efeitos da transferência. Nós, terapeutas, estamos dentro da tela clínica e não
podemos nos subtrair, nem ficar cegos aos seus efeitos. Para isso, utilizamos
controles: as supervisões, para tentar separar os efeitos remanescentes que
interferem na cura.
A Saúde Mental, uma vez que o mestre e seus efeitos são conhecidos,
deixa de estar aí com a consistência que o Ideal lhe fornece. Aparece o indiví-
duo a serviço de suas ilusões, suas paixões, seus desejos. Para tentar recompor
neles a ordem e certa sensação de medida, de limites, estabelece-se como
hierarquia um funcionamento equilibrado. Procura-se a "Saúde Mental", como
antigamente buscava-se a sabedoria ou a virtude. Apela-se igualmente para
restabelecer a "Saúde" ao amor a um grande Outro divino. Esta via não sig-
nifica a pior maneira, disse Miller (2012). Para ele, a Saúde Mental pode ser
pensada como uma ideia teológica que suponha a boa vontade da natureza, a
bondade que se abre para o bem-estar ou a saúde de tudo aquilo que existe.
Mas a Saúde Mental sobressai como a parte racional do aiscurso do mestre.
Trata-se de um assunto de governo, e suas metas são tomadas para serem rea-
lizadas pelos aparelhos políticos do Estado. "A dominação da parte racional da
alma toma em nossos dias a forma do discurso da ciência" (MILLER, 2012,
p. 129). Então a Saúde Mental faz parte de diretrizes, de planos de governo,
como um ideal destinado a criar uma harmonia entre o homem e o mundo
contemporâneo. O ideal da saúde mental traduz o esforço imenso que se faz
hoje para atingir uma "retificação subjetiva da massa" . Os temas do mundo
"psi" passaram a ser também políticos. O discurso do mestre contemporâneo
se faz ouvir no campo dito "do mental".
Na medida em que a psicanálise revela a massificação e seus efeitos é
que se aspira à de-massificação, à singularidade. A psicanálise, que começou
tendo como centro do discurso analítico o Grande Outro, hoje, quando não
existe mais o Outro, reconhece que esse Outro da Saúde Mental não existe
mais. A psicanálise se encontra exilada, deslocada, desequilibrada em relação
ao discurso do Outro. Dessa forma, tenta encontrar na análise um Outro outro,
68

que possa perturbar, que tenha a invenção jocosa de inventar, à sua maneira,
o suposto saber que faça esclarecer o sentido dos sintomas. Uma vez que o
sintoma está aliviado do seu sentido, pode continuar existindo de uma forma
que não tem mais esse plus de sentido.
Nesse ponto de impasse onde o campo da saúde mental se esvai, é preciso
atravessar os ideais. O mental que se esvazia para desnudar o real. Especial-
mente, é preciso franquear o imaginário, o mental do imaginário que está
condicionado pela percepção dos semblantes e a percepção no espelho do eu
como instância distorcida. A paranoia do discurso do mestre que oferece ao
ego uma miragem delirante que não consegue reformular as instâncias auto-
ritárias. É preciso também franquear o mental do simbólico que se encontra
na refração do significante na face especular que nomeamos o sentido. Este
pode ser concebido como fugindo, indeterminado, metonímico e sensível
de fazer um lugar às metáforas, às tentativas de criar efeitos de sentido que
sustentem a decifração da verdade como meta final.
Lacan une, de forma essencial, a verdade com as falsidades que podem
envolver o sujeito. Atravessar o campo último que está além das falsidades
do mental, a parte opaca daquilo que Freud nomeava libido, significa fran-
quear o sentido simbólico. O sentido da libido é o desejo, o qual se ~rticula
simbolicamente. Mas o desejo conhece a deflação, pode se espalhar como
semblantes especialmente fálicos.
Embaixo do desejo, uma vez que a tela do fantasma foi atravessada,
encontra-se aquilo que não mente, mas que não é uma verdade: o gozo. Gozo
produzido pelo encontro do corpo com o significante. Embora esse encontro
mortifique o corpo, ele solta uma parcela de carne. No ~ntanto, animada
pelo universo mental que estabelece uma forma articulada a essa ficção que
chamamos o campo do Outro. Nessa articulação que marca um reencontro
entre o corpo e o traço, ocasiona-se o acontecimento do corpo que é um gozo.
A partir desse gozo fixado que não fala, Freud nomeia as pulsões. A partir
desses acontecimentos do corpo, desse gozo fixado , estruturar a fala. Essas
experiências de gozo do ser falante, às quais chegamos, podem nos permitir
visar as barreiras que temos a atraves_sar.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 69

REFERÊNCIAS
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Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n. 27-28, p. 35-41, 2012.

CECCE, E. A OMS entre a deriva bio-socio-psi e o impasse da civilização.


A Saúde Mental, existe? Mental, Revista da Eurofederation de Psicanálise,
Bruxelas, n. 27-28, p. 87-90, 2012.

GUEGUEN, P. Happynomics: as utopias da bondade. A Saúde Mental, existe?


Mental - Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n. 27-28, p.
99-105, 2012.

LAURENT, É. A ilusão dos cientistas, a angústia dos sábios. A Saúde Men-


tal, existe? Mental - Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n.
27/28, p. 21-29, 2012.

LAURENT, É. A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro:


Contracapa, 2007.

MILLER, J.-A. Falar com seu corpo. A Saúde Mental, existe? Mental - Revista
da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n. 27-28, p. 127-137, 2012 .

PUIG, M. Prevenir com psicofármacos, novos usos novos gozos. A Saúde


Mental, existe? Mental - Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas,
n. 27-28,p.29-35,2012.

WOLFF, A. Saúde Mental à luz das representações contemporâneas do


homem. Mental - Revista da Eurofederation de Psicanálise, Bruxelas, n.
27-28, p. 59-70, 2012.
CAPÍTULO 5

O PROZAC E A HISTÓRIA
DA PSIQUIATRIA
Francisco Paes Barreto 17

Uma tese será trabalhada: o Prozac é um marco na história da psiquia-


tria. Para tanto, é necessária uma visão retrospectiva de tal história, ainda que
sucinta, abrangendo dois capítulos: a psiquiatria clássica e a psiquiatria das
grandes escolas.

A psiquiatria clássica

A psiquiatria clássica abrange o trajeto que vai de Pinel (17 45-1826) a


Clérambault ( 1872-1934), na escola francesa, e de Griesinger ( 1817-1868) a
Kraepelin (1856-1925), na escola alemã. O termo escola, nesse caso, desig-
nava apenas a língua, pois, quanto aos fundamentos e postulados teóricos, as
duas eram idênticas.
Pinel foi um dos maiores teóricos da história da medicina, o principal
artífice das bases epistemológicas da Clínica ao estruturá-la como método (a
análise, apropriada do filósofo enciclopedista Condillac), experiência ( que
privilegia o olhar) e linguagem (que privilegia o signo), numa formalização
que ficou conhecida como método clínico. Até o fim da vida~ porém, permane-
ceu surdo às lições essenciais da anatomia patológica, não aceitando o método
anatomoclínico que prevaleceu na medicina de bases científicas, motivo pelo
qual seus méritos foram, em grande parte, relegados (FOUCAULT, 1987).
Com efeito, Pinel é lembrado apenas como fundador da psiquiatria e
protagonista de duplo advento: do humanismo e do saber científico no trato
com a loucura. Ao assumir a Bicêtre (1793) e a Salpêtriere (1795), liberou os
loucos de suas amarras e aplicou o método clínico ao estudo das alienações
mentais. O seu Tratado médico-filosófico da alienação mental (1801) tomou
se a obra inaugural da psiquiatria (BARRETO, 2010, p. 144).
Mas há quem, como Foucault, avalie o que aconteceu de forma diferente.
Ao definir o estatuto da loucura simultaneamente como doença e erro (no
sentido moral), Pinel teria fechado o cerco em tomo do louco com um rígido

17 Preceptor do Programa de Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares (FHEMIG) (1968-1993),


Diretor-Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (1998 a 2001). A.M.E. da Escola
Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise (desde 2008).
72

discurso médico e moralista (FOUCAULT, 195 8/1 975, p. 52-60). Prova disso
são as suas hipóteses célebres: a loucura como distúrbio funcional do sistema
nervoso central (SNC), as causas morais e o tratamento moral.
Como era a psiquiatria clássica? O método clínico era puramente des-
critivo e classificatório, o que ficou posteriormente definido como clínica do
olhar. Do ponto de vista etiológico, as causas mais importantes das alienações
mentais eram as causas morais. Quanto ao substrato, embora Pinel concebesse
as alienações como alterações funcionais do SNC (hipótese funcionalista) , a
partir de Griesinger, toda a psiquiatria clássica tomou-se visceralmente orga-
nicista, ou seja, "as doenças mentais são, antes de tudo, doenças cerebrais"
(hipótese anatomista). Na terapêutica, prevalecia amplamente o tratamento
moral proposto e teorizado por Pinel. Finalmente: do ponto de vista institu-
cional, a psiquiatria clássica realizou-se nos grandes asilos para alienados.
A psiquiatria clássica teve um percurso de aproximadamente um século.
Seu trabalho descritivo e classificatório conheceu o apogeu com Kraepelin,
cujo Compêndio de Psiquiatria, de 1913, após oito edições, transformou-se
num tratado de quatro volumes e 2.500 páginas.

A psiquiatria das grandes escolas

O método clínico (Pinel), portanto, foi prevalente na psiquiatria clássica.


Na medicina, por seu turno, prevaleceu o método anatomoclínico (Pinel e
Bichat). Somente numa pequena minoria de casos foi possível, na psiquiatria,
aplicar o método anatomoclínico.
Com o avanço da imersão da medicina no método científico, uma ten-
dência ficou patente: a exclusão da consideração da subjetividade, tanto do
observador (o médico) como do observado (o paciente).
O contrário aconteceu com a psiquiatria, que se aparelhou cada vez mais
para o estudo da subjetividade dos enfermos. Tanto assim que foi buscar sub-
sídios em outras disciplinas: na fenomenologia de Husserl (Jaspers), na psi-
canálise de Freud (Bleuler) e no existencialismo de Heidegger (Binswanger).
Houve, portanto, um distanciamento entre psiquiatria e medicina, apesar
de sua raiz comum.
No início do século XX, então, a psiquiatria clássica foi sucedida pela
psiquiatria das grandes escolas, divididas em dois grandes grupos : as escolas
fenomenológico-clínicas e as escolas psicodinâmicas. Com isso, desenvol-
veu-se consideravelmente, tanto na clínica como na teoria.
Em aspectos cruciais, porém, o progresso foi pequeno. As conquistas
terapêuticas foram poucas e a psiquiatria continuou centrada nos grandes
hospícios. Os tratamentos mais prescritos procediam da vertente organicista:
as terapêuticas biológicas ou tratamentos de choque (choque cardiazólico,
PSICANÁLISE E PS ICOPATOLOGIA LACANIANAS : impasses e soluções 73

coma insulínico e eletrochoque), às vezes indicados de forma generalizada e


com frequência realizados em condições muito precárias.

A psiquiatria do DSM

Na segunda metade do século XX o campo da psiquiatria conheceu duas


grandes transformações.
A primeira, que apenas será mencionada, foi uma mudança na política
de atenção à saúde. O modelo hospitalocêntrico foi duramente atingido. Duas
orientações diferentes contribuíram para isso. A psiquiatria comunitária dos
países anglossaxônicos propôs a desospitalização e a ênfase nos cuidados
extramurais. Já a reforma psiquiátrica de estilo basagliano, mais radical, pro-
pôs a desínstitucionalização da loucura, com abolição dos manicômios e a
criação de uma rede de serviços substitutivos de saúde mental.
A segunda grande transformação ocorreu no campo conceitua!. A psi-
quiatria reaproxima-se da medicina e passa a trabalhar com a exclusão da
subjetividade, tanto do observador (o médico) como do observado (o paciente).
Isso somente foi possível a partir de duas grandes inovações: a descoberta
dos medicamentos psicofármacos e a criação de uma nova classificação: o
Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM).
O primeiro ansiolítico foi o meprobamato (1950); o primeiro antipsi-
cótico foi a clorpromazina (1952); o primeiro estabilizador do humor foi o
lítio (1954) e o primeiro antidepressivo foi a imipramina (1957). O impacto
causado pelos novos medicamentos foi decisivo.
Paralelamente a essa inovação terapêutica, houve outra iniciativa de
alcance incalculável: a publicação do Manual Diagnós tico e Estatístico
(DSM) da Associação Psiquiátrica Americana, em 1952. Trata-se da clas-
sificação dos transtornos mentais e do comportamento que se baseia na
listagem e na quantificação dos sintomas, realizada mediante consenso que
se propõe cada vez mais amplo. Após quatro edições, a nova classificação
alcançou êxito tão expressivo que definiu a orientação da própria Classifica-
ção Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde,
no final do século XX (1992).
O paralelismo entre o advento dos novos psicofármacos e o surgimento
da nova classificação (DSM) não é questão de casualidade. O DSM é a clas-
sificação construída para a era dos psicofármacos. Os diagnósticos são simpli-
ficados e os sintomas explicitados como alvos, numa perspectiva sintonizada
com as pesquisas e apropriada para o emprego clínico de tais medicamentos.
A cada diagnóstico corresponde um tratamento específico: eis o princí-
pio básico dos protocolos terapêuticos. Passou a existir hegemonia ampla do
método estatístico, em função do qual os dados são tratados sob o manto da
74

generalização. Nesse discurso não há lugar, por exemplo, para a psicanálise,


em que cada sujeito é diferente do outro, em que cada tratamento é diferente do
outro. Não se faz estatística com singularidades (BARRETO, 2016a, p. 34-35).

A pílula da felicidade

Durante décadas os modernos psicofármacos constituíram medicamentos


de uso restrito. Eram receitados apenas por psiquiatras, para quadros clínicos
bem caracterizados - geralmente mais graves. Quem não estivesse incluído
nessas condições não aceitaria consultar com um psiquiatra, e muito menos
fazer uso de psicofármacos. Havia constrangimento quanto a isso.
A grande transformação valeu-se de várias senhas. A primeira delas: o
Prozac (fluoxetina) foi lançado, no fim dos anos 1980, como a pílula da feli-
cidade. Sim, o Prozac é a pílula da felicidade. Quem é que não quer ser feliz?
Freud soube reconhecer na felicidade a aspiração humana mais generalizada,
embora também a mais complexa. Apresentar um medicamento como a pílula
da felicidade equivale a vender a ideia de que ela pode ser obtida pela ingestão
de uma substância química. Que não se subestime o poder dessa fantasia.
Os próprios psiquiatras são unânimes em afirmar que o Prozac (fluo-
xetina) não é mais eficaz do que os antidepressivos que o precederam. No
máximo, possui menos efeitos colaterais. A grande jogada, portanto, foi o
marketing criado para o produto, que condensa todas as estratégias de publi-
cidade dos psicofármacos: o bem-estar que advém pela via neuroquímica.
Quem é que não quer ser feliz por tão pouco?
A segunda senha veio no início dos anos 90: Freud está morto, tal como
circulou na capa da Revista Time. Era o grito de guerra contra a psicanálise,
eleita (corretamente) como o obstáculo maior no caminho da globalização,
na área da saúde mental. Retomaram, de forma agressiva, insistente e orques-
trada, críticas com as quais ela convive desde o seu nascimento, há mais de
um século: ela demora muito, é cara e não cura; ela não é ciência. Ao mesmo
tempo, o bombardeio da mídia não cessa: os transtornos mentais e do com-
portamento são devidos a distúrbios cerebrais de origem genética e possuem
tratamento medicamentoso. Afirmações sem prova ou de comprovação duvi-
dosa (BARRETO, 2016a, p. 37).
A terceira senha foi divulgar generalizadamente, pela mídia, a década
de 1990 como sendo a década do cérebro. Isso foi pano de fundo para uma
generalização do uso de psicofármacos, que passaram a ser empregados em
todos os transtornos incluídos no DSM.
A professora e pesquisadora norte-americana Adriane Fugh-Berman, do
Georgetown University Center, afirma que a indústria farmacêutica é sagaz:
os médicos por ela contratados não vendem remédios, vendem doenças. E
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 75

os principais alvos são os outros médicos, em especial os psiquiatras, cujos


diagnósticos são subjetivos.
Como é a estratégia? Fugh-Berman dá um exemplo fictício . Considere o
que os médicos chamam de "borborigmo", ou seja, os ruídos ou burburinhos
de um estômago vazio. Imagine que uma empresa pretenda desenvolver uma
droga para combater tal desconforto. O primeiro passo é fazer as pessoas
levarem a sério o estado de doença. Com a droga ainda em testes, são lan-
çadas mensagens de marketing: "não há motivo de preocupação enquanto o
estômago roncar ocasionalmente, mas episódios regulares podem indicar a
condição de barulhos altos repetidos do estômago (BARE)". Em seguida: "Os
acometidos por BARE podem ter que limitar viagens, atividades profissionais
e de lazer, com certa estigmatização social" . Ou ainda: "O BARE pode levar
à obesidade, pois a pessoa tende a comer para evitar o ronco do estômago".
A partir daí, médicos contratados são porta-vozes de mensagens em cursos
de educação médica continuada, nos quais é destacado que o BARE não
deve ser motivo de riso, mas, sim, condição comum, subdiagnosticada e com
consequências potencialmente graves (FUGH-BERMAN, 2014).
É possível dar, agora, exemplo mais caudaloso e nada fictício: o DSM
e, mais particularmente, o DSM-5. É a classificação de uma psiquiatria que
se diz científica e que postula, para os transtornos mentais e do comporta-
mento, substrato neurobiológico e etiologia, em última análise, genética. O
número de transtornos aumenta copiosamente e, por meio de artificio nomeado
comorbidade, cabe a cada um, agora, um cacho de diagnósticos. Com direito,
é claro, a um coquetel de medicamentos. O mais importante é isto: todo esse
biologicismo está apoiado em classificação sem b~se neurobiológica, anco-
rada em critério exclusivamente sociocultural. A tentativa de estabelecer base
neurobiológica é precária e posterior à definição do transtorno. Trata-se de
petição de princípio que revela o objetivo não manifesto do DSM: uma clínica
da medicação (BARRETO, 2016b, p. 62-63).
O resultado de tudo isso é do conhecimento de todos. Os psicofármacos
têm, hoje, uso praticamente universalizado, receitados que são não apenas
por psiquiatras, mas por todos os médicos. E os psiquiatras deixaram de ser
médicos de loucos. Sua clientela, hoje, também é universalizada.
Não seria exagero, então, dizer que o Prozac é um divisor de águas na
história da psiquiatria. Sim, há uma psiquiatria antes dele e outra depois dele.
76

REFERÊNCIAS

BARRETO, F. P. A responsabilidade do toxicômano. ln: BARRETO, F. P. O


bem-estar na civilização. Curitiba: Editora CRV, 2016b. p. 62-63.

BARRETO, F. P. Como vejo a psiquiatria hoje. ln: BARRETO, F. P. Ensaios


de Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.

BARRETO, F. P. O bem-estar na civilização. ln: BARRETO, F. P. O bem-estar


na civilização. Curitiba: Editora CRV, 2016a. p. 33-46.

FOUCAULT, M. A constituição histórica da doença mental. (1958) ln:-


FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
leiro, 1975. p. 52-60.

