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Eder Fernandes Monica

Ana Paula Antunes Martins


(Orgs.)
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REALIZAÇÃO

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Eder Fernandes Monica
Ana Paula Antunes Martins
(Orgs.)
Ficha catalográfica
CDD:
CDU:
SUMÁRIO

Prefácio............................................................................................................................................7

Apresentação .............................................................................................................................11

Capítulo 1 Conceitos para pensar sobre política sexual no Direito brasi-


leiro .............................................................................................................19
Eder Fernandes Monica
Ana Paula Antunes Martins

Capítulo 2 Autonomia corporal na literatura jurídica sobre processo tran-


sexualizador: notas sobre o futuro da sexualidade no Direito ........47
Adriana Ribeiro Rice Geisler

Capítulo 3 Trabalho e sexualidade: notas para refletir sobre um (des)en-


contro dramático......................................................................................67
Carla Appollinario de Castro

Capítulo 4 Legislar para “minorias sexuais”: deputados do PT e o dis-


curso sobre direitos sexuais para LGBTs em 13 anos de go-
verno ..........................................................................................................95
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Capítulo 5 A invenção da maternidade e o futuro da autonomia reprodu-


tiva no direito......................................................................................... 127
Mariana Paganote Dornellas

Capítulo 6 O “pedágio da natureza”: estratégias discursivas nos debates


jurídicos sobre homossexualidades e transexualidades ................. 151
Thiago Coacci

Capítulo 7 Qual o futuro dos direitos sexuais e reprodutivos nas relações


familiares? ............................................................................................... 171
Laís Lopes

Capítulo 8 Política Sexual na modernidade e perspectivas de masculinida-


des aplicadas ao direito brasileiro ...................................................... 195
David Emmanuel da Silva Souza

5
Capítulo 9 Gênero, justiça e políticas públicas sob a ótica de Nancy Fra-
ser ............................................................................................................. 219
Natália Caroline Soares de Oliveira

Capítulo 10 (Des)construindo redes e estruturas: perspectivas sobre o fu-


turo da disciplina e a regulamentação da sexualidade .................... 245
Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha
Gabriel Cerqueira Leite Martire

Capítulo 11 Teoria e prática no enfrentamento da violência contra a mu-


lher: um diálogo possível? ................................................................... 275
Ariíni Guimarães Bomfim
Beatriz Hiromi da Silva Akutsu

Capítulo 12 O tratamento da identidade transexual e travesti pelo Sistema


Penitenciário no Rio de Janeiro .......................................................... 297
Roberta Olivato Canheo

Capítulo 13 O futuro do aborto: análise a partir do papel da Presidência


dos Poderes da República .................................................................... 325
Rogério Barros Sganzerla

Capítulo 14 Mulher negra: identidades forjadas pela negação ............................ 351


Carolina Câmara Pires dos Santos
Clarissa Cunha Felix Agra Figueiredo

Sobre as autoras e os autores ..................................................................................... 387

6
PREFÁCIO

Pensar juridicamente a sexualidade

Eder Fernandes Monica e Ana Paula Antunes Martins, organizadores


do interessantíssimo livro Qual o Futuro da Sexualidade no Direito? solicitaram
minha intervenção para abrir a reflexão dos interessantes textos dos diferentes
autores que compõem dita obra. Agradeço o convite e saúdo o trabalho rea-
lizado. Em poucas palavras e de modo sucinto, apresentarei os grandes linea-
mentos do que poderia constituir uma base teórica de um pensamento jurí-
dico em matéria de sexualidade.
A libertação sexual e a expansão pandêmica da AIDS durante a se-
gunda metade do século passado colocaram a sexualidade no centro do debate
político e social. Circunscrita à esfera da privacy, a sexualidade irrompe no es-
paço público, em primeiro lugar graças à ação do feminismo e posteriormente
às reivindicações do movimento LGBT. Entretanto, a sexualidade continua
sendo a atividade humana mais difícil de se emancipar tanto da moral tradici-
onal quando do discurso médico, o que obscurece a análise jurídica.

7
Em princípio, uma teoria jurídica da sexualidade deveria se inscrever
no prolongamento de uma filosofia política laica construída a partir da ideia
de autonomia da vontade do sujeito de direito autônomo e responsável que
desenvolve sua liberdade a partir de eleições racionais.
A atividade sexual, como toda atividade humana, é múltipla e variada.
Depende da representação que a partir dela os indivíduos são forjados. O
leque se desenrola desde aquelas concepções que concebem o sexo como uma
ação meramente reprodutiva no marco do matrimônio até os que fazem da
libertação sexual uma forma de vida. Há aqueles que preferem as pessoas do
próprio sexo e aqueles que encontram o prazer no sexo oposto. O sexo pode
constituir uma identidade ou simplesmente um ato sem conotação subjetiva.
Para algumas pessoas sexo e amor são indissociáveis, outros fazem da sexua-
lidade uma atividade onerosa.
Uma regulação justa da sexualidade deve colocar entre parênteses os
diferentes sentidos que cada indivíduo outorga a sua vida erótica. Não existe,
em nossas sociedades multiculturais, um consenso substancial em matéria se-
xual. Em tal marco, a ação do Direito deve ser minimalista, reduzindo sua
intervenção ao cumprimento de dois princípios gerais: o consentimento livre
dos indivíduos e a ausência de prejuízo a terceiros.
A partir de uma leitura dessacralizada da sexualidade (emancipada da
tradição e das ideologias não problematizadas) e de uma concepção modesta
do Direito, minha reflexão pode se interpretar como o resultado de um es-
panto intelectual, por um lado, e da aplicação de uma filosofia consensualista
do sujeito erótico e da naturalidade moral do Estado em matéria sexual, por
outro.
Comecemos pelo espanto: a constatação universal da proibição do
incesto como uma fonte do mundo normativo, como a antropologia propõe,
não encontra equivalência no Direito. Segundo Maurice Godelier, “a proibi-
ção do incesto consiste em fazer o social com o sexual”, também Lévi-Strauss
demonstra que a proibição do incesto é a matriz da norma enquanto critério
do permitido e do proibido. De tal modo que a regulação da sexualidade apa-
rece como a atividade normativa originária em função da qual se articulam
todas as outras formas de regulação. Desde esta perspectiva antropológica,
resulta surpreendente o desinteresse da teoria geral do Direito pela sexuali-
dade. É por isso que, frequentemente, os juristas se comportam melhor como

8
Qual o futuro da sexualidade no direito?

moralistas que como profissionais do Direito na matéria. Uma teoria jurídica


da sexualidade ainda está por ser construída.
Abandonar a sexualidade à norma moral (ou religiosa) ou deixá-la nas
mãos do discurso médico ocasionou grandes danos ao pensamento jurídico.
A modernidade jurídica nunca chegou à sexualidade e é por isso que é neces-
sário pensá-la a partir dos critérios propostos pela filosofia liberal que irradia
toda a ordem jurídica democrática. Habermas nos adverte do perigo que cor-
remos ao criticar radicalmente a modernidade, instalando-nos de maneira
acrítica na era pós-moderna, fazendo, desse modo, o jogo do conservado-
rismo e da regressão. A modernidade é definitivamente, em matéria de sexu-
alidade, um projeto inacabado. Trata-se de pensar as bases jurídicas do
(auto)governo da sexualidade a partir dos dois pilares mencionados anterior-
mente: o consensualismo e a neutralidade do Estado.
O consensualismo se baseia na ideia de que a legitimidade de um ato
repousa exclusivamente na vontade livre e consciente das partes. Diferente-
mente da moral religiosa que impõe um sentido unívoco da sexualidade, a
filosofia consensualista renuncia tal pretensão: cada indivíduo é livre para dar
à sexualidade a significação que deseja. A modernidade implica assim o aban-
dono de uma erótica uniformizada em benefício de uma concepção pluralista
da sexualidade que concede o mesmo valor às diferentes escolhas individuais.
Isento dos vícios de consentimento (erro, dolo, violência, intimidação e lesão
econômica) e de prejuízo a terceiros, o ato sexual consentido é lei para as
partes. Permita-me recordar também que o Direito trata da vontade (entidade
racional) e não do desejo (entidade irracional).
A neutralidade moral do Estado significa que este último não deve
promover uma moral sexual específica sob pena de se converter ele mesmo
em imoral. A neutralidade garante o pluralismo já que o Estado se abstém de
fomentar uma forma de sexualidade em detrimento de outras, sempre que se
trate de indivíduos livres e capazes de consentir. A liberdade se converte em
tirania quando o Estado pretende conhecer melhor que o indivíduo o que é
bom para este último. Só a ausência de consentimento e o prejuízo ocasio-
nado a terceiros justificam a sanção do Direito.
Trata-se, pois de desconstruir o dispositivo da sexualidade (scientia se-
xualis) extraindo a sexualidade de qualquer regime de excepcionalidade para
aproximá-la ao Direito comum, tornando-a banal.

9
Não podemos pretender ser pós-modernos se, todavia, não cumpri-
mos com as exigências da modernidade. Arrancar a sexualidade da moral e da
clínica e instalá-la no Direito implica passar necessariamente pela moderni-
dade para, é claro, logo criticá-la.

Daniel Borrillo

Professor de Direito na Université Paris Ouest. Pesquisador


associado do CNRS Paris II. Autor do tratado Droit des sexuali-
tés, Presses Universitaires de France, Paris, 2009.

Tradução de Eder Fernandes Monica

10
APRESENTAÇÃO

E m março do ano de 2015 iniciamos as atividades do grupo


de pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia - SDD, na
Faculdade de Direito da Universidade Federal Flumi-
nense, em Niterói, estado do Rio de Janeiro. Os primeiros encontros se inici-
aram com os pós-graduandos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito da UFF. Hoje, dois anos depois, o grupo conta com diversos mem-
bros de vários locais do país, engajados em pensar a sexualidade e o direito
dentro de uma perspectiva crítica, relacionando-os com os conceitos de poder
e de democracia.
Este livro é fruto do trabalho coletivo desenvolvido dentro do SDD
nos anos de 2015 e 2016. Durante o ano de 2015 o grupo se reuniu para
debates teóricos sobre autores que discutem o tema da sexualidade. Foram
incontáveis reuniões de calorosas análises e interpretações possíveis dos mar-
cos teóricos, sempre tensionados em relação à realidade brasileira e às ques-
tões políticas mais relevantes. A tentativa foi a de construir um pensamento
conjunto sobre os elementos teóricos fundantes de uma pesquisa crítica que
permitisse uma visão estruturante para o pensar sobre as dinâmicas da sexua-
lidade. No ano de 2016, com a intenção de explorar os limites do conceito de

11
sexualidade no Direito brasileiro, usamos a pergunta sobre qual seria o futuro
da sexualidade como guia para uma compreensão mais densa sobre os rumos
da política sexual no Brasil. Assim, trabalhando com a hipótese geral de que
a legislação sexual atual pode se caracterizar como um instrumento de afirma-
ção da autodeterminação das pessoas e como um meio de proteção da liber-
dade sexual, investigamos as temáticas da sexualidade tentando compreender
se existe um sentido de realização das promessas da modernidade: liberdade
e igualdade para todos.
Os direitos sexuais se destacam atualmente como conceito operante
de uma política sexual emancipatória, tanto no âmbito internacional, como
no nacional. Há um amplo campo de investigação desenvolvido por diversas
pesquisadoras e diversos pesquisadores que propõem um compromisso mais
efetivo na realização dessa promessa de emancipação. Essa política, quando
analisada dentro do Direito, se confunde com propostas liberais de direitos
de minorias e políticas de reconhecimento das diferenças sexuais, dentro de
uma dinâmica reformadora do sistema de direitos. A diferenciação entre as
várias propostas e a pergunta sobre sua eficiência permitem uma noção mais
apurada sobre o que hoje vivenciamos como sexualidade. Os vários atores
sociais que disputam o campo político, como o Estado, as instituições médi-
cas e religiosas, o Direito, a opinião pública e o mercado, estão entrelaçados
numa trama complexa de significações que clamam para si a agenda – ou a
sua exclusão – dos direitos sexuais. Entender os caminhos já trilhados e os
que ainda estão por vir nos ajuda a pensar o que estamos afirmando enquanto
liberdade e emancipação, principalmente quando a democracia nos exige levar
a sério o pluralismo de visões de mundo que hoje nos caracteriza.
Sob esse pano de fundo, o livro foi construído na tentativa de verifi-
car a hipótese geral, que também é a hipótese básica das concepções de liber-
dade da Modernidade, por intermédio de temas específicos da sexualidade,
que são objeto da legislação brasileira. O estudo das dinâmicas políticas e das
fases características do sistema jurídico nos permitirá conclusões mais preci-
sas sobre os caminhos que estamos seguindo. Dentro de uma dinâmica global
dos sistemas jurídicos, podemos perceber que a modernidade sexual se carac-
teriza por um início repressivo, passando por uma intensa fase de crítica e
reestruturação em meados do século passado, para uma fase mais recente de
compromisso com sentidos de liberdade sexual, próprios da noção de direitos
sexuais. Em que medida o Direito brasileiro se compromete com o estágio

12
Qual o futuro da sexualidade no direito?

atual dos direitos sexuais? De que modo ele promove sentidos profundos de
emancipação por meio da sexualidade? As decisões judiciais mais recentes
apontam para uma sexualidade mais plural e inclusiva? Em que aspectos po-
demos dizer que a legislação sexual ainda possui um caráter repressivo signi-
ficativo? Ainda estamos comprometidos com a realização das promessas da
modernidade ou podemos visualizar uma pós-modernidade na sexualidade?
O primeiro capítulo do livro abre a discussão questionando quais se-
riam os conceitos básicos para pensar sobre política sexual no Direito brasi-
leiro. Os autores Eder Fernandes Monica e Ana Paula Antunes Martins se
preocupam em entender o projeto moderno da sexualidade em suas fases e
compromissos, tendo por base a hipótese sustentada por Foucault em A His-
tória da Sexualidade de que a relação entre poder e sexualidade ajudam a mostrar
os dispositivos que produzem sentidos de sexualidade. A ordem sexual oci-
dental, antes densamente significada pela religião cristã, sofre um complexo
processo de compartilhamento dos seus sentidos dentro do Estado Moderno.
A identificação das novas categorias que ressignificam o sentido da sexuali-
dade nos mostra a intensa trama dos atores que disputam o seu futuro. Por
isso, além de pensar os conceitos-chave da investigação, os autores desenvol-
vem uma análise sobre os atuais usos do conceito de direitos sexuais e suas
articulações entre o Direito e a política sexual no Brasil, concluindo com in-
dagações sobre o momento político de tensão vivenciado na atual arena polí-
tica.
Adriana Ribeiro Rice Geisler, pesquisadora destacada em debates so-
bre autonomia corporal e pessoas trans, desenvolve, no segundo capítulo,
análise sobre as necessidades de pessoas trans em suas demandas por autono-
mia corporal, em tensão com as pretensões emancipatórias do direito ao en-
campar os impulsos libertários de grupos externos à oficialidade estatal. Guar-
dando relação entre a sexualidade e um novo olhar sobre o Direito, a autora
destaca como o Direito vem se posicionando frente aos anseios da população
trans, com análise qualitativa que parte de pesquisas de campo realizadas an-
teriormente. Em conclusão, Adriana revela a insuficiência do conceito de dig-
nidade da pessoa humana para se pensar o futuro da sexualidade no direito,
pleiteando a adoção de conceitos como protagonismo e pluralismo para uma
sexualidade efetivamente democrática.
Entrelaçando sexualidade e relações de trabalho, o terceiro capítulo
conta com as análises de Carla Appollinario de Castro a respeito da inserção

13
no mercado formal de trabalho das trabalhadoras e trabalhadores LGBTs. A
autora reflete o lugar da sexualidade no Direito do Trabalho, a partir do deli-
neamento do conceito de cidadania no Brasil e sua atualização na perspectiva
da inserção no mercado formal de trabalho. Em sua parte empírica, Carla, por
meio de análise de julgados do Judiciário Trabalhista, critica o modo como
são recepcionadas as demandas judiciais dos trabalhadores LGBT, apontando
alternativas para o futuro da sexualidade no direito, como um ensino jurídico
sensível a tais demandas e um Judiciário mais atento para as novidades que a
diversidade sexual traz para o âmbito da cidadania.
Debatendo o contexto do governo do Partido dos Trabalhadores
(PT) e seus compromissos com os “direitos de minorias sexuais”, Gustavo
Agnaldo de Lacerda desenvolve no quarto capítulo análise sobre a política
sexual voltada à população LGBT no legislativo federal brasileiro durante os
anos de governo do PT, tentando entender a política que se desenrola por
meio da significação recente da sexualidade LGBT nos discursos dos seus
deputados federais. Como conclusão, apresenta suas críticas em relação aos
estilos de regulação moral de hoje e que poderão determinar a produção do
sujeito LGBT no futuro, justamente por constatar o baixo legado do PT no
campo dos direitos sexuais no seu governo.
Discutindo a invenção da maternidade, Mariana Paganote Dornellas,
no quinto capítulo, problematiza a formação do sentido de responsabilidade
materna frente à invenção da infância moderna. Os interesses do Estado pelo
controle populacional constituíram uma trama de padrões de normalidade
para as mulheres, por meio do controle dos seus corpos. A luta feminista
pelos direitos das mulheres trouxe ao cenário político reinvindicações por tra-
tamento igualitário perante os homens, destacando a maternidade como um
dos fatores essenciais para essa luta emancipatória. Por isso, a autora observa
como as mudanças sociais transformaram a ideia de maternidade e como hoje
são pensadas as questões ligadas à responsabilidade pelo cuidado com os fi-
lhos por meio do conceito de autonomia reprodutiva e das reconfigurações
dos direitos de parentalidade. O seu questionamento sobre o futuro da sexu-
alidade está precisamente no enfrentamento das alterações legislativas recen-
tes que exigem a superação da divisão dos papeis sociais separados por gêne-
ros nas responsabilidades da parentalidade.
No sexto capítulo, Thiago Coacci investiga as estratégias discursivas
nos debates jurídicos sobre homossexualidades e transexualidades em busca

14
Qual o futuro da sexualidade no direito?

daquilo que ele chamou como “pedágio da natureza”, ou seja, a forma como
o Judiciário, ao decidir sobre os direitos das pessoas LGBT, passam por de-
bates a respeito da natureza da homossexualidade, transexualidade e família.
Esse pedágio cobra uma determinada sujeição das pessoas LGBT, em um
exercício sutil de argumentação jurídico-política. A natureza das coisas se
torna relevante nesses casos, o que deixa a pergunta sobre o motivo da sele-
tividade desse modo de argumentar. O autor conclui que essa seletividade é
sintoma dos frágeis valores democráticos brasileiros e que, para o futuro, de-
vemos nos preocupar em rebater tais argumentos sobre a “natureza” para que
o Direito se comprometa de modo radical com a própria democracia.
Enfrentando o debate sobre reprodução humana e família, Laís Go-
doi Lopes, no sétimo capítulo, analisa os pressupostos teóricos que compõem
a regulação da família no Direito brasileiro, desvelando a política sexual e de
gênero que dão conteúdo ao que é possível nas relações de parentesco. Laís
parte da hipótese de que a força da ideia de natureza, tal qual já apresentada
no capítulo anterior, é fonte moral para legitimar as relações de parentesco.
Isso faz com que as demandas por direitos da população LGBT restem invi-
sibilizadas. A autora conclui que o futuro da sexualidade requer a reformula-
ção da base teórica dos direitos sexuais e reprodutivos, em consonância com
os avanços trazidos pelos estudos de gênero e sexualidade, pensados juntos
com as implicações do uso de biotecnologias nas relações familiares e repro-
dutivas. Só assim será possível pensar em uma verdadeira democratização da
esfera privada nas relações familiares.
Com os estudos de masculinidades, David Emmanuel da Silva Souza
traz para o livro, no capítulo oitavo, as perspectivas para o direito brasileiro.
Em estudo pioneiro, propõe a inclusão dos estudos de masculinidades para a
compreensão da racionalidade do direito, com o objetivo de alcançar a eman-
cipação dos sujeitos em relação à tradição filosófica masculina. Em posicio-
namento crítico aos usos teóricos desses estudos no Brasil, David analisa em-
piricamente a relação entre masculinidade e política sexual, discutindo as
transformações das relações familiares e das paternidades incorporadas pelo
Direito. Sua conclusão é de que a crítica dos estudos de masculinidades à ra-
cionalidade do direito pode fornecer elementos problematizadores para pen-
sar e formatar as bases para um futuro justo, democrático e igualitário entre
as identidades sexuais.

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Pensando por intermédio da teoria de Nancy Fraser, Natália Caroline
Soares de Oliveira discute gênero, justiça e políticas públicas. No nono capí-
tulo, a autora verifica a articulação entre a política de reconhecimento e as
políticas públicas brasileiras para mulheres. Explicando o que seriam essas
políticas, Natália tenta compreender como a participação das mulheres na es-
fera pública poderia levar a uma mudança estrutural e a superação das suas
desigualdades perante os homens, como um aspecto significativo para o pen-
samento sobre o futuro da sexualidade no direito.
Em um trabalho de coautoria, Ana Míria dos Santos Carinhanha e
Gabriel Cerqueira Leite Martire pensam as perspectivas para o futuro da dis-
ciplina e regulamentação da sexualidade no direito. No décimo capítulo, eles
propõem forjar a constituição de um sujeito ético capaz de invocar o seu lugar
no mundo e na vida e de se posicionar criticamente para além das tarefas e
papeis sociais preestabelecidos. Na tentativa de se superar a racionalidade se-
xual moderna, usam os conceitos foucaultianos de biopoder, racismo e go-
vernamentabilidade para pensar estratégias de resistência, reavaliando a sexu-
alidade a partir de um novo marco, com exemplos específicos de subjetivida-
des sexuais subalternizadas.
No décimo primeiro capítulo temos outro trabalho em coautoria.
Discutindo o enfrentamento da violência contra mulher, Ariíni Guimarães
Bomfim e Beatriz Hiromi da Silva Akutsu partem de um mapeamento sobre
os dez anos da Lei Maria da Penha para perceber de que forma a violência
contra a mulher foi ressignificada durante esse tempo. O reconhecimento es-
tatal da violência de gênero como problema de ordem pública fez com que o
Judiciário fosse um dos principais atores para a efetividade da Lei. Com base
em análises de julgados, Beatriz e Ariíni refletem sobre o lugar da teoria rela-
cional nas práticas discursivas do Judiciário, pensando quais possibilidades de
construir e repensar as práticas de enfrentamento à violência, com provoca-
ções sobre o futuro da Maria da Penha.
Roberta Olivato Canheo, no décimo segundo capítulo, preocupa-se
com o tratamento da identidade transexual e travesti pelo sistema penitenciá-
rio do Rio de Janeiro. Para o resgate do conceito de transexualidade dentro
do direito, Roberta faz um inventário legislativo da questão transexual no Di-
reito brasileiro. Em seguida, trabalha com algumas narrativas de atores insti-
tucionais envolvidos com o sistema prisional analisado, para tentar responder
qual o futuro da transexualidade quando vista pelo prisma dos mecanismos

16
Qual o futuro da sexualidade no direito?

burocráticos do sistema prisional, principalmente diante das novas identida-


des fluidas de gênero.
Pensando o futuro do aborto, Rogério Sganzerla faz análise, no capí-
tulo décimo terceiro, do papel da Presidência dos órgãos máximos dos Pode-
res da República brasileira. Dentro de uma pesquisa maior que faz um amplo
diagnóstico de todos os projetos de lei sobre aborto no Congresso Nacional,
Rogério se pergunta como se deu a política sexual sobre o aborto no Con-
gresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal e quais questões estão abertas
para o futuro. Com a coleta dos dados necessários, é possível visualizar que
há um risco de manutenção e estabilização da política sexual repressiva no
tocante ao aborto, tanto no Congresso, quanto no STF. Em viés pessimista,
as conclusões apontam que talvez o futuro da legislação sobre o aborto é
continuar como está.
Para fechar o livro, o décimo quarto capítulo traz outro trabalho em
coautoria. Carolina Pires e Clarissa Cunha Felix estudam a questão da mulher
negra e as identidades forjadas pela negação de direitos. Enquanto intelectuais
e ativistas do Movimento Negro, Carolina e Clarissa problematizam o seu
lugar de fala e pensam o corpo da mulher negra enquanto fenômeno social e
histórico, caracterizado pelo impedimento à igualdade e acesso a direitos. Por
meio da Teoria Crítica da Raça e da Interseccionalidade, colocam a raça e o
gênero sob uma lente que revela a estrutura racista e sexista no qual o direito
está engendrado. Um futuro só será possível se o Direito se comprometer
radicalmente com a efetivação de garantias de direitos sociais, caracterizados
a partir de realidades histórico-sociais específicas das mulheres negras.
Por fim, o objetivo principal desse livro é contribuir para um com-
prometimento mais profundo do Direito brasileiro com questões que envol-
vem a sexualidade humana. O silêncio sepulcral que continua impossibili-
tando um profundo fluir da democracia nas questões mais densas da vida
privada não pode continuar. A sexualidade a todos toca. Da mesma forma,
esperamos que todos possam ser tocados por esse livro e que sintam a im-
portância desse debate para o futuro da democracia no Brasil.

Eder Fernandes Monica

Rio de Janeiro, primavera de 2016

17
18
1
Conceitos para pensar sobre
política sexual no Direito

Eder Fernandes Monica1


Ana Paula Antunes Martins2

A
nalisar o Direito a partir do conceito de sexualidade re-
presenta um esforço duplo: identificar o modo como re-
lações e identidades sexuais são tratadas no ordenamento
jurídico brasileiro e compreender quais são as demandas emergentes que ten-
dem a resultar em reformulações nos direitos e nas políticas sexuais. A fim de
que se possa contribuir para pensar sobre o futuro da sexualidade no direito,
parece-nos imprescindível discutir os conceitos centrais que estruturam essa
problemática. Portanto, esse texto pretende analisar, com base na teoria social
pós-estruturalista e nas teorias de gênero, as concepções de sexualidade e di-
reitos sexuais para, ao fim, estabelecer conexões com a política sexual con-
temporânea e sua contextualização brasileira.

1 Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Professor da Faculdade de Direito e do Programa

de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Coordena-


dor do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia.
2 Doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília. Atualmente realiza estágio dou-

toral na Universidade do Porto. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e


Democracia.

19
Eder Monica & Ana Paula Martins

Atualmente experimentamos uma crescente preocupação com direi-


tos sexuais enquanto instrumento de afirmação da autodeterminação das pes-
soas e como meio de proteção da liberdade de realização de projetos pessoais
de vida, independentemente da moralidade sexual dominante na sociedade.
Há uma profunda ligação entre esse projeto específico, pensado por meio da
sexualidade, e os grandes ideários da modernidade, como a liberdade e igual-
dade usadas como vetores de legitimação das dinâmicas políticas, econômicas,
sociais e culturais.
O entendimento sobre as perspectivas e possibilidades do entrelaça-
mento entre direito e sexualidade na legislação e na jurisprudência brasileiras
nos leva à percepção do modo como o Direito produz e potencializa os su-
jeitos a partir da sexualidade, dentro de uma compreensão histórica das dinâ-
micas de poder que formatam e permitem as compreensões sobre identidade
e corporalidade. Localizar a discussão em períodos históricos em que é pos-
sível perceber negociações sobre os sentidos de sexualidade explicita o con-
teúdo da política sexual que estamos vivenciando. Assim, assumir uma pro-
posta investigativa que desnuda os sentidos da sexualidade oferece uma com-
preensão mais precisa sobre o que atualmente compreendemos como direitos
sexuais e suas relações com a noção de democracia e de liberdade.
Partindo da arquegenealogia realizada por Foucault sobre a história
da sexualidade no ocidente moderno, a relação entre direito e sexualidade
pode ser percebida principalmente na atenção – e também nos silêncios – que
aquele dispensa às práticas da sexualidade e seu comprometimento com uma
leitura naturalizante dos nossos comportamentos. Para além de uma investi-
gação apenas centrada nos ditos “discursos das minorias”, um olhar mais apu-
rado nos leva aos recônditos da subjetividade. Que contribuição tem o Estado
na categorização e formação de nossa sexualidade? De que modo ele domes-
tica e controla a sexualidade que parece ser incontrolável? Qual seu compro-
metimento com o reconhecimento da diversidade dos sentidos de sexuali-
dade? Em que momento o Estado deixa de ser repressor e passa a atuar no
sentido de promover a liberdade sexual?
A ordem que anteriormente estava relegada ao âmbito religioso, pas-
sou a ser competência do saber especializado. Os atores sociais que assumi-
ram a função de autoridade na ciência sexual moderna protagonizaram um
deslocamento na relação entre sexualidade e poder, centrando-se no controle

20
Qual o futuro da sexualidade no direito?

feito a partir da saúde e da enfermidade. Entretanto, nos dias de hoje, à me-


dida em que nos afastamos desse modelo que destaca o saber técnico especi-
alizado, aproximamo-nos de outras preocupações, principalmente ligadas a
sentidos radicais de democracia, guiados pelas noções de autonomia e liber-
dade dos sujeitos. Qual o futuro da sexualidade quando vista nessa complexi-
dade sistêmica em que a religião, os especialistas da sexualidade, a opinião
pública e as promessas da modernidade se encontram relacionadas nesse ema-
ranhado das tramas do poder? O Direito oferece uma oportunidade privilegi-
ada de acompanhar esse processo. É por dentro dele que podemos visualizar
um dos caminhos mais marcantes da política sexual.
Enquanto hipótese investigativa, o presente capítulo se propõe a dis-
cutir quais conceitos auxiliam nessa tarefa mais ampla, principalmente par-
tindo do conceito de sexualidade sedimentado pelas pesquisas de Foucault,
até chegarmos aos moldes mais contemporâneos dessa discussão dentro do
Direito, por intermédio dos direitos sexuais e das formas como o sistema ju-
rídico se compromete com a produção dos sentidos de sexualidade. Metodo-
logicamente, a estratégia é construir um panorama dessa dinâmica através da
comparação entre sistemas jurídicos nacionais em contraste com o reconhe-
cimento dos direitos sexuais no âmbito internacional, para aí então indagar-
mos sobre o futuro da sexualidade no Direito brasileiro. É o caminho que nos
propomos a seguir.

A sexualidade na modernidade

Em um texto intitulado O corpo e a sexualidade, Jeffrey Weeks (1999)


afirma que hoje há uma luta pelo futuro da sexualidade. A extrema importân-
cia que se dá ao sexo e ao corpo justificaria entender o conceito de sexualidade
como fenômeno social e histórico, principalmente porque a luta pelo seu fu-
turo pressupõe a sua importância política. Tendo a sexualidade relação com
o poder, ela pode ser analisada enquanto instrumento para a regulação dos
corpos e do comportamento de uma determinada população. A pergunta so-
bre o seu futuro nos leva a questões muito mais profundas, como o próprio
futuro da democracia e dos ideários modernos de liberdade e igualdade da
modernidade.

21
Eder Monica & Ana Paula Martins

Gayle Rubin (2003), em Pensando o sexo, entende que o sexo é sempre


político, mas constata que há períodos históricos em que a sexualidade é de-
masiadamente contestada e politizada, dando lugar a uma renegociação do
domínio da vida erótica. Se há uma luta pela sexualidade e se o sexo é sempre
político, entendê-la dentro dos mecanismos de poder pode nos levar a com-
preender a política sexual em seu sentido mais denso. Se hoje não temos se-
gurança sobre os pontos fixos do que estamos falando sobre sexualidade,
dado o enorme debate político sobre a diversidade de visões de mundo e a
noção radical de autonomia com relação aos projetos pessoais de vida, o de-
bate sobre os sentidos da atual política sexual pode nos levar a entender para
onde o nosso corpo e o nosso sexo têm sido levados e quais as condições
dadas pelas estruturas de poder para a constituição de si a partir da afirmação
das diferenças, compreendendo também o que estamos falando sobre demo-
cracia.
A partir de uma perspectiva arquegenealógica, o conceito de sexua-
lidade que hoje operamos é correspondente a um período específico e recente.
Condutas e práticas sexuais são situações históricas. A significação dada ao
conceito de sexualidade é dependente da forma como se consolida o sentido
que a ele se dá em determinado tempo e em determinado local. A historiciza-
ção do conceito de sexualidade feita por Foucault parte da hipótese de que o
conceito de sexualidade é uma criação recente e pode ser percebido através
dos significados presentes nos discursos sobre a sexualidade em uma deter-
minada sociedade. Para ele, não há um passado pré-moderno da sexualidade.
Esse conceito é um dispositivo que produz o sexo desde a Revolução Fran-
cesa até os dias de hoje e tem como um dos seus principais efeitos o de cana-
lizar e limitar os poderes dos corpos em uma “austera monarquia do sexo”
(1999, 147-149). Partindo dessa percepção, Weeks (1999), entende que a se-
xualidade é moldada na junção entre o que se compreende enquanto subjeti-
vidade e aquilo que a sociedade percebe como sexualidade possível e aceitável.
Nessa junção encontram-se a materialidade do corpo e as suas potencialida-
des. Quanto mais a sociedade se preocupa com a vida pessoal de seus mem-
bros, mais instrumentos disciplinares são criados sobre os corpos e o com-
portamento sexual. Assim, percebe-se uma dinâmica temporal de realização
do dispositivo da sexualidade. Se ela teve um início e se é possível entende-la
em seu sentido histórico, podemos também nos perguntar sobre o seu futuro.
Que futuro seria? Teria algum futuro? A sexualidade existiria para além dos

22
Qual o futuro da sexualidade no direito?

marcos do período moderno? Ou como sugere Jann Matlock, se o dispositivo


da sexualidade é tão severo em suas limitações, não seria melhor que a sexu-
alidade não tivesse futuro? (2002, 12)
Michel Foucault (1999) sustentou em A História da Sexualidade que a
sexualidade, tal qual a compreendemos atualmente, foi inventada no século
XVIII em superposição ao dispositivo anterior. Por “dispositivo” Foucault
entende toda uma gama de elementos variados que estabelecem relações por
meio de práticas discursivas e não discursivas. Esses elementos podem ser
discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, regulamentos, normas jurídi-
cas, normas médicas, teorias filosóficas, morais, religiosas, entre outros. Atu-
ando de modo heterogêneo, formam um aparelho que constitui os sujeitos,
dando a eles sentido e organização3. Essa “invenção” da sexualidade corres-
ponde com as modernas formas de disposição do poder estatal, em que a
antiga tarefa dada à Igreja de dispor sobre os comportamentos, crenças, con-
venções e identidades do sujeito, passa para o controle do Estado, que desen-
volve uma “polícia/política do sexo”4 reguladora do sexo e das condutas se-
xuais por meio de discursos desenvolvidos no âmbito público, muitas vezes
significados por especialistas da sexualidade e pela opinião pública, e não mais
baseados no rigor de uma proibição de cunho religioso, de caráter confessio-
nal e salvífico. Em comparação com o dispositivo anterior, adaptado à sim-
plicidade do mecanismo religioso de controle, o sistema moderno se caracte-
riza pela constante multiplicação dos discursos sobre o sexo no campo do
exercício do poder. Produz-se uma “incitação institucional a falar de sexo e a
falar dele cada vez mais”, uma “obstinação das instâncias do poder a ouvir
falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do
detalhe infinitamente acumulado” (FOUCAULT, 1999, 22). Desse modo, o
Ocidente não reprime o discurso sobre o sexo; pelo contrário, ele o incita em
uma escala evolutiva.