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-U-


niversitária, 1987. (cc. VII e X)

FUGH-BERMAN, A. Laboratórios vendem doenças. Entrevista. Ser Médico,


São Paulo, CREMESP, ano XVII, n. 67, p. 4-9, abr.-jun. 2014.
PARTE 3
SOBRE O GRÃO DE LOUCURA QUE
HABITA CADA UM DE NÓS!
CAPÍTULO 6

O GRÃO DE LOUCURA
DA MATERNIDADE
Cristina Moreira Marcos 18

Acerca da maternidade, Freud (1933/1989) afirma que há uma equiva-


lência simbólica entre o filho e o falo no inconsciente e faz do desejo de um
filho um destino da inveja do pênis; ter um filho seria um equivalente simbó-
lico da posse do falo. Mesmo antes de seus textos sobre a sexualidade femi-
nina, encontramos o desenvolvimento dessa premissa, por exemplo, no artigo
de 1917, "As transformações da pulsão exemplificadas no erotismo anal", no
qual Freud afirma a equivalência dos conceitos de fezes (dinheiro, dádiva),
bebê e pênis como produtos do inconsciente nas fantasias e nos sintomas. Eles
são intercambiáveis, mal se distinguindo um do outro. "Isto se verifica com
mais facilidade na relação entre 'bebê' e 'pênis' ." (FREUD, 1917/1989, p.
161). O desejo do pênis é, segundo ele, um desejo feminino,par excellence,
ao qual a mulher jamais conseguiria renunciar. A clássica tese freudiana sobre
a maternidade se desenha nessa equivalência e a situa do lado da lógica fálica
como uma resolução do Édipo feminino. A maternidade estaria ligada a uma
reivindicação fálica jamais satisfeita que culmina no desejo de ser mãe na
medida em que o filho é o substituto do que ela não tem: o falo. Temos assim,
em Freud, a maternidade assinalada como uma solução parã o feminino e uma
resposta à castração.
Nos seminários 4 e 5, Lacan aborda longamente as relações entre a mãe,
a criança e o falo. A mãe que deseja o falo, tão bem destacada em Freud,
não deixa de marcar sua presença na Metáfora Paterna de Lacan. Contudo,
a irredutibilidade da relação mãe-criança no falo já está assinalada nesses
seminários. O estatuto da criança como objeto da mãe já aparece, seja no
Seminário 4, quando Lacan fala do fetichismo, no qual o sujeito encontra
seu objeto, seu objeto exclusivo (LACAN, 1956-1957/1995, p. 85); seja no
Seminário 5, quando aponta para a possibilidade de a criança permanecer
como objeto da mãe (LACAN, 1957-1958/ 1999, p. 192).
É sobretudo na "Nota sobre a criança" que se destaca de modo mais
evidente como a criança pode vir a ocupar o lugar de objeto da mãe. Lacan

18 Psicanalista, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7, Professora


da Faculdade de Psicologia da PUC Minas e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Pesquisadora Mineira FAPEMIG.
80

(1969/2003) afirma que a função de resíduo exercida pela família conjugal


na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão
de algo que é de outra ordem, que não a da vida segundo as satisfações das
necessidades, mas da constituição de uma subjetividade implicando a rela-
ção com um desejo que não seja anônimo, no qual se conjugam as funções
da mãe e do pai. Nesse sentido, o sintoma da criança pode ser a verdade do
casal familiar. Quando o sintoma que prevalece é decorrente da subjetividade
da mãe, a criança é implicada diretamente como correlata de uma fantasia.
A criança realiza a presença do objeto a na fantasia. Ela realiza, com sua
presença, a fantasia materna.

A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido


pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente
assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as captu-
ras fantasísticas. Ela se torna o "objeto" da mãe e não mais tem outra
função senão a de revelar a verdade desse objeto (LACAN, 1969/2003,
p. 369, grifo nosso).

Ou seja, na relação dual com a mãe, a criança lhe dá, imediatamente


acessível, o próprio objeto de sua existência, aparecendo no real. Na relação
mãe-filho entra em jogo o que Lacan nomeia como uma "relação de objeto
no real" (LACAN, 1960/ 1966, p. 654). A criança é um objeto real nas mãos
da mãe que, para além dos cuidados que exige, pode ser usada como uma
possessão, presa ao serviço sexual da mãe (LACAN, 1964/ 1966, p. 852). Qual
lugar, no inconsciente materno, é designado a esse objeto surgido no real? Ele
pode ser o substituto do falo , mas pode não sê-lo. Uma mulher que se toma
mãe, longe de encontrar um apaziguamento na sua relação com a criança,
objeto de seu desejo, pode, ao contrário, fazer a experiência de uma devasta-
ção, sendo raptada de si mesma por um gozo enigmático, fora de sentido. A
maternidade está articulada à relação da mulher com a falta; contudo, a falta
nem sempre está articulada ao falo, à castração.
Em 1975, Lacan explicita ainda mais essa relação em seu seminário R.
S. 1. O homem toma a mulher como objeto causa de desejo, inscrevendo a
condição fetichista do desejo masculino; a mulher, por sua vez, toma a criança
como objeto a do qual ela se ocupa. Do lado masculino, o homem se serve,
portanto, da mulher, que toma a forma de fetiche para encobrir a castração.
Para a mulher, o objeto do qual ela se ocupa seria a criança.
Bassols (2019) propõe tomarmos a pergunta sobre a maternidade nos
dias atuais a partir da singularidade do objeto. "Que coisa (objeto) está em
jogo nas diferentes figuras e singularidades de ser mãe na atualidade, e creio
que é uma boa maneira de abordar a questão, do lado do objeto e da divisão
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 81

que produz no sujeito" 19 • O que se coloca em jogo na maternidade, do lado


do objeto?
Éric Laurent (2007), em seu texto "Psicanálise com crianças e sexua-
lidade feminina" , afirma que Lacan enfatizou, de um modo que Freud não
havia feito, o caráter decidido, louco, da paixão feminina. Ele esclarece que
esse traço de loucura se introduz com a noção de privação, apontada por
Lacan como uma das três formas da falta no Seminário 4. Nela, o objeto
demandado é um objeto impossível que busca a equivalência entre a criança
e o falo. Entretanto, o falo possui a marca do que foi pedido ao pai e daquilo
de que a mulher foi necessariamente privada. A introdução da privação como
terceiro termo na articulação entre a castração e a privação permite esclarecer
a passagem da mãe para o pai e o que está em jogo no objeto quando a mulher
quer um filho do pai. O objeto de que se trata é um objeto impossível.

Quando se diz que a mulher quer um filho do pai, de que objeto se trata?
Trata-se de um objeto cuja característica essencial é que ele passe pela
demanda, isto é, seja simbolizado por essa demanda. Assim a operação real
dessa privação implica um objeto transformado e introduzido no desejo
pela demanda. Esse episódio, essa peripécia reconstruída por Freud acerca
do pedido que a criança faz a seu pai, é essencial, porque introduz a
dimensão de um objeto impossível: sua existência só se dá a partir dessa
demanda. Se as mulheres estão privadas, podem pedir um objeto impos-
sível (LAURENT, 2007, p. 19).

Isto permite vislumbrar o que Lacan acrescenta à equivalência clássica


entre a criança e o falo. Laurent (2007) afirma que ele introduz a loucura
para além da equivalência que se pode obter entre a criança e o falo, ou seja,
há sempre um aquém ou um além. De um lado, temos a posição da criança
aquém da equivalência fálica como resto, é o que encontramos na perversão.
Nessa condição, a criança tem para a mulher o mesmo valor dos restos que
não alcançam a genitalidade. Nas mulheres, é do lado da relação mãe-filho
que encontramos a verdadeira perversão. Por outro lado, o mais além dessa
equivalência fálica estaria no caráter impossível desse objeto. Trata-se de um
objeto que se pode demandar, mas do qual se está necessariamente privado.
Ternos aqui a relação da mulher com o S de A barrado.
Nas fórmulas da sexuação, do lado da mulher, urna dupla flecha aponta de
um lado para o falo e do outro para o S de A barrado. Assim, Laurent propõe
abordar a sexualidade feminina a partir de seus limites.
19 Qué cosa (objeto) está en juego en las diferentes figuras y singularidades de ser madre en la actualidad, y
creo que es una buena manera de abordar la cuestión, dei lado dei objeto y de la división que produce en
el sujeto.
82

Se a equivalência fálica não permite dar conta do que seria um apazigua-


mento, somos levados a interrogar as características próprias à sexualidade
feminina acerca da relação entre o objeto a[ ... ] e o que é a dispersão do
sujeito feminino no Outro, cuja ocorrência dá à sexualidade feminina seu
toque de esforço apaixonado, de busca (LAURENT, 2007, p. 22).

Segundo Laurent (2007), podemos falar da dispersão do sujeito feminino


no infinito do seu amor ou da sua exigência amorosa, assim como falamos
da dispersão do sujeito psicótico em seu delírio. Ele conclui que, para além
de destacarmos os traços perversos presentes na relação mãe-filho, devemos
assinalar também o traço de loucura aí presente. Nós nos enganamos ao pen-
sarmos que a maternidade é menos enigmática e equívoca do que o feminino.
A maternidade também é marcada pelo não-todo. O ilimitado do amor matemo
é destacado por Laurent, por exemplo, no infanticídio:

Quando escutamos que para encarregar-se do mundo, para manejar os


problemas da sociedade, as mulheres são mais bondosas que os homens,
mais negociadoras, estão menos sujeitas à ira porque possuem menos
circuitos hormonais agressivos, é preciso não esquecer o infanticídio que
concentra o enigma do amor matemo. Assim, como o crime passional é o
ponto central do amor feminino, o infanticídio o é do amor maternal. As
mulheres não possuem a perversão no sentido masculino, possuem, em
troca, o infanticídio. Não possuem a perversão porque têm filhos , dizia
Lacan para resumir o problema (LAURENT, 2006, p. 139).

Cada maternidade é habitada por seu grão de loucura e se conjuga sob


diversas formas, desde a simbolização do falo através da criãnça até o extremo
da sua captura como objeto na fantasia materna, na qual o filho pode chegar
a realizar essa fantasia. Nessa série de posições, encontramos o filho como
sintoma do par parental, mas também, na clínica das psicoses, ele pode vir a
encarnar o objeto de gozo. Em suma, a maternidade se desdobra mais aquém
e mais além da equação filho = falo . Na clínica, a experiência da gestação, do
parto e da maternidade frequentemente deixa entrever aquilo que da mãe não
se deixa recobrir por esta equivalência (MARCOS, 2007, 2017). Se a signi-
ficação da maternidade assim se desenha para Freud, e daí termos a criança
comumente associada ao falo, Lacan abre a perspectiva de pensá-la em seu
estatuto de objeto em suas diferentes declinações: objeto causa de desejo,
objeto dejeto, objeto tampão. A criança pode se situar no lugar de objeto da
mãe e vir a encarnar e condensar um gozo que não se localiza de outro modo.
Para as mulheres, "o filho é o objeto de sua existência que aparece no real"
(LACAN, 1969/2003 , p. 370). Essa realização da presença do objeto a pode se
fazer em diferentes modalidades. Zenoni (2000) afirma que a criança, ser vivo
PS ICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 83

saído do corpo da mãe, se presta particularmente a dar forma ao retomo do


objeto no real. Segundo ele, "condensador de gozo", o filho pode ser "a libra de
carne a sacrificar que se separa da unidade do corpo" (ZENONI, 2000, p. 37).
Para além da criança identificada ao Ideal, presente na figura da "His
Majesty the Baby" (FREUD, 1914/2004, p. 110), temos a ênfase colocada
na criança enquanto objeto, capturada no gozo, seu e de seus pais. Nos casos
mais favoráveis, ela é o falo, mas para além da inveja do pênis, ela pode não
ser o falo, mas esse objeto no qual a mãe responde às questões da sua existên-
cia. Lacan o destaca na "Nota sobre a criança" através do sintoma somático
da criança que "oferece o máximo de garantia a esse desconhecimento ( da
verdade da mãe); é o recurso inesgotável, conforme o caso, a atestar a culpa,
servir de fetiche ou encarnar uma recusa primordial" (LACAN, 1969/2003,
p. 370). Evidentemente, não é só da criança que uma mulher pode fazer um
falo. Ela pode abordá-lo de diversas maneiras e não somente por intermédio
da criança. Fazer de um filho um falo é, entre outras coisas, poder dar um
valor libidinal ao que em princípio se apresentava como um objeto estranho.
A gravidez e a maternidade deixam entrever uma linha tênue entre o ser e o
não-ser, o brilho fálico e o dejeto.
As loucuras maternas não necessariamente estão associadas a uma mãe
psicótica. Vêm à lembrança a peça de Eurípides, Medeia, e o famoso caso
Aimée, paciente da tese de Lacan acerca da paranoia. No primeiro caso, o
assassinato dos filhos visa abrir um furo no parceiro; no segundo, o ato opera
uma separação do filho, objeto de gozo. Medeia nos remete a uma passagem de
Lacan em "Televisão", na qual se afirma "não haver limites para as concessões
que cada uma mulher faz para um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus
bens" (LACAN, 1975/2003). Efetivamente, ela aparece iia peça de Eurípides
como aquela que tudo abandona por seu homem: ela trai seu pai, seu país
e vive no exílio junto a Jasão e a seus filhos. Não há concessão que ela não
faça por ele. Ela consente, e mesmo inserida em uma lógica fálica na qual
se situa a esposa e a mãe, Medeia aponta para uma desmedida, um excesso.
Contudo, antes de ser abandonada por Jasão, ela encontrava-se obediente à
norma fálica; mãe, mulher e esposa, suas ações até aí encontram-se sob a
lógica do ter - portanto, fálica. Porém, após a traição de Jasão, ela encontra-se
disposta a sacrificar seus filhos. Nela, a mulher e a mãe estão disjuntas. Os
filhos perdem o valor fálico e se tomam objeto para ela (MARCOS, 2014). O
infanticídio de Medeia visa abrir um furo em Jasão e atingi-lo em sua sucessão
e linhagem. O ato é o que surge como consequência da subversão da lógica
fálica maternal pela lógica não-toda (MARCOS; SILVA, 2019).
Lacan (1975) localiza o início do delírio de Aimée à época da primeira
gravidez, sem deixar de evocar o caráter erotomaníaco da sua relação com
seu primeiro amor. É aí que começam os distúrbios psicopatológicos. Uma
84

significação ligada à maternidade se impõe: " Eles querem que meu filho
morra" . Dominique Laurent afirma que "a criança que ela carrega, realiza o
objeto a. O Outro é real e quer gozar do sujeito" (LAURENT, 2004, p. 90).
Sucedem-se passagens ao ato violentas contra o marido e contra outros. Nasce
uma menina morta fazendo eco a seu próprio nascimento após o falecimento
de um irmão. Entretanto, o delírio já estava em marcha desde antes do nas-
cimento da criança. A convocação do significante pai pela maternidade basta
para mobilizar a significação mortal. A certeza delirante de ameaça de morte
sobre o seu filho é correlata à significação identificatória que ela atribui ao
filho: não se trata da equivalência "filho-falo" mas "filho-morto". Da segunda
gravidez, nasce seu filho, objeto, ao mesmo tempo, de um cuidado exclusivo
e ciumento e de uma grande indiferença. Os transtornos psicopatológicos se
acentuam, e seu delírio persecutório se organiza em tomo de uma significação:
"todos ameaçam meu filho" . Sua perseguidora, a atriz que será golpeada na
porta do teatro, é uma ameaça constante ao filho . Aimée confessa a potencia-
lidade criminosa de seu delírio materno: "Eu temia, diz ela, muito pela vida
de meu filho, se lhe acontecesse uma desgraça agora, seria mais tarde por
minha causa. Eu seria uma mãe criminosa" (LACAN, 1957/1975, p. 163).
Por trás da passagem ao ato contra a atriz, o que se desvela é a mãe criminosa.
Lacan sugere que "a perversão do instinto materno com a pulsão ao assassi-
nato explicaria a organização centrífuga do delírio que faz a atipia do caso
[...] e permitiria compreender uma parte do comportamento delirante como
uma fuga para longe do filho" . Por isso ele considera que "o apaziguamento
autopunitivo, na base da cura, teria sido determinado em parte pela realização
de uma perda definitiva do filho" (LACAN, 1957/1 975 , p. 265). Aqui, o ato
tem um estatuto diferente daquele que vemos em Medeia. No caso Aimée, a
passagem ao ato realiza uma separação do filho como objeto de gozo.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 85

REFERÊNCIAS
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Boletín LaLeo, n. 13, s.d. Disponível em: http://x.jomadasnel.com/Boleti-
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(1917) ln: FREUD, S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas
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FREUD, S. Feminilidade. ln: FREUD, S. Edição Standard brasileira das


obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
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LACAN, J. Televisão. ln: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge


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86

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Paris, n. 1, p. 80-100, 2004.

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35-38, 2000.
CAPÍTULO 7

LAERTE-SE: nomear-se a partir


de seu grão de loucura
Carla Almeida Capanema20
Ângela Maria Resende Vorcaro 21

De acordo com Fajnwaks (2017), no debate atual empreendido entre


construtivismo e essencialismo sobre o conceito de gênero temos duas con-
cepções radicalmente opostas: de um lado, a teoria do gênero de Judith Butler
(1990) e as teorias e culturas queer, que defendem que o gênero seria um
semblante articulado, sem nenhum apoio nem relação a um real do corpo,
uma construção sociocultural. Do outro lado, a teoria essencialista defendida
pelas neurociências, segundo a qual o gênero estaria relacionado à genética,
ou seja, à natureza. 22
Para aquele autor, apesar de atenta a esse confronto, a psicanálise não
adere a nenhum desses polos. Ela ocupa uma terceira posição que, entretanto,
não parece estar suficientemente explicitada. Em psicanálise, a diferença
sexual não é tratada pela forma anatômica da realidade do corpo, mas pelos
efeitos do que escapa na conjugação sempre insuficiente operada por cada
sujeito entre seu corpo e sua inscrição na estrutura da linguagem. Como a
ordem estrutural da linguagem constringe a natureza do organismo, a tenta-
tiva de conjugar o corpo e a estrutura da linguagem i-!11plicará na operação
de castração pela qual o ser faz laço social, vindo a tomar-se falante. De tal
operação de castração, um resíduo inassimilável é vivido ao mesmo tempo
como mal-estar na cultura e como satisfação do sujeito. Por ser intransponível
à representação, explode o campo do simbolizável e aloja-se como modo de
gozo no ser falante.

20 Psicanalista. Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de


Minas Gerais (Bolsista Capes/PNPD).
21 Psicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais
22 A epigenética é um termo da genética que se refere à ativação dos genes, presentes no DNA do indivíduo,
pela leitura das proteínas e das enzimas do feto. Os genes constituem de marcadores, que são as invari-
áveis que contêm uma informação que permite estabelecer, caso a caso, quais características o cérebro
do indivíduo em formação adotará. Esses marcadores se ativam de uma maneira ou de outra, segundo a
leitura que eles farão das proteínas presentes no corpo do feto. Se o feto se encontra exposto a variações
importantes de hormônios andrógenos, estes hormônios provocarão o surgimento dos caracteres sexuais
masculinos. Se o feto se encontra exposto a um grande número de hormônios femininos, ele desenvolverá
caracteres sexuais femininos e, em ambos os casos, esses hormônios orientarão a formação do cérebro
em uma ou outra direção. (RICE apud FAJNWAKS, 2017).
88

Para a psicanálise de orientação lacaniana, a diferença sexual dos seres


falantes não se refere à correlação entre anatomia e gênero concebida a partir
de identificações imaginárias a modelos sociais e culturais, mas às modali-
dades singulares de gozo com que cada sujeito se revira para inventar-se,
podendo, assim, nomear-se. Trata-se de identificar-se a seu sintoma, trans-
formando o que há de real no modo singular de satisfação do sintoma ao
transpô-lo à enunciação.
Uma questão crucial aqui se impõe: o que mantém juntos Real, Simbólico
e Imaginário, atando ou desatando um sujeito em sua relação com o Outro?
Esta localização pode nos ajudar a cernir um "grão de loucura" e reconhe-
cê-lo como sendo o mais singular que umfalasser constitui, uma singulari-
dade autêntica, a se opor a toda pseudo singularidade baseada no "Eu" e no
pertencimento a uma comunidade de gozo comum (FAJNWAKS, 2018). E
essa singularidade autêntica pode vir a permitir o reenodamento do sujeito ao
Outro, constituindo-se numa operativa na direção do tratamento.
É no Seminário 22: R. S. I. (1974-1975, inédito) que Lacan desenvolve a
teoria das nominações como quarto elo que enoda o Simbólico, o Imaginário e
o Real. Esse quarto elo é a forma singular como cada ser falante enoda aqueles
três registros da realidade psíquica a partir de suas relações com o gozo fálico,
o gozo do Outro e o gozo do sentido. Com a introdução do nó borromeano e
das nominações imaginária, simbólica e real, Lacan propõe a formalização da
experiência do ser falante onde os modos de gozo tomam o seu lugar.
Este trabalho visa fazer uma análise borromeana do documentário Laerte-
se23, filme sobre a cartunista Laerte que passou quase 60 anos se expressando
e sendo identificada como homem, até que decidiu revelar §Ua identidade de
mulher transexual. Procuraremos demonstrar como Laerte faz a construção do
quarto elo do seu nó borromeano a partir de sua singularidade sinthomática,
definindo-se não a partir de um gênero, mas sim a partir daquilo que se tem
de mais Real, seu "grão de loucura".