3 Sobre a complexidade do conceito de “dispositivo” há um amplo debate na literatura

sobre Foucault. Dreyfus e Rabinow discutem em seu livro sobre Foucault as implicações do
uso desse conceito. Cf. DREYFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória
filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
4 Polícia não no sentido repressivo, mas no sentido amplificado de política de normalização

e controle. Conforme Foucault, “polícia do sexo” seria aquela ligada à regulação do sexo por
meio de “discursos úteis e públicos” e não apenas “pelo rigor de uma proibição”
(FOUCAULT, 1999, 28).

23
Eder Monica & Ana Paula Martins

Na leitura que Weeks (1999) faz sobre essa hipótese de Foucault, es-
tamos diante de um processo de aumento do controle sobre os indivíduos na
produção de saberes a respeito do corpo e não apenas através de mecanismos
de negação e proibição. Quanto mais se fala dele, mais se percebe o controle
que a modernidade faz sobre as populações, dentro de uma dinâmica cada
vez mais global – para além das dinâmicas dos Estados-Nação – de produção,
inovação, invenção e penetração dos corpos. Por intermédio do conceito de
“biopoder”, percebe-se uma força positiva que administra e cultiva a vida,
tendo o sexo como o pivô ao redor do qual a tecnologia desse biopoder se
desenvolve.
Não há apenas um discurso oficial sobre o sexo, como aquele ditado
pelas instituições da Igreja e com base em um texto único. O que se tem é
uma multiplicidade de discursos, produzidos por uma série de mecanismos
que funcionam em diferentes instituições. Como argumenta Foucault (1999,
35-36), com o aumento dos sujeitos autorizados a falar sobre o sexo, tensões
e conflitos são produzidos dentro de um grande esforço de ajustamento e
tentativas de retranscrição do novo dispositivo nos corpos dos sujeitos. A
censura do discurso que antes era realizada pelas instituições religiosas dá lu-
gar a uma crescente incitação regulada e polimorfa. Desse modo, a novidade
das sociedades modernas não é a de colocar o sexo na obscuridade, mas o de
revelá-lo através de uma instigante dedicação, falando sempre dele, valori-
zando-o como um grande segredo a ser revelado. O processo de transição
para um estado laico e a destituição das grandes narrativas metafísicas que
justificavam os sistemas políticos, levaram também a um processo de laiciza-
ção da sexualidade e de formação de uma scientia sexualis, produtora de um
saber científico e especializado sobre a verdade do sexo.
Diferentemente das sociedades que produziram verdades sobre o
sexo através de uma ars erótica, nas quais a verdade era extraída do prazer en-
quanto prática e experiência, a sociedade ocidental moderna se desenvolveu
sobre uma ciência sexual que busca a verdade do sexo com base em procedi-
mentos ordenados em função de um poder-saber que se estrutura na meto-
dologia da confissão enquanto elemento produtor de verdade sobre si. As
técnicas modernas de poder sobre a sexualidade agora se guiam em torno de
alguns eixos centrais da scientia sexualis, segundo a compreensão de Foucault.
São esses eixos que também estarão presentes na esfera da legislação sexual,

24
Qual o futuro da sexualidade no direito?

na institucionalização estatal do discurso oficial sobre o sexo, pois são cons-


titutivos do modo do Estado regular a sua população. Para Weeks (1999), esse
discurso é significativo para a construção da sexualidade, principalmente por
oferecer um campo de conhecimentos que modela as formas como pensamos
e conhecemos o corpo. Assim, os eixos apresentados por Foucault são “uni-
dades estratégicas” que ligam as práticas sociais às técnicas de poder.
O primeiro dos eixos é uma novidade na técnica de poder, pois liga-
se ao controle estatal da população. Assim, a socialização das condutas de procriação
faz do controle sobre o sexo um dos instrumentos essenciais de controle po-
pulacional. A disciplina sobre as taxas de natalidade, a regulação da idade do
casamento, a definição dos nascimentos como legítimos ou ilegítimos, a mar-
cação da idade aconselhável para o início das relações sexuais, bem como a
determinação de sua frequência, o conhecimento sobre a fecundidade e este-
rilidade, os efeitos do celibato ou das interdições sexuais, a incidência das prá-
ticas contraceptivas, e outros exemplos são significativos de uma nova técnica
de controle sobre a sexualidade.
Um outro eixo é a produção de um novo saber sobre o corpo da
mulher, dentro daquilo que Foucault denominou como o processo de histeri-
zação do corpo da mulher. A sexualidade feminina historicamente foi definida em
relação à sexualidade masculina. Ao discutir a construção do conceito de sexo,
corpo e gênero, Thomas Laqueur (1994) estipula que o século XVIII marcou
o conceito de sexo com novos elementos que definem a sexualidade de hoje.
Antes do século XVIII dominava a compreensão de que aquilo que hoje cha-
mamos de corpo masculino e corpo feminino faziam parte de uma mesma
estrutura corporal, em que o masculino era a versão hierarquicamente supe-
rior do corpo, tendo o feminino como a versão frágil e incompleta daquele.
A partir do século XVIII, as transformações sociais criaram o contexto para
a fomentação da necessidade de se produzir a diferenciação radical entre os
sexos. O século XIX será o momento central para a definição da sexualidade
feminina, por sedimentar um modelo discursivo que diferencia radicalmente
os corpos masculino e feminino: passam a ser dois corpos singulares e, além
disso, o corpo feminino recebe uma dissociação específica entre os mecanis-
mos físicos de reprodução e de orgasmo. As ciências biomédicas se transfor-
mam na interpretação mais autorizada sobre a corporalidade humana, enfati-
zando a diferença entre os corpos, em contraste com o modelo anterior que

25
Eder Monica & Ana Paula Martins

buscava a similitude e a complementariedade, dentro de uma estrutura hierár-


quica das versões masculina e feminina. Na síntese de Weeks (1994), depois
desse novo modo de saber, o sexo hoje se refere às diferenças anatômicas
entre o homem e a mulher.
O terceiro eixo apontado por Foucault gira em torno da psiquiatrização
do prazer perverso. A conduta sexual da população se torna objeto de análise e
alvo de intervenção normativa: o sexo vira objeto de disputa pública (1999,
29-30). Ao estabelecer o normal e o anormal do sexo, a primeira fase da se-
xologia estabelece um acordo tácito entre o discurso médico e o discurso mo-
ral. A descrição médica sobre o sexo se constitui como a nova linguagem da
sexualidade, criando a realidade dicotômica de dois mundos: o mundo da se-
xualidade padrão, heterossexual e monogâmica, e o mundo dos desviantes, de
todos aqueles que são definidos como anormais, como sujeitos não heteros-
sexuais. Com as tentativas de definição da normalidade da sexualidade, con-
sequentemente são extraídas as características do pervertido dentro de um
amplo processo de catalogação das práticas sexuais, em que a hierarquia entre
as práticas foi validade pelo discurso médico especializado, preocupado com
a patologização e tratamento dos desviantes.
Por fim, a pedagogização da sexualidade infantil é o último eixo apresen-
tado por Foucault. Toda a sexualidade da criança é trazida para o debate po-
lítico e transformada em uma questão de interesse público da sociedade. Uma
literatura especializada se dedica à codificação do conteúdo sexual infantil a
partir da definição dos sujeitos autorizados a falar sobre o assunto. A infância
e a adolescência são criadas enquanto conceitos definidores do estágio inicial
da vida dos sujeitos, preocupados em significar as diferenças dessa fase para
o estágio adulto, atentando-se para os cuidados relativos com a educação e
formação dos indivíduos, tendo a sexualidade como um dos principais vetores
pedagógicos desse processo.
Assim, o dispositivo da sexualidade expressa as relações intensas que
ocorrem entre poder e sexo. Há toda uma tecnologia complexa que tem um
efeito excludente, enquanto estrutura proibitiva, mas que também tem efeitos
profundamente positivos, no sentido de produzir a própria sexualidade. Em
consequência, os dois lados da tecnologia trabalham com o pressuposto de
que não há um corpo material dado pela natureza sob o qual a cultura cons-
titui a sexualidade. Por não ser uma matéria nua e crua a ser completada pela
cultura, o poder não pode apenas reprimir a sexualidade enquanto impulso

26
Qual o futuro da sexualidade no direito?

físico natural: o poder também produz a sexualidade e o corpo que a exprime.


É nesse sentido que para Foucault “a sexualidade é nome que se pode dar a
um dispositivo histórico” (1999, 100). O sexo não está em uma realidade sub-
terrânea que precisa ser encontrada, mas na

grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação


dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos o reforço
dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas
grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 1999: 100).

O dispositivo se estrutura por intermédio de um sistema de regras


que define o proibido e o permitido, o lícito e o ilícito. A partir das mais
diversificadas fontes de manifestação do poder que se materializam nas rela-
ções microfísicas, nas dinâmicas do cotidiano, as instituições de poder, como
o Estado, a Igreja, as ciências médicas, estabeleceram suas regras constitutivas
do sentido moderno de sexualidade, que possui relação intensa com os ele-
mentos definidores do Estado moderno. Assim, com base das relações sexu-
ais, foi estabelecido um “dispositivo de aliança” que se sustenta por um sis-
tema legal de matrimônio, de fixação e desenvolvimento normalizado das re-
lações de parentesco e de transmissão de nomes e de patrimônio.
Nesse processo histórico narrado por Foucault (1999, 109), a sexua-
lidade pode ser percebida dentro de duas grandes rupturas. A primeira é a que
tem início no século XVII, com o nascimento das grandes proibições sobre
os comportamentos sexuais, com a valorização exclusiva da sexualidade
adulta e matrimonial, e a solidificação de imperativos de decência, e que atinge
o seu ápice no século XIX, quando o saber especializado é recebido como
discurso oficial, principalmente com a chancela do poder estatal. A segunda
ruptura, que vai até os dias atuais, desenvolve-se durante o século XX, quando
os mecanismos de repressão teriam iniciado um processo de afrouxamento,
dando lugar a um discurso intenso de afirmação da sexualidade, por intermé-
dio dos conceitos de liberdade, autodeterminação sexual e de diferença, numa
grande luta marcada principalmente pelos novos movimentos culturais de
afirmação das identidades sexuais, trazendo para o contexto atual um vínculo
muito profundo entre sexualidade e política.
Ao se pensar sobre o futuro da sexualidade, a hipótese de periodiza-
ção do conceito de sexualidade na modernidade nos permite desenvolver uma
análise que se coaduna com questões políticas que são vivenciadas atualmente,

27
Eder Monica & Ana Paula Martins

numa relação que além de relacionar sexualidade e poder, vincula às pesquisas


os conceitos de democracia e de Estado contemporâneo. Como afirma Ri-
chard Parker (1999), as tensões políticas ao redor da sexualidade, ao longo
dos séculos XIX e XX, levaram a uma intensa regulação da sexualidade pelo
Estado, principalmente pela via da saúde pública, dominada por médicos e
cientistas de grupos étnicos e de classes sociais hierarquicamente superiores.
Em questionamento a essa estrutura de regulação, os tempos atuais são mar-
cados por contestações políticas de membros de subculturas sexuais e políti-
cas, remodelando a forma como a sexualidade é conceitualizada e configu-
rada. Elas têm desafiado o status quo através de demonstrações simbólicas e
ocupações de espaços públicos, fornecendo novas questões para investigação
e discussão.
A atual pesquisa sociológica e antropológica tem se dedicado inten-
samente aos sistemas sociais e culturais que modelam nossa experiência se-
xual, dando destaque para o contexto cultural em que são organizadas as iden-
tidades sexuais. A crescente confrontação entre sexualidade, cultura e poder
mostra uma dinâmica específica de uma “economia política da sexualidade”
(PARKER, 1999), dentro de uma perspectiva mais politizada que toma por
base a chamada “revolução sexual” operada após os anos de 1960. Portanto,
dentro da compreensão de que a sexualidade é um conceito moderno e que
atualmente parece tomar novos rumos, a luta pelo sentido da sexualidade é a
pauta de novas narrativas sobre o futuro do político. Jann Matlock questiona:

É possível imaginar que as próprias categorias nas quais se apoiava a invenção


da sexualidade finalmente tenham explodido? Assiste-se ao fim das categorias que
até agora deram os diferentes sentidos da sexualidade: desconexão do ato sexual
em relação à reprodução (resultado das novas tecnologias reprodutivas, da con-
tracepção, da interrupção voluntária da gravidez e da tolerância em relação à ho-
mossexualidade), reorganização da família (mediante as novas práticas de filiação
não-biológica e da integração das mulheres à esfera pública), desarticulação da
sexualidade em relação à genitalidade (por meio da teoria psicanalítica, das práticas
dos travestis e de cirurgias de mudança de sexo)? (2002, 12).

Se temos uma novidade e isso se revela através das novas categorias


que ressignificam o sentido da sexualidade, uma nova base de investigação
deve ser desenvolvida. Desse modo, partindo da pergunta sobre o futuro da
sexualidade, a preocupação inicial se volta para a necessidade de se conhecer
quais os conceitos-chave para uma investigação sobre o futuro da sexualidade.

28
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Especificamente, a preocupação é com o sentido que a sexualidade tem assu-


mido a partir do direito e da política sexual dentro do contexto brasileiro. A
categoria de direitos sexuais tem sido utilizada para condensar a preocupação
com demandas de reconhecimento de direitos no campo jurídico. Assim, in-
dagar sobre os rumos dessa categoria nos leva a perceber as dinâmicas para o
futuro da sexualidade no direito brasileiro.

O futuro da sexualidade no direito: contrastes com o caso brasileiro

Como a linguagem sobre direitos tem sido usada para articular de-
mandas no campo da sexualidade? O que queremos dizer com direitos sexuais
e responsabilidades sexuais? Quais são as relações entre sexualidade e direito
nas políticas sexuais? Para iniciar as respostas a essas questões, podemos usar
as pistas deixadas por Diane Richardson (2000) para compreender os discur-
sos e práticas dos direitos e políticas sexuais no Brasil. A autora identifica os
principais discursos sobre direitos sexuais e os agrupa em três subtipos no que
diz respeito aos fundamentos das reivindicações: práticas sexuais, identidade
e relacionamentos. Com o objetivo de explicitar as diferentes definições de
direitos sexuais, elaborou-se uma tipologia de conceitos e demandas a eles
associados, formatada no quadro a seguir. A partir desse tipologia, podemos
analisar a produção das demandas e das políticas sexuais no Brasil, assim
como os principais conflitos discursivos presentes na arena política relativos
a esse tema, para que, enfim, se possa pensar quais são as tendências que de-
verão desenhar o futuro da sexualidade no direito brasileiro.

29
Eder Monica & Ana Paula Martins

Quadro 1 – Tipologia dos direitos sexuais


Direitos sexuais podem ser conceituados como...
1. 1.1 O direito à atividade sexual
… o direito a realizar vários tipos (ou determi-1.2 O direito ao prazer
nados tipos) de prática sexual nos relaciona- 1.3 O direito à autodeterminação sexual
mentos pessoais e reprodutiva
2. 2.1 O direito à autodefinição
… capacidade de autodefinição e desenvolvi- 2.2 O direito à autoexpressão – ou à li-
mento de identidades individuais berdade de expressão
2.3 O direito à autorrealização
3. 3.1 O direito ao consentimento sexual
…reconhecimento dentro das instituições so- 3.2 O direito à livre escolha do parceiro
ciais por meio da validação pública dos relaci- sexual
onamentos 3.3 O direito ao reconhecimento pú-
blico dos relacionamentos
Fonte: elaboração própria com base no texto de Richardson (2000)

Os direitos sexuais podem ser conceituados, em primeiro lugar,


como o direito de exercer a sexualidade, ou seja, de praticar atos relativos ao
sexo. Essa concepção estabelece um nexo entre sexualidade e prática, o que
faz com que direitos e responsabilidades sejam atribuídos, negados e exigidos
a partir da análise ou do escrutínio da ação sexual dos sujeitos. Diante disso,
o exercício da garantia dos direitos e a restrição das práticas relativas à sexua-
lidade partem, do ponto de vista teórico, dos fundamentos da ação, ou seja,
daquilo que causa ou origina a prática requerida ou reprimida. Assim, a exigi-
bilidade do direito ou da responsabilidade fundamenta-se em distintas formas
de argumentação. Para tanto, definir o próprio conceito de sexualidade torna-
se inescapável quando se transita para o universo do direito e da política se-
xual.
Enquanto “dispositivo histórico”, a sexualidade está associada a uma
série de discursos que a regula e normatiza a partir da produção de conheci-
mentos, leis e práticas (FOUCAULT, 1993). As concepções de sexualidade
fundadas no corpo e nas práticas sexuais têm sido, em grande medida, expli-
cadas pelas ciências biológicas e naturais. Desde o século XVIII, a sexualidade
e os comportamentos a ela concernentes têm sido pensadas como inatos ou
essenciais, vinculados àquilo que se denomina “natureza humana”. A repro-
dução, nessa perspectiva, é igualmente compreendida como uma etapa inexo-
rável da vida humana de indivíduos saudáveis, sendo, do mesmo modo que

30
Qual o futuro da sexualidade no direito?

os relacionamentos sexuais, explicada por fenômenos mais biológicos do que


culturais.
Na realidade, as visões biomédicas sobre sexualidade em determina-
das perspectivas, em alguma medida se assemelham aos ditames bíblicos
acerca das práticas sexuais. Assim, os discursos religiosos também constituem
elementos definidores do dispositivo da sexualidade, com relativa imbricação
com os pressupostos científicos. O prazer sexual, na visão bíblica, surge como
algo natural - uma espécie de concessão divina à natureza humana ou mesmo
de retribuição pela tarefa da reprodução. O prazer poderia mesmo ser consi-
derado um incentivo à prática sexual, ainda que, na perspectiva judaico-cristã,
deva restringir-se a casais heterossexuais que estão implicados no matrimônio.
Desse modo, tanto para as ciências biomédicas como para algumas
doutrinas religiosas com fundamento na Bíblia, as ações ligadas à dimensão
da sexualidade fundamentam-se na natureza humana e em suas capacidades
essenciais e intrínsecas. Embora essas instituições apresentem formas distin-
tas de compreender os limites do exercício da sexualidade, ambas influenciam
sobremaneira a definição de direitos e deveres no interior dos campos jurídico
e político. A complexidade das análises sobre a relação entre sexualidade e
poder, nos tempos atuais, situa-se nessa constatação já apontada de que mui-
tos atores políticos disputam a significação do conceito de sexualidade, sendo
que, na Modernidade, o Estado assume a centralidade dessa agência, princi-
palmente por intermédio da produção normativa de direitos ligados à sexua-
lidade. A disputa pelo sentido da sexualidade é também uma disputa pelo po-
der. Assim, a pergunta sobre os atores políticos que atuam na definição das
políticas sexuais é importante para a compreensão dos caminhos assumidos
pela nossa democracia.
Concepções essencialistas de sexualidade, geralmente caracterizadas
como exemplos de uma postura religiosa no cenário político brasileiro, tam-
bém podem ser percebidas em alguns dos argumentos formulados por alguns
grupos e movimentos sociais que demandam direitos sexuais, o que tem re-
percussões sobre o modo como se intervém na formulação de leis e políticas
públicas. Alguns argumentos corroboram com teses biologizantes e geram
paradoxos relevantes na formulação das políticas públicas. Um dos exemplos
mais emblemáticos da tensão entre natureza e cultura no universo da sexuali-
dade é a caracterização da transexualidade dentre as patologias previstas na
Classificação Internacional de Doenças (CID), catalogada pela Organização

31
Eder Monica & Ana Paula Martins

Mundial da Saúde. Muito embora diversos grupos se oponham à definição da


transexualidade como um “transtorno de personalidade”, outros entendem
que essa condição garante proteção e garantia de direitos diante do Estado.
A ideia de necessidade está presente nas perspectivas que vinculam
sexualidade e natureza humana e, como dito acima, do que decorrem reper-
cussões específicas não apenas para a conceituação de direitos sexuais como
para a definição de políticas. Imaginar que práticas se dão em virtude de ne-
cessidades, ao mesmo tempo em que as justifica, as reifica. Isso gera uma
dinâmica que garante direitos para alguns e os veda para outros. Por exemplo,
os corpos que em sua dimensão biológica, anatômica ou material apresentam
deficiências ou incapacidades não estariam propriamente aptos para o exercí-
cio da sexualidade, porque lhes faltaria o preparo natural para a prática sexual.
Por isso, é preciso repensar a ideia de necessidade como fundamento do con-
ceito de sexualidade (RICHARDSON, 2000). Perspectivas teóricas sobre o
tema dos disability studies têm se dedicado à produção de saberes sobre identi-
dades e subjetividades das pessoas com deficiência e, mais recentemente, a
“teoria crip” vem problematizando interseccionalmente as questões de gênero
com base na teoria queer, a sexualidade e a deficiência5.
Há, portanto, outras perspectivas que consideram, majoritariamente,
as dimensões socioculturais e políticas da sexualidade, das quais decorrem
posturas pretensamente diferentes sobre os direitos e as responsabilidades se-
xuais. Essas perspectivas partem do pressuposto de que o contexto importa
e que os direitos e as responsabilidades sexuais são estabelecidos em situações
de conflito que evidenciam as relações de poder estabelecidas em torno da
sexualidade. É verdade que em determinados momentos, as disputas em
torno da sexualidade estão mais acentuadas na esfera política, o que gera pro-
cessos de renegociação do domínio da vida erótica (RUBIN, 1975), com po-
tenciais efeitos por um médio ou longo período de tempo.
Também focadas nas práticas sexuais, as perspectivas que conside-
ram o caráter político da sexualidade buscam compreender, de modo analí-
tico, por quais motivos certas condutas estão inscritas na imoralidade e na
ilegalidade. Assim, buscam compreender de que modo as instituições jurídi-

5 Para maiores aprofundamentos nos disability studies e na teoria crip, ver Garland-Thom-

son, Rosemarie (2005), Hall, Kim (2002) e Kafer, Alison (2013).

32
Qual o futuro da sexualidade no direito?

cas, médicas e sociais, de um modo geral, regulam as práticas corporais e se-


xuais, nos moldes do que propõe Foucault sobre as investigações arquegene-
alógicas a respeito da sexualidade.
No centro do debate sobre os direitos sexuais enquanto reconheci-
mento de práticas ligadas à sexualidade está a relação entre o público e o pri-
vado. Os movimentos sociais da segunda metade do século XX já haviam
mirado nessa dicotomia e estabelecido o caráter político das relações privadas.
É com esse argumento que o movimento feminista alçou as lutas contra a
violência doméstica ao status de políticas públicas de enfrentamento à violên-
cia. Ocorre que no plano dos direitos sexuais essa dicotomia ainda não foi
completamente vencida, de modo que muitos defensores dos direitos sexuais
a embasam na lógica da privacidade e da liberdade no espaço da vida íntima.
Essa argumentação direciona-se, em grande medida, aos direitos das pessoas
LGBTTIs, comumente justificados pela ideia de “tolerância”. Diferentemente
dessa perspectiva, a teoria queer propõe o direito à expressão pública da sexu-
alidade e, com isso, se afasta das visões do liberalismo clássico sobre o direito
à intimidade.
Se, como visto até agora, um dos modos de conceituar os direitos
sexuais é por meio dos reconhecimentos das mais diversas formas de práticas
sexuais, um dos principais desafios para a produção do conhecimento sobre
as relações entre a sexualidade e o direito é a compreensão do que as pessoas
podem e não podem fazer com seus corpos, dentro ainda do imaginário mo-
derno da liberdade e autonomia dos sujeitos. Ainda que se adira à ideia de que
a sexualidade é um direito à pratica do sexo dentro dos limites da privacidade
e da intimidade, não se pode deixar de levar em conta as regulações estatais
realizadas também nessa esfera. Recentemente, o estado da Califórnia, nos
Estados Unidos, levou à escolha pública o debate sobre a obrigatoriedade do
uso da camisinha nos filmes pornográficos6. Com fundamento em valores
como saúde e bem-estar, buscou-se estabelecer regras de proteção à saúde das
pessoas envolvidas nas produções audiovisuais. Com isso, pretendia-se equi-
parar os profissionais da pornografia a trabalhadores de outras profissões su-
postamente perigosas e garantir-lhes segurança no trabalho. No entanto, es-
teve em jogo, nesse debate, a autonomia dos sujeitos no que diz respeito à

6 A controvérsia foi submetida a plebiscito no estado da Califórnia em 2016 com a deno-

minação “California Proposition 60”, e foi rejeitada por 56% dos votantes (NPR, 2016).

33
Eder Monica & Ana Paula Martins

livre escolha de praticar sexo com ou sem o uso da camisinha, ainda que haja
a eventual mediação da indústria pornográfica no processo, o que nem sem-
pre acontece, dado que muitos filmes são amadores. De todo modo, esse é
um exemplo da forma como valores de saúde e bem-estar são manejados para
estimular ou inibir o exercício da atividade sexual, gerando direitos e respon-
sabilidades. E, para a pesquisa sobre políticas sexuais, o desafio é o de com-
preender por quais razões e com base em quais valores os diversos modos de
conduta sexual tornam-se mais ou menos objeto de disputa social e política.
O sistema sexo/gênero, desenvolvido por Rubin (1975), que realizou
a distinção entre a sexualidade e o gênero, contribuiu para redirecionar o olhar
sobre a sexualidade nos estudos e práticas feministas. Até então – e ainda
hoje, em alguma medida - a sexualidade constituía uma categoria secundária,
determinada pela estrutura da desigualdade de gênero. A separação da sexu-
alidade e do gênero em sistemas distintos permitiu a desnaturalização do en-
trelaçamento dessas duas categorias, produzindo reflexões sobre as formas
culturais e históricas dos significados a práticas associados ao sexo.
A elaboração da ruptura entre o sexo e o gênero operada pelo movi-
mento feminista tem como uma de suas principais contribuições o questiona-
mento do caráter meramente reprodutivo da sexualidade feminina. Nas mo-
bilizações de mulheres ocorridas durante os anos 1960 e 1970, no período que
se costuma denominar “segunda onda do feminismo”, as questões culturais
atingem proeminência e os debates sobre a vida íntima adquirem status polí-
tico. A profusão do uso da pílula anticoncepcional como método contracep-
tivo tem o significado de produzir, materialmente, uma cisão entre o sexo e a
reprodução. Com isso, desenvolvem-se, no interior da teoria feminista, im-
portantes reflexões sobre a sexualidade feminina, excetuando-a da masculina
e, desse modo, dissolvendo as noções de natureza da sexualidade humana
(IRIGARAY, 1981; MACKINNON, 1981; CIXOUS, 1981). Embora com
perspectivas distintas, essas autoras contribuem para instituir o erotismo fe-
minino, o prazer e o desejo como aspectos da emancipação das mulheres, seja
a partir de enfoques materiais, empíricos ou discursivos (DALLERY, 1997).
Tem-se aí, portanto, uma segunda forma de conceituar os direitos
sexuais. Eles seriam direitos não apenas a praticar atos sexuais, mas a praticá-
los com prazer (RICHARSON, 2000). A sexualidade, portanto, revela-se im-
portante para a produção de demandas sexuais na medida em que projeta
desejos invisibilizados ou subalternizados nas relações sexuais, nas quais estão

34
Qual o futuro da sexualidade no direito?

presentes relações de poder. Diante disso, vale questionar: poderia haver um


direito ao prazer? Como o direito pode estar implicado nas demandas pela
satisfação sexual? O Estado deveria garantir o direito à produção do desejo
sexual? Embora essas questões pareçam demasiadamente controversas do
ponto de vista dos limites do Estado na ingerência da vida privada, há diversos
dispositivos institucionais que legitimam a satisfação sexual dos sujeitos. Um
deles diz respeito ao dever conjugal previsto no Código Civil brasileiro que,
quando não observado, poderá resultar em sanções como a separação com-
pulsória, a perda ao direito ao sobrenome e a restrição à requisição de alimen-
tos. A presença desse dispositivo legal no ordenamento jurídico brasileiro ex-
plicita, a título de exemplo, a regulação estatal das práticas sexuais e do desejo
no interior do casamento. Assim, no referido caso, o desejo e o prazer entre
as pessoas casadas são disciplinados pelo direito – na forma de garantia para
quem exige e de dever para quem é demandado7. Diante disso, não é difícil
imaginar que, em diversas situações, o prazer pode ser objeto da produção de
direitos e de políticas sexuais, tanto no sentido de afirmação como no sentido
de negação.
O direito à autodeterminação sexual e reprodutiva também é consi-
derado um direito sexual (RICHARDSON, 2000) e está relacionado à capa-
cidade de exercer a sexualidade com segurança e autonomia. Essa é uma das
principais demandas do movimento feminista, pois envolve reivindicações
como o direito à interrupção da gravidez e as políticas de enfrentamento à
violência. No Brasil, essa interpretação sobre os direitos sexuais tem sido sig-
nificativamente acionada. O ano de 2015 foi marcado por diversas manifes-
tações de mulheres, cujo conjunto tem sido denominado “Primavera Femi-
nista”. Mobilizadas em contraposição ao Projeto de Lei 5.069/2013, as mani-
festantes enfatizaram a necessidade de manter as políticas públicas de saúde
que asseguram a interrupção da gravidez em caso de estupro. Assim, enfati-
zaram a autodeterminação como um direito e trouxeram para a agenda pú-
blica, mais uma vez, o debate sobre o direito ao aborto, que vem sendo inter-
ditado no Brasil em virtude das alianças políticas e eleitorais (MACHADO,
2012).

7 Sobre o tema do dever conjugal no ordenamento jurídico brasileiro a partir de uma pers-

pectiva de gênero, recomendamos a leitura do texto de Caroline Sátiro de Holanda, 2012.

35
Eder Monica & Ana Paula Martins

Além disso, as políticas de enfrentamento à violência contra as mu-


lheres têm buscado visibilizar assimetrias de poder em diversos espaços soci-
ais, exigindo do direito novos mecanismos de proteção e responsabilização.
O tema do estupro conjugal representa, sem dúvida, um desafio no que diz
respeito à efetividade da lei. Ainda que considerado crime no Brasil, há baixa
responsividade estatal quando do seu cometimento. Tampouco há estatísticas
nacionais sobre esse fenômeno em virtude da subnotificação, mas estima-se
que em 50% dos casos de violência contra as mulheres ocorra a violência
sexual (DANTAS-BERGER; GIFFIN, 2005). No entanto, tendo por base as
dimensões quantitativas do estupro e da violência doméstica no País, é de se
esperar que a violência sexual seja um dos principais tipos de violações de
direitos cometidas contra mulheres. Por isso, a conceituação de direitos sexu-
ais como autonomia e direito a dizer “não” representa uma das mais destaca-
das fontes de produção de novas políticas sexuais.
Além dos direitos fundamentados nas práticas sexuais, há a produ-
ção de direitos com base na identidade sexual (RICHARDSON, 2000). As-
sim, direitos sexuais também são conceituados a partir de um conjunto de
discursos políticos, jurídicos, religiosos e científicos sobre o gênero e a sexu-
alidade que informam a identidade individual. Com base nessas referências,
os sujeitos definem seu lugar no mundo (BRANDÃO, 2008). Os movimentos
da pós-modernidade e do pós-estruturalismo estão na zona de influência da
produção discursiva sobre o gênero, que tem alguma incidência no universo
da formulação de políticas sexuais na contemporaneidade. O caráter discur-
sivo da sexualidade disparado por Butler (2003) indica a performatização
como mecanismos de repetição e reiteração das normas para que o gênero
seja regulado e materializado nos corpos. A linguagem, portanto, é deslocada
para o lugar central de onde emana a nomeação dos corpos e dos sexos e
produz os sujeitos, sua identidade e suas práticas.
Ao contrário do que parece, a performance não constitui um pro-
cesso ilimitado de auto-enunciação da sexualidade, “uma vez que o sujeito
não decide sobre o sexo que irá ou não assumir; mas, na verdade, as normas
regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades que ele assume, apropria
e materializa” (LOURO, 2013, 45). No entanto, o discurso não é constituído
apenas da repetição das heteronormas, mas abre espaço para corpos desajus-
tados, também chamados de “abjetos”. São esses corpos abjetos que, na con-
temporaneidade, desvelam as dissonâncias entre a sexualidade e o direito, ao

36
Qual o futuro da sexualidade no direito?

se apresentarem como “gênero na margem” (MALUF, 2002). A emergência


das identidades trans representa, assim, importantes fissuras nas definições de
corpo fundadas na natureza, na fixidez, e na integridade entre sexo, gênero e
orientação sexual. A identidade das travestis, especialmente, constitui uma
transgressão aos pressupostos identitários partilhados entre os juristas, o que
tem demandado profundas revisões na “dogmática” jurídica8. Os corpos trans
são espaços de incerteza, transformação e de experiência nos quais se realizam
desejos autênticos que desafiam a cultura dualista e a concepção binária, e
hegemônica, de gênero (MALUF, 2002). No caso brasileiro, as discussões so-
bre a alteração do registro civil das pessoas transgêneras são emblemáticas
dos conflitos entre sexualidade e direito porque parte dos juristas vêm apli-
cando princípios da heteronormatividade ao buscarem a adequação entre sexo
e gênero para o reconhecimento da identidade sexual. A exigência da cirurgia
de redesignação sexual para a alteração do registro civil representa um impor-
tante elemento de disputas entre a sexualidade e o direito.
Muito embora as perspectivas discursivas e pós-estruturalistas este-
jam em voga na produção das políticas sexuais contemporâneas (especial-
mente no campo acadêmico), há formas de afirmação de direitos sexuais em-
basadas no que se pode denominar “essencialismo estratégico”
(RICHARDSON, 2000). Diferentemente das noções do construtivismo so-
cial ou da virada linguística, essa concepção fundamenta a sexualidade em ba-
ses biológicas, amparando as subjetividades LGBTTIs em singularidades ce-
rebrais. Com isso, garantem, estrategicamente, a inquestionabilidade das iden-
tidades sexuais e de gênero. Conceituar os direitos sexuais com base em iden-
tidades biologicamente determinadas produz possíveis acordos com grupos
sociais defensores da natureza humana, mas não garantem o direito à livre
expressão da sexualidade. Replicando o exemplo mencionado por Richardson
(2000), por ser válido também no caso brasileiro, tem sido com base nesse
argumento que pessoas homossexuais vêm sendo admitidas na Igreja Católica
e em algumas vertentes das igrejas evangélicas. No entanto, em geral, sua in-
tegração à comunidade religiosa tem diversas limitações e requer a abstinência
de práticas sexuais diferentes da heterossexualidade. No campo jurídico,
pode-se considerar como emblema dos conflitos entre natureza e cultura a

8 A respeito do discurso dos juristas sobre as identidades trans, ver MARTINS, 2015.

37
Eder Monica & Ana Paula Martins

precariedade do reconhecimento das identidades transexuais nas diversas ins-


tituições estatais. Muito embora se possa lançar mão de argumentos biológi-
cos para conferir direitos iguais a pessoas trans, boa parte das organizações
do Estado e dos agentes públicos não estão adaptadas para a prestação de
serviços adequados. Os profissionais de saúde e os equipamentos públicos
nesse setor, por exemplo, negligenciam a atenção integral às pessoas trans e
os relegam a um espaço de indeterminação (GEISLER, 2015).
O direito à auto-expressão, por sua vez, está vinculado à noção de
identidade, pode ser concebido como o direito ao reconhecimento público e
social das identidades sexuais (RICHARDSON, 2000). Dessa noção de di-
reitos sexuais advém políticas que extrapolam a ideia de tolerância às sexuali-
dades, vivenciadas no espaço íntimo, e atingem a dimensão social de integra-
ção dos sujeitos e de suas identidades. O caminho de afirmação de direitos
que transita da reivindicação de tolerância para a integração dos sujeitos é um
caminho de afirmação da diversidade sexual como um direito humano. Por-
tanto, o desenvolvimento de políticas sexuais com base nessa concepção de
direito passa pela afirmação das identidades na esfera pública, que pode se dar
por meio do aprendizado sobre cidadania sexual nas escolas, por exemplo.
No caso brasileiro, políticas sexuais de incentivo à auto-expressão foram re-
vogadas após um longo processo de discussões sobre um material educativo
que se destinava ao reconhecimento das diferentes identidades sexuais no
contexto escolar. A iniciativa governamental integrava as ações do Programa
“Brasil sem homofobia” e foi duramente criticada por opositores da discussão
sobre a diversidade sexual nas escolas, que interpretou o programa como um
estímulo à realização de práticas homossexuais9.
Do ponto de vista da identidade, direitos sexuais também podem vi-
sar a autorrealização. Trata-se do reconhecimento do direito de ser diferente,
de adotar estilos de vida não hegemônicos sem estigmas ou marginalização
(RICHARDSON, 2000). Essa concepção de direito sexual, assim como a an-
terior, busca extrapolar os limites da tolerância e promover a integração de
formas diversas e plurais de exercício da sexualidade, admitindo-as como
parte de uma cultura sexual. A integração de corpos e sujeitos considerados
repulsivos pela cultura hegemônica pode ser um exemplo de afirmação desses

9 Mais informações sobre o Programa “Brasil sem homofobia” podem ser consultadas em

www.adolescencia.org.br.

38
Qual o futuro da sexualidade no direito?

direitos sexuais. A propagação de imagens de pessoas idosas em cenas de nu-


dez ou de encontro sexual, por exemplo, representa uma transgressão às ideias
socialmente aceitas do que é desejável. Recentemente, a foto de uma atriz
idosa com os seios desnudos foi excluída da página de um dos mais impor-
tantes jornais brasileiros, em uma atitude inédita de censura na experiência
daquele veículo de informação10. Embora seja comum que os jornais divul-
guem imagens de seios – em contextos artísticos ou de desfiles de moda, nesse
caso, houve uma restrição à exibição do corpo por razões externas à usual
justificativa de obscenidade. Desse modo, a promoção de políticas sexuais
que legitimem formas e sujeitos sexuais não hegemônicos tem o potencial de
estabelecer rupturas com o status quo sexual e gerar reconhecimento.
Os direitos sexuais definem-se, ainda, a partir dos relacionamentos
(RICHARDSON, 2000). A afirmação dos direitos, nesse caso, excede a di-
mensão individual para abarcar uma relação com status jurídico ou mera-
mente social. O direito sexual a constituir um relacionamento parte da pre-
missa da consensualidade. Logo, tem-se que a autonomia da vontade é um
critério para definir o maior ou o menor acesso a esse direito. No Brasil, atu-
almente, evidenciam-se algumas demandas relativas à questão do consenti-
mento nos relacionamentos. Uma delas diz respeito aos casamentos precoces
de meninas observados com mais regularidade em alguns estados do norte e
nordeste do Brasil. Muito embora a idade mínima para casar-se seja a de 18
anos para ambos os sexos, o último censo do IBGE apurou que 90 mil crian-
ças entre 10 e 14 anos estão em uniões estáveis, o que faz com que o Brasil
ocupe o quarto lugar no mundo em números absolutos de mulheres casadas
antes dos 15 anos de idade11. Esses dados evidenciam tensões entre a sexua-
lidade e o direito, pois há aspectos na lei civil brasileira que impulsionam a
prática. A lei prevê a possibilidade de que o casamento ocorra com a aquies-
cência dos pais a partir dos 16 anos e ainda a possibilidade de uma menina
casar-se antes mesmo dos 16 em caso de gravidez para evitar a condenação
do pai pelo crime de estupro (Código Civil brasileiro, Arts. 1.517 e 1.520).

10 A análise do ato que censurou a matéria que continha a foto dos seios da atriz pode ser

consultada em http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.fo-
lha.uol.com.br/poder/2016/11/1828763-instagram-censura-postagem-da-folha.shtml
11 Dados sobre casamento precoce no Brasil podem ser consultados na pesquisa “Ela vai

no meu barco”, realizada pela organização Promundo, em www.promundoglobal.org.

39
Eder Monica & Ana Paula Martins

Essa pauta deverá constar com mais visibilidade na agenda política dos mo-
vimentos de gênero nos próximos anos, dados os estímulos realizados pela
Organização das Nações Unidas para a defesa dos direitos das meninas.
Além disso, Richardson (2002) assinala como um direito sexual a
livre escolha dos parceiros sexuais, o que tem sido muito importante para
legitimar as relações sexuais de gays e lésbicas em países que mantêm proibi-
ções. No entanto, há diversas formas de relacionamento sexual não admitidos
que muitas vezes emergem como tensões entre a sexualidade e o direito. Uma
delas é a proibição do incesto. Em diversos países do mundo, relacionar-se
sexualmente com um irmão configura crime, como na Espanha e na Alema-
nha. Em países como Portugal e o Brasil, essa prática não configura um tipo
penal, mas apresenta-se como um dos impedimentos para o casamento (Có-
digo Civil Brasileiro, art. 1.521). O principal argumento utilizado para vedar
esse tipo de união é o risco aumentado de doenças genéticas para a prole. No
entanto, do ponto de vista dos direitos sexuais, essa justificativa não seria su-
ficiente para instituir a proibição, uma vez que a reprodução não decorre di-
retamente da atividade e do desejo sexual.
A última forma de conceituar os direitos sexuais mencionada na ti-
pologia de Richardson (2000) diz respeito ao reconhecimento público dos
relacionamentos sexuais. Trata-se de uma das pautas com maior visibilidade
nos movimentos LGBTTI de diversos países do mundo, com a defesa do
casamento civil igualitário. No Brasil, casamentos entre pessoas do mesmo
sexo vêm sendo celebrados desde as decisões do Supremo Tribunal Federal e
do Conselho Nacional de Justiça que, respectivamente, reconheceram as uni-
ões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (ADI 4.277) e que
instituiu a celebração obrigatória de casamentos entre pessoas do mesmo sexo
pelos cartórios (CNJ/Resolução 175). No entanto, o projeto de lei denomi-
nado “Estatuto da Família”, em trâmite na Câmara dos Deputados (PL
6.583/2013), acirra as disputas em torno do conceito de família, pois estabe-
lece, em reação às decisões do Poder Judiciário, a heteronormatividade como
base das relações conjugais. Com isso, pretende limitar que os direitos sociais
advindos do casamento sejam concedidos às pessoas do mesmo sexo. Os ar-
gumentos manejados para a aprovação do projeto gravitam em torno de pre-
missas morais e religiosas que afirmam a heterossexualidade como um valor
universal.

40
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Todos esses debates não podem deixar de considerar que nas socie-
dades contemporâneas as religiões continuam a ocupar um lugar central na
produção de subjetividades e nas tomadas de decisão na esfera pública
(HABERMAS, 2006). No Brasil, diversos autores vêm assinalando o cresci-
mento das religiões evangélicas, especialmente as pentecostais, e seu signifi-
cativo envolvimento nas questões da moralidade pública, com destaque para
aquelas ligadas à sexualidade (MACHADO, 2015). Diante disso, há, em algu-
mas cidades complexas do Brasil, um efeito de “escalada contrastiva”
(DUARTE, 2013) em que a manipulação crescente dos códigos de gênero e
da sexualidade se combina, de modo explosivo, com a o acirramento de po-
sições conservadoras presentes nos discursos das igrejas pentecostais, dentre
outros agrupamentos políticos. O aumento da violência familiar e homofó-
bica também estaria inserido nesse quadro explicativo.

Uma contradição maior de todo esse campo é a de que o crescimento das


posições “conservadoras” ou “fundamentalistas” é ao mesmo tempo um resul-
tado da abertura dos “mercados” moral e religioso e uma ameaça a sua manuten-
ção em regime liberal; o que projeta para uma dimensão política cada vez mais
crucial e agressiva a atividade dos ideólogos de ambas as posições”. (DUARTE,
2013, 25)

As correntes tensões entre sexualidade e religião são assinaladas pelo


termo “sexularism” proposto por Scott (2009), que denota as formas com que
os direitos das mulheres e a equidade de gênero frequentemente se confron-
tam com as religiões. No entanto, não há, nas experiências históricas, uma
conexão obrigatória entre secularização e a promoção dos direitos das mulhe-
res. Políticas de igualdade de gêneros apenas começaram a ser desenvolvidas
na França após a Terceira República, o que indica a não associação direta
entre os valores laicos e a promoção de direitos ligados ao gênero e à sexuali-
dade (GIORGI, 2016).
Nesse sentido, parece relevante avaliar as movimentações existentes
também no interior das religiões no que diz respeito ao enfrentamento das
desigualdades e às questões ligadas à sexualidade. Essas reflexões podem con-
tribuir para pensar, no caso brasileiro, o impacto da ascensão das religiões
evangélicas – especialmente as pentecostais - sobre a restrição de direitos se-
xuais. As igrejas fundadas na base da “teologia inclusiva”, que estão se disse-

41
Eder Monica & Ana Paula Martins

minando no Brasil, representam um exemplo emblemático da relação com-


plexa entre direitos sexuais e religião, pois ao legitimarem as práticas homos-
sexuais do mesmo modo que as heterossexuais12, promovem controvérsias
significativas entre os defensores do secularismo como condição para a cida-
dania sexual. Assim, acompanhar as fissuras morais dentro das religiões re-
presenta um esforço metodológico relevante para compreender os rumos das
relações entre igrejas e Estado no Brasil, assim como das políticas sexuais
delas resultantes.

Conclusão

Perguntar sobre o futuro é arriscar-se a também esperar que esse fu-


turo se comprometa com nossas aspirações sobre os rumos da democracia.
Assim, inevitavelmente, há um comprometimento político com uma compre-
ensão radical da democracia, principalmente no tocante ao seu avanço no
campo da sexualidade. Pensar a sexualidade dentro dessa compreensão tem-
poral é assumir que ela existe como um conceito que só pode ser compreen-
dido a partir de determinados termos. Os corpos materializados mostram o
significado que a sexualidade assume no cotidiano dos sujeitos. Assim, é ine-
vitável concluir que ao mesmo tempo em que pensamos o seu futuro, em
muitos casos ela ainda é algo a se realizar. Enquanto dispositivo, ela é sexua-
lidade pré-moderna, moderna e pós-moderna, atingida pelos mais variados
significantes das relações de poder. É sexualidade normatizada pelo padrão
da “normalidade”, mas é também sexualidade desviante, que desafia os senti-
dos da normalidade. Quer para si as promessas da modernidade, ao mesmo
tempo em que rejeita as ilusórias esperanças que teimam em não se realizar.
O poder que regula é o mesmo que produz possibilidades de liberta-
ção. A coação que proíbe é a mesma que faz perceber os sentidos possíveis
de autonomia. Enquanto função performativa, os sentidos das possibilidades
estão comprometidos com os termos estabelecidos, que não podem ser ana-
lisados sem também serem percebidos dentro das dinâmicas econômicas de

12 Para compreender melhor a atuação das igrejas de teologia inclusiva no Brasil, sugerimos

a leitura da dissertação de mestrado de Raquel Moreira de Souza (2015).

42
Qual o futuro da sexualidade no direito?

uma sociedade. Que comprometimento existe entre liberdade sexual e econô-


mica? Que possibilidades de autorrealização temos em determinadas circuns-
tâncias de baixo acesso aos bens sociais básicos? Quais os comprometimentos
analíticos possíveis entre os conceitos de cidadania, democracia e sexualidade,
dentro de uma economia em que a noção de consumo é a principal guia dos
nossos desejos? Além disso, o futuro da sexualidade também está em corre-
lação com o futuro da tecnologia e suas consequências para as dinâmicas da
corporalidade, em suas dimensões sociais e biológicas. Quais os rumos que
os corpos tomarão em um contexto de tecnologias avançadas e de novas for-
mas de percepção dos limites corporais? Estaria a sexualidade fadada a desa-
parecer diante das novas formas de relações virtuais?
Quando juntamos todas essas questões com a percepção dos rumos
atuais da política sexual, ficamos perplexos com a falta de segurança em rela-
ção às conclusões que podemos tirar. Pensar o fundamentalismo religioso
brasileiro em comparação com as novas técnicas reprodutivas é perceber o
quão complexo é o problema que investigamos. Falar em adoção de crianças
por casais homossexuais ao mesmo tempo em que se defende no Congresso
Nacional um conceito de família restrito à concepção tradicional de casa-
mento entre homem e mulher é entender a dinâmica tensa e tênue entre se-
xualidade e poder. Debater a fluidez de gêneros e desconstruir os binarismos
sexuais ao mesmo tempo em que constatamos altos índices de violência do-
méstica e de feminicídios no País é enfrentar a complexidade de uma investi-
gação que se propõe a entender o futuro da sexualidade e os caminhos do
Direito nos próximos tempos.

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45
46
2
AUTONOMIA CORPORAL NA LITERATURA
JURÍDICA SOBRE PROCESSO TRANSEXUALIZADOR:
NOTAS SOBRE O FUTURO DA SEXUALIDADE NO DIREITO

Adriana Ribeiro Rice Geisler1

“O Direito, enquanto forma, não existe somente no cérebro


e nas teorias dos juristas especializados; ele tem uma história
real, paralela, que não se desenvolve como um sistema con-
ceitual, mas como um particular sistema de relações.”
(Pashukanis)

Q ual o futuro da sexualidade no Direito? Esta é, sem dúvida


uma pergunta tardiamente enfrentada. Este trabalho toma
como objeto a permeabilidade do direito às necessidades
de grupos subalternizados, em especial as das pessoas trans no que se refere
também às suas demandas por autonomia corporal. Busca-se refletir de que
maneira os textos acadêmicos da área (doutrina e artigos) têm informado a
práxis jurídica, possibilitando – ou não - uma abertura maior do direito a sua
“dimensão emancipatória” (SANTOS, 2001) isto é, a possibilidade de incor-
porar - ou na perspectiva de Wolkmer (1992, 1994), de ligar - os impulsos

1 Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz. Professora de Direito na PUC/Rio e na Está-

cio/RJ.

47
Adriana Geisler

libertários de grupos específicos aos direitos produzidos ao interior da oficia-


lidade estatal. Trata-se de fazer, pretensiosamente, uma espécie de genealogia
dos estudos do direito que tocam na temática da sexualidade, considerando
que um novo olhar sobre a sexualidade dentro do direito não é possível sem
um novo olhar sob o próprio direito.
Para tanto, além do que nos informa a doutrina civilista no que tange
a autonomia corporal foi feito um levantamento da produção jurídica acadê-
mica dos últimos dez anos sobre a questão trans, de modo a identificar e ana-
lisar as categorias centrais que atravessam esses estudos. Escolheu-se recortar
a busca textual considerando, inicialmente, os descritores “direito” e “sexua-
lidade” e, posteriormente, refinando a pesquisa, o descritor “processo transe-
xualizador”.
Evidentemente, esse não é o único pleito dessa população no que
tange às suas expectativas de direitos, nem mesmo se considerarmos apenas
o seu direito à saúde. Curiosamente, contudo, é o tema que parece ter aberto
caminho para a entrada da reflexão sobre os direitos das pessoas trans no
mundo jurídico.
Dentro desse recorte, é inevitável que se destaque como o direito
vem se posicionando frente aos anseios dessa população por suas modifica-
ções corporais - em especial, pela cirurgia de transgenitalização – e em relação
a alteração legal da identidade sexual no registro civil.
O trabalho avança ancorado em duas pesquisas2 também qualitativas
realizadas anteriormente pela autora e que envolveram estudo de campo.
Trata-se, portanto, de uma análise qualitativa centradas na revisão de litera-
tura, mas que recorre à pesquisa empírica. Essas pesquisas apontaram a im-
portância de reconhecer a ideias de pluralismo jurídico e de protagonismo
como referenciais importantes a um direito que pretenda recuperar a neces-
sária tensão dinâmica regulação-emancipação de que nos fala Santos (2001).

2 A primeira delas intitulada “Protagonismo “trans”, processo transexualizador e atenção

em HIV/aids: repensando políticas de saúde para (e com) travestis e transexuais numa pers-
pectiva de integralidade” foi realizada no âmbito do Edital (01/2013) para seleção de sub-
projetos de pesquisa em DST, HIV/AIDS e hepatites virais – Projeto BRA/K57, do Minis-
tério da Saúde. A outra pesquisa “Sexualidade, democracia e poder: sobre novos direitos para
(e com) a população LGBT da baixada litorânea” foi desenvolvida no âmbito do Edital Pes-
quisa Produtividade de UNESA, em 2016.

48
Qual o futuro da sexualidade no direito?

A hipótese inicial foi, portanto, confirmada, revelando a insuficiência


do conceito-princípio da dignidade da pessoa humana, caso se pretenda que
a sexualidade tenha algum futuro no direito.
Considerando que a literatura acadêmica no campo do direito sobre
a autonomia pessoas trans elege o princípio da dignidade da pessoa humana
enquanto categoria central, conformando a tríade já mencionada, o texto ne-
cessariamente precisará explicitá-la. Para tanto, inicialmente, a doutrina será
revisitada, destacando-se os aspectos que envolvem esse continuun. Em se-
guida, se observará que a pouca produção existente sobre sexualidade no di-
reito também não avança de maneira significativa no sentido da incorporação
de outros conceitos que, articulados ao princípio da dignidade da pessoa hu-
mana, lhe garantam sua concretização. Ao final, considerando as duas últimas
pesquisas realizadas por Geisler (2015, 2016), os conceitos de “protago-
nismo” e de “pluralismo” emergem como fundamentais ao diálogo entre di-
reito e sexualidade numa perspectiva democrática. Acredita-se que o futuro
da sexualidade no direito exige a ampliação da cidadania daqueles a quem a
norma deve atender.

Sobre a centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana

Ao se permitir às reflexões em torno da relação entre direito e sexu-


alidade, a literatura jurídica – e a doutrina – têm recorrido ao seu próprio
processo de construção, em uma espécie de elogio à sua capacidade de rein-
ventar os seus próprios postulados. Na verdade, poucos são os textos acadê-
micos na área do direito que se debruçam sobre o tema da sexualidade; e
aqueles que o fazem parecem ter elegido, para todo e sempre, o princípio da
dignidade da pessoa humana – e o seu corolário, os direitos humanos – como
fundamento-solução.
Evidentemente, são enormes as contribuições e os avanços da dou-
trina, sobretudo no campo do direito civil, quando se trata de pensar o exer-
cício da sexualidade no bojo da plena realização dos direitos da personalidade.
Sabemos que o conceito de autonomia privada tal como se exprimia
na clássica liberdade contratual, não atendia as condições indispensáveis à essa
realização. Onde autonomia privada e liberdade se confundiam, cabia ao di-
reito se ocupar basicamente da regulamentação das situações patrimoniais.

49
Adriana Geisler

Na realidade, o que se verificava era a expressão da dicotomia clássica


entre direito público e direito privado, devendo o direito público resguardar
o privado, de modo a permiti-lo – e ao direito como um todo – ocupar-se
basicamente dessa tarefa. Cabia-lhes, portanto, proteger os indivíduos de uma
conduta arbitrária e imprevisível da parte do Estado, assegurando ao indiví-
duo o exercício da sua liberdade na defesa de seu patrimônio.
Onde as noções de “indivíduo” e de “Estado” se erguiam como ca-
tegorias centrais em torno das quais se estruturava o direito, os chamados
direitos individuais clássicos nada mais representavam do que a expressão for-
mal de necessidades individuais que requeriam a abstenção do Estado para o
seu pleno exercício. Em síntese, pretendeu-se limitar o campo de atuação do
direito público e do direito privado aos preceitos do laissez-faire, negando aos
direitos fundamentais qualquer relevância no âmbito do direito privado, e atri-
buindo a este último a solução dos conflitos entre particulares.
Erguendo-se não somente contra uma ocasional intervenção exces-
siva do Estado, a “nova” orientação civil-constitucional volta-se para as rela-
ções privadas tornando-as objeto de regulação por parte do texto constituci-
onal. Em outros termos, é justo que se reconheça e se atribua ao fenômeno
que conhecemos como Constitucionalização do Direito Civil o mérito de ter
incorporado os princípios fundamentais do direito privado aos textos Cons-
titucionais.
Nesse contexto, onde a Lei Maior é a guardiã contra agressões pro-
venientes não apenas do Poder Público, mas também de particulares, os di-
reitos fundamentais materializam-se para além da defesa do indivíduo e de
seu patrimônio, lançando-se luz à regulamentação das situações extrapatrimo-
niais.
Como exemplo de exercício de liberdade para além dos estreitos li-
mites definidos pelas situações patrimoniais, tem-se a autodeterminação cor-
poral como uma das formas de realização da autonomia existencial. Falar em
autonomia corporal significa reconhecer no sujeito a possibilidade de “dar
normas a si mesmo” no que respeita ao seu próprio corpo, de modo a expe-
rimentar, também dessa maneira, o livre exercício de sua forma de ser.
Além da liberdade, a integridade psicofísica, a igualdade e a solidari-
edade conformam o “substrato material da dignidade” da pessoa humana.
Segunda a autora, a concretização da dignidade da pessoa humana exige a
ponderação entre esses subprincípios, impondo a necessária ultrapassagem de

50
Qual o futuro da sexualidade no direito?

tudo aquilo que restringe o sujeito de direito à condição de objeto. Moraes


(2006) reconhece, inclusive, que para além de sua tradicional força repressiva
mantenedora do status quo, o direito - como força de transformação da reali-
dade – é chamado a tutelar a “vulnerabilidade” prioritariamente. Assim, de-
veriam ter precedência os direitos de determinados grupos, mormente o que
se convencionou chamar de minorias. Mas de que forma?
Já foi dito em outro trabalho (GEISLER, 2016), que o Estado pode,
a pretexto de proteger o próprio indivíduo de si mesmo, privá-lo de seu(s)
direito(s) de liberdade contra sua vontade. Nestas situações se está diante do
conceito do paternalismo jurídico3.
Um bom exemplo disso pode-se observar através do importante in-
ventário, feito por Ventura (2010), das decisões judiciais sobre a possibilidade
ou não da cirurgia de transgenitalização. De acordo com a autora, a decisões
favoráveis se sustentam, não no determinismo biológico, mas no determi-
nismo anatômico, o que permite notar uma linha de continuidade entre os
argumentos – favoráveis e desfavoráveis à cirurgia de transgenitalização – ou,
mesmo, às favoráveis e desfavoráveis à alteração do nome anterior à cirurgia.
Para Geisler (op. cit), no caso das pessoas trans, observa-se o uso des-
locado e perverso do instituto:

(...) na medida em que, segundo a determinação normativa, exige-se que a


pessoa transexual, para fazer jus ao acesso à terapia de mudança de sexo, aquiesça
com sua “doença”, trocando em parte o seu consentimento livre pela autorização
médico-psiquiátrica. Dito de outro modo, o acesso à terapia de mudança de sexo
não depende única e exclusivamente da vontade e do consentimento da pessoa
transexual, donde se pode observar que a autonomia do transexual é restrita em
relação às intervenções sobre o seu próprio corpo.

Assim é que a questão da transexualidade é convertida em discurso e


prática sobre o “transexualismo”. Vê-se que, na prática dos tribunais, o direito
à autonomia corporal das pessoas trans é orientado pelo saber/poder médico,
regulando o exercício da cidadania formal para essa parcela da população.
Como falar de dignidade da pessoa humana nesse contexto? Afora a doutrina,
como tem se posicionado a literatura jurídica em relação ao tema?

3 O conceito foi devidamente bem explorado por Letícia de Campos Velho Martel em O

Paternalismo Jurídico – ‘Que Fazer’? (mimeo, gentilmente cedido pela autora.)

51
Adriana Geisler

Autonomia corporal na literatura jurídica

Além do que nos informa a doutrina civilista no que tange a autono-


mia corporal quando se trata de processo transexualizador, este trabalho pro-
pôs um levantamento da produção jurídica acadêmica dos últimos 10 anos
sobre a questão trans, de modo a identificar e analisar as categorias centrais
que atravessam esses estudos. Escolheu-se recortar a busca textual conside-
rando, inicialmente, os descritores “direito” e “sexualidade” e, posterior-
mente, refinando a pesquisa, o descritor “processo transexualizador”.
A busca foi feita a partir do portal de periódicos CAPES, sem restri-
ção a qualquer base de dados. A “área do conhecimento”, a “Subárea” e a
“data da publicação” foram os filtros utilizados na busca.
Referenciados ao período escolhido (10 anos) e com os descritores
“direito” e “sexualidade” foram encontrados 84 artigos dentro da área das
Ciências Sociais Aplicadas, e, mais especificamente, na subárea Direito. Ape-
nas dois deles trataram de problematizar mais diretamente a relação entre se-
xualidade e direito, ainda que sempre com fundamento nos princípios da dig-
nidade da pessoa humana e, somente um foi publicado em uma revista da área
jurídica. Destes, o que foi publicado em 2006, na Revista Horizontes Antro-
pológicos, intitulado “Para um direito democrático da sexualidade” chama a
atenção em especial, por evidenciar o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana, tentando articulá-lo a outros conceitos, ainda que timidamente. Nas
palavras de seu autor Roger Raupp Rios:

Este artigo trata da relação entre direito e sexualidade numa perspectiva de-
mocrática. Após historiar a gênese desse debate no seio mais amplo dos "direitos
reprodutivos e sexuais", propõe-se uma análise dos chamados "direitos sexuais"
a partir dos princípios fundamentais e das dimensões que envolvem o exercício
da sexualidade. Liberdade, igualdade e não-discriminação, bem como a proteção
da dignidade humana, são os fundamentos que estruturam o desenvolvimento
de um direito democrático da sexualidade, compatível com o pluralismo e a lai-
cidade requeridas pelas sociedades democráticas contemporâneas. Dentro desse
quadro conceitual, são consideradas as dimensões protetivas, defensivas e positi-
vas desses direitos humanos fundamentais, bem como são arrolados os principais
temas e objeções pertinentes a uma compreensão mais alargada e estruturada dos
direitos sexuais. (2006, grifos meus).

52
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Vale dizer que, ainda que a busca tenha sido refinada com a “subárea”
direito, os artigos mais frequentes foram publicados em revistas de Sociologia,
Psicologia e Saúde Coletiva, dialogando com o direito através de relevantes e
interessantes pesquisas empíricas. Nestas, uma ampla variedade de questões
foi encontrada, desde as relativas aos direitos sexuais e reprodutivos (sobre-
tudo na adolescência e na velhice, direitos contraceptivos), até as que tocam
no exercício da sexualidade como parte da atenção integral a pessoas com
transtornos mentais, passando ainda, pelos seguintes temas, a saber: diversi-
dade sexual; identidade de gênero; retificação do sexo no registro civil de tran-
sexuais; casamento civil igualitário; feminismo; gênero e prisão; teoria queer;
religião/religiosidade e relações de gênero; linguagem e gênero; masculinida-
des; paridade nas relações conjugais; violência sexual; criminalização da ho-
mofobia; assédio sexual; sexualidade e saúde, etc...
Curiosamente, ao se refinar a pesquisa a partir dos descritores “di-
reito” e “processo transexualizador”, foram encontrados apenas 03 (três) ar-
tigos. Um, publicado na Revista Physis, em 2009, de autoria de Tatiana Lionço,
sobre atenção integral à saúde e diversidade sexual no processo transexualiza-
dor do SUS. Outro, de Berenice Bento, publicado na Revista Ciência e Saúde
Coletiva, em 2012, sobre a produção das identidades de gênero a partir de uma
perspectiva crítica referenciada ao caráter relacional próprio aos estudos de
masculinidades. E, por fim, um que trata da proteção da autonomia reprodu-
tiva dos transexuais, escrito por Heloisa Helena Barboza e publicado na Re-
vista Estudos Feministas, em 2012.
O trabalho que discute a atenção integral à saúde e a diversidade se-
xual no processo transexualizador do SUS traz uma consideração crítica
acerca dos avanços, impasses e desafios na instituição desse processo como
política pública de saúde. Já o artigo que implementa a crítica ao conceito de
gênero incorpora as narrativas de homens trans e de mulheres trans, trazendo
uma importante reflexão sobre a base teórica que sustenta o lugar dos corpos
da ordem de gênero e a patologização das identidades trans. Pode-se dizer
que, nestes dois textos, o direito das pessoas trans fica, por assim dizer, sub-
tendido. O texto que se ocupa, mais diretamente, de uma reflexão sobre a
relação entre o direito e a sexualidade é o que trata da proteção da autonomia
reprodutiva dos transexuais. Verifica-se que, também neste texto, a autora
lança mão do princípio da dignidade da pessoa humana, sem, no entanto,
aprofundá-lo. Assim vejamos o que diz a autora logo no resumo do texto:

53
Adriana Geisler

A Constituição Brasileira assegura o direito ao planejamento familiar com


fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paterni-
dade responsável. Esse direito e reconhecido não só ao casal, como ao homem e
a mulher, que podem constituir sozinhos uma comunidade familiar, denominada
família monoparental, constitucionalmente amparada. O Conselho Federal de
Medicina adotou normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assis-
tida destinadas a todas as pessoas capazes, abrindo assim tal possibilidade para
qualquer pessoa independentemente de sua orientação ou situação sexual. Indis-
pensável, neste momento, analisar o caso dos transexuais, que podem ter sua ca-
pacidade de reproduzir comprometida pelo processo transexualizador, para que
seus direitos reprodutivos sejam resguardados. (BARBOZA, 2009, grifo meu)

Pode-se dizer, portanto, que o levantamento feito revelou um nú-


mero ínfimo de artigos que exploram a relação entre direito e sexualidade, e
quando o fazem, percorrem essa relação através do princípio da dignidade da
pessoa humana, na já consagrada trajetória feito pela doutrina na base da trí-
ade constitucionalização do direito civil – autonomia existencial – autonomia
corporal.

O futuro da sexualidade no Direito:


protagonismo e pluralismo jurídico

Historicamente, onde surge uma demanda da população “trans” já lá


estão os discursos de sua deslegitimação. Ao “verdadeiro transexual” se im-
põe a adequação à normalização binária expressa na lógica jurídico-formal da
igualdade. No “todos são iguais perante a lei” de uma sociedade narcísica e
sem apreço pelas diferenças, o transexual é visto apenas como cópia imper-
feita da cis-heteronormatividade.
Travestidos de reconhecimento, os discursos de legitimação e as po-
líticas que deles decorrem vão se impondo, dessa forma, mais como prática
de controle e tática de invisibilidade do que de alteridade. Quanto menos
“trans” ele for, quanto menos circular entre o feminino e o masculino, quanto
mais fixar sua identidade de gênero ao sexo biológico mais poderá passar,
seguramente, como um de nós...
No que toca à materialização de alguns direitos para essa população,
são as políticas públicas de saúde as que, talvez, mereçam maior atenção. Sa-
bemos que a década de 80 (oitenta) inaugurou, a partir do necessário enfren-
tamento à epidemia de HIV/AIDS, um olhar mais atento do setor saúde para

54
Qual o futuro da sexualidade no direito?

o cuidado dessa população. Mais recentemente, foram as práticas relacionadas


ao uso de hormônios e próteses para transformações corporais que deman-
daram uma maior atenção do Sistema Único de Saúde. Esse cuidado, no en-
tanto, é limitado a apenas alguns dos procedimentos exigidos por estas pes-
soas, garantido em número insuficiente e circunscrito a essas duas grandes
linhas de cuidado, configurando o que se chamou de duplo estigma na política
de atenção à saúde para travestis e transexuais (GEISLER, 2016).
Encerradas as transexualidades ao discurso e a prática sobre a pato-
logia do “transexualismo”, o direito, aliado ao saber/poder médico, tem se
posicionado com maior ou menor alinhamento à psiquiatrização da sexuali-
dade, sustentando-se ou no determinismo (biológico ou anatômico) ou no
paternalismo jurídico. Ainda que se deseje incorporar o instituto da dignidade
da pessoa humana quando se trata de processo transexualizador, o sujeito
“trans” vem sendo expropriado da possibilidade de “dar normas a si mesmo”
no sentido da afirmação de sua autodeterminação corporal. Mesmo na era da
constitucionalização do direito civil, o exercício da cidadania para essa popu-
lação parece reduzir-se aos seus aspectos de mera formalidade.
Não se pode ignorar, no entanto, a importância dos esforços de in-
clusão do princípio da dignidade da pessoa humana ao discurso jurídico. Na
forma de uma proposição “principialista”, a dignidade da pessoa humana
evita o fechamento de uma definição meramente programática. Por outro
lado - e este é o ponto nevrálgico desta reflexão - não possibilita a vinculação
com uma “imagem-objetivo” clara.
Resta, então, fazer o princípio da dignidade da pessoa humana dialo-
gar com outros conceitos, que lhe permitam o alcance de maior concretude.
E esse diálogo não pode prescindir da empiria, sob pena de construção de um
arcabouço teórico hermético, centrado em seus próprios postulados e com
conceitos cristalizados.
Mais do que nunca, portanto, é imperioso, na trilha dos velhos ensi-
namentos de Foucault (1992a, 1992b, 1999), e, mais recentemente, nas con-
tribuições de Butler (2003) estreitar as relações entre o direito e a micropolí-
tica; enlaçar teoria à prática. Se a plasticidade e a polissemia de um conceito
permitem variações em suas possibilidades interpretativas, a opção semiótica
e política que um conceito-princípio como o da dignidade da pessoa humana
veicula precisa ser resgatada a partir do que brota do mundo da vida.