Laerte-se: "- eu sou isso e isso é eu"

O documentário Laerte-se é um convite reflexivo a nossas concepções


sobre o modo de pensar e praticar relações entre gêneros. Para Dunker (2018),
a grande novidade dos movimentos queer está em pensar que nossas relações
cotidianas replicam e atualizam relações de poder. Nas decisões linguísticas
ou comportamentais, de consumo ou estilo, no campo do trabalho, do saber
e do amor, sempre há um jogo que envolve o poder.

23 Documentário sobre a cartunista Laerte. Direção: Eliane Brum, Lygia Barbosa da Silva. Elenco: Laerte.
Disponível Nelflix.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 89

Em Laerte-se nos deparamos com as possibilidades de transformações


dessas relações de poder. O percurso atravessado por Laerte nos ensina o
caminho da invenção, onde a forma de se ter um corpo deve ser pensada a
partir de uma construção singular e não por opções naturais.
O documentário se inicia com Laerte falando de sua dificuldade em se
expor, foi mais de um ano da proposta do documentário até sua resposta.
"Tenho medo de ser uma fraude, por isso tenho medo de me expor... Tudo está
provisório em minha casa, moro nela há 12 anos e está tudo fora do lugar..."
Esta inadequação de sua casa nos diz do estranhamento de Laerte com
o próprio corpo, e a psicanálise nos ensina que essa fragilidade em se ter um
corpo é para todo ser falante - a forma como cada um vive sua sexualidade
é o que faz enigma. No Seminário 23, O sinthoma, Lacan anuncia: "nós não
somos um corpo, mas que nós temos um" (1975-1976/2005, p. 154).

O corpo só se toma próprio de uma maneira sempre singular, cheia de


sintomas, de defeitos perceptíveis, de inibições, e este ter pode sempre
falhar, como nos casos dos fenômenos de despersonalização, de falha
imaginária, ou simplesmente pela experiência de despossuí-lo ou de aban-
doná-lo (FAJNWAKS, 2017, p. 33).

O corpo se constrói através de traços e marcas do desejo do Outro ou


eventualmente de seu gozo, e será através destas marcas que o ser falante se
apropriará de seu corpo. Essa apropriação é feita a partir do que o falasser
diz de seu corpo, um saber que desliza ao longo da cadeia de significantes
(FAJNWAKS, 2017), como nos mostra Laerte em seus desenhos sobre o corpo
inacabado, um constante deslizar do lápis no papel, e sua fala que declina na
impossível captura de seu mais de gozar, pequeno objeto a, que se encontra
no cerne do nó de todo ser falante. Para Laerte, um corpo não se resolve, mas
se produz, e foi assim com Laerte, alguém se desenhando ao longo da vida,
dando contorno para seu corpo e para sua história.
Laerte nasceu filho de uma bióloga, e para sua mãe a anatomia é o des-
tino, conforme palavras de Laerte. Mas Laerte.aprendeu muito cedo a relação
enigmática de todo ser falante com seu próprio corpo, uma relação dificil
de conciliar em sua adolescência, momento do encontro com sua homosse-
xualidade. O encontro sexual rompe com a imagem que tinha de si mesmo,
trazendo-lhe grande angústia e, segundo suas palavras, ele desiste de sua
homossexualidade. "O meu desejo por homens era algo tão chocante que quis
me tomar mulher aos 17 anos para ser normal."
Em termos nodais, podemos situar um desenlace dos registros R.S.I.
em sua adolescência, tempo que requer a construção de uma nominação para
sustentar um nó borromeano que lhe seja próprio. Laerte se angustia com o
90

encontro sexual e com o insuportável de sua homossexualidade: a nominação


imaginária que sustentava o enodamento se desfaz liberando os três registros
da realidade psíquica.

Figura 1 - Os elos R, S e I desenlaçados

Segundo seu depoimento, Laerte desiste de sua homossexualidade ante a


insuportável angústia suscitada pela vivência de seu gozo homossexual, "que
baniu para debaixo do tapete". Nesse tempo de compreender, Laerte faz uma
reparação de seu nó borromeano através de uma nova nominação imaginária,
dando consistência imaginária ao gozo fálico fora do corpo que tanto lhe
angustiava. Viveu vários anos como heterossexual, casou algumas vezes, teve
filhos e se tomou reconhecido profissionalmente por sua arte nos quadrinhos.

Figura 2 - Nominação Imaginária de Laerte entre I e S

R
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 91

Mas, segundo Laerte, algo inconsciente persistia através de pensamentos


fóbicos em relaçao à homossexualidade. Com a criação de um novo quadrinho,
onde o personagem Hugo começa a se travestir de mulher, Laerte sentiu o seu
desejo de se tomar mulher aflorar novamente. A frase da saída da adolescência
encontra uma nova inscrição através da tirinha do Hugo: "Melhor ser mulher
do que ser gay". Foi quando começou a frequentar o circuito crossdresser,
um clube de pessoas que vestem roupas ou usam objetos associados ao sexo
oposto. Mas a morte inesperada de seu filho caçula o coloca em "um parafuso
interdisciplinar", um processo de "crise com muitas pontas". Procura uma
análise e interrompe suas atividades que se iniciavam no crossdresser. Isso
fica durante dois anos "guardado" no armário, esperando o seu destino.
Em análise foi possível trabalhar esse gozo fora da castração que tanto a
angustiava. Relata que sua relação com a sexualidade sempre foi complicada,
principalmente na infância e adolescência. A análise parece permitir a Laerte
uma nova inscrição desse gozo Outro, além do gozo fálico. Tomar esse gozo
fora da linguagem um pouco mais habitável parece ter sido o seu trabalho em
análise: "Depois de muito tempo me entendi como uma pessoa bissexual. Foi
transformador, isso me levou à transgeneridade." "E quando o Hugo virou
finalmente a Muriel, eu virei a Laerte."
Diante da pergunta: "Você é homem ou mulher?", duas respostas se
esboçam para Laerte: "Eu sou um homem e estou assumindo uma linguagem,
uma cultura que é tida como feminina. Estou invadindo esta área e reivindi-
cando para meu uso também." Ou: "Não, eu sou uma mulher também, tanto
quanto um homem."
Laerte nos diz que vive uma experiência de "passagem", aos poucos
se reconhece como mulher, ainda que não saiba definir o que exatamente
isso significa. E quem sabe? Não pensa em fazer mudança de sexo, mas
cogita com muitas dúvidas o implante de seios, que para ela tem um caráter
simbólico, de marca.
Mas como pode ser possível ser mulher fora da questão do corpo?, ques-
tiona a entrevistadora. Laerte responde: "De jeito nenhum deixar o corpo
de lado, mas também não pode se resumir ao corpo. Senão a gente aceita a
biologia, e o corpo é parte de uma negociação complicada"
Quanto ao nome próprio, ela não quis mudar: "Gosto de Laerte, tenho
uma vida inteira com ele, nunca tive aversão a ele ou por certos aspectos da
minha vida em masculino." "Será que eu preciso ser homem ou mulher? Eu
não estou construindo identidade nenhuma, talvez porque eu já tenho uma
que funcione beleza."
O nome próprio de Laerte parece ligado à letra e ao real, à medida que
se encontra separado da descrição do sentido, numa pura experiência de gozo
que amarra corpo e letra, real e simbólico, em uma nominação que faz laço
92

com o Outro. As contingências da vida permitiram o momento de concluir,


em que Laerte faz uma nova amarração de seu nó borromeano, conseguindo
enlaçar seu corpo e sua arte.
Podemos nos perguntar se essa amarração de Laerte seria da ordem de
um "sinthoma"? O "sinthoma" é definido por Lacan como um quarto elo que
faz a reparação do lapso do nó borromeano ou não borromeano. É também
uma nominação, mas não é exatamente um nome que esgota o gozo; é alguma
coisa que inclui o opaco do gozo, o seu grão de loucura. Diferente de outras
nominações, o sinthoma permite obter uma nominação que cerne o real do
gozo sem forçosamente declinar o que o Nome-do-Pai articula como inibição,
sintoma e angústia para um sujeito.
Em Laerte é o "pedaço de real" que permite a ela se nomear, diferente
das nominações anteriores que não prescindiam da maneira pela qual ela se
inscrevia no Outro. Assim, diante da pergunta da entrevistadora sobre como
ela vê os seus desenhos, ela nos ensina: "Imaturo! " "Eu acho que dificilmente
um corpo está resolvido para todo o sempre. O desenho também não ... a gente
está sempre em processo de mudança."

Figura 3 - Nominação Sinthomática de Laerte entre S e R

A passagem de Laerte a "à la erte"

Com a clínica borromeana Lacan realiza uma reconsideração do sintoma,


que passa a ter uma dimensão de nominação pareada a uma dimensão sim-
bólica e enodada ao real. Essa mudança do sintoma altera o seu paradigma,
que não é mais aquele da metáfora. O sintoma assinala o que do inconsciente
pode ser traduzido por uma letra, cunhagem da marca singular do encontro de
cada ser falante com o mal-entendido da linguagem. O sintoma é a repetição
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 93

dessa marca, provocada pela colisão contingente com esse impossível. O


sintoma se liga a uma parte de gozo não todo fálico e ao choque da língua
com o corpo, com "lalíngua".
A clínica borromeana se situa em cheio na disjunção entre o gozo do
Um (lalíngua) e do Outro. A questão que se coloca é como o gozo do Um,
que é solitário e remete ao corpo vivente que goza, irá se enlaçar ao Outro?
(GOROSTIZA, 2010). Lacan nos indica o caminho com o quarto elo do nó
borromeano, que possui função sinthomática, ou seja, de amarração entre os
três registros que habitam a "casa do dizer": onde o sujeito possa se nomear
a partir de um pedaço de real ex-sistente ao simbólico, e é o que possibilita a
amarração do grão de loucura de cada ser falante ao Outro.
Laerte nos ensina como se amarrar a partir dessa marca que a singulariza,
um modo de se nomear "à laerte" , inventando um nome que instaura uma
relação entre o sentido e o Real. Talvez possamos considerar que a passagem
de Laerte a "à laerte" indicia a invenção do ponto cardeal que distingue e
orienta o sujeito. É como nos ensina Lacan em R.S.I. (1974-1975, inédito):
"[ ... ] nomear é estabelecer uma relação, instaurar essa relação entre o sentido
e o Real. Não é se entender com o Outro sobre o sentido, mas acrescentear
ao Real alguma coisa que faz sentido".
94

REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Gender trouble: feminism and subversion of identity. London:
Routledge, Chapman and Hall, 1990.

DUNKER, C. Gêneros e seus descontentes. [S.l.]: Agência Patrícia Gal-


vão, 2018. Disponível em:http://agenciapatriciagalvao.org. br/mulheres-deo-
lho-2/generos-e-seus-descontentes-por-christian-ingo-lenz-dunker/. Acesso
em: 2 abr. 2019.

FAJNWAKS, F. Lacan e as teorias queer: mal-entendidos e desconhecimentos.


ln: SANTIAGO, A. L. et al. (org.). Mais além do gênero: o corpo adolescente
e seus sintomas.Belo Horizonte: Scriptum, 2017. p. 22-40.

FAJNWAKS, F. Qual identidade funda o sintoma? ln: APRESENTAÇÃO


ORAL NO XI CONGRESSO MUNDIAL DE PSICANÁLISE.LAS PSI-
COSIS ORDINARIAS Y LAS OTRAS BAJO TRANSFERENCIA, 2018.
Barcelona. Anais[ .. .]. Barcelona, Espanha, 2018.

GOROSTIZA, L. Clínica estrutural e clínica borromeana. ln: BATISTA, M.


C. D; LAIA, S. (org.). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.

LACAN, J. O seminário: R.S.I [S.1.], 1974-1975. Livro 22. Inédito.

LACAN, J. O seminário: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge-Zahar Ed., 2007.


Livro 23. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
CAPÍTULO 8

O GRÃO DE
,
LOUCURA EM
ANDRE: como escutá-lo?
Carla de Abreu Machado Derzi2-1

Como a nossa mesa se intitula "Sobre o grão de loucura que habita em


cada um de nós", trarei um fragmento de caso clínico de uma criança que
denominei de André, ressaltando o grão de loucura dessa criança autista.
Destacarei dois pontos no texto de Jacques-Alain Miller (2012), "Falar com
seu corpo". O primeiro ponto é a articulação do significante saúde mental com
o discurso do mestre ao afirmar que a saúde mental remete desde sempre ao
discurso do mestre. Miller atribui à saúde mental, negócios governamentais e
dominação política. O segundo ponto destacado é: o sujeito diante do mal-estar
na civilização faz apelo ao discurso analítico e corno que tal discurso coloca
em movimento o Um todo só. Na psicanálise, o sujeito encontra sua solidão
e seu exílio em relação ao discurso do Outro. Segundo Miller (20 12, p. 130):
"Lacan começou por ordenar a experiência analítica no campo do Outro, mas
para demonstrar em seguida que o Outro não existe, corno também não existe
a saúde mental. O que existe é o Um-todo só".
Aproximo esses dois pontos destacados a um fragmento de caso clínico
atendido na Clínica Escola da PUC Minas, sob minha supervisão, desde 2015.
André chega para ser atendido com 6 anos de idade com o diagnóstico de
"Síndrome de Asperger". A mãe relata as dificuldades dele em realizar as
necessidades fisiológicas, retendo por vários dias suas fezes. Ela demandava
tratamento para que ensinássemos o seu filho a ir ao banheiro. Além disso,
relatou-nos que a fala dele se apresentava confusa, ininteligível. Ele chega à
clínica já em tratamento com a fonoaudióloga e com a terapeuta ocupacional.
A mãe de André, submersa ao discurso do mestre, atende a demanda do Outro,
seguindo a orientação desses profissionais em tratar o filho também com um
psicólogo. André, ao contrário de sua mãe, recusando à demanda do Outro
maternal, se encontra constipado, enfezado, encapsulado, não dando nada,
situando-se distante do lugar previsto pelo Outro.

24 Psicanalista. Professora da Faculdade de Psicologia da PUC-MG. Doutorado pelo Departamento de Psi-


canálise de Paris VIII. Coordenadora e Professora do curso de especialização "Clinica Psicanalítica na
atualidade: contribuições de Freud e Lacan", IEC/PUC-MG.
96

Na primeira sessão, ele chega atirando, jogando algumas palavras, "cocô,


comida, escola", palavras de seu cotidiano; em outros momentos, apresenta
verbiagens, demonstrando não assumir uma voz enunciativa, não cedendo ao
Outro sua voz. André apresenta-se em conexão com a linguagem, mas não a
usa para se comunicar, e sim para se deleitar com as palavras fora do discurso
do mestre, como afirma Lacan (1 953-1954/1 983, p. 7 1), no Seminário 1, Os
escritos técnicos de Freud, ao se referir a Dick ( caso de Melanie Klein) deste
modo: "ele, Dick, é o mestre da linguagem" . Da mesma forma, André não
se serve da linguagem para estabelecer laço social e fala para não ser com-
preendido. Na verborreia de André, a voz é apagada de modo a que ele possa
conservar o controle e se proteger do Outro, permanecendo fora do discurso
do mestre. Ele usa as palavras desabitadas de subjetividade, não tendo inten-
ção de demanda e nem de endereçamento. Seu isolamento e sua exigência de
imutabilidade testemunham sua recusa ao Outro. Há uma desinserção dessa
criança com relação ao discurso do mestre.
Desde as primeiras sessões, André assume o comando escolhendo um
objeto de sua predileção: um caminhão de lixo. Após algumas sessões, a
criança rodava com o caminhão de lixo e, sem se separar do caminhão, o fazia
circular por toda a sala de atendimento. Em uma sessão, a estagiária, tentando
estabelecer uma parceria com ele, amassa uma folha de papel e coloca na
caçamba do caminhão de lixo. Esse encontro contingente possibilitou inscrever
um acontecimento. André, a partir de então, pegava o caminhão e, com um
olhar vazio, aguardava para que ela colocasse mais papel amassado e picado
na caçamba. Entretanto, o lixo do caminhão não chegava à lixeira da sala de
atendimento, permanecendo sempre cheio de papel na caçamba. Essa cena
foi reiterada durante algumas semanas até que ele começou -a jogar na lixeira,
os papéis amassados na caçamba. O "tem lixo" e o "não tem lixo" tratam a
negatividade da linguagem, trabalhando com o signo, tentando fazer advir a
perda do objeto. Após alguns dias, a mãe relata que André não estava mais
retendo as fezes. Além disso, a fala melhorou significativamente, conseguindo
já formular frases compreensíveis. Ele cessa de jogar e atirar, palavras e fezes,
organizando seu mundo, organizando seu corpo e sua linguagem. O desenho
também foi introduzido por ele, que começa por contornar sua mão, desenha
e contorna a mão da estagiária no papel e diz ser a dela. A parceria e o apelo
ao Outro se evidenciam, alguma coisa que vem do Outro se inscreve no papel,
como o contorno da mão da estagiária e a parceria estabelecida.
Observa-se que o autista sabe, apesar de não ter aprendido com o Outro.
Ele sabe construir uma saída para regular um excesso de gozo. Ele cavou um
buraco no real a fim de que um excesso de gozo pudesse ser extraído do seu
corpo. Essa construção permitiu-lhe um distanciamento do seu corpo com
suas fezes. Como comenta Laurent (2014 p. 290), não há buraco na dimensão
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 97

do real; forçar um buraco, é uma tentativa de fazer frente à foraclusão do


buraco. A criança autista apresenta esse impulso, impulso de produzir um
buraco mediante algum forçamento , por exemplo, uma automutilação, a fim
de encontrar alguma saída para o excesso de gozo. Jogar o lixo na lixeira
possibilitou incluir um buraco produzido por essa criança para acalmar o gozo
infernal do acontecimento de corpo que a invade. A construção de uma borda,
através deste objeto autístico, que é o caminhão de lixo, e depois, o desenho,
leva-o a localizar um gozo. Foi necessário construir uma borda, pois afirmar
que há foraclusão do buraco no autismo é dizer que não há borda que delimita
o buraco. No autismo falta o significante que bordeje a Coisa, sendo assim
a Coisa não pode ser nomeada, bordejada pelo significante, não ocorrendo a
simbolização do buraco. A Coisa se faz presente sem velamento possível e
o autista se precipita no real de um gozo sem limites. Não se trata, assim, de
uma clínica do significante; trata-se de uma clínica da letra, escritura fora de
sentido, como esvaziamento e localização do gozo para efetuar uma extração
de gozo que lhe permita a construção de bordas que possibilitem o corpo exis-
tir. Quando André constrói um buraco, uma borda, o objeto autístico adquire
uma forma; daí, dá uma forma também ao sujeito. Essa neoborda permite
estabelecer trocas com um Outro menos ameaçador. Pode-se dizer que o con-
torno da mão do analista ratificou que o analista entrou como duplo parceiro,
funcionando como borda do corpo do sujeito autista, o qual, por sua vez, não
tem corpo. A função desse duplo é de fazer suplência a essa ausência de borda.
O analista - com sua presença discreta e não ocupando o lugar do saber,
lugar do mestre e também nem de suposto saber - permitiu que o funciona-
mento subjetivo singular do sujeito emergisse. Na medida em que o discurso
do mestre se deslocou, o autista tomou o controle dõ objeto que lhe serviu para
ordenar o mundo. A suspensão do saber estabelecido rompeu com os ideais
do discurso universitário de educar, ensinar, instruir, possibilitando aparecer
um vazio no campo da demanda do Outro, permitindo abrir um espaço para
que esta criança autista nos ensine. O discurso do analista, pelo fato de não
ser um discurso dominador, dá lugar para a construção do saber silencioso
dessa criança. É ela que precisa estar no comando e no domínio. O excesso
da presença do Outro para o autista, do qual ele precisa se proteger, evidencia
que o Um-todo-só deve prevalecer no tratamento. O saber do Outro, seja da
fonoaudióloga, da terapeuta ocupacional, do médico, tomam-se inoperantes
para a construção singular subjetiva da criança, embora tenham sido neces-
sários para que a mãe procurasse tratamento. Destaco, assim, a importância
da subversão do saber para o efeito no atendimento de André: inicialmente,
o saber estava localizado nos profissionais; posteriormente, no atendimento
psicanalítico. Não é o analista quem sabe; trata-se de uma aposta para a cons-
trução do saber de André. O particular deste caso traz uma consequência no
98