55
Adriana Geisler

Direito achado na Rua4, e que, como tal, nasce do diálogo com a expe-
riência dos movimentos sociais. Esse foi o espírito das últimas pesquisas que
Geisler (2014, 2016) desenvolveu com a população LGBT. Foram dessas pes-
quisas que emergiram duas importantes categorias que aqui são assumidas
como conceitos fundamentais e necessários ao resgate do sentido real do prin-
cípio da dignidade da pessoa humana, a saber: “protagonismo” e “pluralismo
jurídico”.
Vale dizer, que as duas pesquisas, basicamente, utilizaram os mesmos
instrumentos e métodos de aproximação sucessiva da realidade que caracteri-
zam a pesquisa-ação. A estratégia de pesquisa que foi utilizada para operacio-
nalizar os princípios metodológicos assumidos pela pesquisa-ação teve como
referência as experiências das comunidades ampliadas de pesquisa.
A escolha da estratégia metodológica não poderia ter sido outra con-
siderando que o conceito de “pluralismo jurídico” norteou as duas pesquisas.
De acordo com Geisler (2008, 08), ao juntarmos uma determinada concepção
de intervenção e de pesquisa estamos tentando produzir uma outra relação
entre teoria e prática, entre sujeito e objeto do conhecimento". Tendo como
alicerce a construção de uma rede de encontro de saberes, que se constitua
como um sistema de coanálise, essa opção metodológica das comunidades
ampliadas de pesquisa permitiu conferir centralidade à democratização das
relações de produção de conhecimento. E a autora continua elucidando a
perspectiva pedagógico-emancipatória que caracteriza, como se verá, qual-
quer projeto de caráter pluralista:

Trabalhando com essa abordagem, entendemos que espaços de intervenção


podem se caracterizar como espaços de formação. Da mesma forma (que espaços
de intervenção podem se caracterizar como espaços de formação) uma prática de
intervenção pode também ser pensada como uma atividade de pesquisa”
(GEISLER, 2008, 08)

Essas noções orientaram as duas pesquisas, emergindo seja como ca-


tegoria empírica propriamente dita, seja através do levantamento bibliográfico

4 Expressão cunhada por Roberto Lyra Filho e que inspirou, no Direito, o trabalhado de

importantes teóricos como José Geraldo de Sousa Junior.

56
Qual o futuro da sexualidade no direito?

prévio como pano de fundo (e/ou categoria de análise) de todo arcabouço


teórico-metodológica da pesquisa, fundamentando-a5.
Em relação à primeira pode-se dizer que é uma velha conhecida em
diversos campos de conhecimento. Milton Santos, Victor Valla, Paulo Freire
e Boaventura de Souza Santos são alguns dos expoentes que, de certa forma,
já exploraram a noção de protagonismo, seja nominalmente, seja tangencial-
mente.
No campo da interface entre direito e sexualidade, não há como se
falar de dignidade da pessoa humana para as pessoas trans às expensas do
reconhecimento real do que vem se denominando de “protagonismo trans”
(GEISLER, 2014, 2016). Mesmo no contexto da chamada constitucionaliza-
ção do direito civil, este princípio, como conceito, não consegue, sozinho, se
operacionalizar em direção à plena realização dos direitos da personalidade.
No que respeita à concretização dos direitos da população trans, e
para que não se corra o risco de voar por nuvens metafísicas, é imperioso
observar a efetivação desses direitos sob a forma de políticas públicas, consi-
derado, ainda, o contexto de produção dessas políticas. E, lamentavelmente,
numa perspectiva democrática e de ampliação da cidadania, sabemos como
estas políticas estão distanciadas do que querem seus “destinatários”, sujeitos
de direitos.
Nesse tempo em que as multidões ousam gritar sua política, torna-se
fundamental, legitimar os discursos (auto)biográficos; valorizar os protago-
nismos de si e fazer operar as singularidades onde o mundo das abstrações e
universalizações operadas pelo direito, não raro, insistem em silenciar...
Falar sobre sexo não alcança a todas as pessoas. Para além desses
discursos é preciso convocar, nas brechas do sistema cis/heteronormativo, as
“anormalidades”, as “estranhezas”, os “desvios” e “as maldições” para faze-
rem falar diretamente os desejos de seus corpos na forma de necessidades,
demandas e produção de direitos. Para além da lógica representação, é neces-
sário que a própria “precariedade” se expresse como beleza e potência, ti-
rando a micropolítica da bolsa sob a forma de novas possibilidades com ca-
ráter de resistência.

5 Vale lembrar que as categorias analíticas são aquelas que retém as relações sociais funda-

mentais e podem ser consideradas básicas para o conhecimento do objeto nos seus aspectos
gerais. Emergirão, portanto, a partir da leitura bibliográfica. As empíricas são construídas
com a finalidade operacional, visando ao trabalho de campo ou a partir do trabalho de campo
(MINAYO, 2004).

57
Adriana Geisler

A categoria “protagonismo” agrega à reflexão sobre a dignidade da


pessoa trans um outro elemento: - a autonomia dessas pessoas, no sentido de
um dar normas a si mesmo. Protagonista é o personagem principal da
encenação. Trata-se de reconhecer nelas o papel cardinal na elaboração das
políticas públicas que a elas respeita, inclusive – mas não apenas – no que toca
às suas demandas por modificações corporais.
Assim é que aqui se observa uma importante inversão: - a da cons-
trução de políticas públicas de cima para baixo, nos remetendo a categoria do
“pluralismo jurídico”. Pode-se dizer com Santos (1984) e Wolkmer (1994,
2001) que o que se verifica nessa pluralidade normativa é a experiência de
uma convivência que permite que os impulsos libertários e a elaboração teó-
rica dos grupos subalternizados sejam acolhidos pelo sistema de normais es-
tatais. Ao contrário, forja-se um “mundo jurídico” cindido da sociedade e das
relações sociais. A realidade fica encerrada em uma espécie de arcabouço nor-
mativo que enfatiza as ficções em prejuízo de uma criativa aproximação do
“jurídico” ao mundo da vida. A relação jurídica passa, então, a ser entendida,
segundo Ferraz Jr. (1991), não como manifestação de uma modalidade de
convivência social, mas como uma relação entre normas a qualificar os sujei-
tos e lhes prescrever condutas. Foi o que se verificou, como se viu no levan-
tamento de Ventura (2010), nas decisões judiciais sobre a possibilidade da
cirurgia de transgenitalização, mesmo em algumas favoráveis.
Wolkmer (1994) vai enxergar na articulação entre teoria e práxis o
instrumental operante, a nível epistemológico e político, capaz de estimula a
participação múltipla dos segmentos populares e integrar a ação histórica de
novos sujeitos coletivos. Ao envolver pensamento crítico revolucionário e
ação estratégica, esse Pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo,
não mais identificado com a democracia liberal ou com o corporativismo so-
cietário de um Estado encarado como poder legislativo exclusivo6, mas que,
como resultante do processo de práticas sociais insurgentes, sedimenta-se na
base de um largo processo de democratização e descentralização.

6 Souza Santos (2001) nos dá outro exemplo dessa dimensão totalizadora, mas ao interior

da epistemologia. Segundo ele, tanto a sociologia funcionalista quanto a sociologia crítica


buscam a ordem. Se a primeira quer a ordem da regulação social; a segunda pretende a ordem
da emancipação social.

58
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Note-se que a noção de sujeito coletivo é fundamental a um direito


que se quer comprometido com a garantia e a promoção da dignidade hu-
mana. Aqui, como vimos, os direitos de determinados grupos devem receber
um olhar mais cuidadoso do Estado e da sociedade. O que aqui se chamou
de “tutela da vulnerabilidade”, entretanto, não pode ser abrigada na lógica
populista arquitetada no seio de uma cidadania regulada, seja pela carestia seja
pela troca de favores. O Estado não pode ser mais o único parâmetro a partir
do qual emergem os movimentos sociais. Ao contrário, por autênticos sujei-
tos coletivos, capazes de incentivar uma cultura jurídica pluralista e insur-
gente, compreende-se às potencialidades que só poderiam se desenvolver fora
da institucionalidade estatal porque constituídas, como foi visto, a partir de
um processo autônomo de auto-organização. (WOLKMER, 1992).
Dignidade exige, portanto, ampliação de cidadania. Para pessoas e
grupos subalternizados, esse alargamento depende de suas próprias estraté-
gias, isto é, das estratégias de quem tem pouco poder.
Lembre-se que, para Foucault (1992), os corpos são tomados por di-
ferentes dispositivos de assujeitamento. Em uma das pesquisas já menciona-
das, a que foi realizada por Geisler (2016) na baixada litorânea, a fala dos
participantes evidenciou o processo através do qual o poder atravessa o itine-
rário de negação de direitos (individuais e sociais) para a população LGBT
desta localidade. Senão observe-se:

Os poderes nos são socialmente impostos e partem da necessidade de reafir-


mar normatividades que nos marginalizam, como os que perpassam necessaria-
mente por âmbitos de decisão política e/ou impregnam a noção de moral cristã
generalizada e nos achatam. (Ator J)

Os poderes nos são socialmente impostos e partem da necessidade de reafir-


mar normatividades que nos marginalizam, como os que perpassam necessaria-
mente por âmbitos de decisão política e/ou impregnam a noção de moral cristã
generalizada e nos achatam. (Ator R)

Ainda seguindo a análise de Foucault, a principal tarefa da moderni-


dade é o controle "biopolítico" sobre os corpos, de modo que o autor não
desconhece a dimensão disciplinar do poder, mas acrescenta que o poder não
pode ser exclusivamente entendido como um fenômeno homogêneo de do-
minação de um indivíduo, de um grupo ou de uma classe sobre as outras.
Como se sabe, a essa tecnologia de poder que surge desde em fins do século

59
Adriana Geisler

XVIII e se manifesta como uma espécie de “estatização do biológico”, Fou-


cault irá denominar de “biopoder” (1991). Trata-se, nas palavras do autor, de
“otimizar um estado de vida”, “de intervir para fazer viver, e na maneira de
viver, e no ‘como’ da vida” (FOUCAULT, 1991, 294 e 295).
Segundo Foucault (1999), observa-se a passagem do exercício do po-
der disciplinar, para uma forma de poder que se exerce como uma espécie de
“estatização do biológico”. Mas também nesse caso não é possível supor que
uma tecnologia de poder tenha suplantado a outra. Nas palavras do autor:

Eu creio que se vê aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de po-
der, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que não exclui a técnica
disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que,
sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e encrustando-se efe-
tivamente graças a essa técnica disciplinar prévia (1999, 289).

As rodas de conversa desenvolvidas nesta pesquisa também eviden-


ciaram a presença desse poder que consegue se capilarizar a níveis micropolí-
ticos, alcançando corações e mentes e se espalhando por todo o tecido social.
Tem-se a expressão de um poder que encontra a todos na intimidade; que se
exerce sobre a vida em suas minúcias. Dessa forma:

Existem também os efeitos subjetivos do poder. Existem consequências inte-


riores do poder. Há poderes verticais, marcados com símbolos maiores (como
isso do poder entre opressor e oprimido) e existem as relações de poder numa
esfera micro. O poder nos constitui. (Ator J)

O poder nos condiciona internamente e faz parecer espontaneidade e desejo


o que é fruto da exterioridade. (Ator V)

Nas trilhas de Foucault, Butler (2003) reafirma que os corpos são


entrecortados pelo imperativo heterossexual. A autora toma as identidades de
gênero (dentre elas as LGBTs), refletindo sobre as condições de subordinação
que se encontram frente as relações de poder. Sobre a questão da sexualidade,
destaque-se:

Acho que a sexualidade faz referência as diferentes formas de compreensão


do sexo em seu ter, prática, ou uso por, para ou intensão de (Ator S).

60
Qual o futuro da sexualidade no direito?

É uma forma de expressão; de diferentes formas de expressão do sexo (Ator


R).

Eu acho que gênero traduz uma série de noções externas que o sujeito se vê
obrigado a repetir para se sentir inserido (Ator R).

Acho que não diz respeito unicamente ao ato sexual em si, mas acaba perpas-
sando por ele. Sempre que eu penso em sexualidade, a associo imediatamente a
orientação sexual (Ator J).

Acho que sexualidade é um exercício, não consigo enxergá-la como algo está-
tico, nem predisposto. Penso a sexualidade como a atividade de sexuar, que per-
passa pelo ato sexual, claro, mas que possui uma série de ramificações. A maneira
como nos vestimos, nos comportamos, nos identificamos e queremos identifica-
dos é para mim, muitas vezes, um exercício da nossa sexualidade. Além disso, no
que concerne a orientação sexual, entendo ela, hoje, como algo além do nosso
controle e quanto mais distante das amarras e padrões sociais, mais fluida ela fica,
deixando o ser cada vez mais livre para sexuar com o outro, amarras como corpo
físico, e tudo que isso implica (sexo biológico, estética, posição sexual) para trás
(Ator V).

Se, para Foucault, “o poder circula”, “se exerce em rede”, “passa”


por nós, Butler acrescenta, a partir do conceito de “performatividades de gê-
nero”, a possibilidade da desmonte da norma que exige identidades demarca-
das.
A esse respeito Lima (2015) nos lembra que, para Foucault, “aonde
há poder há resistência”. Para a antropóloga, pode-se dizer com Butler que os
corpos constituem formas de ser e estar no mundo a partir desses atravessa-
mentos. Assim, observe-se, mais uma vez, a fala dos participantes na referida
pesquisa:

Mas a dominação de um grupo sobre outro só se faz possível com a coopera-


ção dos dominados (Ator R).

Se poder é imposição, a resistência é uma consequência; um modo legítimo


de contraposição e se insere no contexto da disputa de poder (Ator M).

O poder apresenta uma dualidade perigosa. Ao mesmo tempo que existe o


poder que oprime, existe o poder que empodera e resiste, e essas duas formas de

61
Adriana Geisler

poder não coexistem pacificamente. Daí a necessidade de erradicar o poder que


subordina e marginaliza (Ator M).

O poder também pode ser traduzido como uma libertação, de certa forma. O
poder sob você mesmo, numa sociedade que nos subordina a seus padrões cons-
tantemente; onde tudo é coercivo, o poder sob si mesmo é uma forma de se li-
bertar (Ator M).

A sociedade nos subordina às suas padronizações, vistas em diferentes níveis.


O outro efeito do poder é numa lógica internalizada. O poder de lutar contra
essa subordinação social é um pré-requisito para todas as minorias, bombardeadas
por fugirem dos padrões (Ator M, grifo meu).

Na verdade, eu acho que essa minoria também tem poder, a afronta acontece
quando os mundos se encontram (Ator T).

Nós temos poder, e não nos encontramos integralmente subordinados a essas


amarras sociais nocivas. Por isso, o poder também pode libertar (Ator M).

O poder é positivo, pois faz gerar a intercessão e o crescimento para ambos


os lados (até para quem tem poder) (Ator T).

Se como se vê, o corpo é espaço de assujeitamento e, simultanea-


mente, locus de resistência, no que diz respeito as identidades trans a possibi-
lidade de subversão se inscreve na ultrapassagem do imperativo cis-hetero-
normativo. Desse modo:

A resistência é uma reapropriação de poder e o empoderamento é uma forma


de resistir. Uma vez li uma frase m um muro no Rio: ‘- travestir é resistir’ (Ator
M).

Em síntese, verifica-se que “protagonismo” e “pluralismo jurídico”


são categoria fundamentais a partir das quais se deve inscrever o princípio da
dignidade da pessoa humana.

62
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Considerações finais

Uma breve análise sobre a literatura jurídica dedicada a problematizar


a relação entre direito e sexualidade nos revela duas ordens de questões. A
primeira diz respeito a constatação de que a quantidade de artigos jurídico
dedicados ao tema é em número insuficiente. A segunda que esses poucos
textos percorrem essa relação através do princípio da dignidade da pessoa
humana, na já consagrada trajetória feito pela doutrina na base da tríade cons-
titucionalização do direito civil – autonomia existencial – autonomia corporal.
Quem diz o conceito, diz o direito. Mas, mesmo no contexto da cha-
mada constitucionalização do direito civil, este princípio, como conceito, não
consegue, sozinho, se operacionalizar em direção à plena realização dos direi-
tos da personalidade.
Pensar o futuro da sexualidade no direito exige um repensar do pró-
prio direito enquanto campo de conhecimento, possibilitando que se recupere
a sua “dimensão emancipatória” na teoria e na prática. A crítica que aqui se
vislumbra avança, para além da lógica da representação, para o terreno da
construção micropolítica, na tentativa de vincular o conceito de dignidade da
pessoa humana a uma imagem-objetivo que lhe permita materializar-se.
O conceito de protagonismo – e em especial, a ideia de um protago-
nismo trans quando se trata da autonomia corporal das pessoas trans – e o de
“pluralismo jurídico”, tal como trabalhado em Boaventura de Souza Santos e
Antônio Carlos Wolkmer, parecem oferecer boas contribuições nesse per-
curso.

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

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65
66
3
TRABALHO E SEXUALIDADE:
NOTAS PARA REFLETIR SOBRE UM
(DES)ENCONTRO DRAMÁTICO

Carla Appollinario de Castro1

O presente capítulo tem por objetivo analisar a inserção no


mercado formal de trabalho das trabalhadoras e dos tra-
balhadores do segmento LGBTT, composto pelas lés-
bicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Para tanto, nosso recorte espe-
cífico é a atuação do Poder Judiciário Trabalhista no que diz respeito às de-
mandas a ele submetidas envolvendo essa parcela da classe trabalhadora, a
fim de refletir sobre qual o lugar da sexualidade no direito, pela lente do Di-
reito do Trabalho. Partimos do pressuposto, amplamente aceito, de que o
delineamento da cidadania, no contexto brasileiro, teve como eixo central a
inserção dos indivíduos no mercado formal de trabalho. Portanto, uma análise

1 Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense -

Polo Universitário de Volta Redonda (PUVR/UFF). Professora efetiva do Programa de Pós-


graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF) /
LINHA DE PESQUISA: Relações de trabalho, direitos sociais e instituições -
http://www.uff.br/ppgsd. Coordenadora do GEMUT – Grupo de Estudos sobre o Mundo
do Trabalho (gemutuff@gmail.com). Coordenadora do SEXUS - Grupo de Estudos sobre
Sexualidades, Democracia e Direitos Humanos (sexusuff@gmail.com).

67
Carla Appollinario de Castro

mais detida da inserção da população LBGTT no mercado formal de trabalho


se faz necessária, uma vez que a realidade concreta e objetiva de vida dela
parece revelar um profundo quadro de exclusão social2.
Dessa forma, o presente texto, decorrente da discussão realizada na
I Jornada do SDD, está estruturado em duas partes: i) uma reflexão acerca do
delineamento da cidadania no Brasil, a partir do acúmulo e gozo dos direitos
(civis, políticos e sociais, neles compreendidos, os direitos trabalhistas, previ-
denciários e sindicais) e sua atualização, como categoria analítica fundamental
nos estudos sobre exclusão/inclusão social, para a caracterização do mercado
de trabalho no Brasil contemporâneo; e ii) a recepção, pelo Judiciário Traba-
lhista, das demandas decorrentes das relações de emprego envolvendo temas
inerentes à sexualidade, em especial, aos trabalhadores LGBTTs.
Nossa metodologia é pautada pela consulta bibliográfica (jurídica e
sociológica). Serão utilizados, dessa forma, como métodos de pesquisa a revi-
são de literatura, o levantamento de dados sobre o mercado de trabalho for-
mal brasileiro, bem como a crítica aos julgados extraídos a partir da jurispru-
dência do Tribunal Superior do Trabalho, de lides envolvendo a relação de
emprego e temáticas da sexualidade.

Cidadania no Brasil: um grande desafio

O contexto brasileiro é marcado historicamente pela não inserção de


grande parte das classes trabalhadoras, bem como pela não efetividade, em
larga escala, da aporia moderna de cidadania plena e, portanto, pela não solu-
ção da “questão social” brasileira.
Nesse sentido, apresentamos o presente tópico, que tem por intuito
resgatar alguns pontos fundamentais da contribuição de autores clássicos e
contemporâneos acerca da cidadania para, em seguida, problematizá-los

2 Aqui, e em todo o texto, a noção de exclusão social foi adotada a partir de um prisma que

a considera em seu sentido ambivalente. Isto porque ela se revela como um fenômeno ex-
tremamente funcional ao sistema, apresentando-se como uma exclusão que é, ao mesmo
tempo, excludente e includente. Assim, determinadas camadas da estrutura social são exclu-
ídas de certas esferas da vida social (como por exemplo, do trabalho formal) para serem
simultaneamente incluídas em outras (no caso, o trabalho informal), revelando um processo
dialético de exclusão social que, no contexto brasileiro, se mostra bastante perverso, na me-
dida em que somente contribui para o agravamento das já históricas desigualdade e exclusão
social existentes no país durante todo o seu desenvolvimento econômico.

68
Qual o futuro da sexualidade no direito?

como manifestações do aprofundamento da “questão social”, em um con-


texto que alia a exclusão das trabalhadoras e dos trabalhadores LGBTT do
mercado formal de trabalho no Brasil ao despreparo do Judiciário Trabalhista
para lidar com as relações de emprego que envolvem temas e especificidades
inerentes à sexualidade.

Marshall e o modelo “paradigmático” de cidadania

Texto polêmico e, no entanto, obrigatório em toda e qualquer dis-


cussão sobre o tema da cidadania é a formulação clássica elaborada pelo so-
ciólogo T.H. Marshall (1967), a partir de suas conferências proferidas em
1949, cujo problema central pautou-se pela questão da (des)igualdade social.
Mais especificamente, sobre uma possível dinâmica inerente à cidadania que
a permitiria alterar o padrão de desigualdade social (MARSHALL, 1967, 107).
Inicialmente, convém destacar que caracteriza a contribuição do autor o con-
texto de implantação das estratégias fordistas-keynesianas, que provocaram
um conjunto de profundas transformações na forma de organização das so-
ciedades durante aquele período, quando a política social passa a fazer parte
definitivamente do debate político-social, inaugurando um novo estatuto teó-
rico, que se materializou concretamente nas realidades dos países europeus
que experimentaram o padrão de bem-estar social.
De claro matiz liberal, a teoria marshalliana parte da consideração,
segundo a qual a educação (associada à ideia de pleno exercício da cidadania,
i.e., de participação integral na comunidade), aparece como único direito so-
cial incontestável e, portanto, delineadora de uma igualdade humana básica.
A partir dessa constatação, o autor sustenta já ser possível identificar que esta
igualdade social foi enriquecida, de forma contínua, ao longo dos últimos 250
anos, com um “conjunto formidável de direitos” (MARSHALL, 1967, 62).
Sua posição é no sentido de constatar a existência de uma compatibilidade
histórica entre desigualdade de classes e cidadania, esta última caracterizada
como o “arcabouço da desigualdade social legitimizada” (MARSHALL, 1967,
62). Por isso, ele conclui, sustentando a necessidade de preservar-se uma
igualdade social básica, invadindo, inclusive, o mercado competitivo, sendo o
mercado com limites uma consequência da evolução da cidadania moderna.

69
Carla Appollinario de Castro

E mais: Marshall defende a existência de uma tendência para a igualdade social


que marcaria a era moderna (1967, 63).
O primeiro aspecto importante na reflexão marshalliana diz respeito
à divisão, proposta pelo sociólogo, para análise do desenvolvimento do con-
ceito de cidadania na Inglaterra, a partir do que - segundo o autor - podemos
considerar como suas três dimensões ou elementos constitutivos: os direitos
civis, políticos e sociais, correspondentes ao processo histórico de constitui-
ção do Estado Liberal, do Estado Democrático e do Estado de Bem-Estar
Social, verificados nos séculos XVIII, XIX e XX, respectivamente.
Para Marshall, à fase madura do conceito de cidadania correspondia
o exercício: i) das liberdades individuais, materializadas nos direitos civis (di-
reito de ir e vir, de imprensa, de pensamento, de fé, de propriedade), cujas
instituições seriam os tribunais de justiça; ii) dos direitos políticos (i.e., do
direito de participar do poder político, por meio do parlamento e do governo,
expresso pelo direito de votar e ser votado); e iii) dos direitos sociais, caracte-
rizados a partir do direito ao acesso a um mínimo de bem-estar econômico e
segurança, passando pelo direito de participar integralmente no desenvolvi-
mento da vida social até chegar ao seu apogeu, este identificado com o estágio
de ser civilizado, ao desfrutar dos padrões predominantes na sociedade e ins-
titucionalizados pelo sistema educacional e pelos serviços sociais, tais como:
saúde, educação, trabalho e etc. (MARSHALL, 1967, 63-64).
A construção analítica do processo histórico de configuração (re-
construção) da cidadania, proposta por Marshall, apontava para o delinea-
mento acumulativo dos direitos civis, políticos e sociais como definidor de
uma cidadania plena. É neste contexto que emerge o segundo aspecto que
merece destaque no pensamento do autor, na medida em que, nos países que
puderam experimentar o Estado de Bem-Estar Social, a cidadania plena pas-
sou a ter como último estágio o elemento central da participação na sociedade
do trabalho, como observam Fragale Filho e Alvim (2000, 104).

70
Qual o futuro da sexualidade no direito?

É precisamente sobre esse aspecto que iremos nos dedicar, pois em


que pese um conjunto de críticas possam ser direcionadas à teoria marshalli-
ana3 da cidadania e até mesmo ao Estado de Bem-Estar Social4, embora o
autor não tenha tido a pretensão de elaborar uma teoria, sua contribuição
permanece atual e de passagem compulsória, na medida em que se tornou o
modelo paradigmático de análise do processo de construção da cidadania, res-
saltando o vínculo histórico estabelecido na modernidade entre cidadania e
trabalho.
Os argumentos5 de seus críticos concentraram-se, basicamente, so-
bre cinco eixos, apontando existir: i) uma limitação do quadro teórico ao caso
da Inglaterra e dos EUA (uma vez que, na Alemanha, a sucessão dos direitos
teria sido invertida, mantendo-se a seguinte ordem: direitos civis, sociais e
políticos e, no caso da França, as dimensões de direitos não podem ser con-
sideradas assim tão dissociadas); ii) falta de percepção quanto às possíveis
contradições entre as espécies de direitos (pois a combinação entre as três
dimensões de direitos – civil, política e social – nem sempre se dá de forma
tão harmoniosa como pretendeu o autor); iii) uma explícita redução do pro-
blema da desigualdade social a uma questão de cidadania; iv) desatenção
quanto às particularidades e especificidades, sobretudo econômicas, que mar-
caram a experiência inglesa; e v) uma construção em etapas e linear, a partir
do acúmulo das dimensões de direito, que caracterizaria o processo de confi-
guração da cidadania, resultando no caráter evolutivo-linear de sua aborda-
gem.
O atual contexto, marcado por profundas transformações ocorridas
no mundo do trabalho – decorrentes da globalização neoliberal – que se ma-
nifestaram, no campo econômico, sob a forma da reestruturação produtiva, e
no campo social, sob a forma de flexibilização, desregulamentação e relativi-
zação dos direitos dos trabalhadores, tendo como consequência, a precariza-
ção das condições e relações de trabalho, ressalta o quanto o vínculo histórico

3 Marshall não pretendeu, a partir de seu modelo analítico de reconstrução do processo

histórico de construção da cidadania, elaborar exatamente uma “teoria da cidadania”, mas


sim, analisar como historicamente, de certa forma, a cidadania foi sendo construída. Seu pri-
meiro objeto de análise foi a Inglaterra. Posteriormente, o sociólogo aplicou seu pensamento
ao processo de construção da cidadania nos EUA, na França e na Alemanha.
4 Remetemos, especialmente, para KURZ (1997); SENNETT (2006) e OFFE (1972).
5 Uma síntese das críticas formuladas à abordagem marshalliana pode ser obtida a partir

de: ABREU (2008); BARBALET (1989); FALEIROS (1986); FRAGALE FILHO; ALVIM
(2000); YAZBEK (1993) e PEREIRA (1986).

71
Carla Appollinario de Castro

estabelecido, no Estado Moderno, entre cidadania e (inserção pelo) trabalho,


perfeitamente compatível com o período de ampla utilização das estratégias
fordistas-keynesianas, também estaria passando por um processo de transfor-
mação, carecendo, portanto, de uma reflexão que não pode ser dissociada da
questão social.
Portanto, essas medidas que compõem o novo regime do capital,
“readaptado” ao mundo globalizado e neoliberal, denominado de “acumula-
ção flexível”, marcam exatamente a passagem do paradigma da sociedade do
trabalho (inerente à era fordista) para a sociedade neoliberal, onde o trabalho,
antes definidor de um estatuto de cidadania, perde seu potencial de agente
garantidor de direitos, o que fica bastante caracterizado a partir do modelo de
inclusão produtiva por meio do microempreendedorismo individual.
Logo, embora críticas possam e devam ser realizadas a este padrão
de cidadania – que pautou a experiência brasileira e a complicada imbricação
entre inserção na sociedade salarial e cidadania – não podemos deixar de re-
gistrar que este conceito ainda se mostra válido, auxiliando na compreensão
da manutenção do padrão de “cidadania regulada”, que exclui diversos seg-
mentos de trabalhadores da cidadania substantiva, neles incluídos os distintos
segmentos de trabalhadoras e trabalhadores LGBTTs.

Wanderley Guilherme dos Santos e o


modelo brasileiro de cidadania regulada

O filósofo e cientista político entrou para o debate sobre a configu-


ração da cidadania no Brasil após identificar, em 1979, a necessidade de uma
reflexão mais detalhada sobre o desenvolvimento das políticas sociais adota-
das no período autoritário (em especial, no pós-1964). Em seu texto mais
controvertido, intitulado Do laissez-faire repressivo à cidadania em recesso, o próprio
autor esclarece que seu propósito, ao refletir sobre a problemática social no
contexto brasileiro, consistiu em expor uma “interpretação teórica da história
da cidadania no Brasil, tendo por ponto de referência o conceito de cidadania
regulada” (SANTOS, 1979). Para tanto, ele toma a década de 30 como ponto
de partida, por considerá-la a mais importante, só encontrando paralelo após
64, mais especificamente em 1966, após a criação do Instituto Nacional de
Previdência Social - INPS.

72
Qual o futuro da sexualidade no direito?

A década de 30 (conhecida como era Vargas), adotada como marco


por Wanderley G. Santos, corresponde ao início de um processo em que foi
possível perceber uma dinâmica bastante acelerada de regulação social,
principalmente, durante o período 1931-1940, a partir de uma farta legislação6
social, previdenciária e sindical. A fim de delimitar a historiografia da política
social brasileira do período republicano, bem como compreender as
consequências políticas e sociais desse processo, perceptíveis desde os anos
do estudo (1979) até os dias atuais, o autor destaca dois períodos, em sua
crítica, a saber: 1930-1943 (que culmina na edição da Consolidação das Leis
do Trabalho – CLT) e 1966-1971, ou seja, a partir da criação do INPS.
E, para compreender a relevância de ambos os períodos, ele retorna
aos antecedentes da década de 30, isto é, à República Velha7, caracterizada
por um “falso laissez-faire e coação”, de cunho ortodoxo, breve e restrito à área
urbana da sociedade, correspondente ao lapso temporal existente entre a
abolição do trabalho escravo (ocorrida em 1888) até 1931, quando o próprio
Getúlio Vargas – chefe do governo revolucionário – anuncia a necessidade de
o Estado realizar uma intervenção mais efetiva na vida econômica, cujo
objetivo consistiu em estimular a industrialização e a diferenciação econômica
nacional. Por este motivo, aliás, aponta o autor, a economia agrária, durante
este período, apresentou um desenvolvimento bem mais lento e em total
descompasso com o ritmo de implantação da ordem capitalista na área urbana
(SANTOS, 1979, 64).
Também merece destaque o fato de, naqueles anos, ter início uma
crescente organização das classes trabalhadoras, verificada a partir da
ampliação do movimento sindical, da maior capacidade de mobilização e de
formulação de demandas, diante da qual a resposta política, pautada apenas
pela repressão, pura e simples, da elite mais rígida, já não mais se sustentava.
Era preciso, portanto, implantar um conjunto de transformações8, que se
tornaram possíveis em decorrência da Revolução de 30, pois

6 Em circunstância anterior, tivemos a oportunidade de esboçar um histórico da principal

legislação produzida durante a Era Vargas, com repercussão até os dias atuais, nas esferas
trabalhista, previdenciária e sindical, bem como seu processo de flexibilização após a ofensiva
neoliberal. Nesse sentido, remetemos para: CASTRO (2010).
7 Merece destaque o fato de, nessa época e até a Revolução de 30, a “questão social” ser

comumente tratada como “um caso de polícia” (MUNAKATA, 1981, 9).


8 A célebre frase de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada (presidente de Minas Gerais) sin-

tetiza bem esse momento da historiografia brasileira, ao declarar em um discurso datado de

73
Carla Appollinario de Castro

(...) tornava-se indispensável uma mudança na composição da elite, ou – pelo


menos – em parte dela, a fim de promover a renovação do equipamento
ideológico com o qual era enfrentado o problema da ordem econômica e social e
que alterasse as normas que presidiam o processo de acumulação e as relações
sociais dele decorrentes (SANTOS, 1979, 67).

Desse cenário, emerge o primeiro período destacado por Wanderley


G. dos Santos, qual seja o pós-Revolução de 30, caracterizado como de “ex-
tensão regulada da cidadania”. O autor inicia seu argumento, ressaltando que
qualquer que tenha sido o motivo responsável pela ascensão da nova elite
governamental no pós-30, seu surgimento foi pautado pela acumulação e pela
diferenciação (industrial) da estrutura econômica do país, que conviveu com
a proteção ao setor cafeeiro, isto é, ao lado da política tradicional agrícola
(SANTOS, 1979, 67). Tornava-se necessário, portanto, resolver a questão
econômica, representada pela diferenciação industrial, na medida em que ape-
nas a dinâmica laissez-fairiana não garantira, conforme demonstrava a expe-
riência da década anterior (1920), os resultados esperados, em termos de de-
senvolvimento e crescimento, ou seja, “o Estado deveria intervir na ordem da
acumulação e reestruturá-la, criando as condições para que se processasse tão
rapidamente quanto a estrutura dos recursos permitisse” (SANTOS, 1979,
67).
Como bem observa Wanderley G. dos Santos, é a partir de 1930 que
as inovações mais importantes foram, realmente, introduzidas, o que resultou
em uma profunda reorganização da esfera da acumulação. Tais mudanças fo-
ram responsáveis por embutir “raízes na ordem social brasileira com reper-
cussões na cultura cívica do país e até mesmo nos conceitos e preconceitos
das análises sociais”, caracterizando a trajetória dessa reorganização do pro-
cesso acumulativo, em termos de uma cidadania regulada, pois

o conceito-chave que permite entender a política econômico-social pós-30,


assim como fazer a passagem da esfera da acumulação para a esfera da equidade,
é o conceito de cidadania, implícito na prática política do governo revolucionário,
e que tal conceito poderia ser descrito como o de cidadania regulada, (...) cujas
raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema

1929: “Façamos a revolução [pelo voto] antes que o povo a faça [pela violência]”
(WEFFORT, 2003, 13).

74
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação


ocupacional é definido por norma legal (SANTOS, 1979, 68).

Assim, passavam a ter status de cidadãos, não todos os membros da


comunidade. Mas sim, aqueles que se encontravam amparados por qualquer
uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei, ou seja, a “extensão da
cidadania é conferida via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações
e por meio da ampliação do leque de direitos associados às profissões já re-
gulamentadas” (SANTOS, 1979, 68). A partir daí, a cidadania revelou seu per-
feito acoplamento com a inserção social por meio do mercado [formal] de
trabalho (i.e., com as profissões regulamentadas) e os direitos do cidadão pas-
saram a ser, desde essa época, restritos ao conjunto de direitos inerentes ao
lugar ocupado pelo trabalhador no processo produtivo, se reconhecido por
lei. Em contrapartida, pré-cidadãos seriam todos aqueles que a lei desconhece,
ou seja, os trabalhadores rurais e os trabalhadores urbanos com ocupações
não reguladas por lei (SANTOS, 1979, 68).
Outra característica importante, que igualmente representa uma he-
rança desse momento, no que se refere à associação entre cidadania e ocupa-
ção, capaz de revelar a perversa lógica ambivalente da exclusão social, foi a
posterior ligação estabelecida entre a definição (e todo seu potencial ideoló-
gico) empregada aos conceitos de marginalidade e de mercado informal de
trabalho, cujas consequências foram representativas não só para os desem-
pregados, os subempregados e os empregados instáveis, como também para
todos aqueles cujas ocupações, mesmo que regulares e estáveis, não tivessem
passado pelo processo de regulação (SANTOS, 1979, 68).
Uma perfeita representação da cruel imbricação entre cidadania e
participação no mercado [formal] de trabalho, estabelecida a partir do mo-
mento em que a CLT passou a ter o papel de agente garantidor do exercício
da cidadania, extrai-se do texto impresso nas carteiras de trabalho confeccio-
nadas nesse período, de autoria de Alexandre Marcondes Filho, ministro do
Trabalho, Indústria e Comércio no governo de Vargas, durante o período de
1941 a 1945, como destaca Ângela de Castro Gomes, ao analisar o fenômeno
do trabalhismo no contexto brasileiro:

A CARTEIRA PROFISSIONAL: por menos que pareça e por mais trabalho


que dê ao interessado, a carteira profissional é um documento indispensável à

75
Carla Appollinario de Castro

proteção do trabalhador. Elemento de qualificação civil e de habilitação profissi-


onal, a carteira representa também título originário para a colocação, para a ins-
crição sindical e, ainda, um instrumento prático do contrato individual de traba-
lho. A carteira pelos lançamentos que recebe, configura a história de uma vida.
Quem a examina, logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou ver-
sátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não encontrou a própria vocação; se
andou de fábrica em fábrica, como uma abelha, ou permaneceu no mesmo esta-
belecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padrão de honra. Pode
ser uma advertência (GOMES, 1988, 255).

Ao analisar a instituição da Carteira de Trabalho e Previdência Social


(CTPS), criada em 1932 e sua importância naquele momento, Wanderley G.
dos Santos ressalta o quanto ela foi caracterizada não somente como
“evidência jurídica fundamental para o gozo de todos os direitos trabalhistas”,
mas, sobretudo, como uma verdadeira “certidão de nascimento cívico”
(SANTOS, 1979, 69), uma vez que nela era fixada a profissão do trabalhador,
restando garantido, portanto, o status de cidadão. A partir desse momento9,
a cidadania regulada (e todos os seus benefícios) passou a ocupar o papel de
dinâmica oficial da reestruturação social implantada pelo Estado, definida por
três parâmetros, quais sejam: i) a regulamentação das profissões, ii) a carteira
profissional; e iii) o sindicato público (reconhecido pelo Estado), com
repercussão direta não só na esfera social, como também na previdenciária.
Portanto, “se era certo que o Estado devia satisfação aos cidadãos, era este
mesmo Estado quem definia quem era e quem não era cidadão” (SANTOS,
1979, 70).

9 O mesmo período também foi analisado por José Murilo de Carvalho, que igualmente

ressaltou a importância da Era Vargas (a “Era dos Direitos Sociais”), especialmente, no que
diz respeito à proteção social e, consequentemente, o quanto o projeto de cidadania foi bas-
tante enfatizado a partir da integração social pelo trabalho, apesar de ter sido pouco verificá-
vel na prática. Entretanto, o historiador percorre caminho bem distinto do adotado por Wan-
derley G. dos Santos, e analisa a cidadania no Brasil, utilizando o modelo analítico e paradig-
mático proposto por Marshall. Sua conclusão é no sentido de contextualizar o processo de
delineamento histórico de direitos como uma “estadania”, em contraposição, à cidadania, na
medida em que o período exigiu uma orientação social mais voltada para o Estado do que
para a representação política. Além disso, o mesmo autor ressalta ainda que a cronologia e
lógica sequencial das dimensões de direitos, proposta por Marshall, definidoras do status de
cidadania, no contexto brasileiro, teria sido invertida. Assim, de acordo com Carvalho, veri-
fica-se que, no Brasil, a sequência foi marcada, sucessivamente, pelos direitos sociais (acom-
panhados da supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis), seguidos dos di-
reitos civis e, por fim, dos direitos políticos (CARVALHO, 2001, 219-221).

76
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Em seu balanço final, Wanderley G. dos Santos, conclui,


considerando que do laissez-fair repressivo (adotado durante a República
Velha) resultou um período caracterizado pelo destaque a três movimentos: a
diferenciação da estrutura produtiva, a acumulação industrial e a
regulamentação estatal, colocados em prática ao mesmo tempo. E destaca que
ambos os períodos convergiram para um único fim, por meio da dinâmica
impressa (e não reconhecida, por óbvio), em termos, de uma cidadania que
era regulada, mas que tornava possível a administração, simultânea, de todas
as questões decorrentes do processo de acumulação e da equidade, necessária
naquele contexto marcado, primeiro, por escassez aguda e, depois, crônica de
recursos (SANTOS, 1979, 71).
O segundo período destacado por Wanderley G. dos Santos (1979)
corresponde ao interregno entre 1945-1964, caracterizado, pelo autor, por
uma dinâmica de “burocracia e política [porém] na ordem democrática
limitada”, cujo desenvolvimento do sistema econômico brasileiro foi
estabelecido a partir de um contexto bem distinto daquele que marcou os
anos 30, ou seja, mudanças importantes provocaram alterações na forma de
compreensão do jogo social, a partir do aprofundamento da especialização
decorrente da divisão social do trabalho, com impacto na estrutura
ocupacional e de escassez.
As principais consequências foram que, se, por um lado, os
movimentos migratórios, verificados nesse período, para os grandes centros
urbanos, aceleraram o processo de urbanização, favorecendo o processo
acumulativo, por outro lado, isso também acelerou o agravamento das
questões sociais básicas, decorrentes da dinâmica vertiginosa de
industrialização e urbanização, em especial, no que se refere a saneamento,
habitação e saúde pública. Além disso, ao mesmo tempo, verificou-se um
crescimento expressivo do exército industrial de mão-de-obra, bem como do
número de associações sindicais que, embora contidas pelo autoritarismo
político, possuíam bastante disposição para o debate político.
Mas, apesar desse contexto marcado por profundas inquietações
econômicas, administrativas, políticas e sociais, decorrentes das inovações
recentes, no qual tudo era novo (as ideias, os recursos e a estrutura básica do
país), “o preço político pago foi a institucionalização de uma ordem
semicompetitiva, quer em termos políticos, quer em termos econômicos, quer
em termos sociais”, pois o Estado passou a regular “quase tudo, ou tudo,

77
Carla Appollinario de Castro

sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que a elite considerasse


apropriados” (SANTOS, 1979, 72-73), ou seja, o Estado legitimava-se cada
vez que atuava na posição de agente regulador dos conflitos sociais, mas, ao
mesmo tempo, pautava sua atuação apenas pelos parâmetros da sobrevivênvia
mínima da comunidade, resultando em uma profunda frustração na
expectativa das classes trabalhadoras quanto a sua participação mais efetiva
no consumo dos bens disponíveis.
Para conter a turbulência decorrente da maior participação dos ato-
res sociais, que àquela altura já estavam organizados e mais apegados ao de-
bate político (democrático), associada à restrita efetividade do Estado na re-
gulação social e sua incapacidade de alocar mais recursos, foi instaurado
(1963-1964) o regime civil-militar, com vistas à reformulação das instâncias
pelas quais se desenvolviam a acumulação e a distribuição de renda, que de
forma bastante autoritária e repressora logo se revelou apto a produzir o es-
tancamento do progresso das conquistas sociais e políticas (BOITO
JÚNIOR, 2002)10.
Nossa análise insere-se no debate sobre a cidadania, considerando
que a perfeita caracterização realizada por Wanderley G. dos Santos do binô-
mio cidadania–trabalho, em termos de uma cidadania regulada, assim como
as profundas consequências para a questão social resultantes desse período,
foram responsáveis por agravar ainda mais o processo histórico de exclusão
social no contexto brasileiro. Sustentamos que a contribuição do autor per-
manece atual, mesmo em outro contexto histórico e econômico, uma vez que
assistimos o resgate da engenharia social por ela apontada, sendo realizado
por nosso Estado atual.
Por isso, ao mesmo tempo, acreditamos ser necessário atualizar as
consequências dessa imbricação, tomando como base uma característica que
não somente permeou todo o desenvolvimento econômico brasileiro, mas
que também se agravou a partir da ascensão do pensamento neoliberal, con-
sistente precarização do emprego formal provocada pela total ou parcial inob-
servância das condições dignas de trabalho.

10 É interessante notar, no que diz respeito à Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943,

que este sistema de proteção e organização (corporativa) dos trabalhadores, instituído há sete
décadas, foi capaz de sobreviver a diversos regimes políticos e econômicos desde sua criação,
sobrevivendo até mesmo ao golpe militar de 1964 e chegando ao início dos anos 1990 prati-
camente intacto, vindo a sofrer profundas reformas somente no neoliberalismo, como res-
salta Boito Jr. (BOITO JÚNIOR, 2002).

78
Qual o futuro da sexualidade no direito?

No atual cenário, a situação das trabalhadoras e dos trabalhadores


LGBTs é ainda mais dramática, uma vez que aliamos, em nosso contexto,
altas taxas de informalidade11 com o desemprego estrutural12, típico do neoli-
beralismo.
Também a criação de novos postos de trabalho e a retomada do
emprego formal, ambas verificadas no início dos anos 2000 e anteriores à
atual crise econômica, são fatores que não podem ser comemorados, pois
como mostra Marcio Pochmann, houve um aumento dos empregos formais.
No entanto, esse aumento se dá na expansão do setor de serviços13, respon-
sável por criar “nove em cada grupo de dez novas ocupações com remunera-
ção de até 1,5 salário mínimo mensal” (POCHMANN, 2012, 10). Ou seja,
temos um universo não negligenciável de trabalhadores submetidos a ganhos
salariais inferiores a R$ 1.320,00 (um mil, trezentos e vinte reais), conside-
rando o valor do salário mínimo em vigor, a partir de 1º de janeiro de 2016,
de R$ 880,00 (oitocentos e oitenta reais). Como pode ser facilmente obser-
vado a partir do valor do atual salário mínimo, não é possível afirmar que ele
possa ser considerado como efetivo garantidor de um padrão de vida compa-
tível com a cidadania substantiva. Nesse sentido, é interessante notar a dispa-
ridade do valor atualmente previsto para aquele que é apontado pelo DIEESE
(2016) como indispensável para garantir todas as despesas previstas no artigo
7º, IV, da Constituição Federal, “capaz de atender às suas necessidades vitais
básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Atualmente, o valor apon-
tado como necessário é de R$ 4.013,08 (referente ao mês de setembro/2016),
correspondente a 4,56 a mais do que o atual valor fixado a título de salário
mínimo nacional.

11 Em 2014, último ano de levantamento da informalidade, realizado pelo IBGE (2016),

este índice estava em 47,3% da População Economicamente Ativa. O Grau de Informalidade


– Definição I é alcançado por meio da seguinte divisão: (empregados sem carteira + traba-
lhadores por conta própria) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + traba-
lhadores por conta própria). A elaboração é do Disoc/IPEA. Os dados foram atualizados
em 17/11/2016.
12 De acordo com o IBGE (2016), o desemprego (em setembro de 2016, um mês antes da

data de fechamento do material para o debate) ficou em 11,3% da população brasileira em


idade economicamente ativa. (Disoc/IPEA – IBGE).
13 Convém salientar que o setor de serviços é o que apresenta piores remunerações e maior

grau de rotatividade dos trabalhadores.

79
Carla Appollinario de Castro

Além da insuficiência do valor, como ressaltado por Pochmann, esta


novidade resulta, em sentido mais amplo, em desvalorização do trabalho e,
consequentemente, na legitimação da redução do custo geral médio do traba-
lho, materializada no “contingente de trabalhadores com rendimento mensal
de até 1,5 salário mínimo, que, em 2009, já representava 47,8% da população
ocupada” (POCHMANN, 2012, 28).
Além disso, não podemos deixar de pontuar que outro fato que con-
tribui diretamente para o agravamento da questão social brasileira, além do
alto grau de informalidade, do desemprego crônico e da exclusão de parcelas
inteiras de trabalhadores e trabalhadoras (como ocorre com a população
LGBTT), refere-se ao fato de que os contratos de trabalho atuais são realiza-
dos sob o arcabouço jurídico-legal que já contempla as formas precárias e
flexibilizadas de relações de trabalho, introduzidas na legislação social, a partir
dos anos 1990, isto é, da adoção do padrão de economia neoliberal, que pro-
moveu a flexibilização da jornada de trabalho, das formas de remuneração, de
contratação; da alocação do trabalho (terceirização) e das formas de resolução
dos conflitos (KREIN, 2003 e CASTRO, 2010).
Todo esse processo faz com que o atual panorama de exclusão social
da comunidade LGBTT alcance contornos de um verdadeiro drama social,
quando analisado a partir da inserção no mercado formal de trabalho. Isso
porque eles enfrentam, com frequência, como primeiro obstáculo, o direito
ao emprego e, depois, uma luta incessante contra obstáculos já superados pela
população heterossexual com maior acesso aos direitos fundamentais. Esta-
mos nos referindo ao pleno direito de uso do nome social, o direito de ir ao
banheiro, a autonomia da liberdade sexual, enfim, direitos inerentes aos de-
mais trabalhadores, garantidos no meio ambiente de trabalho, capazes de con-
figurar um trabalho minimamente digno, porém, comumente, violados
quando se trata de trabalhadores e trabalhadoras LGBTT, como veremos a
seguir.

Sobre quando o Judiciário trabalhista encontra


o trabalho do segmento LGBTT

Para problematizar a atuação do Poder Judiciário trabalhista com re-


lação à população LGBTT, selecionamos 05 (cinco) temas inerentes às possí-
veis repercussões das questões relacionadas às variadas formas de vivência da

80
Qual o futuro da sexualidade no direito?

sexualidade no mercado de trabalho. Tais temas foram adotados como pala-


vras-chave em nossa busca, sendo eles: lésbica, gay, bissexual, travesti e tran-
sexual e suas expressões variantes.
Dessa forma, em pesquisa realizada no site do TST, foram encon-
trados os seguintes enfrentamentos a estas questões decorrentes de conflitos
trabalhistas:

Tabela 1: julgados do TST envolvendo gênero e sexualidade

PALAVRA-CHAVE QUANTIDADE DE
JULGADOS
LÉSBICA 03
LESBIANISMO 0
GAY 25
BISSEXUAL 0
BISSEXUALIDADE 0
TRAVESTI 08
TRANSEXUAL 01
Elaboração própria, a partir de TST (2016)

A seguir são apresentados os seguintes casos, selecionados a partir


do enfrentamento das questões inerentes à temática da sexualidade resultantes
da relação de trabalho14 ou de emprego15 e as diversas formas de reação do
Tribunal Superior do Trabalho:

14 Consideramos como relação de trabalho toda e qualquer atividade produtiva humana.


15 Já a relação de emprego exige a presença dos requisitos/elementos previstos nos Arts.
2º e 3º, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a saber: subordinação, habitu-
alidade, onerosidade, pessoalidade, que o empregado seja uma pessoa física e alteridade.

81
Carla Appollinario de Castro

Quadro 1: Casos envolvendo relações de trabalho/emprego e sexualidade no TST


ESTUDO NÚMERO
DE DO DECISÃO
CASO JULGADO
RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO.
ASSÉDIO SEXUAL. O TRT, com base no conjunto
probatório, entendeu configurado o assédio sexual in-
vocado na exordial, razão pela qual manteve a condena-
ção da empresa ao pagamento de indenização fixada em
R$ 25.000,00. Reconheceu o constrangimento com o
intuito de obter vantagem sexual praticada pelo superior
hierárquico da autora. Para que esta Corte Superior pu-
desse chegar a conclusão contrária, seria necessário o
reexame das provas, o que é vedado nesta instância ex-
traordinária, a teor da Súmula n° 126 do TST. Recurso
de revista não conhecido.
PROCESSO Nº
“que, questionada sobre quando teriam começados os
TST-RR-21724-
fatos narrados na petição inicial, a depoente refere que
44.2013.5.04.0333 já desde o início os colegas referiam-se a ela como
tendo um caso com Marcelo [que era o Chefe], fa-
(Relator Desem-
ziam piadinhas dizendo que a depoente seria a "fi-
CASO 1 bargador: lial" e a esposa dele a "matriz"; que a depoente re-
fere que a primeira vez em que ficou sabendo disso, que
Alexandre Agra
os colegas a viam dessa forma, foi quando Anete lhe
Belmonte, 3ª falou no almoço que achavam que Marcelo já a conhecia
de antes, que havia lhe colocado lá em razão da relação
Turma, Julga-
pessoal com ele; que mencionou também que Marcelo
mento: comentava isso para eles, referindo-se à depoente como
"filial"; que a depoente nunca teve nenhuma relação
15/06/2016).
mais íntima com Marcelo; que a depoente apenas pediu
para que parassem de fazer piadinhas, ao que foi aten-
dida; que não chegou a se queixar a Marcelo ou a outra
chefia, uma vez que temeu perder seu emprego; que
Marcelo colocou a mesa de trabalho próximo à da de-
poente, ao lado, referindo que, por vezes, virava para a
depoente e ficava a encarando fixamente; que dizia para
a depoente que ela seria motivo da sua separação; que
também chegou a olhar para a depoente colocando a
mão por dentro da calça, indicando que segurava a ge-
nitália; que Marcelo ficava impedindo a saída da depo-
ente da sala, de modo a tocá-la, referindo a depoente
que a gota d'água aconteceu quando Marcelo se aproxi-
mou da depoente para ver um documento no seu com-
putador e ficou ao lado da depoente, tocando o seu seio,
no momento de tocar o teclado; que, após a reação da
depoente, Marcelo ficou muito irritado e a humilhou na
frente dos colegas, chamando-a de incompetente; que a
depoente refere que Marcelo não precisava ter vindo
olhar o documento junto a depoente, uma vez que ela
já havia lhe enviado e poderia olhar na sua própria mesa;
que, depois desse último fato, a depoente não conseguiu

82
Qual o futuro da sexualidade no direito?

mais ir trabalhar; que várias vezes Marcelo ficava to-


cando no ombro da depoente, com a desculpa de, por
exemplo, mexer no ar condicionado; que, quando do
último fato antes narrado, estavam todos os colegas que
trabalham na sala; que os outros setores tinham visibili-
dade da sala de trabalho, uma vez que era compensado
até uma parte, próximo da metade, e depois era envi-
draçado; que a mesa da depoente ficava de costas para
a parede, distando cerca de um metro; que Marcelo to-
mava as atitudes antes narradas na frente dos demais
colegas; que refere que não respeitava mais a depoente;
que, com relação a Anete, Marcelo não tinha a
mesma conduta, refere que costumava xingar mais
e fazia piadinhas quando ela não estava a respeito
de ser lésbica; que a depoente tem conhecimento que
outras colegas de outros setores haviam relatado que
Marcelo tinha um jeito muito abusado de tratar; que a
depoente falou, por exemplo, com Luana, Bárbara e
Ana, que relataram que Marcelo fazia isso com to-
das, por exemplo, fazia um barulho com a boca
quando passava por elas, indicando que seriam
"gostosas"; que, a vista das fotos juntadas com a
defesa, a depoente confirma que se cuidava do seu
local de trabalho, apenas narrando que a disposi-
ção das mesas não ficava da maneira como fotogra-
fada; que, no último dia de trabalho, a depoente
chegou a se queixar ao diretor, Eurico, que lhe res-
pondeu que deveria procurar compreender Mar-
celo, uma vez que seria uma pessoa carente, que
precisava ter contato com as pessoas. Nada mais
disse.” (grifos nossos)
RECURSO DE REVISTA. HORAS EXTRAS.
INVALIDADE DO BANCO DE HORAS. O co-
nhecimento do Recurso encontra óbice na Súmula 126
do TST, pois eventual adoção de entendimento em sen-
tido contrário ao adotado pelo Tribunal Regional impli-
caria o reexame de matéria fático-probatória.
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.
ASSÉDIO MORAL E SEXUAL. O Tribunal Regional
PROCESSO Nº
consignou estar demonstrada a ocorrência do dano mo-
TST-RR-143- ral à reclamante e do nexo causal entre o dano e a con-
duta culposa da reclamada, sendo devida a indenização
74.2012.5.04.0731
respectiva. Incide na espécie a Súmula 126 desta Corte.
VALOR DA INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. No tocante ao quantum, segundo se depre-
(Relator Desem-
ende do acórdão recorrido, o juízo fixou o valor da in-
CASO 2 bargador: denização considerando as peculiaridades do caso, obe-
decendo os critérios da proporcionalidade e da razoabi-
João Batista
lidade. Os arestos cotejados são inespecíficos, nos ter-
Brito Pereira, 5ª mos da Súmula 296, item I, do TST. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. A assistência judiciária na Justiça
do Trabalho rege-se pelas disposições contidas na Lei
5.584/70, nos termos de seu art. 14. A insuficiência de

83
Carla Appollinario de Castro

Turma, Julga- recursos, por si só, não justifica a condenação ao paga-


mento de honorários advocatícios, que, no âmbito do
mento:
processo do trabalho, se revertem para o sindicato da
11/05/2016). categoria do empregado (Lei 5.584/70, art. 16). Assim,
o Tribunal Regional, ao deferir o pedido de honorários
assistenciais, considerando apenas a hipossuficiência da
parte, contrariou as Súmulas 219 e 329 do TST.

“No caso, relata a autora na petição inicial que o ge-


rente da filial em que trabalhava a assediava moral
e sexualmente, com insinuações do tipo "essa aí
não gosta da coisa" [fazendo alusão ao fato de a
autora ser lésbica], "essa aí tem namorada", "que
tinha comprado um apartamento porque ganhava
dinheiro fazendo programa", chegando ao ponto
de mostrar-lhe uma nota de R$100,00 e perguntar
"se queria para o motel colina".” (grifos nossos)
PROCESSO Nº RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA
RECLAMADA.
TST-RR-
CASO 3 3635200- DANO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. ÔNUS
DA PROVA. A caracterização do dano moral, em re-
40.2009.5.09.0013
gra, prescinde da comprovação objetiva de dor, sofri-
mento ou abalo psicológico, especialmente diante da
impossibilidade de sua comprovação material. Consi-
(Relator Desem-
dera-se, assim, a ocorrência do dano in re ipsa, sendo
bargador: necessária apenas a comprovação do fato lesivo, o qual,
por si só, representa agressão aos direitos da personali-
Marcelo Lamego
dade e, por conseguinte, dano moral à vítima. Recurso
Pertence, 1ª de Revista não conhecido.
Turma, Julga-
“Nesse sentido a testemunha Miraci afirma que o
mento: gestor tratava o reclamante de forma diferenciada
porque era gay.” (grifos nossos)
13/04/2016).
RECURSO DE REVISTA - INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS - ASSÉDIO MORAL - OFENSAS
PROFERIDAS SISTEMATICAMENTE POR
COLEGAS DE TRABALHO - OMISSÃO DO
EMPREGADOR - CARACTERIZAÇÃO. A Corte re-
PROCESSO Nº
gional concluiu caracterizado o assédio moral em face
TST-RR-143- do sofrimento psicológico experimentado pelo autor
em decorrência do tratamento depreciativo e pejorativo
74.2012.5.04.0731
que lhe era dispensado pelos colegas de trabalho, res-
paldado pela conduta omissiva do superior hierárquico.
A conclusão regional baseou-se na prova colhida, de
CASO 4 (Relator Desem-
forma que, para alcançar a conclusão a que pretende a
bargador: reclamada, no sentido de que o reclamante não sofreu
ofensa a direitos personalíssimos em seu ambiente la-
João Batista
boral ou não efetuou reclamações ou queixas sobre os
Brito Pereira, 5ª insultos sofridos, seria necessário o revolvimento do
acervo probatório, o que é vedado nesta Instância, nos

84
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Turma, Julga- termos do entendimento consubstanciado na Súmula nº


126 do TST. Recurso de revista não conhecido.
mento:
11/05/2016). “Assume, neste contexto, especial relevância a afir-
mação de Valdinei S. que, em acareação, afirmou
que "a memória de Everson é relativa e omite ou-
tros fatos que ocorreram". Também confirmou, em
depoimento, que os empregados Alexsandro C.,
José Aparecido da S. e outro de nome Diego, fa-
ziam brincadeiras ofensivas dizendo que o Autor
era seu "maridão" (item 2) e que "era gay porque
andava com gay" (item 8), confirmando, igual-
mente, que o Reclamante queixava-se das ofensas
junto ao superior hierárquico (Everson), que, por
sua vez, nenhuma providência tomou (itens 11 e
13).” (grifos nossos)
NULIDADE DA DECISÃO DENEGATÓRIA
POR CERCEAMENTO DO DIREITO DE
DEFESA. VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO,
DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL. COMPETÊNCIA.
PROCESSO Nº
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO.
TST-AIRR- EXAME DA ADMISSIBILIDADE DE
RECURSO DE REVISTA. Os Tribunais Regionais
3603-
do Trabalho são competentes para dar ou negar segui-
CASO 5 27.2013.5.02.0202 mento a Recurso de Revista e disso não resulta prejuízo
à parte porque esse juízo prévio de admissibilidade do
recurso está submetido a reexame pelo Colendo Tribu-
(Relatora Desem- nal Superior do Trabalho, sendo certo que a decisão não
vincula esta Instância Superior. Ausente a alegada nuli-
bargadora:
dade por cerceamento do direito de defesa, violação do
Luiza Lomba, 1ª contraditório, da ampla defesa e do devido processo le-
gal. Agravo de Instrumento não provido.
Turma, Julga-
mento: “Aduziu o autor na exordial que (fls.4-verso): ‘(...) O
Autor passou a ser ofendido pelo Sr Jonhy, outro
16/06/2015).
colaborador das reclamadas, que o discriminava
por sua opção sexual, com alcunhas depreciativas
como "menininha" e "viadinho", em frente a to-
dos os outros colaboradores da mesma operação,
que emendavam com piadas e risadas.(...)"
Quanto a essa circunstância narrada na inicial, o
autor trouxe uma testemunha presencial, Sr. Luís,
o qual informou em juízo (fl. 20-verso): ‘...já presen-
ciou o Sr. Jhony chamando o reclamante de 'meni-
ninha', 'viadinho' e 'gay', o que ocorria com fre-
quência; o reclamante se sentia 'super constrangi-
do';...’” (grifos nossos)
DANO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. ÔNUS
DA PROVA. A caracterização do dano moral, em re-
gra, prescinde da comprovação objetiva de dor, sofri-
mento ou abalo psicológico, especialmente diante da

85
Carla Appollinario de Castro

impossibilidade de sua comprovação material. Consi-


dera-se, assim, a ocorrência do dano in re ipsa, sendo ne-
cessária apenas a comprovação do fato lesivo, o qual,
por si só, representa agressão aos direitos da personali-
dade e, por conseguinte, dano moral à vítima. Recurso
de Revista não conhecido.

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.


FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO.
TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO EM
DECORRÊNCIA DA ORIENTAÇÃO SEXUAL
E PUBLICIZAÇÃO DA CONDIÇÃO DE
PROCESSO Nº PORTADOR DO VÍRUS HIV. 1. Diante da ausência
de critérios objetivos norteando a fixação do quantum
TST-RR-
devido a título de indenização por danos morais, cabe
CASO 6 3635200- ao julgador arbitrá-lo de forma equitativa, pautando-se
pelos princípios da razoabilidade e da proporcionali-
40.2009.5.09.0013
dade, bem como pelas especificidades de cada caso con-
(Relator Desem- creto, tais como: a situação do ofendido, a extensão e
gravidade do dano suportado e a capacidade econômica
bargador:
do ofensor. Tem-se, de outro lado, que o exame da
Marcelo Lamego prova produzida nos autos é atribuição exclusiva das
instâncias ordinárias, cujo pronunciamento, nesse as-
Pertence, 1ª
pecto, é soberano. Com efeito, a proximidade do julga-
Turma, Julga- dor, em sede ordinária, com a realidade cotidiana em
que contextualizada a controvérsia a ser dirimida habi-
mento:
lita-o a equacionar o litígio com maior precisão, sobre-
13/04/2016). tudo no que diz respeito à aferição de elementos de fato
sujeitos a avaliação subjetiva, necessária à estipulação do
valor da indenização. Conclui-se, num tal contexto, que
não cabe a esta instância superior, em regra, rever a va-
loração emanada das instâncias ordinárias em relação ao
montante arbitrado a título de indenização por danos
morais, para o que se faria necessário o reexame dos
elementos de fato e das provas constantes dos autos.
Excepcionam-se, todavia, de tal regra as hipóteses em
que o quantum indenizatório se revele extremamente ir-
risório ou nitidamente exagerado, denotando manifesta
inobservância aos princípios da razoabilidade e da pro-
porcionalidade, aferível de plano, sem necessidade de
incursão na prova. 2. No caso dos autos, o egrégio Tri-
bunal Regional, ao reduzir o valor da indenização de-
vida por danos morais para R$ 10.000,00 (dez mil reais),
levou em consideração a culpa patronal, a extensão do
dano, bem como o caráter pedagógico e repressor da
medida. Resultam, assim, observados os critérios da
proporcionalidade e da razoabilidade. Hipótese em que
não se cogita na revisão do valor da condenação, para o
que se faria necessário rever os critérios subjetivos que
levaram o julgador à conclusão ora combatida, à luz das
circunstâncias de fato reveladas nos autos. 3. Recurso
de Revista não conhecido. (grifos nossos)

86
Qual o futuro da sexualidade no direito?

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE


REVISTA. 1. SUSPEIÇÃO DE TESTEMUNHA.
AÇÃO CONTRA O MESMO RECLAMADO.
PROCESSO Nº VÍNCULO EMPREGATÍCIO.
RECONHECIMENTO. A decisão regional, quanto à
CASO 7 TST-AIRR-
suspeição de testemunha, está em sintonia com a itera-
1606- tiva, notória e atual jurisprudência desta Corte, consubs-
tanciada na Súmula nº 357. Por outro lado, o Regional
16.2010.5.10.0000
deixou consignado que, pela prova oral colhida, resta-
ram evidenciados todos os elementos caracterizadores
da relação empregatícia previstos nos artigos 2º e 3º da
CLT. Assim, não há falar em violação do artigo 3º da
Norma Consolidada. 2. INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS. O Regional manteve o deferimento
da indenização por danos morais, fulcrando-se no con-
junto fático-probatório, o qual evidenciou que o recla-
mado se referia à pessoa do reclamante com expressões
que afrontavam a sua honra e a sua moral. Dessa forma,
(Relatora Desem- qualquer rediscussão acerca do tema, para adoção de
entendimento contrário, implicaria, inevitavelmente, re-
bargadora:
exame dos fatos e da prova produzida nos autos, o que
Dora Maria da é vedado nesta fase recursal, a teor da Súmula 126 desta
Corte. Agravo de instrumento conhecido e não pro-
Costa, 8ª Turma,
vido.
Julgamento:
“'Depoimento pessoal do (a) reclamante: "[...] que
17/11/2010).
desde o início presenciou comentários ou ficou sa-
bendo pela Sra. Maria ª que as demais pessoas que
trabalhavam no escritório o chamavam de "viado,
gay", tendo sido inclusive inquirido pelo próprio
Dr. Raul C., depois do retorno de uma viagem à
São Paulo, se havia comparecido à parada gay; que
os comentários surgiram principalmente em razão de
ter se tornado um dos melhores amigos da Sra. Maria
Abadia e não ter mantido com ela qualquer tipo relaci-
onamento; que os comentários não se restringiam
ao âmbito do escritório, sendo também feitos em
uma cantina e em um salão do prédio aonde funci-
onava o escritório; [...]." Nada mais.” (grifos nossos)
PROSTITUIÇÃO - ATIVIDADES DE GARÇOM,
CAIXA E FAXINEIRO - LICITUDE DO
OBJETO. O Tribunal Regional, após a análise dos ele-
mentos probatórios dos autos, registrou que ficou ca-
racterizado o vínculo empregatício entre as partes, por-
quanto preenchidos os requisitos insertos nos artigos 2º
e 3º da CLT, porquanto o reclamante, na casa de pros-
tituição, desenvolvia atividades de caixa, garçom e faxi-
neiro. Nessa esteira, verifica-se que a controvérsia
acerca do vínculo empregatício está assente no conjunto
fático-probatório, sendo seu reexame vedado em fase
extraordinária, consoante o enunciado na Súmula 126
do TST. Agravo a que se nega provimento.