universal da teoria, ao mostrar que esses sujeitos não se civilizam a partir de


imposição de normas, ou pela aprendizagem, ou sofrendo um adestramento de
seus instintos. O gozo autista é um núcleo não elaborável do gozo, impossível
de civilizar; entretanto, é necessário um tratamento desse gozo.
A introdução de um menos, não como falta produzida no simbólico, per-
mitiu que André tomasse suportável a presença do outro em sua vida. Vários
recursos ele inventou para retirar a presença do Outro em excesso: fez uso de
duplos, dos quais a mãe nomeava de "amigos imaginários"; tomou-se locutor
para narrar o de que gostaria; utilizou o Instagram para demandar conversas
com a estagiária, estabelecendo laço social.
Neste semestre, a criança compareceu à clínica vestindo uma blusa sobre
a conscientização do autismo. Ao ser questionada pela estagiária, ela começa
a girar na cadeira de rodinha, e diz que o autista é diferente, acrescentando
que os índios e os negros também são diferentes. Através dessa nomeação,
observa-se que essa criança encontra um lugar de inscrição social a partir de
sua diferença, provocando uma saída para seu encapsulamento. Ela convoca o
olhar do Outro sem se angustiar. Como diz Laurent (2014, p. 55), ao comentar
a aplicação da psicanálise ao autismo: "Trata-se de permitir ao sujeito livrar-se
de seu estado de retraimento homeostático no corpo encapsulado. Isso supõe,
tomar-se o novo parceiro desse sujeito, com exclusão de qualquer reciproci-
dade imaginária e sem a função da interlocução simbólica" . É tentar tomar
complexa a borda autística para que apareça algo de novo na repetição em
circuitos cada vez mais amplos . Observa-se que o analista está implicado no
tratamento; o analista está dentro do quadro que pinta, como Velásquez no
quadro As meninas (MILLER, 2012). É necessário que o analista perturbe a
homeostase, abrindo possibilidades de manobras, propicíando que a defesa
do autista se tome mais flexível, mais permeável a alguma novidade. É pre-
ciso ressaltar que perturbar a homeostase não se trata de retirar ou anular o
objeto autístico, mas possibilitar que essa defesa seja construída, já que ela
faz frente à pulsão de morte.
Observa-se, assim, que o campo do Outro foi sendo possível para essa
criança a partir da inclusão do Um-todo-só no tratamento, a partir da escuta
do "grão de loucura" dela mesma. Foi necessário situar, dar um lugar a esse
grão de loucura; a esse campo além dos limites do simbólico; a esse grão,
o Um-todo-só, que não estabelecia inscrição alguma no social. A clínica do
autista convoca os analistas a um lugar difícil de suportar, a um estranho
familiar, ao inesperado, ao que nos surpreende. Ela nos permite confrontar
ao mais real da estruturação subjetiva, ao lugar do real, onde há o Um e não
ainda um Outro, ou melhor, onde ainda não há um laço com o Outro.
O encontro com André ocorreu pela contingência, pelo inédito, pelo saber
jogar com o não saber, que nos permite pensar o desejo do clínico, do analista,
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 99

um desejo que, do real, retira sua causa. André se apresentou, inicialmente,


com uma irrepresentabilidade no Outro. A partir da inscrição de sua diferença,
ele pôde ascender ao campo do Outro por meio de suas invenções, soluções
com esforços. Há que se apostar num sujeito que seja capaz de inventar, a
partir de seu "grão de loucura", um lugar no mundo, um jeito que somente
ele-próprio, esse Um-sozinho, sem o recurso ao Outro barrado, possa criar.
A clínica do autista nos conduz a um tratamento do real pelo real, a um
tratamento do grão da loucura, já que não há transferência ao suposto saber
depositado no analista. Os autistas ensinam aos psicanalistas que é necessá-
rio colocar o Um-todo-só em movimento, que o impossível deve se incluir
no tratamento e que cada um de nós tenta "se virar" com o seu insuportável.
Sendo assim, o único "remédio" para o sujeito autista é incluir no tratamento
o grão de loucura dele: seja ele, seus objetos autísticos, suas estereotipias ou
ainda, seus duplos, para que ocorra, consequentemente, um tratamento dele
com o Outro. Os recursos inventados por André, por meio dos objetos autís-
ticos, afastaram o gozo do corpo do sujeito para localizá-lo sobre uma borda
que não é somente barreira ao Outro, mas também conexão com o social.
André nos ensina: a psicanálise abre a possibilidade de se fazer algo com
o incurável, intrínseco a todas as estruturas.
100

,..
REFERENCIAS
LACAN, J. O seminário: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1983. Livro 1.

LAURENT, É. A batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2014.

MILLER, J.-A. Parler avec son corps. Mental - Revue lnternacionale de


Psychanalyse, n. 27-28, p. 127-133, 2012.
CAPÍTULO 9

QUANDO A INDIGNAÇÃO
ENLOUQUECE
Juliana Meirelles Motta 25

Lacan designa a indignação como uma resposta frente a uma afronta


à dignidade. Pode-se pensar as paixões do ser como paixões do laço com o
Outro: amar, odiar, ignorar o Outro. Dessas três, a ignorância é a mais próxima
da indignação, já que ignorar o Outro pode ser o ataque mais radical a seu ser,
podendo, por isso mesmo, suscitar a indignação. Por outro lado, quando se está
indignado, não necessariamente se é violento, tampouco se pode ser tomado
pelo ódio ou pela cólera, de modo que a indignação tem uma especificidade
que merece ser interrogada.
A partir dessa orientação, o tema indignação dentro do campo de inves-
tigação a que o Núcleo de Psicose propõe causa a questão: como o psicótico
se serve da indignação? Como podemos ler esse índice clínico ao longo do
trabalho com os nossos casos de psicose?
Este texto recorre ao caso de Nina Simone, a magnífica cantora e musi-
cista de jazz e músicas de protesto competentemente relatado no documentário
de Liz Garbus, "What Happened, Miss Simone?", no qual se pode acompanhar
a construção de um discurso em que a indignação está situada como um ponto
onde a sua existência e a sua arte se ancoram. -
As paixões têm a ver com o corpo e com o gozo (o do próprio corpo ou
o da fantasia) e os conectam com a linguagem. Suzana Barroso (2019), em
seu texto de abertura das atividades no Núcleo de Pesquisa e Investigação de
Criança em 2019, aponta que a inserção da indignação no campo dos afetos
lacanianos se apresenta como uma novidade. "Embora Lacan não a tenha
mencionado junto aos demais afetos que discute em Televisão (1975/2003)
- angústia, tédio, morosidade etc. -, ela implica como esses outros uma arti-
culação entre significante e corpo, significante e objeto ... " O que se coloca
aqui é que Lacan não vai trabalhar uma teoria das emoções, mas sim uma
teoria dos afetos, ou seja, uma corporificação do significante. Suzana recorre
à formulação de Lecoeur (2010, p. 28): "A corporificação é a introdução de
um significante na dimensão do corpo-sua incorporação, o que implica a perda

25 Psicanalista, Mestre em Psicologia/FAFICH-UFMG. Coordenadora do Programa de Residência Multipro-


fissional em Saúde Mental - Instituto Raul Soares/FHEMMIG. Docente das Especializações em Clínica
Psicanalítica e Saúde Mental/lEC PUC-Minas.
102

da capacidade de significar em proveito de um efeito de gozo" (4). Assim, o


afeto vem, rodeia um corpo que, na sua propriedade, estaria ali para habitar
a linguagem. Não se localizando, não encontrando alojamento possível, o
afeto se desloca, sem lugar próprio, pontuando aqui que ele não se encontra
desconectado do significante.

O afeto demonstra a impossibilidade de harmonia junto ao ser falante, tes-


temunha a sua inadequação ao mundo da linguagem, visto que do encontro
sempre traumático das palavras como corpos decorrem os desarranjos, as
afecções e as perturbações das funções do corpo vivo marcado, portanto,
um modo de gozo (BARROSO, 2019).

Assim, a indignação toca a distinção entre dignidade e indignidade.


Faz-se necessário retornar ao ponto onde Lacan (1998), em "Variantes do
tratamento-padrão", nos Escritos , afirma que o ódio, tanto como o amor e
a ignorância, se constitui numa via na qual o ser pode se ancorar negando
o ser do outro. Nesse ponto, formula-se mais uma questão: a indignação se
constituiria em uma solução terceira a partir dessas posições de indignidade
e dignidade?
Nina é uma menina negra, nascida em um estado sulista americano, em
um tempo em que o ódio racial é ostensivo e cruel. Desde cedo, seu talento
para a música é notado: uma professora branca de piano propõe à sua família
negra e pobre acolhê-la para garantir sua formação. Existia ali um talento raro,
que brotava naquele lugar árido e segregador. Nina menina vai estudando e
surpreendendo a todos com a sua vocação. A professora branca a treinava
para ser uma concertista clássica, e Nina e sua família estavam uma posição
de acordo. Mas não deixava de ser desconectado com o tempo, a realidade
e o momento de ódio racial de uma América sulista: menina preta e pobre
sendo treinada para ser mostrada como algo raro dentro daquela comunidade
tradicionalmente racista.
Miller (2005), no seu texto "El Otro que no existe y sus comités de ética",
enlaça a castração feminina ao ódio e à feminilidade e, de maneira similar, o
gozo do Outro ao ódio racista, concluindo que odeia-se no Outro sua maneira
particular de gozar, justamente porque não é a minha ou porque implica a
subtração da minha. Ou seja, a raiz do racismo é o ódio ao próprio gozo.
O documentário registra um momento fundamental daquela época: um
concerto é organizado na cidade para que a comunidade possa testemunhar
a menina Nina genial e sua performance ao piano. O concerto acontece em
um espaço onde habitualmente os brancos sentam na frente e os negros se
acomodam nos fundos da sala. Os pais de Nina estão lá, no fundo. Nina se
recusa a tocar enquanto seus pais não forem acomodados na primeira fila.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS : impasses e soluções 103

Esse momento funda uma posição desse sujeito em relação ao Outro: ela se
depara concretamente com esses dois pontos, onde se localiza o digno e onde
se localiza o indigno, e a inscreve em uma outra posição: indignada. Podemos
pensar aqui em outra posição?
Nina cresce e vai estudar em Nova York para dar continuidade à sua
carreira de pianista clássica. Mas se faz necessário trabalhar para sobreviver, e
assim ela começa a tocar blues e jazz em clubes noturnos muito frequentados
pela comunidade negra e pelos melhores músicos e instrumentistas da época.
Aqui um acontecimento se faz: uma identificação com esses grupos no que
diz respeito à condição deles naquele tempo e naquele país. Música e protesto
se constituem significantes que possibilitam uma construção de solução para
o sujeito Nina para que se acomode em um mundo injusto. O afeto encontra
aí uma localização para ela nesse binário.
A partir desse momento e cada vez mais engajada nos movimentos de
resistência, Nina se toma a cantora de protesto e dos direitos humanos dos
negros americanos. Martin Luther King e Malcom X a reconhecem nessa
posição. A função da operação da posição de indignação a localiza e ela tem
por onde escrever e cantar sobre isso, tratando seu gozo e através disso fazendo
um laço com o Outro, não sucumbindo, não se mortificando na identificação
que ser negro é ser indigno.
Lembra-se aqui do esforço de Schreber de aceitar a experiência de femini-
zação que ele acreditava ser impingida por um Deus indignante. Ele se indigna
com Deus, ele se indigna para sobreviver a esse Outro devastador, mas que
ao mesmo tempo não suportava sua distância. Schreber produz uma invenção
que o alivia da experiência de desamparo. Para Lacan, se sua feminização,
ordenada em tomo da experiência de eviração, faria parte de sua reconstrução
no campo imaginário, a identificação ideal reordenaria toda a sua produção
simbólica. Pensa-se ser o mesmo trabalho que Nina Simone faz. A identifica-
ção ideal nesse lugar da cantora e artista de protesto, desa forma reconhecida
por todos. Cai a menina negra musicista clássica dos brancos e se produz uma
mulher negra porta-voz das denúncias contra o racismo insano americano.
Neste ponto do trabalho, mais uma questão se coloca: a indignação como
laço social da psicose tentando fazer um Outro existir, uma tentativa de operar
simbolicamente sobre o gozo, uma maneira de fazer laço e de endereçamento
ao campo do Outro, em oposição à solução de passagem ao ato.
Uma presença estética irretocável e uma música sem comparação a nada
então até produzida.
Lembra-se aqui o texto de Miller (2010), "A salvação pelos dejetos", que
pontua o seguinte: quando o gozo é elevado à dignidade da Coisa, ou seja,
quando ele não é rebaixado à indignidade de dejeto, ele é sublimado, ele é
104

socializado. O que chamamos de socialização do gozo. O gozo é socializado,


introduzido no laço social, no circuito das trocas. Ele é colocado a trabalho
no discurso do Outro e para o seu gozo. O desejo destaca um objeto entre
todos, não equiparável aos demais, singular. Esse objeto supervalorizado tem
a função de salvar "nossa dignidade de sujeito", tornando-nos "algo diferente
de um sujeito submetido ao deslizamento infinito do significante", "algo único
insubstituível" (MILLER, 2010, p. 12). Nina eleva sua posição e discurso
indignado a uma posição digna.
Mas não se sustentou ... laço instável, frágil. .. Ao entrar para a militân-
cia do movimento dos Panteras Negras - uma organização urbana socialista
revolucionária criada em 1966, cuja prática principal era a patrulha decida-
dãos armados para monitorar o comportamento de oficiais do Departamento
de Polícia de Oakland, bem como desafiar a brutalidade policial em Oakland
e também ao longo da sua formação a implementação de programas sociais
para as comunidades negras, Nina muda o seu discurso . Pode-se identifi-
car nos seus depoimentos fala do perigo de ter uma arma, pois certamente
mataria alguém .. . ou em um show emblemático onde ela passa a convocar
seus fãs e plateia para atos violentos contra a população branca ou quando
defende a criação de um estado só de negros dentro dos Estados Unidos. A
forma de laço com o Outro muda, o Outro se toma ameaçador e próximo.
Seu discurso se toma furioso, agressivo, insuportável, enlouquecido. Con-
funde-se com o discurso branco racista. Seus companheiros, inclusive dos
Panteras Negras, se afastam ...
A situação de desamparo se coloca. Ela tem um marido que a espanca e
uma filha que não sabe o que fazer com ela. Sua voz não é mais tão escutada.
País em guerra, Luther King assassinado, as ancoragens nõ campo do Outro
vacilando, a produção musical não tão mais vigorosa. Decide sair daquele
lugar que não se localiza mais, o afeto rondando, procurando se alojar em outro
Outro. Decide ir para a África, mais especificamente para a Libéria, república
mais antiga do continente africano, fundada por escravos negros americanos
libertados em 1822. Caracteriza-se como um país africano que menos sofreu
com o processo de colonização europeia justamente pela especificidade da
sua fundação. Nina, tentando se manfer digna na sua causa, vai para um país
de negros que recusa os brancos.
Vive bem por um tempo, mas se inicia um processo de decadência. Não
trabalha mais, não canta mais, não produz mais .. . A irritação com o outro
agudizando, espancando sua filha .. . Nina indo de encontro a uma posição de
objeto, sem vida, de indigna.
Vai para Paris, chega a morar nas ruas e a cantar em bares de segunda
categoria, até que músicos amigos a acolhem e reorganizam um tratamento
medicamentoso, assim como sua carreira. Nina retorna aos palcos, a uma vida
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 105

mais tranquila, mas agora em uma outra posição. A indignação a deixou e a


artista da criação também. ·
Henri Kaufmanner (2019), em seu trabalho para a preparação da IX
ENAPOL, afirma que haveria uma maneira de se revoltar, uma maneira em
que o sacrificio de si mesmo estivesse em jogo. Tal condição revela o estatuto
reflexivo em jogo da indignação. Quando esta visa ao Outro, a trajetória de
sua flecha retoma sobre o próprio sujeito. Se a revolta aponta o Outro, aquele
que priva, o sujeito mesmo é afetado pelo retomo de sua indignação sobre si
mesmo, na medida em que o que está em jogo é sua própria vida, é ele quem
se sacrifica e se separa das raízes de sua existência.
Como em Schreber, Nina passa da indignação ao consentimento, uma
outra forma de organizar seu gozo o afeto encontra alojamento nesta solução:
parece que a Nina menina negra, que apenas tocava para os brancos, retoma
como a única ·forma de Nina se manter em pé. Mais triste, sem a vitalidade
que tanto a possibilitou em um momento da sua vida .
. . . e que tanto nos encantou.
106

REFERÊNCIAS
BARROSO, S. F. O que a psicose nos ensina sobre a indignação. Disponível
em: https ://ix. enapol. org/ o-que-a-psicose-nos-ensina-so bre-a-indignacao.
Acesso em: 8 ago. 2019.

KAUFMANER, H. Jndignai-vos, porém ... Disponível em: https://ix.enapol.


org/o-que-a-psicose-nos-ensina-sobre-a-indignacao. Acesso em: 8 ago. 2019.

LACAN, J. Televisão. ln: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 2003. p. 508-543.

LACAN, J. Variantes do tratamento-padrão. ln: LACAN, J. Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 325-364.

LECOEUR, B. Le corps et ses restes: masque et incorporation. Quarto Révue


de psychanalyse, Bruxelas, ECF-ACF en Belgique, n. 97, p. 50-54, abr. 2010.

MILLER, J.-A. A salvação pelos dejetos. Correio, Revista da EBP, São Paulo,
n.67,p. 19-26,dez.2010.

MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires:
Paidós, 2005.

SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. São Paulo: Editora


Paz e Terra, 2006.
PARTE4
O IMPOSSÍVEL DO SEXO
CAPÍTULO 10

DAS HISTÉRICAS FREUDIANAS


ÀS HISTÉRICAS LACANIANAS 26
Márcia Rosa 27

Em seu último comentário sobre a histeria, Lacan (1978) disse não estar
certo de que a neurose histérica ainda existisse, embora não tivesse dúvi-
das sobre uma neurose que certamente existe, a neurose obsessiva. Se, com
Freud, a neurose obsessiva é apenas um dialeto da histeria, indagamos: com
as mudanças ocorridas no estatuto do amor ao pai tomado como armadura e
no estatuto do Outro, a partir do qual a histérica fabrica suas identificações,
diríamos que a histeria sobrevive atualmente apenas enquanto dialeto?
O dialeto é uma variante de uma língua oficial própria de determinadas
comunidades e que, em princípio, existe simultaneamente à língua oficial.
Com o dialeto, além do universal da língua, temos o particular da comuni-
dade, seja, por exemplo, a comunidade dos sujeitos histéricos. Em que pese
isso, dois outros termos poderiam ser acrescentados a esta série - o discurso
histérico, que diz de um enlaçamento social ao Outro a partir de uma posi-
ção sintomática, e a lalangue, que diz do modo absolutamente singular de
cada sujeito histérico. Teríamos, portanto, a língua, o dialeto, o discurso e a
lalangue histéricos.
Que a histeria possa não existir mais no estatuto universal da língua
classificatória e da nosologia não deixa de nos evocar Lacan e a sua proposta
de uma linguisteria, ou seja, de uma língua que, ultrapassando qualquer pre-
tensão de científicidade, leve em conta o sujeito em suas particularidades.
Lacan, ele próprio, introduziu variações na histeria enquanto tipo clínico
sem, no entanto, chegar a dissolvê-lo. Ele o fez, por exemplo, ao formular um
discurso histérico. Com esse discurso temos um operador clínico importante
que nos permite interrogar os significantes-mestres e as (des )identificações
de nossa época. Além dele, Lacan introduziu outras variações no campo da
histeria, tal como a 'histeria rígida' , uma histérica que vai sem o Outro,
bem como uma ' histeria perfeita' , com a qual unificou o inconsciente com o
consciente e transformou a histérica, a histórica, em historisteria, reduzindo

26 Para compor este artigo fiz uma montagem a partir de recortes do livro Por onde andarão as histéricas de
outrora ?: um estudo lacaniano sobre as histerias, cujas referências encontram-se no fi nal.
27 Márcia Rosa. Psicanalista, membro da EBP/AMP Pós-doutorado em Psicanálise (Université Paris 8). Douto-
rado em Literatura Comparada (UFMG). Psicóloga. Professora na Pós-Graduação em Psicologia (UFMG) .
110

o inconsciente à sua unidade mínima, une-bévue (LACAN, 1976-1977), um


equívoco: uma histeria sem sintomas, salvo de vez em quando um equívoco,
uma troca de gêneros, dirá ele.
Na sua Conferência em Bruxelas no ano de 1977, Lacan indagou:

Por onde andarão as histéricas de outrora, essas mulheres maravilhosas, as


Anna O., as Emmy von N.? Elas representavam não apenas um certo papel,
mas um papel social certo. Quando Freud se pôs a escutá-las, foram elas que
permitiram o nascimento da psicanálise. Foi a partir de sua escuta que Freud
inaugurou um modo inteiramente novo na relação humana. O que substitui
hoje estes sintomas histéricos de outrora? (LACAN, 1977/2007, p. 17).

Frente a essa pergunta de Lacan, evoco uma figura topológica para pro-
duzir o que diria ser uma metodologia tórica, ou seja, para passar e repassar
algumas vezes por alguns pontos, gerando, com isso, algumas possíveis
respostas para a pergunta formulada por Lacan. Mais do que produzir as
melhores respostas ou as mais corretas, sejam elas clínicas ou teóricas, ou
mesmo mais do que produzir um giro completo e final sobre a questão prin-
cipal, o desafio da pesquisa de pós-doutorado que relato neste artigo, - pes-
quisa realizada no decorrer de 2018 na Université de Paris 8 Vincennes-Saint
Dennis, sob a orientação do prof. Dr. Fabián Fajnwaks - , esteve em poder
abrir e seguir alguns caminhos na produção de respostas, na maioria das vezes
sem saber aonde eles nos levariam ou mesmo correndo o risco de chegar
e, muitas vezes chegando, em conclusões e achados inesperados ou mesmo
indesejados. Em vista disso, arriscamo-nos a querer saber não apenas por
aonde andarão as histéricas de outrora, mas também por onae andaram essas
histéricas e como o seu encontro com a psicanálise repercutiu no rumo que
suas vidas tomaram a partir daí.
No que se segue, apresento de modo sucinto algumas das respos-
tas encontradas.

Das histéricas teatrais e seu esfriamento e enxugamento

Em um comentário feito no seminário - De um discurso que não fosse


do semblante, ao se referir à histeria, Lacan (1971 /2009, p . 144) menciona o
teatro: " [... ] Não falo somente da histérica. Falo de algo que se exprime, vou
lhes dizer como Freud, no mal-estar do teatro. Para que ele continue de pé, é
preciso haver Brecht, não é?, que compreendeu que isso não podia sustentar-se
sem uma certa distância, um certo esfriamento".
Com isso, ele nos dá a pista para lermos os efeitos da entrada do analista
na encenação teatral da histérica. Essa encenação encontrará, do lado do
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 111

analista, certa distância e certo esfriamento. Se lermos os casos de Estudos


sobre a histeria, principalmente aqueles de Anna O. e Emmy von N., vemos
que isso - aqui denominado teatro - esquenta bastante. A tese de Lacan é a de
que"[ .. .] a entrada em cena, por mais claudicante que se faça, do Discurso do
Analista. Bastou isso para que a histérica[ ... ] renunciasse à clínica luxuriante
com que mobiliava a hiância da relação sexual" (1971/2009, p. 144).
Enfim, em uma primeira resposta à pergunta ' por que não temos mais
a sintomatologia histérica clássica? ', diríamos: porque existem os analistas,
os psiquiatras, os psicólogos etc., que com os seus tratamentos introduzem
entre o sujeito histérico e seus sintomas certa distância e certo esfriamento.

As grandes histerias (Anna O. e Emmy von


N.) relocalizadas no campo da psicose

Ao nos debruçarmos sobre os casos apresentados em Estudos sobre a


histeria (FREUD, 1893-1895/1974), não poucas vezes encontramos entre os
seus leitores uma diferenciação entre as histéricas apresentadas por Breuer e
Freud, de tal modo que Anna O. e Emmy von N. são retomadas com o diag-
nóstico de psicose, enquanto que para Katharina, Elizabeth von R., Lucy R. e
mesmo para Dora o diagnóstico de histeria é consensual. Com isso, a pergunta
formulada por Lacan em 1977, na "Conferência de Bruxelas" - "Por onde
andarão as histéricas de outrora?"-, encontra mais uma resposta: algumas
daquelas histéricas andam atualmente sob o diagnóstico de psicose, mais
especificamente de esquizofrenia.
Em "O tratado sobre as alucinações", publicado em 1973, Henry Ey
discute a reabsorção da histeria na categoria da esquizofrenia: "não ignorando
a estrutura psicoplástica da histeria, suas formas antigas não desapareceram
realmente, mas elas mudaram de nome e de campo", diz ele, para concluir
que "essa massa de fatos clínicos foi reabsorvida em muitos transtornos que
os clínicos superficiais denominam psicose, esquizofrenia, etc." (EY apud
MALEVAL, 198 1/2005 , p. 293). .
Que muitas das histéricas de outrora tenham mudado de categoria diagnós-
tica, isso nos coloca diante de uma discussão clínica, mas também epistêmica.
Qual é o estatuto das classificações diagnósticas? Se nos referenciarmos ao
Lacan estruturalista, essas categorias terão uma realidade ontológica, preexis-
tindo ao sujeito que será classificado. No entanto, a essas classificações, entre
elas as de neurose e psicose, podemos também conferir o estatuto de semblantes,
ou seja, de ficções conceituais com as quais tratamos o real.
No que toca a esta questão, dois aspectos que nos interessaram foram
apresentados no livro publicado em 2018, Por onde andarão as histéricas
de outrora?: um estudo lacaniano sobre as histerias: a discussão do diag-
nóstico diferencial dos casos de Emmy von N. e de Anna O. e a indagação
112

sobre a possibilidade de reler a histeria a partir das formulações propicia-


das pelo encontro de Lacan com a psicose de James Joyce, algo a partir do
qual falaríamos de uma histeria sinthomática. Ao assim fazê-lo, amarramos
duas das pontas extremas da psicanálise, a saber, os estudos sobre a histeria
(FREUD, 1893 -1895/ 1974) e as formulações lacanianas sobre a psicose sin-
thomática de James Joyce.

As pequenas histerias (Dora) e as "novas virilidades"

Deslocando-se das assim ditas grandes histerias para a histeria contem-


porânea, Marie-Hélene Brousse (2013) observa que a histérica contemporânea
não precisa mais passar pelo homem para interrogar a posição feminina, tal
como o fez Dora. Esse homem que esteve ali como testa de ferro , apenas para
dar passagem a uma posição feminina idealizada, a histérica atual muitas vezes
prescinde dele e verifica os enigmas do feminino abordando diretamente outra
mulher. Sem fazer da homossexualidade uma identificação, essa escolha amo-
rosa homossexual guarda, em muitos casos, os traços de uma idealização da
feminilidade, ou seja, de um fascínio por um modo enigmático com o qual a
feminilidade se encarna para uma Outra, e que ela não reconhece em si própria.
Para localizar essas escolhas homossexuais, Brousse evoca Lacan quando
diz que as mulheres homossexuais amam o Outro sexo, sendo, portanto, hete-
ro-orientadas (LACAN, 1973/2003, p. 467). Ao tecer um laço com essa mulher
suposta Outra para elas mesmas, suposta poder lhes revelar o segredo da
feminilidade, elas vão em direção a esse Outro sexo que as fascina e que elas
amam. A essa posição da histérica contemporânea, que se faz de homem ela
própria e aborda a mulher, Brousse se refere como uma ,._nova virilidade".
Em função do seu amor pelo pai, elas não têm acesso ao não-toda fálica e
posicionam-se como mulheres que se autorizam a serem homens como os
outros, na busca de um gozo que elas não alcançam.

Dos tempos do Outro para aqueles do Um-


Sozinho: histeria rígida e a historisterização

Com a concepção do inconsciente pensado com a histeria nos anos 1950,


temos o inconsciente enquanto história e o trabalho analítico como um trabalho
de historicização. Se nesse primeiro tempo temos uma direção de tratamento
que funciona no sentido da história e do amor à verdade, no final dos anos 1960
a histeria deixa de se apresentar apenas como um tipo clínico para dar nome
a um discurso, Discurso da Histérica, que é também o discurso do analisante.
Começamos constatando que a histeria e os sintomas histéricos variam
de acordo com à cultura, com a moda e, em especial, com a presença da
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOG IA LACANIANAS: impasses e soluções 113

psiquiatria e da psicanálise no horizonte de cada época. Isso ocorre, em princí-


pio, porque a histérica não vai sem o seu Outro, seja esse Outro o psiquiatra, o
psicanalista, o mestre, o pai etc. Portanto, as várias formas que esse Outro (que
pode ser inclusive o discurso ou o movimento feminista) toma não são sem
implicações e consequências no modo como a própria histeria se apresenta.
Já nos anos 70, Lacan (1975-1976/2007) se serve de um retrato feminista
de Dora, traçado por Hélene Cixous (1975, 1976), uma manifestação da his-
teria que vem desacompanhado de seu Outro, de seu intérprete, e que segue
só com seu traço de gozo que se reitera - ou seja, que se repete sem gerar
com isso uma perda, o que seria próprio da repetição. A essa manifestação
da histeria ele denominou 'histeria rígida' (p. 101), posto que é a iteração
mesma dessa letra de gozo que manterá amarrados os três registros: Real,
Simbólico e Imaginário. Ao se deslocar do Outro do significante, da fala e da
escuta, Lacan traz aí, nos termos de Laurent, "o mínimo, mas essencial: indo
do sistema falante ao sintoma como escrita" (2012-2013, s.p.).
Portanto, nos anos 1970, vemos uma desconstrução da articulação da
histeria à cadeia das gerações trazida pela leitura edipiana. Surge uma con-
cepção de inconsciente articulado a algo do gozo que insiste, tal como Dora
insiste no seu traço de gozo oral. Esse gozo pontual, este S 1, não necessaria-
mente se encadeia produzindo história e reenviando às gerações. Lacan diz,
no "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11" (1977/2003, p. 568), que ele
convida o sujeito à historisterização, a historisterizar-se de si mesmo, ou seja,
a ir mais além dos assuntos de família e a testemunhar sobre o modo como o
significante ressoou no seu corpo abrindo aí trilhas de gozo.

Histerias contemporâneas: nos tempos do


Um-sozinho, o Outro é o corpo

Para Laurent, é possível articular o comentário feito por Lacan de que "o
inconsciente é a política" (LACAN apudLAURENT, 2015, s. p.) à proposta
lacaniana de leitura do sintoma como um acontecimento de corpo. Isso se
justificaria, inclusive, pelo fato de que, no mesmo momento em que afirma
que o inconsciente é a política, Lacan redefine o Outro e, por conseguinte, o
inconsciente, propondo que o Outro é o corpo. Como extrair consequências
disso politicamente? Em que medida um fato ou acontecimento político toca o
falasser na sua existência, no seu corpo? Nesse novo contexto, ultrapassamos
a afirmação de que o inconsciente é a política do discurso do Outro e encon-
tramos a possibilidade de pensar o inconsciente associado a um acontecimento
de corpo, a uma política do sinthome. Opera-se aí um deslocamento que leva
do campo do Outro, dos ideais, da ideologia, do inconsciente como verdade
recalcada, ao sinthome como noção que implica a psicanálise naquilo que
114

ela pode ter como ponto de chegada: a produção do mais singular que tem
ressonância, que afeta cada corpo em sua existência.
Para discuti-lo, retomo o sociólogo Georg Simmel (1957 /2014), em
um artigo intitulado "O indivíduo e a liberdade", no qual ele propõe duas
vertentes políticas surgidas a partir do individualismo moderno identifica-
das com momentos distintos da modernidade. Para ele, duas revoluções
individualistas surgem com a modernidade e elas dão lugar a dois tipos de
individualismo: um que ele menciona ser um individualismo quantitativo,
para o qual usa o termo singleness, e outro, um individualismo qualitativo,
ao qual denomina uniqueness.28
Single, em inglês, quer dizer "um só", "um único", "solteiro", "indivi-
dual" . Teríamos aí o individualismo como uma posição que corresponde ao
indivíduo como cidadão livre e autônomo, algo no estilo "todos iguais perante
a lei". Uma segunda revolução individualista dá lugar a outra concepção de
individualismo para a qual Simmel usa o termo uniqueness. Portanto, não
basta ser um cidadão livre, autônomo, com direitos iguais; mais do que isso,
interessa ser único, ter um traço, um elemento que marque a diferença com o
"todos iguais", "todos livres", com o "todos" de uma suposta homogeneidade
e universalidade. O individualismo do uniqueness diz respeito à excepcio-
nalidade e à singularidade do indivíduo moderno, posto que o termo unique
diz de algo único, ímpar, sem paralelo, exclusivo, raro, singular. Com isso,
o sujeito moderno se transforma em um indivíduo livre, mas também e, ao
mesmo tempo, singular e insubstituível.
Impossível não vermos que a análise desses dois individualismos é inte-
ressante para que possamos pensar a própria psicanálise. Nossa hipótese é que
podemos nos servir dessas duas categorias de individualismo - singleness e
uniqueness - para pensar a psicanálise e a política. Uma política do singleness
seria urna política do SI' e uma política do uniqueness seria uma política do
Un tout seul, do Um absolutamente só, uma política do sinthome, na qual
opera aquilo que o sujeito tem de mais singular.
Portanto, os acontecimentos políticos afetam os sujeitos em seus traços
de identificação a uma comunidade. No entanto, esses acontecimentos também
os afetam em seus corpos de modo absolutamente singular. Tomados a partir
do traço (S 1) que os identifica e os coletiviza (S 1-----+S 2) , os sujeitos seriam con-
siderados apenas no contexto político da singleness. Entretanto, eles surgem

28 No texto original em alemão, o termo para o individualismo qualitativo é Einzigkeit e para o individualismo
numérico é Einze/heit. O tradutor para o português se referiu a um individualismo da singularidade (Einzi-
gkeit) em oposição a um individualismo da parte, do simplesmente livre (Einzelheit) . Optamos por manter
os termos da tradução para o inglês, uniqueness para o individualismo qualitativo, que designa o indivíduo
no que ele tem de singular e único, e singleness para o individualismo numérico, que aponta o sujeito como
livre e igual aos outros indivíduos, designando-o, portanto, no que ele tem de comum com os outros. Cf.
Simmel (1957/2014).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 115

mais-além dos seus traços identificatórios e mostram-se em suas respostas


singulares aos acontecimentos políticos que os afetam. Nessas suas respostas
sinthomáticas, seus corpos não deixam de estarem implicados.
Posto isso, gostaria de finalizar mencionando a função social e política
da histeria tendo no horizonte a singleness e a uniqueness, em outros termos,
tendo no horizonte a distinção entre uma política do S 1 e uma política do sin-
thome. Para tal, retomo o testemunho recente de Florencia Lance, uma jovem
argentina que veio a público confessar como concluiu, só muito recentemente,
ser filha de um dos aviadores do Exército argentino, portanto, filha de um pai
responsável pelos voos da morte no campo de Maio por ocasião da ditadura
argentina. Em uma escrita testemunhal comovente, ela nos mostra como a
descoberta lenta e progressiva dessa verdade histórica lhe permitiu, finalmente,
ler as suas náuseas como um acontecimento no seu próprio corpo de algo que
circulava no contexto familiar, sem ser enunciado. Do mesmo modo, com
a descoberta tardia das atividades clandestinas do pai, ela conseguiu, final-
mente, entender a explicação que lhe dera a mãe, muitos anos antes, por ter se
separado dele: ela, mãe, em cujo corpo algo também acontecera, lhe dissera
na época sentir asco pelo cheiro do corpo do marido, não poder tocá-lo, não
poder estar com ele (LANCE, 2018). Com isso, os acontecimentos da ditadura
argentina são pensáveis em termos de uma política regida por alguns SI' mas o
modo absolutamente singular como esse acontecimento político se inscreveu
no corpo da mãe e da filha diz de suas singularidades, do modo sinthomático
como esse encontro traumático com o real lhes afetou os corpos.
Ao ser tomado como um acontecimento político, fortemente ideoló-
gico sem dúvida, a ditadura argentina ultrapassa o seu registro enquanto fato
político coletivo e se singulariza em inscrições que repercutem no corpo de
cadafalasser de modo unique. Ao perguntar de que modo o corpo, afetado
singularmente pelo acontecimento político, retoma ao campo político as con-
sequências de sua afetação, indagamos sobre as implicações políticas que o
sujeito escolhe dar, ou não, àquilo que lhe afetou o corpo. No caso mencio-
nado, perguntaríamos de que modo o testemunho de Florencia Lance contribui
para manter vivo na memória o "holocausto" argentino. Nesse caso, creio ser
possível postular que a posição sinthomática repercute no campo político na
medida em que o sujeito faz laço social a partir daí, e que, sendo assim, ela
não é sem consequência!
Quando o Outro é o corpo, cada um é afetado na sua existência; quando
o Outro é o corpo, e não mais algo simplesmente do campo das ideologias
ou das políticas identitárias, que reafirmam algo de uma essência, toma-se
possível e necessário levar em conta também as respostas singulares. Em vista
disso, cabe à psicanálise ir mais além das políticas regidas pela singleness
mantendo em pauta políticas orientadas pela uniqueness, isto é, pelo sinthoma.
116

"
REFERENCIAS

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PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 117

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Acesso em: jan. 2019.
CAPÍTULO 11
ABUSO SEXUAL E SEXUALIDADE
INFANTIL: sob o olhar do outro
todos os adultos são suspeitos
Hélio Cardoso Miranda Jr. 29

A relação dos adultos com a sexualidade infantil é historicamente muito


variada e antropologicamente singular. Em todas as épocas e lugares, houve
questões sobre o que o desejo do adulto faz com a sexualidade das crianças.
A criança é um brinquedo erótico, já dizia Freud (1912/ 1980), e isso não é
novo. Há, contudo, novas questões em tomo do tema.
Desde muito cedo na construção da teoria psicanalítica, Freud se viu às
voltas com o problema do abuso sexual. Tanto assim que durante certo tempo
acreditou que os histéricos haviam sofrido algum tipo de abuso sexual e que
isso constituiria o trauma fundamental. Somente quando abandonou essa ideia,
que ficou conhecida como teoria da sedução, e a substituiu pela noção de fan-
tasia, a psicanálise pôde iniciar seu caminho próprio. A famosa carta de Freud
a Fliess, em 21 de setembro de 1897, registra esse ponto (MASSON, 1986).
Evidentemente, isso não eliminou o fato de que há acontecimentos na
vida infantil que hoje são entendidos no espectro do abuso sexual e que muitos
pacientes relatam aos seus psicanalistas. A questão central e delicada neste
tema é a que versa sobre a relação entre realidade e fantasia. Para o psicana-
lista, isso tem importância, porém esse não é o ponto clínico fundamental. Já
para outros campos da vida social, como, por exemplo, o direito e a justiça, a
diferença entre realidade - como fato concreto - e fantasia pode ser crucial.
Em função de diversos fatores, hoje se cristaliza um discurso importante
sobre o que se nomeia como abuso sexual de crianças e adolescentes e, simul-
taneamente, promove-se a ideia de que seria possível proteger as crianças de
todo tratamento dado pelo adulto que desconsidere a "dignidade humana" e o
"direito a se desenvolver plenamente", expressões muito comuns cujo suporte
discursivo principal é o campo do direito.
Tal discurso engendra diversos tipos de ação social e política em rela-
ção ao abuso sexual: informar sobre o tema (tanto adultos quanto crianças
e adolescentes), divulgar a necessidade de proteção, divulgar órgãos de

29 Psicanalista, Professor da Puc-Minas, Psicólogo Judicial do TJMG, Pós-doutorado em Psicologia (UFMG).


Doutor em Psicologia Clínica (USP).
120

proteção e de denúncia, promover campanhas de conscientização etc. Tal


extensão e tal intensidade atuais dessa preocupação com o abuso sexual se
relacionam diretamente com a ideia contemporânea do direito da criança e
do adolescente à proteção especial?
A resposta inicial é sim. Por isso, não se trata de negar a importân-
cia desse movimento histórico-social. Porém, é interessante refletir sobre os
efeitos desse discurso nas relações familiares e sociais. O que a psicanálise
pode introduzir nessa questão que amplie o horizonte de reflexão para além
do discurso do Outro?
Quatro pontos servem de fundamento para uma reflexão a partir
da psicanálise.