87
Carla Appollinario de Castro

TST-AIRR-955- “Uma casa noturna, que possui diversos quartos, nos


quais residem garotas de programa, inclusive o autor,
43.2010.5.10.0821
travesti muito assediada e com grande número de clien-
CASO 8
tes, tanto que no local se vestia e se comportava como
(Relatora Desem- uma mulher e se dava à prática da prostituição mediante
pagamento”.
bargadora Convo-
Reivindica o reconhecimento do vínculo de emprego de
cada: Maria das CAIXA, “GARÇOM” (GARÇONETE) e
“FAXINEIRO” (FAXINEIRA) !!!
Graças Silvany
A empresa alegou não ser possível o reconhecimento
Dourado Laran- do vínculo de emprego dada a atividade ilícita desenvol-
vida no estabelecimento - casa de prostituição -, ainda
jeira, 2ª Turma,
que o reclamante também tenha desempenhado as fun-
DEJT ções de garçom e de caixa.
Afirma que “o reclamante” se envolvia nas atividades
31/05/2013).
ilícitas do estabelecimento.
“No caso, o Tribunal Regional, após a análise dos
elementos probatórios dos autos consignou que o
reclamante, na casa de prostituição, desenvolvia
atividades de caixa, garçom e faxineiro. Concluiu
que ficou caracterizado o vínculo empregatício en-
tre as partes, porquanto preenchidos os requisitos
insertos nos artigos 2º e 3º da CLT, porquanto,
ainda que o reclamante tenha desempenhado as
suas funções em prostíbulo, a ilicitude da atividade
de prostituição ali desenvolvida não afetava as líci-
tas atividades de caixa, garçom e faxineiro por ele
exercidas durante o período em que prestou servi-
ços para a reclamada”. (grifos nossos)
PROCESSO Nº AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE
REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS
TST-RR-1574-
MORAIS. RESTRIÇÃO AO USO DOS
18.2012.5.02.0047 BANHEIROS. Em face da possível violação do art. 5º,
X, da CF, dá-se provimento ao recurso de revista a fim
CASO 9
de destrancar o recurso de revista. Agravo de instru-
(Relatora Desem-
mento conhecido e provido. B) RECURSO DE
bargadora: Dora REVISTA. 1. INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. ADOÇÃO DE ALCUNHA. Extrai-se do
Maria da Costa, 8ª
acórdão regional que a testemunha ouvida afirmou que
Turma, Julga- foi atribuído o apelido de "Robertão" à reclamante,
"porque um dia a reclamante chegou rouca". No en-
mento:
tanto, analisando o conjunto probatório, a Corte de ori-
17/06/2016). gem concluiu que o depoimento foi fraco e impreciso,
não havendo comprovação dos fatos articulados pela
parte autora. Logo, ante o delineamento fático promo-
vido pela Corte de origem, o recurso de revista encontra
óbice na Súmula nº 126/TST, uma vez que cabe ao Re-
gional, soberanamente, a valoração das provas dos au-
tos, cujo revolvimento é vedado nesta fase processual.
Recurso de revista não conhecido. 2. INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS. RESTRIÇÃO AO USO
DOS BANHEIROS. Extrai-se da decisão recorrida que

88
Qual o futuro da sexualidade no direito?

a reclamada restringia o acesso dos empregados aos ba-


nheiros na primeira e na última hora da jornada de tra-
balho. O entendimento cristalizado nesta Corte é o de
que a restrição ao uso de banheiros por parte do empre-
gador, em detrimento da satisfação das necessidades fi-
siológicas do empregado, configura lesão à sua digni-
dade e integridade, ensejando a indenização por danos
morais. Recurso de revista conhecido e provido.

“A reclamante, na inicial argumentou que ‘(...) o


supervisor FRANCISCO apelidou a reclamante de
"ROBERTON", pois alegava que a mesma tinha
a voz muito grossa (...)" e que "(...) Passados al-
guns dias o supervisor ANDRÉ também passou a
chama-la de "ROBERTON", (...)" e que o apelido
"acabou pegando, deixando-a constrangida".

‘A única testemunha da reclamante afirmou "(...)


.o sr. Francisco começou a chamar a reclamante de
"Robertão" e o apelido "pegou", sendo que isso
ocorreu porque um dia a reclamante chegou rouca
e parecia que estava com voz de travesti, mas não
sabe informar a data em que isso ocorreu; (...)’", fl. 57.’”
(grifos nossos)
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO
DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA
VIGÊNCIA DA LEI 13015/2014.
PROCESSO Nº
TERCEIRIZAÇÃO. ESTABELECIMENTO
TST-AIRR- BANCÁRIO. MANUTENÇÃO DE CARTÕES
DE CRÉDITO. ATIVIDADE MEIO.
2363-
LICITUDE. DANO MORAL. ATO
13.2012.5.03.0104 DISCRIMINATÓRIO. AUSÊNCIA DE PROVA.
CASO 10
NÃO PROVIMENTO. Não merece reforma a deci-
são agravada quando não demonstrada a violação literal
(Relator Desem-
de lei, da Constituição Federal ou a divergência jurispru-
bargador: Aloysio dencial. Agravo de instrumento não provido.
Corrêa da Veiga,
“Na inicial, alegou a reclamante que a quarta re-
6ª Turma, Julga- clamada afirmou que a mesma não era adequada
ao perfil da empresa e não tinha competência para
mento:
exercer o cargo ocupado, não lhe oferecendo uma
08/04/2015). função de gerente. Aduz que foi determinada pela
reclamada a exclusão do perfil de "travesti negro"
da empresa e, por ser negra, embora preenchidos
os requisitos necessários, não foi designada para o
exercício do cargo (item XX, f. 09112).” (grifos nos-
sos)
PROCESSO Nº AGRAVO DE INSTRUMENTO - DANOS
MORAIS - CARACTERIZAÇÃO
TST-AIRR-810-
A caracterização dos danos morais deu-se com base nas
68.2012.5.09.0651 provas dos autos, de forma que a modificação do jul-
gado demandaria o revolvimento de fatos e provas.
Óbice da Súmula nº 126 do TST.

89
Carla Appollinario de Castro

CASO 11
DANOS MORAIS - QUANTUM
INDENIZATÓRIO
A instância ordinária, ao fixar o quantum indenizatório,
pautou-se pelo princípio da razoabilidade, com atenção
aos critérios de justiça e equidade, não se justificando a
excepcional intervenção desta Corte Superior.

“Com relação aos danos morais sofridos, afirmou o


(Relator Desem- autor, na inicial, que recebia tratamento incompa-
tível com a condição de empregado, chegando ao
bargador: João
ser chamado, pelas pessoas de Salvatore, Marcelo
Pedro Silvestrin, e Valdeci de "vagabundo", "tranqueira", "burro",
"idiota", "porco" e "brasileiro de merda".”
8ª Turma, Julga-
“"Em seu depoimento a testemunha João P. L. afir-
mento: mou que trabalhou na ré de 2004 a dezembro de 2009.
Disse que já foi xingado pelo sr. Salvatore o qual
19/02/2014).
lhe disse "criolo, vou te mandar embora", tendo
sido tratado dessa maneira por aproximadamente
cinco vezes. Afirmou que o sr. Salvatore sempre fa-
lava mal de brasileiros, afirmando que os brasilei-
ros gostam de moleza e se fingem de coitados. Afir-
mou que já viu o sr. Salvatore xingar o autor no re-
feitório, não tendo o autor revidado. Disse que o
autor era chamado de "Tieta", mas não sabe quem
deu esse apelido ao autor, esclarecendo que o pró-
prio sr. Salvatore fez gozações do autor relacio-
nando o apelido "Tieta" a um travesti. Afirmou
que era comum o sr. Salvatore humilhar os empre-
gados em reunião.” (grifos nossos)

PROCESSO Nº
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO
TST-AIRR-14- DE REVISTA - NULIDADE. CERCEAMENTO
DE DEFESA. ART. 896, C, DA CLT. Nega-se pro-
84.2012.5.09.0002
vimento ao Agravo de Instrumento que não logra des-
(Relator Desem- constituir os fundamentos do despacho que denegou
seguimento ao Recurso de Revista. Agravo de Instru-
CASO 12 bargador: Márcio
mento a que se nega provimento.
Eurico Vitral
“(...) O reclamante pretendia comprovar que deixou
Amaro, 8ª Turma,
de ser contratado pela 2ª reclamada (...) em razão
Julgamento: de ser transexual, o que seria feito por meio de
CD/DVD contendo gravação de conversa telefô-
23/09/2015).
nica. ” (grifos nossos)

Elaboração própria, a partir dos julgamentos disponibilizados no site do TST.

Como foi possível perceber, a partir dos julgados acima transcritos,


o Poder Judiciário Trabalhista, de forma geral, tende a punir as empresas que

90
Qual o futuro da sexualidade no direito?

violam os direitos fundamentais do trabalhador (especialmente, os inerentes


à honra, à imagem e à moral) por meio da imposição de condenações ao pa-
gamento de indenização por dano moral, caracterizado pelo preconceito se-
xual ou sexual/racial, inclusive, decorrente do assédio moral ou sexual.
É interessante notar que esses trabalhadores e trabalhadoras – além
da exploração tradicional à qual todos os demais trabalhadores também estão
sujeitos no mercado de trabalho – ainda experimentam uma condição especí-
fica de exploração da sua força de trabalho, que é o preconceito no local de
trabalho, caracterizando, dessa forma, o que podemos denominar de “mais-
valia LGBTT”, isto é, a exploração pelo trabalho aliada às práticas vexatórias
e constrangedoras que impõem uma conduta de total sujeição do trabalhador
e da trabalhadora LGBTT às condições precárias e desumanas de trabalho
pelo temor reverencial de perder o emprego.

Considerações finais

Não podemos deixar de observar que em todos os casos envolvendo


travestis e transexuais, sem exceção, a identidade de gênero não foi reconhe-
cida e, portanto, respeitada, durante a tramitação do processo. Os nomes so-
ciais e os pronomes de tratamento adequados às formas como essas trabalha-
doras vivenciam a sua sexualidade foram totalmente ignorados em todos os
casos analisados e acima transcritos, à medida que os documentos elaborados
se referem o tempo inteiro a elas como se fossem “eles”. Entendemos, pois,
que essas decisões judiciais se constituem como sentenças transfóbicas ou
homofóbicas, à medida que, ao não reconhecerem os elementos caracteriza-
dores das distintas formas de vivência da sexualidade, apenas denotam a falta
se sensibilidade e conhecimento dos membros do Judiciário trabalhista para
lidar com essas questões.
A partir daí é possível concluir que a invisibilização social, normal-
mente contida na legislação pautada apenas pela lógica dual de gênero, que
adota o binômio homem/mulher como modelo paradigmático, também é ex-
perimentada por essas trabalhadoras no momento em que procuram o Judi-
ciário Trabalhista com o propósito de buscarem a concretização dos seus di-
reitos trabalhistas, restando configurada, portanto, sua invisibilidade judiciá-
ria.

91
Carla Appollinario de Castro

Por este motivo, entendemos ser fundamental a revisão dos manuais


de direito e dos procedimentos judiciais que apenas reproduzem essa lógica,
de forma ideológica, opressora e deslegitimante da sexualidade. Também en-
fatizamos a importância da reflexão mais detida sobre o lugar da sexualidade
no direito, uma vez que as condutas jurídicas e judiciárias possuem efeito de
realidade.
Tudo isso com a finalidade de se garantir a inclusão social plena,
representada não apenas pela inserção das trabalhadoras e dos trabalhadores
LGBTT no mercado formal de trabalho, com pleno respeito às diversas for-
mas de vivência da sexualidade, por meio do emprego digno, mas também
pelo seu reconhecimento no Judiciário Trabalhista, evitando-se, portanto, a
mesma ausência de visibilidade social normalmente praticada pela sociedade
e reproduzida pela legislação.
Assim, se por um lado, observamos que o Judiciário Trabalhista
ainda se mostra bastante conservador, por outro lado, essa é uma excelente
oportunidade para questionarmos o padrão desigual de inclusão social e o
acesso precário à cidadania substantiva pela população LGBTT a partir do
mercado formal e informal de trabalho. Isso porque a cidadania do segmento
LGBTT é bastante relativizada, sobretudo, a partir de diversas limitações im-
postas ao acesso aos direitos sociais, especialmente os civis (pela negativa do
uso do nome social e dos inúmeros obstáculos enfrentados durante o proce-
dimento de retificação do nome civil) e trabalhistas, razão pela qual este é um
debate que permanece em aberto.

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

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Carla Appollinario de Castro

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94
4
LEGISLAR PARA “MINORIAS SEXUAIS”:
DEPUTADOS DO PT E O DISCURSO SOBRE DIREITOS SEXUAIS
PARA LGBTS EM 13 ANOS DE GOVERNO

Gustavo Agnaldo de Lacerda1

O direito antecipa o futuro na medida em que se preocupa


com o que está por vir. Estar no mundo é sempre um
devir, um projeto de ação, uma vez que a ação é, invari-
avelmente, um projeto para o futuro. O passado molda e, portanto, limita a
ação que ocorre no presente. Essa ação, quando realizada, projeta um futuro,
o qual é fruto do quadro que temos no presente. Somos, então, seres limitados
no presente, projetados no futuro e presos no passado.
Quando se fala ou se escreve um manifesto, como os de Paul B. Pre-
ciado (2014) ou Donna Haraway (2009 [1985]) quer se falar ou escrever “para
o futuro”. Em outras palavras: busca-se pensar numa vanguarda, numa dian-
teira.
Nosso objetivo neste trabalho não é dar conta do futuro mediante
um manifesto, mas tão somente dirigir esforços de interpretação daquilo que
já foi realizado formalmente em relação à política sexual voltada à população
LGBT, em âmbito legislativo federal no Brasil, e contribuir, de algum modo,

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF. Estuda,

desde 2009, Novos Direitos e Movimento LGBT

95
Gustavo Agnaldo de Lacerda

para as investigações das questões emancipatórias do corpo, da sexualidade,


da raça e até mesmo da política. Para tanto, pretendemos mapear alguns con-
ceitos e argumentos inerentes à política sexual trazida à discussão nos moldes
de Gayle Rubin em 1984 no texto “Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria
Radical das Políticas da Sexualidade”.
No texto mencionado, Rubin (1984, 14) evidencia a ideia de negati-
vidade sexual, ou seja, a noção de como as culturas ocidentais consideram o
sexo uma força perigosa e destrutiva. A essa percepção, a autora chama “the
domino theory of sexual peril” (RUBIN, 1984, 14) que, em tradução livre, seria a
“teoria dominó de perigo sexual”. Dito de outra forma, atos sexuais são per-
turbados por um excesso de importância, porque há um temor de que, se
certos aspectos do sexo "ruim" fossem autorizados (seja pelo Congresso Na-
cional, seja pelas crenças religiosas) a circular em toda a linha de espaço e
tempo (ou seja, fora dos guetos como saunas, bares e parques de “pegação”
e para além dos dias de Parada LGBT, por exemplo), atos inomináveis (na
perspectiva dos congressistas fundamentalistas, como a pedofilia e o polia-
mor) se moverão também em busca dessa autorização. Tem-se, então, o que
Rubin, inspirada em Jeffrey Weeks, denominou de pânico moral:

Pânicos morais são o “momento político” do sexo, em que atitudes difusas


são canalizadas em ação política e a partir disso em mudança social. (RUBIN,
1984, 34)

Trazendo a discussão para mais próximo de nosso objeto de estudo


– política sexual LGBT2 no campo político-institucional brasileiro –, vemos,
na negação dos mandatários políticos em falar, discutir ou pautar a respeito
de direitos sexuais LGBT na Câmara dos Deputados Federais, uma retórica
fundada numa perspectiva conservadora liberal. O pânico moral é instalado e
gerido, na Câmara dos Deputados, pela bancada que foi apelidada de “BBB”3

2 A sigla LGBT se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros. O


uso do termo foi aprovado durante conferência realizada em Brasília, em 2008, e substituiu
a sigla GLS (gays, lésbicas e bissexuais), utilizada até então para representar a diversidade
sexual (SENADO FEDERAL, 2011, sem paginação). Além disso, a sigla LGBT não é cons-
tante, podendo incluir mais um T no final, para contemplar travestis e transexuais separada-
mente. Às vezes, constam outras letras, como a letra I (de intersex) e Q (de queer e questioning),
e às vezes a ordem das palavras é alterada, conforme as convicções e prioridades de quem
está utilizando a sigla.
3 As Bancadas são consideradas órgãos do Partido que definem a ação parlamentar de

acordo com as Resoluções adotadas pela instância de direção correspondente e pelas demais

96
Qual o futuro da sexualidade no direito?

(da bala, da bíblia e do boi), a qual retroalimenta o status quo de exclusões não
só de LGBTs, mas também de mulheres negras e prostitutas em relação ao
acesso a plenos direitos. Nega-se, inclusive, o direito a ter direitos
(MEDEIROS & FONSECA, 2016).

A relação da bancada ruralista com os interesses do agronegócio e a da ban-


cada da bala com a indústria armamentista podem ter pontos em comum com a
relação entre a bancada religiosa e os interesses das igrejas (no que concerne, por
exemplo, à isenção de impostos e acesso a concessões de rádio e TV). Mas a face
pública dessa atuação se define de formas distintas. A aliança bíblia-bala tem mais
sustentação “ideológica” – no sentido de que se apoia e colabora para reforçar
um discurso de que há formas desejáveis de ordem social ameaçadas. É por meio
da agenda “moral”, em que se destaca a temática da família, que parlamentares
vinculados a diferentes denominações religiosas procuram construir sua imagem
pública. A defesa da família encontra ecos no discurso da segurança, que exibe
uma sociedade ameaçada e uma oposição não apenas entre o bem e o mal, mas
entre a ordem e a desordem atribuindo, à última, componentes morais. Vem
sendo destacada em análises de conjuntura a aliança “BBB” (boi, bala e bíblia),
que inclui a bancada ruralista. Mas é importante observar que a agenda de desre-
gulamentação dos direitos trabalhistas tem atravessado essas alianças e expõe a
convergência entre a demanda por mais Estado para a criminalização e repressão
a diversos setores da população e menos Estado na regulação e garantia de direi-
tos. (BIROLI, 2016, 11-12)

Nesse sentido, chegamos ao problema de pesquisa que será enfren-


tado neste trabalho: qual o futuro da sexualidade LGBT no direito brasileiro
a partir da atuação efetiva, na Câmara dos Deputados, dos parlamentares do
PT, durante os 13 anos desse partido à frente do Poder Executivo?
Perguntar qual o futuro da sexualidade significa perguntar o estado
da arte da sexualidade. Então, a fim de pensar o futuro da sexualidade LGBT4

instâncias superiores do Partido” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2015, Art. 68,


§1º).
4 As pautas políticas do movimento LGBT compreendem, dentre outras questões, as rela-

cionadas aos campos da sexualidade e do gênero que, apesar de campos distintos, estão in-
trinsecamente vinculados. Acerca desses campos, podemos dizer, em poucas palavras, que
as questões relativas à orientação sexual são, mais frequentemente, pautas políticas pertinen-
tes às pessoas LGB por fazerem referência à sexualidade, ou seja, ao desejo dos indivíduos.
Já as questões como identidade e expressão de gênero, ou seja, a forma como as pessoas se
afirmam socialmente (masculino/feminino e outras) são pautas políticas em maior número
arroladas por pessoas T. Portanto, um indivíduo pode ter uma identidade de gênero travesti,
transexual ou cis e exercer a sexualidade heterossexual, homo, bi ou assexual por exemplo.

97
Gustavo Agnaldo de Lacerda

no direito brasileiro, faremos, no primeiro tópico deste texto, um resgate do


significado da sexualidade LGBT a partir de dois marcos teórico-temporais,
quais sejam: 1.1) o Antigo Regime, que compreende o período anterior à for-
mação do Estado Moderno e também sua consolidação, ou seja: todo o perí-
odo que antecede o século XVIII; e 1.2) o período que vai da Era Vitoriana,
em meados do século XIX, até a Revolução Sexual de 1968, por considerar-
mos essa data um ponto de flexão no léxico da sexualidade. Logo em seguida,
no tópico dois deste trabalho, buscaremos pensar, no momento atual, qual
política se desempenha por meio da significação recente de sexualidade
LGBT. Dito de outra forma, dentro do marco teórico-temporal contemporâ-
neo, analisaremos quais processos de significação são dados pelo direito à
sexualidade LGBT a partir de uma análise dos discursos dos deputados fede-
rais do PT em relação aos direitos sexuais, durante os treze anos em que esse
partido esteve à frente do Poder Executivo, ou seja, de 01 de janeiro de 2003
a 12 de maio de 2016. Nas conclusões, faremos uma crítica em relação ao
número de estilos de regulação moral que temos hoje e que poderão determi-
nar, ou não, a produção do sujeito LGBT no futuro. A proposta é, então,
problematizar esse futuro da sexualidade LGBT no direito.

Do repressivo ao permissivo: a política sexual que está por vir


O Antigo Regime [da sexualidade]

Segundo Sigmund Freud, o desenvolvimento cultural só é possível


graças à sublimação das pulsões (atos de solidariedade ao próximo, por exem-
plo). Para explicar esse processo de repressão dos impulsos, o autor retoma o
mito da família primitiva. No texto “Totem e Tabu” (1996 [1913]), Freud fala
do conflito que é estabelecido pelos filhos na luta para tomar o lugar do pai e
disso decorre a primeira lei moral e social – o tabu ao incesto (filhos e mãe).
Portanto, a primeira lei estabelecida é uma restrição à sexualidade de modo
que prevalece, na civilização, de acordo com o psicanalista, uma tendência a
restringir e controlar a sexualidade humana.

Considerando então tudo isso é que se optou nesse trabalho por utilizar a expressão “sexu-
alidade LGBT” de modo a não nos referirmos unicamente à orientação sexual/desejo/pauta
LGB, mas também a toda a dinâmica inerente a política sexual que essa expressão possa
carregar, qual seja, a de sujeitos LGBT também como sujeitos de direitos sexuais.

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

Em uma perspectiva estruturalista, ou seja, na expectativa de se en-


contrar ou revelar a estrutura que está por trás da sociedade, os estudos de
Lévi-Strauss são úteis aqui, na medida em que serviram à crítica levantada por
Judith Butler (2015, 79-80 e 83), de que essa corrente de pensamento tendia
a perpetuar uma ordem patriarcal de funcionamento da vida social. Freud é
muito bem quisto pelos estruturalistas porque ele oferece como solução para
as questões emocionais humanas a estrutura do inconsciente. Observamos,
então, que a preocupação é a de demonstrar um pano de fundo sobre as situ-
ações: no caso de Freud, o inconsciente (1996 [1915]), e no caso de Jacques
Lacan (2010 [1985]), o universo simbólico.
O pensamento de Gayle Rubin, publicado em meados dos anos 1970,
também pode ser considerado estruturalista na medida em que abordou as
questões de gênero e sexualidade analisando, a seu modo, que há algo que é
estrutural em qualquer sociedade e por isso há um machismo estrutural ou
uma masculinidade estrutural. No ensaio “Tráfico de Mulheres” (1975), Ru-
bin defende a ideia de que toda sociedade tem o seu conjunto de homens e
de mulheres exercendo as tarefas domésticas, mas se buscarmos relacionar o
fato com sua causa final, ou seja, buscarmos uma resposta teleológica para a
desigualdade de gênero chegaremos a uma perspectiva inicial que é a de que
tabus fundamentam nosso inconsciente. O principal deles é, como já desta-
cado por Freud, o tabu do incesto (1996 [1913]). Essa questão é tão relevante
que Gayle Rubin (1975) concluiu ser a interdição do incesto o que fundamen-
tava a subordinação e o tráfico ou troca de mulheres entre famílias e aldeias
nas sociedades simples.

Em sociedades ainda não constituídas em Estado, o parentesco é o idioma da


interação social, e organiza as atividades econômicas, políticas, cerimoniais e tam-
bém sexuais. Os deveres de cada um, suas responsabilidades e privilégios em re-
lação aos outros, são definidos em termos de parentesco mútuo ou da falta deste.
A troca de bens e serviços, a produção e a distribuição, a hostilidade e a solidari-
edade, os rituais e as cerimônias – tudo acontece dentro da estrutura organizaci-
onal do parentesco. [...] Dado que Lévi-Strauss entende que a essência dos siste-
mas de parentesco reside na troca de mulheres entre homens, ele constrói uma
teoria implícita da opressão sexual. (RUBIN, 1975, 16-17)

Ocorre que a própria Judith Butler diz que, além do tabu do incesto,
há algo que acabou excluído dessa teoria: o tabu da homossexualidade. Butler
resgata a ideia de tabu da homossexualidade de Monique Wittig (BUTLER,

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Gustavo Agnaldo de Lacerda

2015 [1990]). Butler também faz uso das ideias de Elisabeth Badinter, a qual
faz um resgate do masculino e do feminino em seu livro XY: Sobre a identidade
masculina (1993). Nesse livro Badinter assevera que, na verdade, são os ho-
mens os enigmáticos, uma vez que nunca se afirmam, apenas se colocam em
oposição aos outros. Thomas W. Laqueur (2001) também trata da sexualidade
e da questão masculina e serve de referência para os estudos de Butler. Então,
servindo-se também do estruturalismo que tenta investigar quais são as com-
posições fundantes da sociedade, Butler ainda faz referência a Lacan (2010
[1985]) e a perspectiva dele acerca do simbólico para argumentar em relação
ao tabu da homossexualidade. Para Lacan, existe um padrão de simbólico que
está no inconsciente que inevitavelmente será vivenciado por todos. A estru-
tura por detrás de todos e todas é o universo simbólico.
Com Foucault, que buscou privilegiar o “como” em vez do “porque”
em suas investigações, podemos observar, em Nascimento da Biopolítica (2008
[1978-79]), que a tecnologia de exercício de poder pelo estado absolutista era
jurídico-política e baseada na compreensão da lei que proíbe, interdita e natu-
ralmente pune. No período que antecede a formação do Estado Moderno, ou
seja, antes do século XVIII, a sexualidade era instintiva, no sentido de que era
vivenciada por si só, sem definir as identidades dos sujeitos como ocorre hoje,
no século XXI. Havia, por exemplo, os libertinos, como Marques de Sade,
Restif de La Bretonne e Choderlos de Laclos, todos eles pensadores e literatos
europeus que, para escreverem seus respetivos textos, apartavam-se dos prin-
cípios morais do seu período, principalmente aqueles relacionados à moral
sexual (SAFATLE, 2014, sem paginação). Restif de La Bretonne, em especí-
fico, pregava o amor livre e pacífico dentro de uma amoralidade que não cedia
a tabus como o incesto, um dos seus temas preferidos.

[...] os libertinos do século XVIII conheceram, com sua crença de que o que
é da ordem do sexual deveria habitar todos os poros do discurso a fim de que o
desejo seja incitado por sua revelação discursiva. Qualquer um que já leu Sade
sabe que o ato de falar e descrever é, neste caso, o principal movimento capaz de
excitar o desejo. Os libertinos do século XVIII, animados à sua maneira pela
crença no esclarecimento produzido pela razão, não gozam em silêncio.
(SAFATLE, 2014, sem paginação)

Houve também a experiência grega e a relação pedagógica entre adul-


tos e iniciantes pela prática sexual capaz de transmitir o conhecimento de

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

mestre a discípulo (FOUCAULT, 2007 [1988]). Em resumo: os gregos não


experimentavam a ideia de culpa cristã, nem encaravam o sexo como algo
cientificamente analisável, apesar de haver comportamentos moralmente con-
denáveis como o “descontrole” que levava, no homem, aos modos efemina-
dos, e, nas mulheres, a paixões irrefreáveis. O modo de vida grego à época era
outro, sendo que:

Esta elaboração da própria vida como uma obra de arte pessoal, ainda que
obedecendo certos cânones coletivos, estava ao centro, me parece, da experiência
moral, da vontade moral na Antiguidade, enquanto que, no cristianismo, com a
religião do texto, a ideia de uma vontade de Deus, o princípio de uma obediência,
a moral assume muito mais a forma de um código de regras (somente certas prá-
ticas ascéticas estavam mais ligadas ao exercício de uma liberdade pessoal).
(FOUCAULT, 2016 [1984], sem paginação)

Na Antiguidade, portanto, a moral tinha por base os costumes, ou


seja, os cânones coletivos e, com o advento do Cristianismo no séc. IV, a
moral passou a se estabelecer em códigos de regras, ou seja, em leis.
Sem pretender esgotar a discussão acerca da sexualidade nesse perí-
odo, consideramos importante ter clareza de que, antes do século XVIII, a
prática sexual não definia a sexualidade e também não forjava a identidade
das pessoas como é feito atualmente. Então, dada a amplitude do tema pro-
posto o corpus de análise exige um salto temporal da Antiguidade (século IV)
para o surgimento do Estado Absolutista (século XV). Com o declínio do
feudalismo e o surgimento dos Estados Nacionais a lógica de governo era a
de “deixar viver ou fazer morrer” (FOUCAULT, 2008 [1979]). Todos os as-
pectos da vida dos súditos, inclusive a sexualidade, o casamento e as relações
de parentesco, manifestavam-se por meio da intervenção do soberano, de
modo que a própria existência do súdito era garantida pela “não ação” do
soberano. Assim, o que poderíamos chamar de sexualidade no Antigo Regime
é um modo de vida essencialmente reprimido, na medida em que não se po-
dia, ou seja, não era permitido aos súditos, falar, escrever ou vivenciar sua
sexualidade da forma que é possível compreender na atualidade.
Com o passar dos anos houve uma mudança nessa questão relacio-
nada ao controle social. A lógica de governo ou gestão das pessoas deixou de
ser hegemonicamente repressiva e passou a ser exercida na forma de remane-
jamento social pelo entendimento das leis de funcionamento da sociedade.

101
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Em outras palavras e na perspectiva do recorte adotado nesse trabalho, qual


seja, a sexualidade: houve uma transformação a respeito do ato de falar sobre
o sexo.

[...] como já disse Foucault, esta fala é uma vontade de saber baseada na sub-
missão da sexualidade ao modo de descrição de uma ciência, uma scientia sexualis
(...) um discurso científico sobre o que devo fazer para não ter uma sexualidade
patológica (SAFATLE, 2014, sem paginação).

Trata-se então, em síntese, nesse contexto, do aparecimento do


medo burguês da revolução e da degenerescência moral e biológica como a
responsável por rearticular a sexualidade como uma ciência a partir do século
XVIII (FOUCAULT, 2009 [1978]).

Da Era Vitoriana à Revolução Sexual de 1968

Ainda segundo Foucault (2008 [1978-79]), o Estado Moderno pode


ser caracterizado, também pelo viés da sexualidade, por uma situação diferen-
ciada daquela do Estado Absolutista. Com o advento de fatores como urba-
nização, higiene, saneamento básico, vacinação etc., o Estado passa a ser qua-
lificado pelo fazer viver [mais e melhor] ou deixar morrer [a população em
situação de rua, as travestis, os povos indígenas, por exemplo]. Nas palavras
de Foucault (2007 [1988], 130): “Pode-se dizer que o velho direito de fazer
morrer ou de deixar viver foi substituído por um poder de fazer viver ou de
rejeitar à morte”. Mais do que uma sociedade completamente governada,
chega-se à vontade de governar por inteiro a sociedade.
O Estado passa a governar pela liberdade. A dinâmica passa do re-
pressivo (sistema de controle) para o permissivo (sistema disciplinar). Passa a
seguir cenários nos quais fazem com que atores (humanos e não-humanos)
ajam segundo os interesses do poder internalizados como dos próprios indi-
víduos. Passa-se, assim, a um governo pelo desejo. Trata-se de moldar a obe-
diência das pessoas à sociedade, por meio da disciplina, de forma que elas se
sintam compelidas, por si só, a agir. Assim, há uma influência sobre tudo o
que nos faz pensar a respeito de questões relacionadas à autonomia (ou não)
dos nossos desejos e do próprio ato de pensar o pensar.

102
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Passa-se a ter, de forma mais frequente, uma abordagem do indivíduo


e de seus comportamentos pelo Estado do ponto de vista de uma permissão,
ou seja, do que pode ser exercido a nível legal, médico e social. O poder re-
formulado sob a modalidade jurídico-política vai do repressivo-punitivo para
o quase exclusivamente permissivo-disciplinar. Quando Foucault (2008
[1978-79]) afirma que a nova arte de governar vai se dar na relação de forças,
quer dizer que há uma modificação grande do “como” o indivíduo irá se en-
caixar nessa arte de governar. E considerando a sexualidade como um dispo-
sitivo que serve à governabilidade de modo permissivo-disciplinar indaga Sa-
fatle:

[...] a sexualidade seria uma forma insidiosa de sujeição que demonstraria


como a natureza do poder não é exatamente repressiva, como se estivesse a reprimir
uma natureza sexual, uma energia libidinal primeira e selvagem, mas produtiva,
como se ele produzisse os sujeitos nos quais o poder opera? (SAFATLE, 2014,
sem paginação).

Diferentemente da lei que tem por destinatário cada súdito, essa arte
de governar se dirige: a) à população (como conjunto de processos, aconteci-
mentos, tendências, campo de forças etc.); e b) à maneira de governar, ou seja,
à forma como se aborda esse sujeito (população) e o enxerga (tendências,
processos, acontecimentos, como campo de forças). Implica, nessa nova
forma, que o poder se dirija ao sujeito sem que isso ocorra prioritariamente
ou exclusivamente pela repressão, mas também por outras tecnologias e dis-
positivos. São outros os instrumentos que são convocados para governar, for-
mando um amplo conjunto de técnicas como, por exemplo, aquelas voltadas
para se estimular ou desestimular um discurso; para se facilitar ou dificultar
uma ação; para compor uma identidade, como ocorre com a sexualidade em
nossos dias. O que mudou é o “como” o Estado modula a governabilidade,
ou seja, mudou-se a maneira de governar que não mais se foca exclusivamente
na repressão.
Nesse sentido, Paul B. Preciado destaca:

Ao distinguir entre “sociedades soberanas” e “sociedades disciplinares” Fou-


cault já havia assinalado a passagem, que ocorre na época moderna, de uma forma
de poder que decide sobre a morte e a ritualiza, para uma nova forma de poder
que calcula tecnicamente a vida em termos de população, de saúde ou de interesse

103
Gustavo Agnaldo de Lacerda

nacional. Por outro lado, precisamente neste momento aparece a nova separação
homossexual/heterossexual (PRECIADO, 2013, sem paginação).

Então, considerando o período vitoriano como o momento do auge


e consolidação da Revolução Industrial, bem como do surgimento de novas
invenções e novas ciências, é possível deduzir que desse período até a Revo-
lução Sexual de 1968 houve uma transformação a respeito do ato de falar
sobre o sexo. Um discurso científico objetificador acerca da sexualidade emer-
giu.

[...] a partir do fim do século XVI, a “colocação em discurso” do sexo, longe


de submeter-se a um processo de restrição foi submetido, ao contrário, a um pro-
cesso de incitação crescente. As técnicas de poder que se exercem sobre o sexo
não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas, ao contrário, a dissemi-
nação e a implantação de sexualidades polimórficas. A vontade de saber não pa-
rou diante de um tabu a ser respeitado, mas ela se animou a constituir uma ciência
da sexualidade (FOUCAULT, 2007 [1988], 19).

Na mesma linha de pensamento, Safatle:

Esta transformação do sexo em objeto de uma pedagogia, mutação que acom-


panha sua transformação em objeto de uma medicina, de uma economia e de uma
reflexão jurídica: eis, muito mais do que a “hipótese repressiva”, a verdadeira mola
produtiva do poder (SAFATLE, 2014, sem paginação).

É, a partir desse modo então, sob um viés científico, que podemos


notar a sexualidade a serviço não só de discursos médico-psi, mas também de
discursos religioso-moralistas e discursos libertário-ativistas.
Esses três eixos discursivos se servem da sexualidade e alcançam es-
paços institucionais, como a Câmara dos Deputados, conforme é possível
aferir nos tópicos seguintes.
Assim, busca-se pensar a seguir no futuro dos direitos de LGBTs a
partir de toda a conjuntura política-institucional atual em relação aos direitos
sexuais LGBTs. Considerando-se a profusão de discursos científicos, religio-
sos e libertários sobre sexualidades que, mais a mais, estão de algum modo,
relacionados à ideia de afirmar ou refutar a linearidade entre sexo (biológico),
gênero (como identidade psíquica e social) e orientação sexual (que envolve
práticas e desejos afetivo-sexuais) heteronormativos, fizemos um recorte em-

104
Qual o futuro da sexualidade no direito?

pírico em um partido político e as falas proferidas pelos deputados desse par-


tido em plenário da Câmara Federal. Dito de outra forma: busca-se, nos pró-
ximos tópicos, investigar quais significados ou traduções de sentidos de direi-
tos para LGBTs podem ser atribuídos a essa população na contemporanei-
dade, tendo por parâmetro o Antigo Regime e o período que vai da Era Vi-
toriana, em meados do século XIX, até a Revolução Sexual de 1968.

O que nos comove e o que nos move:


processos de significação LGBT
O que há de novo?

A hipocrisia moral e a onda conservadora que limitam nosso presente


matam prostitutas e travestis sistematicamente. Nada de novo. A política do
controle (moral) é a contraparte do controle (imoral) da política. Ainda, nada
de novo. Quando se trata da macropolítica, é possível entender como as gran-
des instituições (igrejas e demais corporações) usam a norma, respaldada pela
lei, para se impor a todos aqueles que queiram transgredi-la. Continuamos
sem nenhuma inovação. Mas a macropolítica hoje nos revela que o objetivo
do Estado já não é mais o de matar o indivíduo e sim o de torná-lo “feliz”
mediante o governo pelo desejo. É essa a inovação. Trata-se de fazer viver
mais e melhor [os evangélicos, os militares e poucos outros] e deixar morrer
[os LGBTs, os jovens negros, os deficientes físicos]. Assim, observamos a
política sexual macro que reverbera na forma de micropolíticas moralistas da
sexualidade como uma das formas de deixar morrer. Nesse sentido, Rolnik:

É evidente o grande perigo que representa a atual derrocada mundial das es-
querdas, provocada pela ascensão ao poder de forças macropoliticamente reacio-
nárias e micropoliticamente reativas e conservadoras. Entretanto, é precisamente
a gravidade dessa experiência que nos leva a perceber que não basta atuar macro-
politicamente. Por que não basta? Porque, por mais que se faça no plano macro-
político, por mais brilhante que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas
que sejam as ações, por mais êxito que tenham, por menos autoritárias e corruptas
que sejam, do ponto de vista micropolítico o que se consegue é uma reacomoda-
ção do mapa vigente, na melhor das hipóteses com um grau de desigualdade eco-
nômica e social um pouco menor. E tudo volta para o mesmo lugar, exatamente
aquele do qual pretendíamos sair (ROLNIK, 2016, sem paginação).

105
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Então, partindo da presunção de que a “bancada BBB” está no con-


trole, ilusório ou real, e as opressões passam por todos os lados no campo
macropolítico da Câmara dos Deputados Federais, segundo Rolnik (2016,
sem paginação), seria a hora de as pessoas contrárias às ideias defendidas pela
“bancada BBB” investirem nas boas consciências que se sossegam com a efi-
ciência daquele grito anti-opressão nos julgamentos cotidianos, ou seja, inves-
tir na micropolítica. Parafraseando Márcia Tiburi (2015), falar com um fas-
cista. Seria o momento de se falar com o vizinho, com o tio, com os amigos
sobre política sexual. Isso porque a imoralidade da (macro)política sobrevive
graças à (micro)política da moralidade (ROLNIK, 2016, sem paginação).

É nesta direção [micropolítica] que se move um novo tipo de ativismo, que


vem se propagando na sociedade brasileira e que se caracteriza precisamente pela
invenção de múltiplas formas de ação micropolítica em seu sentido ativo [como
o “bundaço” para o Temer e a “chuva de glitter” para o Bolsonaro]. Estas talvez
já não caibam no imaginário das esquerdas, sobretudo em sua versão par-
tidária e sindical, e menos ainda no binômio esquerda versus direita (ROLNIK,
2016, sem paginação, destaque nosso).

Seria o momento, então, de não apostarmos tanto na luta por direitos


mediante partidos políticos e sistema representativo macropolítico? Pense-
mos na possibilidade de que “há um dispêndio de energia voltada para o Es-
tado” (COLLING, 2015, 14), uma vez que, à primeira vista, é o que parece.
Buscar revelar os dados que corroboraram ou rechaçam essa ideia é a intenção
deste trabalho, por meio da análise dos discursos dos deputados federais do
PT em relação aos direitos sexuais LGBT.

Há uma questão de fundo que é significativa na política da sexualidade: a vi-


ragem da década de 80/90 para um sistema de proteção dos direitos sexuais em
equiparação com direitos humanos. É isso que dá o sentido maior para os debates
parlamentares ocorrerem, pois, esses discursos jurídicos sexuais estão sendo de-
senvolvidos pela jurisprudência, são recepcionados pelo direito e contaminados
pela perspectiva liberal, base do sistema jurídico. E isso faz com que as pautas
também se estruturem dessa forma. O que gera um discurso que independe de
ser de esquerda ou de direita, pois a pauta é dada em um sentido global. Em outras
palavras: está em todos os países do ocidente. Não é pauta da esquerda ou da
direita (MONICA, 2016, sem paginação)

106
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Somos mais vezes estimulados a sentir a diferença quando ela tem


um sentido político. Quando essa diferença é positivada no direito, ou seja,
quando ela passa por um processo político-legiferante de significação em
norma emanada pela autoridade estatal, vemos movimentos sociais que bus-
cam tensionar o Estado a ter uma atuação cada vez mais condizente e articu-
lada com uma dinâmica de sociedade em constantes mutações. Esses sujeitos
que tensionam o Estado conseguem reforçar seu direito a ter direitos e atuam,
hoje, pela criação contínua de novas demandas.
Ao realizar um estudo de como a comunidade LGBT busca efetivar,
no meio estatal, melhor proteção aos direitos das sexualidades e identidades
de gênero não-hegemônicas, devemos analisar a importância da linguagem
como configuradora das relações sociais e, portanto, da própria sociedade.
Os símbolos não são arbitrários5; dentro de uma cadeia de ação, to-
dos os elementos fazem diferença – e até mesmo o não fazer diferença produz
um efeito diferente. Nesse sentido, temos por hipótese que o movimento
LGBT, fazendo militância voltada para um partido massa6 como o Partido
dos Trabalhadores7, pode fazer com que este siga as diretrizes de seu estatuto

5 “Utilizamos aqui a palavra símbolo para designar o signo linguístico ou, mais exatamente,

o que chamamos de significante. [...] O símbolo tem como característica não ser jamais com-
pletamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o
significante e o significado. O símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituída por
um objeto qualquer, como um carro, por exemplo. A palavra arbitrário requer também uma
observação. Não deve ser a ideia de que o significado dependa da livre escolha do que fala
[...] não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma no signo, uma vez que esteja ele
estabelecido num grupo linguístico; queremos dizer que o significante é imotivado, isto é,
arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade”.
(SAUSSURE, 1988, 82-83)
6 Partidos são organizações políticas que visam influenciar ou gestar políticas governamen-

tais. Dentre essas organizações os partidos “de massa”, segundo ideia defendida, no início
dos anos 1950, por Maurice Duverger, são partidos formados por “[...] grandes contingentes
da população [que] perceberam que só conseguiriam atingir metas comuns e alcançar reivin-
dicações através da participação política estruturada [na forma de um partido político, cujo]
próprio tamanho fez com que tivessem que ser mais organizados, disciplinados e coesos. ”
(apud COIMBRA, 2011, sem paginação)
7 Para fins desse trabalho e de acordo com as características elencadas na nota de rodapé

de número 5 considera-se que o Partido dos Trabalhadores é um partido de massa em função


da dinâmica empreendida pelo partido no início do governo Lula, em 2003. No entanto,
passados 13 anos, podemos dizer que o PT conduziu a esquerda a um impasse. Ou seja, a
esquerda foi, de modo geral, descreditada em relação às suas pautas progressistas no ano de
2016. Nesse sentido é que podemos justificar nossa escolha em analisarmos os discursos dos
parlamentares petistas. Em resumo: é preciso distinguir com clareza a defesa de uma pauta
progressista da defesa de um partido. Pretendemos fazer isso com uma análise crítica a essa
legenda. Considerarmos pura e simplesmente que quanto mais à esquerda do espectro ideo-
lógico o partido político se encontra, maior seria a probabilidade de encontrarmos posturas

107
Gustavo Agnaldo de Lacerda

e convenções. Assim, a militância LGBT, por meio de advocacy ou “advocacia


de causa” (cause lawyering)8 no PT, exerce um programa de ação que possibilita
reformular ou, pelo menos, fazer diferença em relação aos efeitos das ações
promovidas pela “bancada BBB” na Câmara dos Deputados acerca dos sig-
nos linguísticos de direito sexuais LGBT: liberdade, igualdade, privacidade,
autonomia, integridade e dignidade (MAINWARING & SCULLY, 1995;
IPPF, 2008).
Mesmo reconhecendo não ser possível, neste trabalho, entrar em
análise aprofundada sobre o fenômeno partidário, ou seja, em relação à ne-
cessidade dessas instituições para o mundo social diante dos problemas e pa-
radoxos da Ação Coletiva, da Escolha Social e do Paradoxo do Voto, enten-
demos, com base em Mainwaring e Scully (1995), que, na América Latina,
com a onda de redemocratização a partir dos anos 1980, a instituição que
aparece no centro das propostas sobre o sucesso ou o fracasso dos novos
regimes9 são os partidos políticos. Importa-nos assim ter clareza de que é por
meio dos partidos políticos que a democracia representativa, apoiada em ci-
dadãos que confiam em agentes políticos, torna-se possível. Isso ocorre a
ponto de ser admissível a um partido político assumir, ou não, estratégias par-
tidárias programáticas, como a estratégia ou pauta identitária, a qual se confi-
gura como uma das linhas de nosso estudo.
Acerca da questão identitária, adotamos o conceito trazido à baila
por Judith Butler em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (2015
[1990]), qual seja: identidade como performatividade. Segundo a autora, per-
formatividade não deve ser entendida no sentido coloquial-artístico; no sen-
tido de alguém que está lá enquanto ator realizando um ato performático.
Deve, outrossim, ser entendida enquanto tudo aquilo do qual nós não conse-
guimos escapar. Performatividade é um “estado de”, sendo diferente de per-
formance que é, deliberadamente, o momento em que o ator se coloca em
ação.

político-discursivas em favor dos LGBTs pode ser um erro. Assim é que acreditamos ser
razoável investigarmos os motivos de os deputados do PT, partido do espectro político-
esquerdista, não efetivarem ou nem pautarem, na Câmara dos Deputados, os direitos sexuais
LGBTs ao longo de 13 anos.
8 Ação em que ativistas de grupos/movimentos sociais mobilizam-se pela demanda de am-

pliação ou de reconhecimento de direitos de parte da população (MACIEL, 2015).


9 A expressão “regimes” é utilizada aqui no sentido de abarcar a forma de governo repu-

blicana no Brasil; a forma de estado federativo; o sistema de governo presidencialista e o


regime de governo democrático brasileiro.

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

Butler (2015 [1990]) trabalha o conceito de performatividade com


base na Filosofia da Linguagem, de John Austin (referente aos atos performa-
tivos)10. Austin, entre os anos de 1953-1955, escreveu o livro How to Talk—
some simple ways, e, em 1964, publicou o livro How to do things with words?. A
identidade performativa, então, possibilitou a Butler trabalhar com a ideia de
que, quando se afirma, por exemplo, no nascimento de uma criança, que se
trata de “um menino”, para a grande maioria das pessoas, essa fala/afirmação
é um ato descritivo, ou seja, para o senso comum, apenas narra um fato dado.
Contudo, Butler se baseia na crítica que Derrida faz a John Austin, afirmando
que, na verdade, ao se afirmar uma situação como a do exemplo acima, aquele
que afirma/exerce a ação de afirmar realiza uma performatividade, a qual não
só conta/narra o fato dado, mas também impõe um “dever ser”. Derrida diz
que nenhum signo pode ser completamente encerrado dentro de um con-
texto, então, qualquer ato de fala pode ser recortado e retirado do contexto,
de forma a ser “re-citado”. Isso é o que Butler faz, ao expor que feminilidade
e masculinidade são citações forçadas de uma norma, mas que podem ser
ressignificadas. Butler afirma que é necessário um processo de interpelação
para estabelecimento da performatividade de gênero: o indivíduo, além de ser
“citado” como menino precisa reconhecer a si mesmo como menino e é essa
dupla relação que irá produzir o efeito de verdade do gênero (SALIH, 2012).
Desse modo, o processo de (des)construção do sujeito, para Judith
Butler, deve estar focado no discurso. Ainda segundo a autora, a nossa única
possibilidade de ser, agir e compreender o mundo está nos limites discursivos.
Assim, não existe liberdade de escolha de gênero; o que existem são possibi-
lidades de ações dentro dos discursos previamente montados para os gêneros.
Em poucas palavras, a performatividade de gênero é tudo aquilo de que nós
não consigamos escapar; é tudo aquilo que é exercido, a todo momento, por
todas as pessoas. Trata-se, então, de um ato de fala que gera uma sequência
de atos que dão a impressão de identidade (BUTLER, 2015 [1990], 222-244):
o corpo não é masculino ou feminino, o corpo exerce uma performatividade
feminina ou masculina.

10 Ideias sobre o performativo, onde o falar implica num fazer, diferenciando estes atos de

meras descrições, porque nada descreviam, nada relatavam, etc. Em atos performativos não
precisamos produzir coisas que são verificáveis pela verdade ou falsidade.

109
Gustavo Agnaldo de Lacerda

O corpus de estudo

Explorar os processos de significação LGBT neste trabalho exigiu-


nos mais um recorte. Dessa forma, tomamos a política sexual pelo viés da
análise do discurso dos deputados federais do PT, em plenário da Câmara
durante os 13 anos de governo do referido partido à frente do Poder Execu-
tivo Federal, no que diz respeito a três grandes categorias de análise: LGBT,
direitos sexuais e política sexual.
Fizemos, nos tópicos anteriores, um esforço no sentido de esboçar o
processo histórico de transformação pelo qual passou a sexualidade – e o sis-
tema de significação dos gêneros – e, a seguir, entraremos no “modo como a
linguagem dos direitos, em particular dos direitos humanos, vem sendo acio-
nada para reconfigurar a já antiga movimentação de diferentes ‘minorias se-
xuais’ contra o estigma e a discriminação” (CARRARA, 2015, 325).
Segundo a International Planned Parenthood Federation, organização en-
gajada com o planejamento familiar e os direitos humanos,

Os conceitos de direitos reprodutivos e direitos sexuais são invenções decidi-


damente contemporâneas. As definições com as quais contamos hoje foram ori-
ginalmente adotadas em conferências intergovernamentais da Organização das
Nações Unidas (ONU), que tiveram lugar na segunda metade dos anos 1990
(Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, Cairo, 1994, e IV
Conferência Mundial das Mulheres, Pequim, 1995). [...] Finalmente, em 2011, o
Conselho de Direitos Humanos da ONU adota a resolução “Direitos Humanos,
orientação sexual e identidade de gênero”. [Desde então, busca-se firmar no ce-
nário internacional que] Direitos Sexuais referem-se a normas específicas que
emergem, quando Direitos Humanos existentes são aplicados à sexualidade. Estes
direitos incluem liberdade, igualdade, privacidade, autonomia, integridade e dig-
nidade de todas as pessoas; princípios reconhecidos em muitos instrumentos in-
ternacionais que são particularmente relevantes para a sexualidade. Direitos Sexu-
ais oferecem uma abordagem que inclui, mas vai além da proteção de identidades
particulares. Direitos sexuais garantem que todos tenham acesso a condições que
permitam a plenitude e a expressão da sexualidade livre de qualquer forma de
coerção, discriminação ou violência e dentro de um contexto de respeito à digni-
dade (IPPF, 2008).

Tomando gênero e sexualidade como construtos discursivos


(FOUCAULT, 2009 [1971]) performaticamente iterados ou subvertidos
(BUTLER, 2015 [1990]), este trabalho busca aferir que níveis de coerência

110
Qual o futuro da sexualidade no direito?

ideológico-partidários existem entre o que é formalmente assumido pelo PT


em seu Estatuto (2015) quanto aos direitos sexuais, e a atuação efetiva, na
Câmara dos Deputados, de seus mandatários políticos acerca da tradução em
texto de lei desses mesmos direitos. Pretende-se, assim, testar a hipótese de
que, considerando as questões LGBT a partir das diretrizes expressas no Es-
tatuto do PT (2015) e os resultados de pesquisas com os discursos proferidos
pelos deputados federais desse partido no período compreendido entre 01 de
janeiro de 2003 e 12 de maio de 2016 em plenário da Câmara Federal, os
deputados apresentaram posicionamentos conservadores em relação à temá-
tica dos direitos sexuais LGBT / política sexual.
Assim, procedemos, metodologicamente, com base na técnica de
análise do discurso.
Para o período analisado foram encontrados trinta e cinco (35) de-
putados e deputadas do partido em questão, os quais, em plenário da Câmara,
de algum modo fizeram menção a termos, os quais também chamamos de
três grandes “nós”, relacionados a: direitos sexuais, LGBT e política sexual.
A exploração analítica qualitativa dos dados coletados compreendeu
um processo de codificação dos nós por meio da (re)leitura dos discursos dos
deputados e do Estatuto (2015) em unidades de texto, ou seja, associamos
uma expressão ou palavra que foi compilada quantitativamente de acordo
com um dos três grandes nós a que se referem. Por exemplo: a expressão/uni-
dade de texto “as direções partidárias, delegações e cargos com função espe-
cífica de secretarias deverão ter paridade de gênero (50% de mulheres e 50%
de homens)”, no art. 22 do Estatuto do PT (2015), foi codificada sob o nó
“direitos sexuais” por considerarmos a expressão “paridade de gênero” o lé-
xico que carrega uma ideia de igualdade, um dos princípios dos direitos inter-
nacionalmente reconhecidos como relevante para a sexualidade.
Com isso, nosso corpus de análise foi composto, inicialmente, por du-
zentos e onze (211) deputados do PT entre os quais, durante quatro mandatos
eletivos, da 52ª a 55ª legislatura, período compreendido entre 2003 a 2016,
trinta e cinco (35), de algum modo, mencionaram em seus respectivos discur-
sos, na tribuna da Câmara, termos relacionados às temáticas de: a) direitos
sexuais; b) LGBT; e c) política sexual. Assim, chegamos a cento e setenta e
dois discursos (172) proferidos pelos deputados federais do partido em ple-
nário da Câmara, durante treze anos de governo dos Presidentes Luiz Inácio

111
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Lula da Silva e Dilma Rousseff, que de algum modo significam resultados da


militância LGBT no partido estudado.

Análise Crítica do Discurso (ACD)

A análise discursiva não pode ser dissociada do contexto, dos atores


sociais e das instituições envolvidas na produção do discurso. Logo, partindo
de alguns eixos temáticos sobre os quais se propõe a pesquisa, utilizaremos
das contribuições do linguista Teun A. van Dijk (2008) no que se refere ao
controle da (re)produção discursiva da dominação da sociedade na política.
Referido autor, no livro Discurso e poder (2008), mais especificamente em seu
sétimo capítulo, intitulado “Discurso político e cognição política”, empre-
ende-se a analisar os aspectos mentais compartilhados pelas pessoas enquanto
atores políticos. Sobre o pensamento de Dijk, Frederico Westphalen diz:

Sua teoria sobre a relação entre discurso político e cognição política tem um
elemento crucial que a diferencia de outros estudos sobre o assunto, a saber, os
"modelos mentais, que servem como a interface necessária entre as cognições
políticas socialmente partilhadas, de um lado, e as crenças pessoais, do outro” (p.
202). Assim, van Dijk trata de vários conceitos basilares que compõem a "memó-
ria episódica" (formada por experiências pessoais e modelos subjetivos), e a "me-
mória social" (formada por conhecimento, atitudes, ideologias, normas, valores e
modelos socialmente compartilhados) que entram em jogo na construção do dis-
curso político. O autor conclui que a fala e a escrita políticas se relacionam ao
contexto e ao evento político imediatos, porém o que tem um peso capital são os
modelos que os participantes constroem do contexto interacional e comunicativo
(2010, 113).

Então, considerando as categorias de “direitos sexuais”, “LGBT” e


“política sexual”, diante da possibilidade de visualizarmos avanços e transfor-
mações no sistema de direitos fundamentais, precipuamente aduzidos pela
jurisprudência, no que diz respeito ao lugar da linguagem nas relações sociais
e sobre a linguagem como parte integrante de processos de mudança social,
analisamos quantidade considerável de dados, de forma a permitir obter sig-
nificância estatística.
Do total de dados sopesados, foi realizado um exame manual no site
da Câmara dos Deputados (2016) no qual buscamos, primeiramente, as listas

112
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de todos os deputados federais do PT que tiveram ou têm mandato eletivo


no período sob análise e localizamos duzentos e onze (211). Em seguida,
ainda no site em questão, fizemos, para cada deputado do PT, uma pesquisa
no campo “banco de discursos”, tendo por referência apenas a categoria
LGBT. Encontramos trinta e cinco (35) deputados e, a partir dessa triagem,
deparamo-nos com um total de trezentos e oitenta e três (383) menções à
expressão “LGBT”, em cento e setenta e dois (172) discursos/ocasiões refe-
rentes ao período de treze anos desse partido à frente do governo federal.
A coleta se deu na página oficial da Câmara dos Deputados no for-
mato “.pdf”. Em seguida, esses textos foram configurados no formato “.txt”
para análise semiautomática com o software de computador WordSmith Tools -
versão 7.0 (SCOTT, 2016).
A distribuição desses discursos pode ser verificada na tabela abaixo,
elaborada a partir da lista geral de palavras11. A tabela mencionada foi prepa-
rada apenas com as palavras conteúdo, a fim de delimitarmos as dimensões e
densidade lexical das falas dos deputados do PT. A lista de palavras-conteúdo
é bastante situada tematicamente, uma vez que a frequência com que apare-
cem nos discursos podem revelar, inclusive, posicionamentos ideológicos.

11 A lista geral compreende palavras funcionais, ou seja, os artigos que dão sentido indivi-

dual aos substantivos, preposições e conjunções, bem como as palavras conteúdo, ou seja,
substantivos, adjetivos etc.

113
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Tabela 1: Lista de palavras conteúdo com WordList - Grandes nós

Fonte: Elaborado pelo próprio autor

114
Qual o futuro da sexualidade no direito?

A fim de comparar, também pelo software, quais palavras são mais


frequentes na lista geral em relação a outro corpus de referência, qual seja, o
Estatuto do PT (2015), a segunda ferramenta utilizada foi a KeyWords, para
indicar palavras-chave. O resultado dessa comparação pode ser visualizado
no gráfico nuvem a seguir:

Gráfico 1: Palavras-chave

Fonte: Elaborado pelo próprio autor

115
Gustavo Agnaldo de Lacerda

A visualização de dados na forma de nuvem de palavras, acima, é


uma forma de apresentar as expressões das temáticas mais frequentes nas in-
dexações de discussões acerca da política sexual partidária petista, em âmbito
legislativo federal, para a comunidade LGBT.
Assim colocados os dados, podemos analisar os discursos com seus
fatores extralinguísticos, tais como o contexto de fala, a relação do falante
com o ouvinte e o momento histórico, nessa pesquisa linguístico-discursiva
que problematiza também: (1) Os discursos proferidos pelos deputados fede-
rais em plenário da Câmara constroem estereótipos LGBT? (2) Esses depu-
tados individualizam o problema social da LGBTfobia? (3) Os deputados fe-
derais do PT utilizam estratégias discursivas para apresentarem os direitos se-
xuais como direitos menos importantes? (4) Qual o papel da militância LGBT
na construção da representação social dos direitos sexuais LGBT?
A representação abaixo busca ilustrar a relação assimétrica entre de-
putados do PT que, em tese, compartilhariam de mesma ideologia partidária,
expressa em seu Estatuto (2015). Esse quadro constitui uma “releitura” do
quadrado ideológico proposto por van Dijk (2003).

Quadro 1: Quadrado ideológico da sexualidade LGBT


na Câmara dos Deputados, na perspectiva dos deputados do PT

 Enfatizar aspectos positivos [sobre nós, deputados do PT, em rela-


ção a eles, LGBTs] (“defendemos a causa LGBT”);

 Enfatizar aspectos negativos [sobre eles, LGBTs, em relação a nós,


deputados do PT] (“eles estão enfraquecendo a esquerda na medida
em que o operariado deve se unir como uma classe e uma pauta
única contra o capital”);

 (Des)enfatizar aspectos negativos [sobre nós, deputados do PT] (“a


direita nuca irá acolher a pauta LGBT”);

 (Des)enfatizar aspectos positivos [sobre eles, LGBTs] (“são pessoas


que demandam privilégios”) .

Fonte: Elaborado pelo próprio autor

116
Qual o futuro da sexualidade no direito?

No primeiro item, “Enfatizar aspectos positivos sobre nós, deputa-


dos do PT”, aferimos que, nos casos em que as pessoas LGBTs foram citadas
ou lembradas por algum dos deputados em plenário da Câmara (172 vezes),
tais fatos ocorreram, na maioria das vezes, de uma forma diluída no discurso
de defesa dos direitos humanos com outras pessoas marginalizadas e oprimi-
das pelo sistema, como os povos indígenas, os jovens negros, as mulheres
economicamente menos favorecidas no contexto social e deficientes físicos,
por exemplo. Tal medida, de certo, é uma estratégia política positiva para os
deputados do PT no sentido de tentarem, com isso, cooptar uma parcela da
sociedade que, para além das “paradas gays”, vem produzindo uma agenda
pública e ganhando visibilidade a ponto de atrair o olhar das agremiações par-
tidárias concorrentes (MARQUES & D´ÁVILA, 2010, 80). O fortalecimento
numérico do grupo de pessoas marginalizadas não necessariamente significa
uma classe unida. Então, mesmo acreditando na luta ao lado dos demais gru-
pos vulneráveis a fim de reivindicarmos o direito a ter direitos, a qual deve ser
considerada uma possibilidade de resistência, acreditamos também que isso
poderia levar a relativa invisibilidade da própria comunidade LGBT e a uma
manutenção do status quo de oprimidos dentre os próprios oprimidos.
No segundo item, “Enfatizar aspectos negativos sobre eles, LGBTs”,
destacamos que, desde a primeira metade do séc. XX, diversos grupos huma-
nitários, preocupados com a descriminalização da homossexualidade, emergi-
ram em diferentes países. Nos E.U.A., ficou conhecido como “movimento
homófilo” a mobilização social no sentido de educar homossexuais e heteros-
sexuais para que pudessem viver em conjunto, a fim de se conquistar a acei-
tação dos homossexuais na cultura mainstream. Nos anos 1960 e 70 emergiram
diversos movimentos políticos radicais que se afastaram da abordagem assi-
milacionista. Contudo, já no fim dos anos 1970 e 80, a AIDS se tornou uma
ameaça à noção de liberação sexual, dando força a discursos homofóbicos e
ao conservadorismo. Sobre esses agrupamentos,

[a] história destes movimentos politicossexuais pós-moneístas é a história


desta criação das condições de um exercício total do enunciado, a história de uma
virada da força performativa dos discursos, e de uma reapropriação das tecnolo-
gias sexopolíticas de produção dos corpos dos “anormais”. A conquista da palavra
pelas minorias queer é um acontecimento não tanto pós-moderno como pós-hu-
mano: uma transformação na produção e na circulação dos discursos nas institui-
ções modernas (da escola à família, passando pelo cinema ou pela arte) e uma

117
Gustavo Agnaldo de Lacerda

mutação dos corpos. Desontologização do sujeito da política sexual


(PRECIADO, 2013, sem paginação).

Contemporaneamente,

[Homofobia é uma] forma de preconceito que pode resultar em discrimina-


ção. [...] discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações
sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao precon-
ceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos. (RIOS,
2006, 27-28).

Assim entendida a homofobia, se considerarmos que, de um universo


de duzentos e onze deputados (211), apenas trinta e cinco (35) fazem menção
às pessoas LGBT em seus discursos no plenário da Câmara, é possível con-
cluir que a grande maioria dos parlamentares sob análise, afiliados a um par-
tido tradicionalmente localizado no espectro político-ideológico esquerdista
progressista, tem posicionamento conservador em relação à pauta de direitos
sexuais LGBT na medida em que omitem falar e discutir, no plano concreto
das relações político institucionais, questões relacionadas a esse tema.
No terceiro item, “(Des)enfatizar aspectos negativos sobre nós, de-
putados do PT”, citamos os casos em que o mandatário político aparece como
“agente da passiva”, no sentido de não representar os LGBTs, e busca sempre
se omitir em relação à luta dessa comunidade por novos direitos.
Por fim, no quarto item, “(Des)enfatizar aspectos positivos sobre
eles, LGBTs”, considerando a perspectiva liberal, base do sistema jurídico, a
provocação que nos traz é a de que o direito só consegue ouvir o subalterno
hoje, no sistema liberal, a partir do discurso da minoria. Contudo, cabe res-
saltar que não estamos questionando politicamente se os direitos da minoria
são ou não interessantes ou satisfatórios para a luta política. Quando falamos
do subalterno, cria-se uma noção de “discursos de minoria” a partir das afir-
mações de que as mulheres são minoria, os gays são minoria, os indígenas são
minoria e assim por diante. Com isso, cria-se um sistema que gera tensões na
leitura que o sistema jurídico vai fazer a respeito desses direitos, os quais su-
postamente seriam destinados a um número menor de indivíduos. Em nosso
cotidiano, isso é claramente perceptível: com a Lei Maria da Penha, muitos
passaram a afirmar que, agora, as mulheres têm privilégios, que são protegidas

118
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de maneira diferenciada pela agravante do feminicídio e, como resultado, ime-


diatamente tem-se uma discussão com afirmações generalizadas – “mas é as-
sassinato! Por que estão tratando assassinato de maneira diferenciada?”. As-
sim, é preciso argumentar que, justamente a classificação como “minoria” por
parte do próprio sistema ocorre para que ele consiga fazer a leitura da parti-
cularidade do grupo e atender o caso com base no princípio liberal da isono-
mia. Ou seja, o sistema jurídico chama essas particularidades de minoria para
responder, juridicamente, com a concessão de “privilégios” ou direitos espe-
ciais, dentro de uma gramática de um sistema liberal tradicional. É o próprio
sistema que precisa fazer a leitura da particularidade e, para isso, utiliza-se da
categoria das minorias. No entanto, o que tem ocorrido é uma deturpação da
leitura, chamando-a, negativamente, de concessão desnecessária de privilégios
gays que trariam vantagens indevidas para o grupo, colocando-os à frente da
maioria.
Isso não quer dizer que os parlamentares petistas e o próprio partido
não tenham feito nada de positivo para a população LGBT, que o balanço
geral dos 13 anos do PT à frente do Poder Executivo seja puramente negativo
para essas pessoas. Nesse sentido:

[...] o fato de existir um baixo índice de legislação consolidada no campo dos


direitos sexuais relacionados à população LGBT* no Brasil, no momento, ratifica
que seu reconhecimento ainda é uma questão ou de vontade política, aliada a Pro-
gramas de Governo – cuja iniciativa é frequentemente condicionada pela mobili-
zação social em torno de suas demandas específicas perante o Estado –, ou de
iniciativas do Judiciário, cuja provocação é sempre dependente do acesso à justiça
das partes envolvidas. Os efeitos sobre o Congresso Nacional, embora ainda sutis,
podem ser vistos se observarmos o salto, em termos de produção legislativa, que,
guardadas as devidas proporções, implica num incremento, importante, principal-
mente a partir da realização da 1ª Conferência LGBT* de 2008. [...] Importa, as-
sim, ressaltar a crescente produção de políticas públicas favoráveis ao longo dos
últimos anos. Políticas que vêm demonstrando sua factibilidade e a possibilidade
de traçar uma perspectiva otimista à consolidação dos direitos sexuais na legisla-
ção, seja na continuidade e ampliação das mesmas, a partir do acesso à justiça, ou
mesmo da concretização em Planos de Direitos e em formas alternativas de im-
plantação, que permaneçam fazendo parte de programas de governo futuros.
(OLIVEIRA, 2013, 143-144)

A título de exemplificação, destacamos duas ações promovidas pelo


Poder Executivo petista. Uma no ano 2003, qual seja, a elevação da Secretaria

119
Gustavo Agnaldo de Lacerda

de Direitos Humanos à categoria de ministério, que possibilitou o aporte de


recursos, autonomia e poder de transformação social em ONGs LGBTs. Ou-
tra no ano de 2004: a criação do programa “Brasil sem Homofobia”, pro-
grama cujo objetivo foi o de promover a cidadania e os Direitos Humanos à
população LGBT a partir de equiparação de direitos e do combate à violência
e à discriminação.
No entanto, a proposta desse trabalho é pensar o que já foi realizado
formalmente em relação à política sexual voltada à população LGBT, em âm-
bito legislativo federal no Brasil, durante os 13 anos em que o Partido dos
Trabalhadores (PT). Por formalmente queremos dizer direitos positivados.
Então, a fim de que entendermos o papel central ocupado pelo Parlamento
na produção legislativa dos direitos LGBTs nas sociedades democráticas tra-
zemos à baila uma linha do tempo (figura 1) em que estão determinados os
marcos jurídico-legislativos que possivelmente contribuíram para o cenário
atual de significação da sexualidade LGBT no direito.

120
Qual o futuro da sexualidade no direito?

121
Gustavo Agnaldo de Lacerda

Considerações finais: para onde vamos?

Quando analisamos a filiação partidária de deputados que se omitem


diante de propostas excludentes à comunidade LGBT, observamos impor-
tante premissa teórica: a forte correlação entre o número de partidos pró-
LGBT e a posição, ocupada no espectro político-ideológico, do partido polí-
tico. Isto é, quanto mais à esquerda do espectro ideológico o partido político
se encontra, maior seria a probabilidade de encontrarmos posturas político-
discursivas em favor dos “LGBTs”. Tradicionalmente, as esquerdas, ao me-
nos nos regimes democráticos ocidentais, têm sido mais “abertas” às novas
temáticas e “acolhido” em suas estruturas partidárias setores marginalizados
na sociedade e na política institucional.
No entanto, o posicionamento político supostamente progressista,
como observamos a partir das análises, não é garantia, na prática, de abertura
para as questões LGBT, a qual irá depender, ainda, de como o parlamentar
pretende se mostrar publicamente, levando em conta as percepções de seus
eleitores e aliados. Nesse sentido, o indivíduo pode optar por se omitir em
relação à temática LGBT ou, mesmo, por se colocar contra a concessão de
direitos a membros dessa comunidade em específico.
Passaram-se 13 anos do Partido 13 à frente do Poder Executivo Na-
cional e a tarefa ética em relação à política sexual não foi levada à discussão
em plenária da Câmara dos Deputados. A esperança que venceu o medo no
pleito de 2002, já se esvaiu. A frustração e o terror funcional que colocam
medo nas pessoas LGBTs estão cada vez melhor sendo manipulados pelo
conservadorismo liberal e alcançam discursos de deputados da esquerda.
A constatação a que chegamos é de que foi essa a opção política se-
xual dos deputados federais do PT em 13 anos do governo PT à frente do
Poder Executivo, qual seja, a do silêncio sistêmico em relação à política sexual.
Ficamos então, em relação aos direitos sexuais LGBT, sem um legado do PT,
limitados no presente e com uma percepção negativa sobre o futuro na me-
dida em que o passado repressivo-punitivo emerge revitalizado.
A esquerda, aqui representada pelo PT, concebia uma ideia de rup-
tura com as formas de opressão. Fora do poder era hegemônica no plano das
ideias progressistas. No poder, pouco fez para não se “Temer” um futuro
hostil dos direitos sexuais no Brasil.