1. Vivemos em um tempo no qual a queda nas referências de autori-


dade - o que também é nomeado como o declínio da função paterna
-deixa os sujeitos desbussolados (MILLER, 2004). A vacilação das
grandes narrativas em um tempo em que o Outro não existe interfere
na relação de cada um com a lei, com a interdição e com o gozo.
2. Nesse esteio, percebemos a autorização de uma pluralidade de prá-
ticas sexuais que se coaduna com as variadas propostas de gozo
sexual em um discurso que tende a autorizar teorias e práticas
utilizando argumentos sobre a liberdade individual. Isso acontece
em meio a um discurso consumista que reúne mercado e prazeres
sexuais, no qual objetos, pessoas, imagens e disponibilidade de
tempo são oferecidos e circulam. Encontramos aqui um dos campos
das reivindicações do direito ao gozo, que encontra seu contraponto
nos movimentos radicalmente contrários que dizem se pautar pela
tradição e pelos "bons costumes".
3. Entretanto, nem tudo é permitido. O discurso do direito e as ins-
tituições judiciárias são convocados para fornecer medidas nem
sempre muito claras. Se podemos ou devemos ser liberais com
relação aos costumes em uma sociedade democrática e laica, há
que se guardar do abuso 30 • •

30 A definição do que é abuso sempre tangencia uma zona cinzenta na qual a racionalidade se submete
aos afetos relacionados aos posicionamentos subjetivos e ideológicos. Podemos citar como exemplos,
de um lado, a exposição de arte que foi duramente criticada por muitas pessoas por expor crianças à
nudez de atores em performance, em 2017 (cf. https://g1 .globo.com/sao-paulo/noticia/interacao-de-
-crianca-com-artista-nu-em-museu-de-sp-gera-polemica .ghtml) e, de outro, a pouca crítica e aceitação
passiva do público em geral de um concurso de miss mirim no Programa Silvio Santos, em 2019, no
qual o narrador dizia que os jurados deviam prestar atenção às pernas, aos colos e ao rosto de meni-
nas abaixo de 10 anos de idade que desfilavam de maiô (cf. https://emais.estadao.com.br/noticias/
tv,silvio-sa ntos-e-criticad o-por-exibi r-desfile-com-criancas-de-ma io,70003022719).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 121

4. Talvez, por isso, todo esse contexto seja acompanhado, parado-


xalmente, da expansão da vigilância - da vigilância líquida, para
usar uma expressão de Bauman (2013 ) - que corresponde ao olhar
do Outro cada vez mais ampliado, incisivo, persecutório. Curiosa-
mente, uma das formas de ampliação do olhar pode ser relacionada
justamente à disseminação de informações para orientar crianças,
adolescentes e adultos sobre o tema do abuso sexual. Quando se
aponta e recorta uma realidade, ela é vista e olha de volta.

A conjunção de todos esses fatores no contexto atual tem levado a dois


movimentos distintos e concomitantes : autorização crescente e vigilância
ampliada. Ao mesmo tempo, em relação ao tema do abuso sexual de crian-
ças e adolescentes, nota-se um crescimento das denúncias e da abordagem
judicial dos casos.
A que corresponde isso? Antes de tentar responder, devemos considerar
que em outras culturas e até em outras épocas no mundo ocidental, crianças
e adolescentes não eram excluídos dos assuntos dos adultos e muitas vezes
faziam parte dos jogos sexuais ou possuíam formas de iniciação sexual muito
distintas das nossas. Por diversas razões, podemos considerar isso atualmente
como abusos sexuais do ponto de visa da nossa cultura e época. Mesmo na
cultura ocidental, as práticas sexuais envolvendo crianças e adolescentes estão
presentes em todos os tempos e lugares, sendo censuradas e condenadas de
acordo com o desemolar da história dos povos e dos costumes, sobretudo
depois do século XVII. A construção dos discursos sobre desenvolvimento
infantil e juvenil, além da consolidação do discurso do direito como garantidor
da defesa da sociedade e do indivíduo, e as práticas judiciárias agenciando a
noção de proteção dos mais frágeis foram pontos relevantes na mudança do
entendimento sobre a relação entre práticas sexuais, infância e adolescência.
Referências importantes sobre isso podem ser encontradas, por exemplo, em
Foucault (1976/ 1998) e Aries (1975/2006).
Porém, um dos pontos que se destaca em nosso tempo é o uso da tecnolo-
gia articulada ao mercado de consumo que amplia as possibilidades de acesso
a materiais e práticas, incluindo práticas sexuais com crianças e adolescentes.
A sociedade do espetáculo, indicada por Guy Debord em 1967, deriva
hoje para o mundo das imagens e do mercado das imagens, disponível, sobre-
tudo, na internet. Esse mercado captura o sujeito, fisgado na pulsão escópica.
"Lá onde o mundo real se transforma em imagens, as imagens se tomam mais
reais para o gozo do espectador" (QUINET, 2004, p. 281).
A autorização das práticas sexuais e seus modos de gozo no discurso do
liberalismo individualista parecem ter desvelado o objeto encoberto nas rela-
ções amorosas e nos laços sociais: por amar em ti algo mais que tu - o objeto
122

a-, eu te mutilo (LACAN, 1964/1990). Não que tal desvelamento elimine


a culpa que pode acompanhar o sujeito, mas permite talvez um acesso mais
rápido, anônimo e indolor àquilo que está interditado. Mercantiliza-se o gozo.
Ao olhar são oferecidos imagens e objetos em linha e sequência quase
infinita, em modelos e designers arrojados em prateleiras que incluem - na
parte proibida - as crianças e adolescentes. À erotização precoce das crian-
ças e dos pré-adolescentes atualmente em curso correspondem ofertas e
práticas que, apesar de sempre terem existido, atingem um público amplo e
promovem a circulação e o compartilhamento de fantasias em rede. À pulsão
escópica, o mundo tecnológico faz uma reverência até então desconhecida.
Tudo pode ser visto.
Com relação à infância, parece que vivemos um tempo no qual a inter-
dição do uso da criança como objeto sexual perde suas fronteiras anteriores
e se aproxima de uma zona cinzenta na qual a criança faz parte da série de
objetos possíveis ao uso sexual.
Se antes a pornografia infantil, por exemplo, estava restrita a grupos fecha-
dos e alguns "clubes de pedófilos", a internet tornou acessível os materiais
relativos a esse tema a um número imenso de pessoas, divulgando a criança
como objeto sexual e produzindo um mercado lucrativo com isso. Alguns dados
históricos interessantes podem ser encontrados em Landini (2004).
Do olhar, do empuxo-ao-gozo escópico do sujeito, deriva um segundo
movimento. Se tudo pode ser visto, então tudo deve ser visto. Aqui também
há dois tipos de efeitos distintos e próximos.
Por um lado, tudo deve ser registrado para ser compartilhado ao olhar
do Outro. É o Outro que olha (ou supostamente olha) que sustenta os relacio-
namentos amorosos ou que denuncia sua falta de consistência, que ratifica os
sentimentos e emoções das imagens, que compartilha o ideal na campanha
política ou a impostura do gozo fora dos limites da lei, que circula o gozo
pornográfico cristalizado na imagem, o gozo do chiste, da vida íntima e,
muitas vezes, que tenta transmitir a prova de que se gozou ao presenciar um
acontecimento - um acidente, um suicídio, uma briga, um show.
Oferecidos ao olhar, esses objetos (imagens e palavras) não podem ser
perdidos. É preciso olhar para eles. Alguns sujeitos começam a ficar reféns
da ideia de que não podem perder nada do que está disponível para olhar31 •
Expomos para o olhar do Outro aquilo que olhamos o tempo todo. Somos a
mancha no quadro (LACAN, 1964/1990).
Por outro lado, é necessário filmar as pessoas para saber sobre elas,
para vigiar. O olhar panóptico busca encontrar o mau, a mancha do mau. O

31 Criou-se uma sigla para se referir a este fenômeno: FOMO (Fear Of Missing Out), que significa a preocupa-
ção intensa de perder eventos supostamente emocionantes que outras pessoas vão assistir, especialmente
relacionados a postagens nas mídias sociais (cf. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/fomo).
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 123

panóptico de Bentham, analisado por Foucault (1998), é o modelo da socie-


dade disciplinar, que, para controlar os indivíduos, deve tomá-los visíveis em
todos os momentos, "enquanto seu Olho está invisível para que reine o objeto
olhar" (QUINET, 2004, p. 286). É preciso filmar os cuidadores de idosos e de
crianças para coibir ou punir seus excessos, sua negligência ou seus erros. É
necessário olhar as ruas, as entradas de empresas e residências, registrar tudo
o que acontece. As câmeras se espalham para cobrir o cotidiano em todos os
seus aspectos. Sorria!
Nesse empuxo ao olhar, ao dar-se a ver e ser visto, parece constituir-se
um Outro Ideal para o qual a transparência é um modo de gozo. É preciso
então tomar o sujeito transparente, submetido ao comando de dar-se a ver
(QUINET, 2004, p. 286).
Mercantiliza-se o gozo, aumenta-se a vigilância. Quais os efeitos desse
movimento? Evidentemente, são muitos, mas há um que queremos destacar:
todos se tornaram suspeitos. Todos são suspeitos de visar a algo na criança
e no adolescente que ultrapassa o recalque da sexualidade infantil. Os signos
do amor pelas crianças não são mais suficientes para que o olhar sobre os
relacionamentos entre elas e os adultos afaste a suspeita de que tais signos
sejam semblantes para encobrir outra coisa, o verdadeiro sob o disfarce, o
gozo abusivo sobre a máscara do amor. Médicos já não atendem crianças ou
adolescentes sozinhos, professores evitam contato físico com seus alunos, tios
evitam se aproximar fisicamente dos sobrinhos, abordar uma criança perdida
na rua pode se tomar mal interpretado por outras pessoas ... O que fará no
futuro o psicanalista que atende crianças?
No trabalho com os conflitos de família nas instituições judiciárias
aumentam as suspeitas e as acusações de abuso sexual_contra pai e mãe,
sobretudo contra o pai. Esses adultos, depois de serem acusados, mesmo nos
casos em que não há fundamento, começam a planejar sua convivência com
os filhos de forma a garantir que não serão acusados novamente. Planejam
os encontros com eles acompanhados de outros adultos como testemunhas,
filmam as suas atividades quando estão com os filhos, evitam qualquer palavra
ou ato que possa ser "mal interpretado". Em um caso que acompanhamos,
uma mãe, acusada de ser negligente e expor a filha a um suposto abuso de um
vizinho, para se garantir legalmente dali em diante passou a levar a pré-ado-
lescente a consultas ginecológicas na véspera de todos os dias da entrega para
os encontros com o pai, o que ocorria quinzenalmente. Tal prática só findou
quando pessoas afetivamente próximas dela a questionaram quanto a isso.
Cada indivíduo, submetido ao olhar superegoico do Outro, se toma o
próprio olhar do Outro, o que lembra a típica relação paranoica que constitui
as sociedades autoritárias e totalitárias. O olhar do Outro faz a lei. É ele que
goza de todos na lei da vigilância sob o ideal da transparência. Na sociedade
escópica todos estão de olho em todos (QUINET, 2004, p. 287).
124

Porém, a mácula de cada um e de todos não desaparece; ela está presente


principalmente nas relações de poder e no sexo. Todos estão manchados pela
opacidade do gozo. Como algo sempre escapa ao olhar, o discurso procura
tratar isso pelas regras. É como se a mácula desaparecesse ou não existisse
caso as regras fossem seguidas. Regras para falar, para se relacionar, olhar.
É como se as regras, o simbólico, pudessem provar que o sujeito tem seu
corpo limpo, seu desejo orientado por um gozo regrado. Vigia-se o cumpri-
mento das regras sem saber que isso comporta também um gozo e que algo
sempre escapa.
Cada um que olha o outro em busca do mal escamoteia - como é a própria
função do olhar - que é olhado, quase numa radicalização da própria estru-
tura do olhar como objeto a (COSTA-MOURA; COSTA-MOURA, 2011).
Apontar o mal no outro equivale a tentar afirmar que se está do lado das
boas intenções, da transparência das regras, negando a questão do desejo e
do gozo que o acompanha.
Numa época em que a sexualidade e as práticas sexuais devem ser dis-
cutidas abertamente, segundo um discurso considerado liberal progressista,
o gozo retoma em outro ponto.
Mais uma vez é preciso dizer que não se trata de negar a existência do
abuso sexual infantil, inclusive de redes de mafiosos que utilizam crianças
para serem abusadas e filmadas às vezes até a morte. Isso está aí. Porém,
poderíamos perguntar: a hipervigilância seria uma forma de negação típica de
nosso tempo em que todos gozam com o abuso, desde que (suposto) do outro?
Cabe, então, perguntar também qual o limite do olhar, pois quanto mais se
precisa de provas, mais se desconfia que sejam falsas ; quan!o mais se procura
a verdade, mas se desconfia que pode ser mentira.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 125

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Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
PARTE 5
PSICOPATOLOGIA LACANIANA:
classes e inclassificavéis
CAPÍTULO 12

O MODELO E O EXEMPLO NA
NOSOLOGIA PSICANALÍTICA
Antonio Teixeira 32

A abordagem das classes diagnósticas em psicopatologia exige, de nossa


parte, uma precaução particular, uma vez que nesse campo o diagnóstico
altera o prognóstico. O estigma produzido pelo diagnóstico não raro modi-
fica a evolução da enfermidade, posto que o próprio curso de uma patologia
mental encontra-se vinculado à expectativa que o paciente mantém em relação
ao Outro que assim o nomeia. Seja na patologia do sujeito histérico, que faz
enigma do próprio sintoma para suscitar o desejo do Outro; seja na tarefa
interminável do obsessivo que visa encontrar, na submissão às regras do Outro,
a garantia do seu reconhecimento; seja, ainda, na perplexidade do sujeito
psicótico, às voltas com as exigências obscenas do Outro que a ele retomam
como vontade de gozo, a expectativa gerada pelo diagnóstico que altera o
prognóstico se formula numa mesma pergunta: o que o Outro espera de mim?
Se podemos, então, falar dos efeitos de estigmatização causados pela
nomeação diagnóstica é porque por um bom tempo a resposta clássica à ques-
tão significante da expectativa do Outro se dava pela via do signo. Surgido no
século XV como termo religioso referido às chagas de Cristo, o substantivo
stigmata veio denotar, a partir do século XVII, a ideia do castigo que inscreve
sobre a pele o signo da infâmia que marca a percepção do sujeito pelo Outro
social. Somente mais tarde, a partir do final do século XIX, a conotação
moral desse termo será cientificamente neutralizada, passando a receber, no
vocabulário médico, o valor puramente semiológico do sinal clínico sobre o
qual se estabelece o diagnóstico de uma patologia.
Sabemos que a percepção de um fenômeno perde sua conotação mora-
lizante quando esse mesmo fenômeno se toma objeto do discurso da ciência.
Mas se o estigma difamante da doença pôde ser neutralizado no campo da
medicina científica, por que, então, o opróbrio permanece ainda ligado ao
sujeito diagnosticado como portador de patologia mental? Teríamos, então, que
aguardar pela ocasião em que a objetivação científica do fenômeno mental viria
neutralizar o efeito difamante ocasionado pelo diagnóstico psicopatológico,

32 Professor adjunto / UFMG (Minas Gerais, Brasil). Doutor em Psicanálise / Universidade de Paris VIII (Paris,
França). Mestre em Filosofia / UFMG (Minas Gerais, Brasil). Médico / UFMG (Minas Gerais, Brasil). E-mail:
amrteixeira@uol.com.br
130

momento, enfim, em que, no lugar de nos referirmos ao sujeito depressivo,


falaríamos de um caso de serotoninopenia, e em vez de psicose delirante,
diríamos se tratar de hiperdopaminemia? Pelo tom visivelmente irônico da
pergunta, já se adivinha que nossa resposta é negativa.
Na verdade, não é por uma insuficiência circunstancial do saber científico
que o diagnóstico da patologia mental resiste a ser abordado cientificamente.
É necessário antes de tudo entender que se a patologia mental pode, num
certo momento, ser tomada enquanto objeto do saber médico, essa objetiva-
ção dependeu de um gesto eminentemente moral, não científico, por meio do
qual a ciência veio recusar, em sua fundação cartesiana, a possibilidade de
coexistência entre loucura e racionalidade.
Racionalidade e loucura nem sempre foram dimensões excludentes: havia
até o início da era clássica, esclarece Foucault, uma relação reversível na qual
a loucura se revelava como verdade oculta da razão. Se Aristóteles podia apro-
ximar, no célebre problema XXX, o homem de gênio da melancolia, é porque
a loucura podia ser vista, no período anterior à emergência da ciência moderna,
como uma espécie de paroxismo da razão. Seja como consciência trágica, nas
telas de Bosch e de Bruegel, seja como crítica irônica, no famoso Elogio de
Erasmo de Rotterdam, esse topos da razão louca, lugar retórico da suspeita
de que a construção racional do mundo pudesse, no fundo, ser ensandecida,
chegou a ser tão disseminado que não se podia isolá-lo num espaço definido.
Para que a loucura fosse objetivada, adquirindo seu lugar perceptivo próprio,
foi necessário um gesto que a desenredasse violentamente do pensamento.
A mais sutil loucura é feita da mais sutil sabedoria, escrevia o ensaísta
Montaigne no século XVI. Se a loucura ainda podia habitar o saber para o
ceticismo quinhentista de Montaigne - escritor de ensaios que se recusava a
construir sistemas, por duvidar justamente de toda base racional do pensa-
mento-, ela será radicalmente excluída pela filosofia inaugurada por Descartes
no século XVII. Ao fundar seu novo sistema de pensamento sobre o alicerce
racional indubitável do cogito, Descartes lança as bases da ciência pelo mesmo
gesto que reduz a loucura ao silêncio. Ao estabelecer, em sua origem, que a
natureza pode ser objetivamente conhecida, em sua estrutura matemática, o
pensamento científico moderno organizou a convicção de que a razão não é
intrinsecamente louca, que o problema do engano e do erro não se encontra na
racionalidade concebida nela mesma, mas somente no seu uso indisciplinado.
Privada de sua antiga dignidade de consciência trágica para ser tratada
como simples fonte de erro, no termo de um longo processo que a separou da
razão, a loucura deixará de ser tomada como experiência de lucidez. A figura
do filósofo louco desaparece. Diante da pergunta sobre o que o Outro espera
de mim, a ciência agora responde que do louco não se deverá esperar mais
nenhum pensamento.
PSICANÁLISE E PS ICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 131

Nesse sentido, embora ciência e segregação moral sejam práticas discur-


sivas estruturalmente distintas, não podemos deixar de nos perguntar por que
discurso científico e prática segregativa até hoje se dão as mãos no campo da
patologia mental. Se o discurso da ciência, ao ser convocado no domínio da
psicopatologia, termina frequentemente por incorrer nessa infame aliança com
as práticas segregacionistas, é na medida em que todo esforço de objetivação
da patologia mental se coloca a serviço daqueles que visam privar o louco do
valor de sua palavra. Ao definir alguém como "alienado", o discurso segrega-
cionista apoia-se na autoridade científica para silenciar sua fala, condenando-o
ao destino das subjetividades desacreditadas.
Seja qual for, portanto, o nível de êxito ou de dificuldade em tratar cien-
tificamente o fenômeno mental, o que a ciência moderna estabelece axioma-
ticamente, em sua fundação, é que a loucura não pensa, ela nada tem a dizer.
Dali se explica o fato de que toda a psicopatologia constituída ao longo do
século XIX pôde se valer de padrões normativos de classificação que, embora
desprovidos de verdadeira metodologia científica, comungavam com a ciência
o gesto de eliminação da palavra do alienado mental, em nome de um saber
que visava, em última instância, controlar os indivíduos mediante sua repre-
sentação nas classes sociais definidas pelo Estado.
O problema é que normalmente as classes se constituem em tomo de
uma representação atributiva destacada por um discurso, como no caso da
presença de glândulas mamárias na constituição da classe dos mamíferos ou
de incisivos superiores pronunciados no caso dos roedores. Mas as classes
cujos elementos são sujeitos não se encontram fundadas sobre nenhuma pro-
priedade empiricamente representável, no sentido que existe apenas o efeito de
alienação produzido e reafirmado por um gesto de nomeação (MILNER, 1983,
p. 11 O). Se o diagnóstico então altera o prognóstico, é na medida em que as
classes, assim constituídas, produzem efeitos sobre os seres que nelas se
representam. Mas com a importante ressalva de que o sujeito não se deixa
alienar inteiramente nessa representação. Há sempre algo de sua apresentação
que não se deixa representar, um resto, inerente ao sujeito, que resiste a ser
assimilado pelas propriedades representativas do indivíduo.
O que diferencia, nesse sentido, a psicanálise do contexto que a precedeu
foi o fato de considerar a causa do desejo como resto irrepresentável das classi-
ficações. Ao ser convocada a intervir como uma terapêutica, a psicanálise não
procede, como chegou a afirmar Foucault, em continuidade com as práticas
de controle que visavam ajustar o indivíduo à unidade de sua representação
(FOUCAULT, 1996, p. 122). Ela antes surge como resposta ao sofrimento
gerado pela dificuldade que experimenta o sujeito em se adequar à classe que
o representa, ao se haver com algo da exigência pulsional que o divide, ou
seja, que não se deixa integrar em sua unidade representativa de indivíduo.
132

Não por acaso ela deve sua origem à consideração clínica, por parte de Freud,
da loucura histérica no que ela tinha de mais desconcertante para o saber
classificatório: doença inclassificável, por excelência, a histeria se modifica
constantemente com relação a ela própria, colocando a perder todo esforço
de objetivação da patologia mental por sua capacidade de exibir, de maneira
aparentemente aleatória, os sinais clínicos de todas as classes diagnósticas.
Para decifrar o enigma da histeria, objetivá-la, no nível pretensamente
científico de uma psicologia dos fenômenos mentais, não nos leva muito
longe; é preciso, antes de tudo, escutar o que o sujeito histérico tem a dizer.
Ao ouvir suas primeiras pacientes histéricas, Freud nota de saída que a cisão
patológica dos conteúdos de consciência não derivava de uma falha de síntese,
como se formula na hipótese objetivante de Pierre Janet, mas antes de um ato
de vontade inconsciente do sujeito que dela não quer saber. Se não passou
despercebida a Freud, conforme observa P. Tavares, a derivação do léxico
alemão Krankung, que significa literalmente "ofensa", para o adjetivo Krank
(doente), é por ele notar, na etiologia do padecimento mental, a pressão de um
desejo cuja satisfação é interpretada como uma ofensa que o sujeito decidiu
esquecer (FREUD, 2016, p. 194). A solução histérica (e não sua deficiência
inata, como diria uma vez mais P. Janet) consiste em transpor o fator libidi-
nal dessa satisfação incompatível para o corpo, na forma da conversão, com
vistas a desembaraçar a unidade egoica do elemento desarmônico, que passa
assim a parasitar uma função corporal onde se forma o núcleo de outro grupo
psíquico, inacessível à consciência.
Não é apenas na loucura histérica que Freud identifica a inadequação
entre a apresentação dividida do sujeito e a unidade em qQe ele se representa.
Ele a identifica igualmente na loucura obsessiva, que tende a ser tanto mais
grave quanto mais normal o indivíduo busca ser. No lugar de transpor o fator
libidinal incompatível para o corpo, a defesa consiste agora em manter sua
representação mental distante das associações do pensamento consciente,
fazendo com que o afeto dali desligado venha habitar ideias aparentemente
absurdas que parasitam a consciência. Mas há também, para além da loucura
histérica e da loucura obsessiva, a loucura propriamente dita, ou seja, alou-
cura psicótica onde o fator pulsional recebe um destino diverso. Em vez de
ser enquistado num pensamento parasita ou transposto para algum compo-
nente somático de valor simbólico, o elemento recusado se encontra de tal
modo enredado na realidade externa que o Eu termina por dela se desligar.
As autorrecriminações do obsessivo e a satisfação impedida da histérica se
deslocam, via projeção, para os sentimentos delirantes de desconfiança e
perseguição, situando no campo do Outro o excesso pulsional incompatível
com a representação do sujeito.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 133

É evidente que a apresentação esquemática desses três modos de solução


nem de longe faz justiça à riqueza de detalhes que Freud desenvolve. Quere-
mos com esse esquema somente enfatizar que a inteligibilidade da patologia
mental se constitui na medida em que Freud abandona a perspectiva objeti-
vante do saber científico que silencia a palavra do louco, para escutar o que
seu paciente tinha a dizer. Mas o que dizer, então, das classes diagnósticas que
a psicanálise parece convocar ao se referir ao sujeito como histérico, obses-
sivo ou psicótico? Não estaria a psicanálise retomando o princípio mesmo
de representação classificatória que tanto questionamos, no momento em que
estabelece, a partir das nomeações colhidas no saber psiquiátrico, as classes
diagnósticas de sua nosologia clínica?
Na verdade, não. Para me fazer explicar, eu gostaria de evocar mais
uma vez a lembrança de um chefe de serviço hospitalar em psiquiatria que se
acreditava psicanalista, o qual, tomado de ímpeto gerencial, propôs dividir o
setor em alas distintas, destinadas a agrupar separadamente os pacientes obses-
sivos, histéricos e psicóticos e assim por diante. Se isso nos faz rir, é porque
intuitivamente sabemos que as nomeações diagnósticas da psicanálise não
convocam nenhum tipo de agrupamento ou universo de casos. Elas somente
nomeiam, conforme propõe J.-C. Milner, a maneira obsessiva, histérica ou
psicótica que tem um sujeito de ser inagrupável, dessemelhante de todo outro
(MILNER, 1983, p. 118-119). A vacilação da clínica analítica, que primeira-
mente orienta a apresentação do caso pela necessidade da representação no
diagnóstico, para em seguida retomar à singularidade do caso no que ele se
apresenta de radicalmente diverso, longe de ser acidental, é o que verifica a
sua própria essência. Por essa vacilação se atesta o sujeito que excede, em
sua apresentação cindida, a toda classificação representável mobilizada por
nossa nosologia clínica.
É nessa perspectiva que Jean-Claude Milner nos propõe pensar as classes
diagnósticas da psicanálise como classes paradoxais. Quando sugerimos, por
exemplo, durante uma supervisão clínica, diante da queixa de insatisfação de
uma determinada paciente, que devemos talvez pensar num caso de histeria,
isso não quer dizer que estamos nos referindo à classe dos histéricos como
uma coleção de pessoas insatisfeitas. Não existe para nós uma coleção de
casos que funcionaria enquanto premissa universal, na dedução de um silo-
gismo clínico do tipo modus ponens: todos os insatisfeitos são histéricos, x é
insatisfeito, logo x é histérico. Sabemos que existem sujeitos insatisfeitos que
não são necessariamente histéricos. O que importa, propriamente, captar, é
menos a queixa de insatisfação de uma demanda do que o paradoxo do sujeito
que inconscientemente requer a insatisfação para se manter desejante. Pois
o que escapa ao universal é justamente o modo singular de requisição dessa
134

insatisfação que o mantém no horizonte do desejo . Ela assim se expressa seja


como desejo pelo caviar, no sonho da bela açougueira, seja na pseudociese
de Anna O., em sua transferência não suportada por Breuer, ou ainda, para
retomar um personagem da literatura, no olhar longínquo de Emma Bovary
que busca, em sua insatisfação permanente, escapar da miséria espiritual de
sua existência provinciana, sem que se possa determinar a coleção de casos
em que se esgotam suas manifestações.
Importa notar que, embora não se possa alcançar pela via indutiva, no
repertório exaustivo dos exemplos, a determinação universal de uma classe
diagnóstica, ainda assim, a cada vez que discutimos um caso acende-se em
nosso pensamento a recordação dos exemplos da clínica e da literatura. Não
raro falamos, por exemplo, do bovarismo para nos referir ao comportamento
de uma histeria, e toda vez que interpelamos um caso de neurose obsessiva,
procuramos saber quem ocupa, na história do paciente, a posição do capitão
cruel. Isso nos leva a pensar que em vez de proceder verticalmente pela indu-
ção que vai da parte ao todo, visando alcançar o universal da classe nosológica,
para em seguida ir do todo à parte, no sentido de estabelecer dedutivamente
o diagnóstico clínico, fazemos na verdade um movimento horizontal que
vai da parte à parte, valendo-nos de um exemplo particular como referência
paradigmática para pensar o caso que nos ocupa.
Paradigma significa, literalmente, o que se mostra ao lado (paradeigma),
o que serve de exemplo. A ideia de evocar essa temática não é para mim casual,
pois tive nos dois últimos anos a sorte de acompanhar, como orientador, um
excelente trabalho de pesquisa realizado no Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise da UFMG por Saulo Carvalho (2019), que expl(?rou a formulação
do conceito de paradigma na obra de Thomas Kuhn e sua função operatória na
clínica psicanalítica. A ideia que Saulo Carvalho ali desenvolve é que existem
situações em que o esquema ao qual nos referimos para pensar uma situa-
ção determinada depende, em seu uso concreto, menos da derivação de um
conceito universal do que da experimentação dos casos particulares tomados
como casos exemplares ou paradigmas. Isso faz com que a resolução de um
problema particular, como se dá quando tentamos conduzir um caso clínico,
longe de ser o resultado da aplicação de um saber previamente estabelecido,
constitui ela mesma fonte de conhecimento.
Não por acaso Lacan dirá, em sua "Introdução à edição alemã de
um primeiro volume dos Escritos", que embora não seja pródigo em
exemplos clínicos, quando deles se serve é para elevá-los ao paradigma
(LACAN, 1973/2003, p. 554). Se é possível resolver problemas, como diz
T. Kuhn, referindo-se a soluções anteriormente alcançadas (KUHN, 1998, p.
232), o paradigma seria o exemplo compartilhado cuja exibição nos permite
pensar o caso concreto que tentamos solucionar, porquanto reúne tanto os
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 135

aspectos estruturais determinantes para sua elucidação conceituai quanto os


elementos singulares de sua ocorrência. Isso se dá tanto do ponto de vista
histórico-sociológico, quando tomamos o panopticum de J. Bentham como
construção paradigmática da sociedade disciplinar, quanto do ponto de vista
clínico quando nos referimos ao caso do "Homem dos ratos" como figura
exemplar da neurose obsessiva. Mas se o recurso ao paradigma interessa
particularmente à clínica psicanalítica, é na medida em que a dimensão do
sujeito com o qual temos que nos haver não se deixa conceber formalmente
como uma categoria derivada do universal. O sujeito, enquanto resposta
do real, se manifesta justamente como efeito "que desloca o indivíduo da
espécie, o particular do universal, ou o caso da regra" (MILLER, 2006, p.
30). Dali resulta, entre outras coisas, tanto o desinteresse da psicanálise em
relação ao repertório estatístico de múltiplos casos, quanto a importância
que ela atribui à discussão detalhada do caso único.
É instrutivo lembrar, a esse respeito, que o mesmo Lacan, que em sua
tese de doutorado expôs minuciosamente o caso Aimée como paradigma da
paranoia de autopunição, tenha recorrido ao exemplo biográfico literário de
James Joyce como meio para pensar o que vem a ser a solução subjetiva que
dispensa a referência falocêntrica. O fator que mobiliza o recurso ao caso
paradigmático é a ideia, amplamente desenvolvida por Saulo Carvalho, de
que o exemplo já contém nele mesmo a estrutura ao qual se encontra refe-
rido. Isso se ilustra particularmente no uso, por parte do homem dos ratos,
da locução "por exemplo" (zum Beispel), referida ao temor de algo ruim que
lhe poderia acontecer, quando se via tomado pelo desejo luxurioso de ver
moças despidas. Poderia acontecer, por exemplo, diz ele, que seu pai deveria
morrer. Freud nesse ponto se detém, convencido de quê o exemplo dado por
seu paciente já é uma neurose obsessiva completa, o organismo elementar
cujo estudo - e somente ele - nos proporcionará a escala para medir a orga-
nização da enfermidade presente (FREUD, 1996, p. 130). É nesse sentido que
o paradigma nos permite suspender a explanação exaustiva, ao nos revelar
a estrutura em seu elemento mínimo.
A ideia de se orientar pelo exemplo paradigmático não deve, contudo,
conduzir-nos a tomá-lo como modelo heurístico de um universo de casos.
Cabe antes distinguir a orientação pelo modelo da via do exemplo, enfati-
zando que o primeiro se aplica como uma simplificação violenta da realidade,
uma abstração universal que tenta tomar seu objeto conforme a seu modo de
representação numa realidade discursiva, como acontece no momento em
que se tenta estabelecer um padrão de tratamento de acordo com o protocolo
determinado pelo diagnóstico de uma patologia. Quando isso não acontece, a
culpa é do paciente que não seguiu as regras do tratamento clínico, ou do país
endividado que não adotou as normas de saneamento econômico impostas
136

pelo FMI. Mas quando nos orientamos, por outro lado, pela via do exemplo,
em vez de tentarmos impor ao real uma representação abstrata da realidade,
operamos com algo que já se apresenta no nível, por assim dizer, de uma rea-
lidade provisória, no sentido em que nos servimos de elementos já dados na
situação presente, ao mesmo tempo que os destinamos a uma função distinta
daquela que prescreve o seu uso ortodoxo.
Retomando, então, uma terminologia cara a Lévi-Strauss, diríamos que
a referência ao modelo se aproxima da atividade do engenheiro, que opera
com objetos idealmente concebidos para a função padronizada de seu projeto,
ao passo que o recurso ao exemplo estaria mais próximo ao trabalho do bri-
coleur, que inventivamente desloca os objetos que tem à mão de sua função
original e os converte em gambiarras, no sentido em que se vale, pela via do
improviso, de modos imprevistos de utilização. Assim como o bricoleur se
serve de uma caneta enquanto instrumento perfurante ou de uma enciclopédia
como escada para trocar uma lâmpada, o psicanalista recorre aos romances de
Flaubert e James Joyce como exemplos paradigmáticos para pensar a histeria e
a solução psicótica, a partir de aspectos alheios ao que normalmente se espera
do trabalho de crítica literária, sem esgotar a possibilidade deslocada de seu
uso. Pois é pela impossibilidade de completar seu projeto, no sentido em que
completá-lo seria tomá-lo integralmente conforme ao ideal que preside o seu
uso, que o bricoleur (e o psicanalista, se Lévi-Strauss assim o permite) sempre
ali colocam algo de si (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 32).
Interessante notar, no que tange ao ideal de uma ciência biológica que
se busca impor à clínica psiquiátrica, que a própria evolução da vida que lhe
serve de modelo antes procede por bricolagens, e não por formas ideais. A
configuração anatômica do organismo é fiel ao princípio do-bricoleur, observa
Viveiros de Castro (2017), ao comentar a negociação biomecânica que preside
a formação de nossa coluna vertebral na transição da condição quadrúpede
à postura ereta. Se nos importa, assim, considerar a distinção entre modelo e
exemplo, tal como Viveiros de Castro a desenvolve a partir de sua leitura de
O pensamento selvagem, é na medida em que buscamos conceber uma visão
não normativa da nosologia psicanalítica que leve em conta o que o sujeito
que tem a dizer de sua experiência. Diversamente do modelo nosológico que
opera com um saber sobre a patologia do indivíduo, o recurso ao exemplo
nos auxilia a pensar a condução clínica como uma prática guiada pela consi-
deração de elementos que se apresentam concretamente na história e no saber
construído pelo próprio paciente. É por isso que no lugar da simplificação
homogênea do modelo, valemo-nos do exemplo como chamado para fazer
algo diferentemente igual, no sentido em que uma situação clínica pode ser
tomada como paradigmática para se pensar o que cada caso comporta de
absolutamente inédito.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOG IA LACANIANAS: impasses e soluções 137

REFERÊNCIAS

CARVALHO, S. O caso paradigmático e a nosologia estrutural. [S.l.:


s.n.], 2019. No prelo.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.

FREUD, S. Neurose, psicose e perversão. Trad. Maria Rita Salzano Moraes.


Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016. (Obras incompletas de Sig-
mund Freud).

FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva. ln: FREUD, S. Edição


Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. v. X .

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.

LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. ln:


LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 550-556.

LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Perspectiva, 2008.

MILLER, J.-A. A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan. Curinga, Belo


Horizonte, EBP, n. 23, p. 15-33, 2006.

MILNER, J. -C. Les noms indistincts . Paris: Seuil, 1983.

VIVEIROS DE CASTRO, E. O modelo e o exemplo. ln: CONFERÊNCIA iné-


dita. UFMG. (Produtor). Ciclo UFMG, 90: Desafios Contemporâneos, 2017.
Disponível em: https:/ /www.youtube.com/watch?v=_PfE54pj 1wU.
CAPÍTULO 13

SOBRE O MODELO E O EXEMPLO


NA NOSOLOGIA PSICANALÍTICA:
ecos de transmissão
Ilka Franco Ferrari33

O que é um texto? Se me oriento por Walter Benjamin (2007, p. 499),


no livro Passagens, ali encontro que um texto é um trovão que permanece
ressoando por muito tempo. Creio que o que se ouviu, nas palavras de Antonio
Teixeira, tem esta vocação.
Meus comentários, portanto, se constroem a partir de alguns ecos que
insistem em ressoar.
Nesta mesa sobre o tema "Psicopatologia lacaniana: classes e inclassifi-
cáveis", Antonio escolheu abrir o caminho de suas elaborações fazendo a per-
tinente consideração de que as classes diagnósticas em psicopatologia exigem
precaução particular, já que nesse campo o diagnóstico altera o prognóstico.
E fundamenta essa asseveração marcando que o curso da chamada patologia
mental se vincula à expectativa que o paciente mantém em relação ao Outro
que assim o nomeia, ou seja, não ignora o que dele se espera. Observação
considerável e nem sempre colocada em contexto de debate.
Nessa direção, recorda aos ouvintes que, durante muito tempo, a resposta
clássica à questão significante da expectativa do Outro se dava pela via do
signo, o que favoreceu à estigmatização causada pela nomeação diagnóstica.
Mas, segue Antonio, se essa estigmatização foi possível de ser neutralizada,
em seu valor moral, pela medicina científica - que ao final do século XIX
considerou o valor semiológico do sinal clínico sobre o qual se estabelece
o diagnóstico de uma patologia-, todavia o sujeito com diagnóstico psi-
copatológico não se livrou da ignomínia. Creio que nenhum dos presentes
duvida de tal afirmação.
A localização que Antonio faz, para a continuidade desse processo, está
no fato de que a patologia mental se tomou objeto do saber médico atra-
vés de um gesto calcado na moralidade, e não propriamente científico. Por
meio dele, a ciência, em sua fundação cartesiana, recusou a possibilidade de

33 Doutorado e Pós-Doutorado na Universidade de Barcelona, Espanha. Professora adjunta em cursos de


graduação e pós-graduação da PUC Minas. Membro da EBP-MG e da Associação Mundial de Psicanálise.
E-mail: francoferrari@terra.com.br
140

coexistência entre loucura e razão. Ela chegou a existir, a ponto de a loucura


ser vista como espécie de paroxismo da razão, mas, com a ciência moderna a
loucura deixou de pensar e ter o que dizer. O leitor interessado pela história
da loucura encontrará, em detalhes, esse preciso instante que Antonio pontua,
cuidadosamente, entre referências do pensador Foucault.
Por considerar que ciência e segregação moral são práticas discursivas
distintas, Antonio enfatiza a necessidade de se perguntar acerca do motivo
que as leva a andar de mãos dadas pelo campo da patologia mental. Importa
mesmo não fugir a tal questão e o tensionamento que ela propõe. Por sua
vez, ele considera que essa aliança é útil, pois o apoio na autoridade cien-
tífica tem favorecido interesses que mantêm o louco no espaço das subjeti-
vidades desacreditadas, e que por meio desse movimento/comunhão é que
a psicopatologia, constituída no século XIX, por exemplo, pode controlar
os indivíduos, valendo-se de padrões normativos de classificação. O que se
constatou, no entanto, desastrosamente, é que as nomeações surtiram efeito
alienante. Isso porque, nas classes cujos elementos são os sujeitos não há
propriedade empiricamente representável, sempre algo de sua apresentação
deixará de ser representado, há algo da exigência pulsional que o divide.
Há, olhando pelo viés da psicanálise, que soube fazer diferença no já pres-
crito, que a causa do desejo supõe sua não representatividade classificatória
e, consequentemente, ocorrem dificuldades para que o sujeito se adeque à
classe que supostamente lhe representa.
As histéricas, como se conhece, e enfatiza Antonio, ensinaram a Freud -
que abandonou a perspectiva do discurso científico que as fazia calar - sobre
a causa do desejo e sua não representatividade classificatória, na enorme
capacidade que têm de exibir sinais clínicos de todas as clãsses diagnósticas,
e suas dificuldades de adequação à classe que supostamente as representa.
O que também ocorreu com os obsessivos em suas loucuras, tão mais grave
quanto mais normal o indivíduo busca ser, e com os psicóticos mergulhados
no excesso pulsional incompatível com a representação, vivenciando o Eu
desligado da realidade, em decorrência do elemento que recusa estar forte-
mente enveredado na realidade externa. Ainda que de forma esquemática,
como Antonio reconhece, ele toca, no entanto, em pontos cruciais indicando
que, desde Freud, há os inclassificáveis.
Chega, então, o momento de se perguntar se a psicanálise não estaria
retomando o princípio de representação classificatória que ela questiona, ao
construir suas classes diagnósticas a partir de nomeações advindas do campo
psiquiátrico. Questão pertinente para pensadores/leitores críticos. Antonio
considera, respondendo à questão que levanta, que esse raciocínio não se
aplica, pois, se existem as nomeações diagnósticas próprias da psicanálise,
seu uso é paradoxal, já que estão longe do agrupamento que supõe o universo
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 141

de caso. Ao contrário, elas se sustentam no inagrupável dos casos. Não existe,


em psicanálise, coleção de casos que funcione como premissa universal.
Nesse sentido, Antonio pondera que o trabalho clínico em psicanálise não é
o que por meio da verticalidade indutiva vai da parte para o todo na busca
do universal para, desde esse ponto, se dirigir à parte estabelecendo, dedu-
tivamente, o diagnóstico clínico. O movimento do psicanalista é horizontal,
parte a parte, valendo-se do exemplo paradigmático, daquilo que se mostra,
ao lado, servindo de exemplo, e não o resultado da pura aplicação de saber
já estabelecido. Sem dúvida, de forma exemplar ele esclarece pontos cruciais
da prática analítica.
Ao prosseguir em seu rumo, Antonio desenvolve, didaticamente, ainda
que de forma breve, a fundamentação da noção de paradigma, relembrando
Lacan (1973 /2003, p. 554), em "Introdução à edição alemã de um primeiro
volume dos Escritos": "Não sou pródigo em exemplos, mas, quando meto
meu nariz, elevo-os ao paradigma." Importava-lhe, que assim o fosse, exata-
mente porque a concepção de sujeito, que lhe foi tão cara, não se apreende em
categoria universal : "Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para
os outros do mesmo tipo". Ele, resposta do real, aparece justamente quando o
indivíduo se distancia da espécie, do universal e da regra. Por isso, o interesse
psicanalítico pelo caso único. Assim sendo, o exemplo paradigmático não
deve ser, neste caso, um modelo heurístico de um universo de casos, lembra
Antonio. Ele supõe não impor ao real uma representação abstrata da realidade,
mas operacionalidade com elementos que já se apresentam no nível de uma
realidade provisória, destinando-lhe função distinta de seu uso ortodoxo.
Trata-se de um trabalho de bricoleur, que supõe o ~previsto de utilização
de objetos que se tem à mão, sempre no movimento de fazer diferentemente
igual, em bela forma de se dizer.
Depois de passar por algo que ressoou do texto, na busca de justiça pelo
que nele se expressa, o que se nota é que se estampa a veracidade da afinnação
milleriana (2006, p. 27) de que no mundo psicanalítico somente lidamos com
exceções à regra. Nele se constata a existência do irredutível à classificação.
Na língua especial que Freud e Lacan criaram, a partir do discurso científico,
importa considerar que o diagnóstico há de ser tomado em sua dimensão
de arte, tal como Miller tem enfatizado. Arte nos moldes kantianos - uma
finalidade sem fim-, o que supõe "arte de julgar um caso sem regra e classe
estabelecida", contando com o fato de que o sintoma é invenção ou reinvenção
da regra faltante. Mas também com o uso da fantasia como componente do
sintoma, tal como Freud já havia notado, para produzir arte. Nada simples e
muito exigente em formação, pois haveremos de contar que na economia libi-
dinal dos sujeitos e no gozo presente nos corpos, algo sempre se furta. Trata-se,
assim, de julgamento ou ajuizamento como prática de arte, importante de ser
142

inserido entre a dimensão do universal e do particular, ou seja, na utilização


de categorias universais em um caso particular, pois ele impede a aplicação
de regras e, ao contrário, vigia se a regra se aplica.
Éric Laurent (2000), em texto que vale a pena ler e reler, resultado de con-
ferência na Universidade da Bahia, enfatiza para os interessados que o século
XXI é o século da biologia, e a psicanálise, como disciplina de sobrevivência,
haverá de saber acompanhar a ciência nos feitos que ela tem sobre o corpo do
vivo, tratando-o dos estragos causados pelo parasita linguageiro e, por isso,
diferentemente do que ousam pensar, ela não desaparecerá. Ao contrário, os
psicanalistas terão muito trabalho neste século, como única alternativa para
o sistema composto pela ciência e ficção. Época em que, na verdade, não há
normas de vida, ninguém sabe mais o que é melhor para viver, embora se possa
dizer de estilos de vida justapostos, o que faz com que cada qual aguente as
consequências e, por isso, conte com seu advogado.
Por isso mesmo, se psicopatologia é termo decorrente de prática clí-
nica psiquiátrica, utilizá-lo em psicanálise expressando singularidades pode
ressoar acintoso. Como foi possível ver, no entanto, não há como confun-
dir. A preocupação em marcar as diferenças tem me acompanhado ao longo
da vida profissional, e há algumas contribuições expressas em consistentes
pesquisas que coordenei, acessíveis aos interessados na Biblioteca da PUC
Minas, uma das mais expressivas do Brasil. Os interessados podem buscá-las
pelos títulos O ensino da psicanálise nas disciplinas de Psicopatologia dos
cursos de Psicologia de Minas Gerais, finalizada em 2004, e Justaposição
entre psicopatologia e psicanálise: dificuldades e implicações no ensino da
Psicologia, com término em 2006.
Entre ponderações, sugiro que não esqueçamos que para alguns o
diagnóstico tranquiliza, pois, ao serem nomeados, são retirados da mar-
ginalidade, do ponto de ancoramento do mau elemento, posicionando-os
como sujeitos que têm um problema clínico. Assim sendo, se para outros
o diagnóstico é excludente, segregador, a cada caso há de se fazer cálculo
clínico, contando com cada ocasião.
Outra situação clínica, que vale a pena buscar conhecer, acompanhando
o raciocínio de Antonio, e considerando a relação do sujeito com o desejo do
Outro, é o testemunho de passe de Raquel Cors, pronunciado em São Paulo,
no último Congresso de membros da EBP. Em seu testemunho, evidencia-se
quando, a partir da luxação no quadril, provocada pelo trabalho de parto, a
enfermeira sentenciou: "uma menina assim, bela como um anjo, vai morrer! ".
Isso se articulará na fantasia e produzirá sintomas por toda sua vida. Na espera
de ser tirada, pelo Outro, de seu cômodo mundinho cheio de sofrimento, como
ela afirma, dele também só pôde sair a fórceps, contando com um analista, e
daí encontrar um mais de vida ao saber fazer com a pulsão de morte, sem se
deixar mortificar.
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 143

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos.


ln: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2003.
p. 550-556.

LAURENT, É. A psicanálise do século XXI. ln: LAURENT, É. As paixões


do ser. Salvador: EBP-Bahia, 2000. p. 9-28.

MILLER, J.-A. A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan. Curinga, Belo


Horizonte, n. 23, p. 15-33, nov. 2006.
,
INDICE REMISSIVO

A
Analista 4, 16, 19, 36, 40, 41 , 53 , 54, 57, 59, 95, 96, 97, 108, 109, 140
Angústia 39, 40, 59, 62, 63 , 67, 87, 88, 90, 99

e
Ciências Humanas 9
Civilização 20, 25, 30, 34, 47, 48, 56, 59, 67, 74, 93
Clínica 9, 10, 16, 21, 41 , 47, 53 , 54, 56, 60, 62, 63 , 64, 65, 69, 70, 73 , 74,
80, 90, 91 , 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 109, 117, 130, 131, 132, 133,
134,140, 149
Complexo 20, 33
Criança 18, 19, 23 , 30,36, 40, 77, 78, 79,80, 81,82, 83 , 93 , 94,95, 96, 99,
117, 118, 120, 121 , 123

D
Delírio 80, 81 , 82
Desajo 16, 17, 18, 1~20,23,25,28, 31, 39, 40, 54, 55, 57, 66,77, 78, 79,
80,84, 87, 89, 96, 97, 102, 117, 122, 127,1 29,130,132,133 , 138, 140
Despatologização 7, 1O, 13
Diagnóstico 35, 49, 60, 61 , 63, 71 , 93 , 109, 127, 128, 129, 131, 132, 133,
135, 137, 139, 140, 141
Discurso 9, 10, 15, 16, 23 , 47, 48,49, 53 , 54, 55, 56, 59, 64, 65, 66, 70, 72,
93 , 94, 95, 99, 102, 107, 108, 109, 110, 111 , 114, 117, 118, 119, 122,
127, 129, 138, 139
Doença 48, 49, 52, 54, 55, 61,62, 63 , 64,69, 73, 74,1 27,130
DSM 34, 35, 49, 60, 63, 64, 67, 71 , 72, 73

E
Equivalência 50, 77, 79, 80, 82
Esquizofrenia 47, 63, 109
Existência 15, 33 , 34, 51 , 54, 78, 79, 80, 81 , 99, 103, 111, 112, 113, 122,
132, 139

F
Fantasia 18, 22, 54, 72, 78, 80, 99, 117, 123, 139, 140
146

Feminino 23, 28, 36, 37, 77, 80, 84, 110


Fetiche 78, 81
Foraclusão 55, 95

G
Gênero 15, 16, 19,24,25,26,27,30,34,35,37,39,40,41,85, 86,92
Gozo 15, 17, 18,2~21,2~25,2~27,28, 2~ 3~ 36, 37,42,47,48, 53,
57,59,60,62,64,66, 78,80,81,82,84,85,86,87,88,89,90,91,94,
95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 110, 111, 118, 119, 120, 121, 122,
127, 139

H
Histeria 107, 108, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 130, 131, 132, 134
História da Loucura 56, 138
Homossexualidade 20, 34, 87, 88, 89, 110

I
Identidade 21, 24, 27, 29, 35, 40, 41, 86, 89, 92
Imaginário 18, 27, 38, 39, 63, 66, 86, 101, 111
Inconsciente 19, 25, 31, 33, 42, 51, 52, 57, 77, 78, 83, 89, 90, 107, 108, 110,
111, 130
Individualismo 112
Indivíduo 40,49,50,65,85, 112,115,119,121,129,130,133,134,138,139
Infantil 8, 117, 119, 120, 121, 122, 123

J
Jacques Lacan 4, 7, 15, 19, 33, 34, 116

L
Linguagem 15,25,26,27,47,52,55,63,69, 85, 89,90,94,99, 100
Loucura 7, 8,9, 10,37,47,50,56,65,69, 70, 71, 75, 77, 79,80, 85,86,90,
91, 93, 96, 97, 128, 129, 130, 138

M
Maternidade 7, 10, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 84
Medicina 34, 52, 53, 56, 62, 63, 64, 69, 70, 71, 127, 137
PSICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA LACANIANAS: impasses e soluções 147

N
Neurose 42, 50, 107, 109, 132, 133, 135
Nó borromeano 86, 87, 88, 90, 91
Nome-do-Pai 16, 17, 18, 19, 20, 90
Normalidade 41, 50, 54, 55, 65
Nosologia 8, 107, 127, 131, 134, 135, 137

o
Outro 8, 17, 18, 20, 23, 24, 27, 28, 29, 36, 37, 38, 39, 40, 41 , 47, 49, 50, 52,
55,60, 62,63 , 64,65, 66, 72, 77, 79,80,82,85,86,87,89,90,91,93,
94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 107, 110, 111, 112, 113, 117,
118, 119, 120, 121, 122, 127, 128, 130, 131, 134, 137, 140

p
Paranoia 50, 66, 81, 133
Perversão 16, 19, 20, 79, 80, 82, 135
Prazer 15,25, 26,27,28,29,30
Psicanálise 3, 4, 7, 9, 10, 11 , 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 , 24, 26, 28,
29,31,33, 34,35,37,42,47,48,49,50,51,52,53,54,57,59,62,64,
65,67,69, 70, 72, 74, 77, 79, 84, 85,86, 87,92, 93,96,97, 107,108,
110, 111, 112, 113, 115,117,118, 123, 127, 129,131, 132, 133, 137,
138, 139, 140, 141
Psicofármacos 60, 61, 67, 71 , 72, 73
Psicologia 9, 16, 18, 25, 47, 74, 77, 83, 84, 85, 93, 99, 107, 117, 123, 130,
140,149
Psicopatologia 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 33, 43, 49, 56, 77, 125, 127, 129, 137,
138, 140
Psicose 35, 36, 64, 99, 101, 104, 109, 110, 128, 135
Psiquiatria 7, 10, 60, 61, 62, 63, 69, 70, 71, 73, 74,111,131
Pu~ão 15,22,23,24,25,28,55,77,82,83,96, 119,120,140

Q
Queer 7, 10, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 42, 64,
85,86,92

R
148

66,78,79, 80, 81,82, 85, 86, 89, 90, 91 , 94, 95, 96, 97, 109, 111 , 113,
119, 133, 134, 139

s
Satisfação 16, 20, 22, 28, 47, 55, 85, 86, 130
Saúde Mental 7, 9, 10, 45 , 47, 48, 49, 50, 51 , 52, 53 , 54, 55, 57, 59, 60, 61 ,
62,65, 66,67,69, 71 , 72, 74, 93 , 99, 149
Segregação 27, 48, 60, 61 , 64, 129,138
Semblante 19, 20, 24, 36, 40, 85, 108, 114
Sexo 8, 15, 17, 21 , 23, 24, 26, 29, 32, 34, 35, 37, 39, 40, 41 , 89, 105, 110, 122
Sexualidade 8, 15, 16, 18, 21 , 22, 23, 25, 26, 30, 31 , 37, 77, 79, 80, 87, 89,
117, 121, 122, 123
Sigmund Freud 15, 19, 30, 43 , 56, 83, 114, 123, 135
Significante 16, 18, 19,20, 27, 28, 29, 33, 35, 36, 55, 66,82, 93 , 95, 99, 100,
102, 111 , 127, 137
Simbólico 27, 28, 66, 77, 86, 89, 91 , 96, 111, 122, 130
Singularidade 34, 49, 54, 55, 65, 78, 86, 112, 131
Sintoma 33 , 54, 55, 62, 66, 67, 78, 80, 81 , 84, 86, 90, 91 , 92, 11 1, 114, 115,
127, 139
Subjetividade 54, 59, 70, 71 , 78, 94
Sujeito 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23 , 24, 25 , 27, 33, 34, 35, 36, 37, 40, 41 , 42,
50, 51 , 52, 55 , 59,60, 62, 63, 64, 66, 72, 77, 79, 80,~2, 85, 86, 90, 91 ,
93 , 95, 96, 97, 101 , 102, 103, 107, 109, 111, 112, 113, 119, 120, 121 ,
122, 127, 128, 129, 130, 131 , 133, 134, 137, 138, 139, 140

T
Transexualidade 7, 10, 11 , 13, 33 , 34, 35, 42
Transferência 54, 57, 65, 97, 132
Tratamento 9, 35, 50, 51 , 56, 59, 60, 61, 62, 70, 71 , 72, 86, 93 , 95, 96, 97,
100, 102, 104, 110, 117, 133

V
Verdade 19, 35, 54, 55, 62, 66, 78, 81 , 110, 111 , 113, 122, 128, 131 , 132,
135, 140
Violência 38
SOBRE OS ORGANIZADORES

Carla Almeida Capanema


Psicanalista. Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal de Minas Gerais (Bolsista Capes/PNPD).

Flávio Durães
Psicólogo e psicanalista, com mestrado em Filosofia (UFMG). Doutorando
em Psicologia (Puc Minas). Professor da Puc Minas e FCMMG. Coordenador
do Curso Clínica Psicanalítica na Atualidade: contribuições de Freud e Lacan
IEC/Puc Minas.

Hélio Cardoso Miranda Jr.


Psicanalista, Professor da Puc-Minas, Psicólogo Judicial do TJMG, Pós-Dou-
torado em Psicologia (UFMG). Doutor em Psicologia Clínica (USP).

Juliana Meirelles Motta


Psicanalista, Mestra em Psicologia/FAFICH-UFMG. Coordenadora do Pro-
grama de Residência Multiprofissional em Saúde Mental - Instituto Raul
Soares/FHEMIG. Docente das Especializações em Clínica Psicanalítica e
Saúde Mental/IEC PUC-Minas.

Marconi Martins da Costa Guedes


Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG Coordenador do
Núcleo de Ensino e Pesquisa do Instituto Raul Soares/FHEMIG. Professor
Adjunto da Faculdade de Minas - Faminas.
Li certa vez que pela orelha do
livro escuta-se o que vai lá dentro.
Fazendo jus a esta frase, apre-
sento-lhes o livro Psicanálise e
psicopatologia lacanianas - Im-
passes e soluções. O discurso
lacaniano é o que norteou os
textos aqui apresentados. Em
um dos textos, Fabián Fajnwa-
ks, ao problematizar o termo Psi-
copatologia, nos adverte que o
ensino de Lacan não nos autori-
za a falar de «psicopatologia»,
uma vez que se trata de acolher,
como fazemos em análise, o
mais íntimo e central do ser
falante. Ressalta, entretanto, que
se devemos aceitar o uso do
termo psicopatologia lacaniana,
deve ser somente para permitir
inverter toda a dimensão nor-
mativa que o termo «psicopato-
logia» implica. Este é o tom
deste livro, que trata de subver-
ter o ideal da Saúde Mental e
escrever e prestigiar a leitura psi-
canalítica e seu modo peculiar de
escutar cada sujeito e o seu direito
à singularidade.

Marconi Martins da Costa Guedes


Coordenador do Núcleo de
Ensino e Pesquisa.
Instituto Raul Soares/FHEMIG

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