122
Qual o futuro da sexualidade no direito?

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126
5
A invenção da maternidade e o
futuro da autonomia reprodutiva no direito

Mariana Paganote Dornellas1

O presente capítulo aborda como a valorização da infância


na sociedade, conforme análise de Ariès (1981), gerou
nossa concepção de maternidade, reduzindo os direitos
das mulheres e seu poder dentro das famílias, e contribuindo para o desen-
volvimento de toda uma mística em torno dessa função ao longo da história,
como descrita por Badinter (1985). Isso ocorreu concomitantemente a um
novo interesse do Estado pela demografia, que transpôs para sociedade a ide-
ologia do que seria uma boa mãe, identificando-a com as características da
mulher dita “normal”, para que houvesse sua dedicação integral ao cuidado
dos filhos. Por isso, analisaremos os discursos que surgiram com o aumento
da preocupação com a população, principalmente devido ao crescimento de-
mográfico, com a posição de Condorcet, a de Malthus e, posteriormente, a
dos neomalthusianos, observando como a reprodução era tratada, ora como
dimensão de cidadania, ora como a causa de todos os problemas sociais.
A partir dessas considerações, podemos entender como ocorreu a
gradual desvalorização da mulher da sociedade, com o crescente interesse
pelo cuidado das crianças, e posteriormente, como a grande preocupação com

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Fe-

deral Fluminense.

127
Mariana Paganote Dornellas

o crescimento demográfico trouxe a aparente necessidade do controle da re-


produção, que se daria por meio do controle dos corpos femininos. Então,
analisaremos como a luta feminista pelos direitos das mulheres, que no início
baseava-se em reivindicações por um tratamento equânime ao dos homens,
reconheceu a possibilidade de regulação de fecundidade como fator essencial
para a emancipação da mulher em uma sociedade patriarcal. Dessa discussão
surge a noção de autodeterminação reprodutiva como um direito fundamen-
tal, que foi levada a conferências internacionais, onde foi sendo gradualmente
reconhecida. Assim, a questão passa a ser tratada dentro do âmbito dos direi-
tos humanos, do qual fazem parte os direitos reprodutivos, sendo a materni-
dade abordada em diversas conferências internacionais, ressaltando a exigên-
cia de que não seja uma tarefa relegada somente às mulheres, pois tal restrição
reduz suas liberdades e oportunidades.
Por fim, observaremos como as mudanças sociais transformaram a
ideia de maternidade, e como existe atualmente a necessidade de se repensar
a responsabilidade pelo cuidado com os filhos, pois somente quando esta não
for uma tarefa exclusiva da mulher, mas sim partilhada dentro da família e
com a sociedade, o exercício da autonomia reprodutiva poderá acontecer em
sua plenitude. A partir dessa ideia, analisaremos a legislação referente a essa
nova dimensão da parentalidade, como as alterações recentes no que diz res-
peito à licença-maternidade e licença-paternidade, alimentos gravídicos e
guarda compartilhada. Então, poderemos questionar qual o futuro da sexua-
lidade no direito e, mais especificadamente, qual o futuro da autonomia re-
produtiva, que exige a superação da divisão de papéis sociais por gênero, em
especial no que tange o cuidado com os filhos, com a ressignificação da pa-
rentalidade, para que se alcance a equidade entre os gêneros.

A valorização da infância e a invenção da maternidade

A partir da análise de Ariès (1981), podemos observar como o desen-


volvimento do sentimento de infância, relacionado com o sentimento de fa-
mília que nasceu com a burguesia, implicou na valorização da criança na so-
ciedade, e na consequente necessidade de se prescrever que alguém, no caso
a mãe, se responsabilizasse integralmente por seus cuidados. Por sentimento

128
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de infância Ariès não quis dizer afeição por crianças, e sim uma consciência
da particularidade infantil, daquilo que as distingue dos adultos e dos jovens.
O autor afirma que na sociedade medieval o sentimento de infância não exis-
tia, pois assim que a criança tinha independência o suficiente para viver sem
a solicitude constante da mãe ou da ama, ela passava a fazer parte da sociedade
dos adultos, sem distinguir-se destes, participando de todas as atividades so-
ciais, desde os jogos até as profissões. A criança pequena “não contava”, pois
apenas após sobreviver aos primeiros anos, em que a taxa de mortalidade era
muito alta, as crianças eram consideradas enquanto pessoas e se confundiam
com adultos. Ele descreve que:

Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda
nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram
consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, poucos anos
depois de um desmame tardio - ou seja, aproximadamente, aos sete anos de idade.
A partir desse momento, ingressavam imediatamente na grande comunidade dos
homens, participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos jo-
gos de todos os dias. O movimento da vida coletiva arrastava numa mesma tor-
rente as idades e as condições sociais, sem deixar a ninguém o tempo da solidão
e da intimidade. Nessas existências densas e coletivas, não havia lugar para um
setor privado. A família cumpria uma função - assegurava a transmissão da vida,
dos bens e dos nomes - mas não penetrava muito longe na sensibilidade. (ARIES,
1981, 275)

No entanto, a partir do século XVI, surge um novo sentimento de


infância, que Ariès denomina “paparicação”, em que a criança se torna uma
fonte de distração e de relaxamento para o adulto, por sua ingenuidade e
graça. Esse sentimento surgiu no meio familiar, entre as mulheres encarrega-
das de cuidar das crianças pequenas. Já o segundo sentimento de infância
descrito por Ariès surge século XVII entre padres, juristas e moralistas, e ba-
seava-se na noção de que as crianças, por sua natural inocência e fraqueza,
deveriam ser preservadas e disciplinadas, do que decorreria o dever dos adul-
tos de garantir sua educação, associada a grande preocupação moral, que in-
fluenciou toda a vida familiar. A partir do século XVIII encontramos um
novo elemento: a preocupação com a higiene e a saúde física. A esta altura
observamos que a criança já havia assumido um lugar central dentro da famí-
lia. (ARIES, 1981)

129
Mariana Paganote Dornellas

Essa nova preocupação com a educação verificada no segundo sen-


timento de infância descrito por Ariès transformou toda a sociedade, pois
então a família assumiu uma responsabilidade moral e espiritual sobre as cri-
anças, sendo formadora não só de corpos, mas de almas. Esse cuidado dis-
pensado às crianças foi o que, segundo Ariès, inspirou o sentimento moderno
de família. A moral da época impunha que os pais proporcionassem a todos
os filhos, e não mais somente ao primogênito, uma preparação para a vida
adulta, e foi convencionado que seria proporcionada pela escola. Dessa
forma, a aprendizagem tradicional, baseada na observação das atividades co-
tidianas dos adultos, foi substituída pela escola, um regime especial anterior à
integração das crianças à vida adulta. Assim, o autor defende que a família
moderna nasceu junto com o hábito geral de educar as crianças na escola, o
que gerou uma mudança no sentimento que permeava a realidade familiar,
que passou a basear-se na afeição.
Assim, o desenvolvimento do sentimento de família moderno, cen-
trado na infância, foi acompanhado por uma necessidade de intimidade e de
identidade, assim não só as crianças foram excluídas da vida comum, mas
grande parte do tempo e da preocupação dos adultos foi deslocada para o lar.
Este foi um fenômeno originariamente burguês, visto que surgiu como repú-
dio à antiga sociabilidade, em que a burguesia se retirou da sociedade para se
organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias fechadas, em
habitações previstas para a intimidade, protegidos contra toda contaminação
popular, existindo, portanto, uma importante relação entre o sentimento da
família e o sentimento de classe. (ARIES, 1981)
Ariès observa que que a partir do século XIV há uma degradação
progressiva e lenta da situação da mulher no lar, relacionada com esse novo
sentimento de família. Há uma perda sucessiva de direitos, até que no século
XVI a mulher casada torna-se incapaz, em decorrência de uma legislação que
reforçou a autoridade paterna e o poder do marido, estabelecendo uma espé-
cie de monarquia doméstica, submetendo todos os integrantes da família ao
homem. Assim, na medida em que a família modificou suas relações internas
com a criança, houve uma modificação de toda a sua estrutura, e a valorização
da infância gerou uma redução da liberdade e do poder da mulher dentro da
família. (ARIES, 1981)
Tal mudança na legislação e na organização da família correspondia
ao despertar de um novo interesse do Estado pela criança, que ocorre a partir

130
Qual o futuro da sexualidade no direito?

do fim do século XVIII, quando esta adquire um novo valor mercantil, sendo
potencialmente uma riqueza econômica, uma provisão que garantiria o pode-
rio militar do Estado. Então, segundo Badinter (1985), a ideologia dominante
passa a estabelecer uma nova imagem da mãe, e a criança é transposta para o
centro privilegiado de atenção da família, exigindo da mãe sacrifício e dedica-
ção. As primeiras mudanças de comportamento verificam-se no retorno ao
aleitamento pela própria mãe, não sendo mais uma tarefa destinada às amas,
e pelo abandono das faixas, que aprisionavam o bebê, mas permitiam maior
liberdade da mulher na realização de seus afazeres. A mãe deverá então dedi-
car todo o seu tempo ao filho, abdicando de sua liberdade em razão de uma
vigilância absoluta. Ademais, sua responsabilidade é ampliada, devendo dedi-
car-se não só aos cuidados iniciais com o bebê, mas com toda a educação da
criança, até a fase adulta, trabalho que a monopoliza totalmente e exige sua
presença efetiva no lar. Com a ressignificação do papel da maternidade, essa
função passa a ser impregnada por um ideal, com um vocabulário associado
à religião, que indica que um novo aspecto místico associado ao papel ma-
terno, em que a mãe é comparada a uma santa.
Badinter (1985) afirma que desde Rousseau até Freud, a “natureza
feminina” foi definida de modo a implicar nas características da boa mãe,
exaltando o senso de dedicação e sacrifício que caracterizaria a mulher dita
normal. Assim, a maternidade como concebida no século XIX por Rousseau
é entendida como sacerdócio, uma experiência feliz, mas que implica neces-
sariamente em sofrimento, no que foi seguido por Freud, que, ao estabelecer
as três características essenciais da personalidade feminina como passividade,
masoquismo e narcisismo, descartou a hipótese cultural e a social. Nos termos
de Badinter:

Ao que parece, pouco importava que a educação e todos os fatores de socia-


lização tenham incitado as mulheres a tomarem tais atitudes. Mais uma vez, o
adquirido era declarado inato, e Freud repetia o erro metodológico cometido por
Rousseau no Émile. Ambos pensavam descrever a natureza feminina e, na reali-
dade, não faziam mais do que reproduzir a mulher que tinham diante dos olhos.
(BADINTER, 1985)

No entanto, cabe salientar que houve resistência de muitas mulheres


a essa exigência de maternidade como atividade em tempo integral. Algumas,
por suas convicções feministas, o fizeram voluntariamente, mas a maioria

131
Mariana Paganote Dornellas

porque não tinha escolha. O segundo grupo foi o que provavelmente sofreu
mais, pois essas mulheres trabalhadoras não só enfrentavam uma dupla jor-
nada exaustiva como ainda viviam angustiadas por não poderem dedicar-se
aos filhos na forma que o discurso dominante julgava apropriada, carregando
a culpa de um provável fracasso dos filhos por não corresponderem ao ideal
de mulher e mãe que era veiculado.

Interesses demográficos do Estado e controle dos corpos femininos

Inicialmente, não havia uma política demográfica específica por parte


dos Estados nacionais, tanto na Europa quanto no Brasil, e as taxas de nata-
lidade eram muito altas, em parte em razão das altas taxas de mortalidade
infantil, atuando de forma a assegurar que pelo menos alguns filhos chegariam
à vida adulta e assim poderiam perpetuar a família. Havia ainda o apoio da
doutrina da Igreja Católica, que estabelecia que as pessoas deveriam ter tantos
filhos quanto Deus ou a natureza determinassem, seguindo a orientação bí-
blica do “crescei e multiplicai-vos”. Ademais, o tipo de organização da ativi-
dade econômica, com a economia de subsistência, em uma sociedade predo-
minantemente rural, favorecia um padrão de casamento precoce e a adoção
de famílias numerosas, que atuavam em conjunto na atividade agrícola.
(ALVES, 2005, 26)
Pode-se argumentar que os meios de regulação de fecundidade que
permitem maior controle das mulheres sobre a sua reprodução são recentes,
porém esta é uma ideia parcialmente equivocada, já que, embora a criação da
pílula anticoncepcional, em 1960, tenha sido um marco referencial no assunto,
tem-se notícia de mulheres que, desde tempos remotos, detinham conheci-
mento sobre chás e ervas que podiam ser utilizados como contraceptivos ou
abortivos, em especial no campo, mulheres estas que, pelos seus conhecimen-
tos, foram perseguidas durante a Inquisição, por serem consideradas bruxas.
No livro Malleus Maleficarum, publicado inicialmente em 1487, que se tornou
uma das principais obras da Inquisição, existe referência expressa a contra-
ceptivos, como poções ou ervas como a sabina e outros emenagogos, tidos
como violações à natureza, por impedir a concepção da mulher, e, por con-
seguinte, a procriação. (INSTITORIS, 1997)

132
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Na realidade, o saber médico-farmacológico surgiu com a apropria-


ção progressiva de conhecimentos que se originaram em um espaço tipica-
mente feminino, o da cozinha, do quintal, da horta, onde as mulheres prati-
cavam rotineiramente um saber sobre as doenças, as feridas, as dores e a pro-
criação. Este conhecimento foi sendo gradativamente reunido, catalogado e
utilizado pelos médicos, cuja intervenção no corpo feminino tornou-se deci-
siva no século XIX, com o avanço da obstetrícia, embora tivesse convivido
por muito tempo com as fórmulas caseiras usadas por comadres e parteiras.
(DEL PRIORI e AMANTINO, 2011)
Conforme relatamos anteriormente, a partir do século XVIII pode-
mos observar um aumento do interesse do Estado no controle da população,
e surgem os primeiros escritos sobre a relação entre demografia e desenvol-
vimento. O Marquês de Condorcet, inspirado nos princípios iluministas, foi
um dos primeiros teóricos a estabelecer uma relação entre população e demo-
cracia, em seu livro intitulado Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito
humano, publicado em 1794, e considerava que a pobreza, a miséria, as epide-
mias, as guerras e a fome poderiam ser vencidas por meio das reformas soci-
ais, da intervenção consciente do ser humano e da organização democrática
das nações. Ele possuía uma crença inabalável no progresso da humanidade,
com base na capacidade intelectual do ser humano, e acreditava que a popu-
lação conquistaria, nos séculos seguintes, níveis elevados de cidadania e pro-
gresso material e cultural, acompanhados de uma grande redução das taxas de
mortalidade e natalidade. (CONDORCET apud ALVES, 2005, 11)
Thomas Malthus, por outro lado, colocava o crescimento desenfre-
ado da população como a principal causa da pobreza, da miséria, da fome e
das guerras, conforme se infere de seu Ensaio sobre o princípio de população e seus
efeitos sobre o aperfeiçoamento futuro da sociedade, publicado em 1798. No entanto,
embora responsabilizasse o alto crescimento populacional (dos pobres) pelos
males da miséria, da fome e das guerras, Malthus opunha-se à regulação da
fecundidade e era radicalmente contra o aborto e a utilização de métodos
contraceptivos pelos casais, por motivos religiosos, visto que era sacerdote da
Igreja Anglicana. Malthus era defensor de políticas autoritárias, e defendia que
o salário de subsistência era uma forma de equilibrar as taxas de natalidade e
de mortalidade, pois sua redução causaria o aumento das taxas de mortalidade,
e que qualquer aumento de salário além do nível de subsistência incentivaria
o ócio e a bebedeira, sendo opositor da redução da jornada de trabalho e da

133
Mariana Paganote Dornellas

“lei dos pobres”. Malthus ia de encontro a qualquer ideia de cidadania, e con-


siderava a fome, as epidemias e as guerras freios positivos para o controle da
população. (MALTHUS apud ALVES, 2002, 17-22)
Após a Segunda Guerra Mundial, já num contexto de queda genera-
lizada das taxas de mortalidade em todo o mundo, em parte em decorrência
da melhoria do padrão de vida da população e a contribuição positiva do de-
senvolvimento econômico, e em parte devido às contribuições da inovação
médica, principalmente com a descoberta e difusão do uso de antibióticos,
dos programas de saúde pública, do acesso ao saneamento básico e da me-
lhoria da higiene pessoal, a preocupação se voltou para a manutenção das altas
taxas de fecundidade.
Então, as ideias de controle populacional foram retomadas pelos en-
tão denominados neomalthusianos, que sustentam que o alto crescimento de-
mográfico, especialmente em países pobres, é um entrave ao desenvolvi-
mento econômico, o que resultaria na perpetuação da pobreza e, ao longo
prazo, em impactos nocivos ao meio ambiente. Logo, seria indispensável um
rígido controle de natalidade, com a utilização de métodos contraceptivos
para reduzir a fecundidade, a esterilização e, em certos casos, até o aborto,
além do estabelecimento de metas demográficas e políticas populacionais res-
tritivas, inclusive por meio de métodos coercitivos de redução de natalidade.
(ALVES, 2002, 36)
O crescente interesse internacional em torno de temas como popu-
lação e saúde reprodutiva de mulheres e homens influenciou o aumento da
pesquisa e reflexão sobre sexualidade. Foucault (1988) afirma que a conduta
sexual da população é tomada, ao mesmo tempo, como objeto de análise e
alvo de intervenção, oscilando, segundo os objetivos e as urgências, em dire-
ção natalista ou anti-natalista. Ele explica que com a teoria política da popu-
lação forma-se toda uma teia de observações sobre o sexo, com a análise das
condutas sexuais, de suas determinações e efeitos, nos limites entre o bioló-
gico e o econômico, e surgem também campanhas sistemáticas que tentam
fazer do comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política
deliberada. Nesse contexto, o discurso dos pensadores neomalthusianos se
destaca por prescrever um maior controle sobre a reprodução, principalmente
a partir do controle sobre os corpos femininos, ainda que de forma coercitiva,
ignorando sua posição de sujeito.

134
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Feminismo e direitos humanos na construção


do direito à autonomia reprodutiva

Com a Revolução Francesa, tem início a construção da cidadania das


mulheres, pois a partir do processo de reivindicações por igualdade, liberdade
e fraternidade dos ideais iluministas, começou-se a perceber os lugares de de-
sigualdade na sociedade, e suas consequências. Inicialmente as mulheres rei-
vindicavam participação igualitária na sociedade, tendo como referência os
homens, ou seja, lutavam pelo direito de votar e de se educarem
(BUGLIONE, sem data). Nesse contexto, é relevante destacar o movimento
sufragista, que se iniciou no fim do séc. XIX e que inaugurou a mobilização
de mulheres na luta por direitos, em particular o direito ao voto, e que, por-
tanto, simboliza o início do movimento feminista.
Posteriormente, as ideias marxistas foram determinantes para a per-
cepção das formas de dominação entre os indivíduos, no entanto, elas abar-
cavam instâncias parciais das relações de poder. O movimento feminista des-
taca que além da opressão apresentada nas relações de classe e produção, era
necessário visualizar outras formas de dominação e opressão, levando-se em
conta que as estruturas de poder se constituem de forma complexa, através
de um conjunto de elementos, que podem ser morais, jurídicos e sociais, cri-
adores e legitimadores de relações de dominação (BUGLIONE, sem data).
Já na década de 60, destacam-se a publicização das condutas e da
cultura gay e lésbica, a perda do valor da virgindade, além da conquista do
gerenciamento da reprodução, por meio da pílula anticoncepcional, que con-
tribuiu diretamente para desvincular a relação sexual da reprodução, refle-
tindo significativamente nas relações sociais. Neste contexto, ganha relevância
a pandemia HIV/AIDS, que interagiu com a construção de agendas em torno
dos interesses feministas e gays, indicando uma mudança nas práticas sociais,
pensando a sexualidade por uma perspectiva de construção social e não me-
ramente biológica, e estabelecendo o direito à livre orientação sexual
(BUGLIONE, sem data).
O movimento feminista começou então a ganhar força na busca por
direitos iguais entre homens e mulheres, representando o rompimento do
processo social de construção da opressão do feminino, e deu especial rele-
vância à possibilidade de regulação de fecundidade como forma de emanci-
pação da mulher em uma sociedade patriarcal. Assim, o movimento feminista

135
Mariana Paganote Dornellas

ingressou na discussão sob a perspectiva do direito à autodeterminação re-


produtiva, propondo a liberdade de escolha das pessoas sobre sua reprodu-
ção, a partir de decisões informadas.
Dessa forma, o feminismo lançou os questionamentos e a ideias que
vão historicamente produzir o conceito de direitos reprodutivos, inovando ao
tratar a reprodução como uma dimensão da cidadania. A luta no campo ide-
ológico para romper com a moral conservadora, que prescrevia para as mu-
lheres a submissão da sexualidade à reprodução, teve um significado muito
forte na história da prática política e do pensamento feministas, que revelou
que a liberdade das mulheres estava diretamente relacionada à sua autonomia
de decisão na vida reprodutiva. Logo, numa perspectiva de direitos humanos
e cidadania, as pessoas (sobretudo as mulheres) deixam de ser objetos dos
interesses do Estado ou da Igreja e tornam-se sujeitos de seus desejos e cons-
ciências (ÁVILA, 2003).
É natural que, com maior desenvolvimento num contexto de igual-
dade de gênero, as mulheres escolham ter um número menor de filhos, con-
forme observado por Amartya Sen (2000). Ao fazer uma relação entre desen-
volvimento e liberdade, o autor chegou à conclusão que o reconhecimento da
condição de agente das mulheres é particularmente importante para a trans-
formação no padrão de fecundidade, visto que as mulheres são as mais afeta-
das pelos efeitos adversos de taxas de natalidade elevadas, que incluem a ne-
gação de liberdades substanciais, devido a gestações frequentes e ao inces-
sante trabalho de criar os filhos. Assim, não surpreende que reduções nas
taxas de natalidade tenham com frequência decorrido da melhora do status e
do poder das mulheres.
Essa discussão acerca da autodeterminação reprodutiva como um di-
reito fundamental foi levada a conferências internacionais, onde foi sendo
gradualmente reconhecida e então definida. É importante salientar que os di-
reitos humanos, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou
seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas pela luta contra antigos
poderes em defesa de novas liberdades, que emergem gradativamente das lu-
tas que os seres humanos travam por sua própria emancipação e das transfor-
mações das condições de vida que essas lutas produzem (BOBBIO, 2004).
A Declaração Universal de 1948 definiu como princípios a universa-
lidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos. No en-
tanto, a emergência dos direitos reprodutivos como direitos humanos é um

136
Qual o futuro da sexualidade no direito?

fenômeno mais recente, que tem sua consolidação nos recentes instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos.
A primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos, que aconte-
ceu em Teerã, em 1968, representou a gradual passagem da fase legislativa, de
elaboração dos primeiros instrumentos internacionais de direitos humanos, à
fase de implementação de tais instrumentos, e nela foi proclamado, em seu
item 16, que os pais têm o direito humano fundamental de determinar livre-
mente o número de filhos e o intervalo entre os seus nascimentos
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1968).
O debate entre população e cidadania voltou ao centro da política
internacional durante a Conferência Mundial sobre População e Desenvolvi-
mento de Bucareste, promovida pela primeira vez pela ONU em 1974. A
maioria dos países se posicionou contra o avanço das ideias neomalthusianas,
sendo afirmado que “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo”. Em
1984, quando foi realizada na Cidade do México a segunda Conferência de
População organizada pela ONU, a maioria dos países em desenvolvimento
se mostrava mais aberta à ideia do planejamento familiar (ALVES, 2005, 13).
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discrimina-
ção Contra a Mulher, adotada pela Resolução 34/180 da Assembleia Geral
das Nações Unidas, em dezembro de 1979 e ratificada pelo Brasil em feve-
reiro de 1984, estabelece como essencial para eliminar a discriminação contra
a mulher, a fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem, que
os Estados tomem todas as medidas apropriadas para garantir que a educação
familiar inclua uma compreensão adequada da maternidade como função so-
cial e o reconhecimento da responsabilidade comum de homens e mulheres,
no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de seus filhos.
A Convenção estipulou também que os Estados devem tomar as
medidas adequadas para impedir a discriminação contra a mulher por razões
de maternidade, assegurando a efetividade de seu direito a trabalhar, por meio
da proibição de demissão por motivo de gravidez ou de licença-maternidade;
da implementação de licença-maternidade, com salário pago ou benefícios so-
ciais comparáveis, sem perda do emprego anterior; do estímulo ao forneci-
mento de serviços sociais de apoio necessários para permitir que os pais com-
binem as obrigações para com a família com as responsabilidades do trabalho
e a participação na vida pública, especialmente mediante o fomento da criação
e desenvolvimento de uma rede de serviços destinada ao cuidado das crianças;

137
Mariana Paganote Dornellas

e proteção especial às mulheres durante a gravidez nos tipos de trabalho com-


provadamente prejudiciais a elas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS, 1979).
Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
realizada no Cairo, em 1994, a questão populacional foi tratada de maneira
ampla e não exclusivamente associada ao debate sobre crescimento econô-
mico, mas incluindo as perspectivas do desenvolvimento social, do meio am-
biente e dos direitos humanos. A conjuntura favorável permitiu a participação
de organizações não-governamentais (ONGs), incluindo movimentos de mu-
lheres, grupos de ambientalistas e de defensores dos direitos humanos, o que
fez com que a Plataforma do Cairo conseguisse pautar a questão da população
dentro dos marcos da cidadania, estabelecendo o conceito atual de direitos
reprodutivos (ALVES, 2005, 13 e 14).
O plano de ação desta conferência trouxe um novo paradigma para
o debate sobre população, deslocando da questão demográfica para o campo
das questões concernentes aos direitos humanos, e, mais especificadamente,
para o âmbito dos direitos reprodutivos como direitos humanos. De acordo
com sua definição:

os direitos de reprodução abrangem certos direitos humanos já reconhecidos


em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em
outros documentos de acordos. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito
básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre
o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e
os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual
e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução,
livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos
sobre direitos humanos. No exercício desse direito, devem levar em consideração
as necessidades de seus filhos atuais e futuros e suas responsabilidades para com
a comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos por todo in-
divíduo deve ser a base fundamental de políticas e programas de governos e da
comunidade na área da saúde reprodutiva, inclusive o planejamento familiar
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1994).

Os direitos reprodutivos fundamentam-se então no reconhecimento


do direito básico dos indivíduos de decidir livremente e de maneira informada
sobre sua vida reprodutiva e, embora esse plano de ação não possua o status
de lei internacional, como as convenções e os pactos, possui poder normativo

138
Qual o futuro da sexualidade no direito?

porque interpreta e traça diretrizes para a implementação das leis internacio-


nais no campo das políticas públicas (VENTURA, 2003).
Em 1995, foi realizada em Pequim a Quarta Conferência Mundial
sobre a Mulher, onde foi reafirmado o compromisso de combater as limita-
ções e obstáculos e promover o avanço e o fortalecimento da mulher em todo
o mundo; garantir a plena observância dos direitos humanos das mulheres e
meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais (PIOVESAN, 2012).
Nesta conferência reconheceu-se que as mulheres desempenham
uma função decisiva na família, trazendo grande contribuição ao bem-estar
da família e ao desenvolvimento da sociedade, o que ainda não é reconhecido
em sua plena importância. Logo, mostrou-se necessário o reconhecimento da
importância social da maternidade e da função de ambos os progenitores na
família, assim como na criação dos filhos, pois a criação dos filhos requer que
os progenitores, mulheres e homens, assim como a sociedade em seu con-
junto, compartilhem responsabilidades. O texto da conferência indica que a
maternidade, a condição de progenitora e a função da mulher na procriação
não devem ser motivo de discriminação nem limitar a plena participação da
mulher na sociedade (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1995).
Assim, um dos objetivos estratégicos da conferência é promover a
independência econômica das mulheres e seus direitos econômicos, por meio
eliminação das práticas discriminatórias dos empregadores, tais como a recusa
de contratação ou demissão motivadas pela gravidez ou amamentação, a exi-
gência do uso de contraceptivos, discriminação de mulheres grávidas, que es-
tão em licença-maternidade ou que se reintegram ao mercado de trabalho de-
pois de dar à luz. Ademais, o texto da conferência ressalta que a maternidade
precoce continua sendo um impedimento para a melhoria da condição edu-
cativa, econômica e social das mulheres em todas as partes do mundo, pois
podem reduzir severamente as oportunidades de educação e trabalho da mu-
lher, bem como sua qualidade de vida e a dos seus filhos (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1995).
Assim, os textos das conferências internacionais reafirmam os direi-
tos das mulheres como parte indivisível dos direitos humanos, com ênfase
nos direitos reprodutivos, e ressaltam a importância do reconhecimento da
maternidade como um elemento que limita a vida das mulheres em diversos

139
Mariana Paganote Dornellas

aspectos, como por meio da discriminação no ambiente de trabalho, pro-


pondo que ambos os genitores e a sociedade compartilhem do cuidado das
crianças para que a reprodução não seja uma causa de desigualdade de gênero
na sociedade.

Reflexões sobre autonomia reprodutiva e parentalidade num futuro


de equidade de gênero e suas recentes alterações legislativas

Partindo da noção de direitos reprodutivos como direitos humanos,


e observando que a autonomia reprodutiva é diretamente relacionada ao exer-
cício pleno desses direitos, depreendemos que a reprodução deve ser uma
escolha da mulher, que deve ter acesso às informações e aos métodos neces-
sários para regular sua fecundidade, mas que não se limita a isso. Esses direitos
não seriam efetivamente assegurados se as mulheres que escolhessem ter fi-
lhos tivessem diversas limitações em sua liberdade e em suas oportunidades
em decorrência disso. Assim, para o exercício da autonomia reprodutiva, é
necessário não apenas que as mulheres tenham liberdade de escolha quanto a
possibilidade de ter filhos ou não, mas também que essa escolha não repre-
sente uma renúncia a outros direitos.
Cabe observar que toda a mística em torno da figura materna associ-
ada à valorização da infância vem sendo mitigada nos últimos anos. Badinter
afirma que a importância da maternidade para as mulheres vem sendo redu-
zida pois elas perceberam que a maternidade torna sua situação no lar mais
assimétrica em relação a de seus companheiros, não sendo mais esta conside-
rada uma necessidade inquestionável para sua realização pessoal e felicidade.
Pelo contrário, segundo a autora, para muitas mulheres a maternidade tal
como é vivida há séculos é apenas o lugar da alienação e da exploração femi-
ninas, sendo necessária uma "dissociação entre a procriação e a criação dos
filhos como incumbência exclusiva das mulheres, única condição da existên-
cia de uma opção na maternidade" (1985, 261).
No entanto, ela afirma que podemos observar também um interesse
cada vez maior dos pais pelos filhos, principalmente entre os homens mais
jovens, se afastando da figura de autoridade distante e buscando novas formas
de se relacionarem com as crianças, com mais proximidade e com a prática
de comportamentos tidos anteriormente como maternos. Badinter (1985) fala

140
Qual o futuro da sexualidade no direito?

mesmo de uma “revolução da mentalidade masculina”, em que alguns ho-


mens questionam o modelo de masculinidade que lhes é imposto, exigindo
participar ativamente da gravidez, do parto e das tarefas diárias do cuidado
com o bebê, embora esses casos ainda representem a minoria.
Outra importante mudança indicada por Badinter (1985) diz respeito
ao fato de que cada vez mais as mulheres optam por trabalhar fora de casa,
ainda que não seja por necessidade econômica da família, por considerarem
que o trabalho fora de casa representa um meio de realização e de desenvol-
vimento da personalidade que ultrapassa a maternidade e as tarefas domésti-
cas. No entanto, ainda que as mulheres desempenhem trabalho remunerado
fora de casa, o problema persiste, pois elas continuam desempenhando tam-
bém a maior parte do trabalho doméstico, em uma dupla jornada de trabalho
que as sobrecarrega, ainda mais se tiverem filhos2.
Assim, as mulheres partilham do trabalho de mercado, junto com os
seus maridos, mas quando voltam para casa tem ainda que fazer praticamente
todo o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos, pois não houve uma
divisão das tarefas entre o casal, só o incremento de trabalho para a mulher.
Isso se relaciona a outro fator importante, que é a discriminação contra as
mulheres no mercado de trabalho, evidenciada pelos salários mais baixos, pela
dificuldade de admissão e ascensão profissional em virtude da possibilidade
de engravidarem, além da demissão decorrente de gravidez ou no período de
licença maternidade. Isso se dá porque às mulheres foi imposta toda a res-

2 De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),

entre 2001 e 2005, verifica-se que somente 51,1% dos homens realizam afazeres domésticos
enquanto que entre as mulheres esse percentual é de 90,6%. A participação feminina no
mercado de trabalho não acarreta o abandono das tarefas domésticas, pois, conforme a pes-
quisa, entre as mulheres ocupadas, 92% realizam afazeres domésticos, enquanto para os ho-
mens ocupados esse percentual é de 51,6%. Além disso, as mulheres dedicam mais que o
dobro do tempo dos homens com atividades domésticas, e, considerando a jornada do tra-
balho remunerado mais as atividades domésticas, as mulheres trabalham cerca de cinco horas
a mais que os homens por semana. É importante ressaltar que essa desigualdade se acentua
ao se considerar o rendimento, visto que as mulheres recebem menos por hora trabalhada
que os homens com a mesma escolaridade, e que não recebem qualquer remuneração pelos
afazeres domésticos. As mulheres em famílias formadas por casal com filhos menores de 14
anos são as que despendem maior tempo com afazeres domésticos (29 horas semanais), e a
análise das jornadas médias nos arranjos familiares ‘casal sem filhos’ e ‘casal com filhos’ mos-
tram que a jornada feminina aumenta com a presença de filhos na família, independente do
rendimento familiar, mas que a jornada dos homens nessa situação diminui (SOARES e
SABÓIA, 2007).

141
Mariana Paganote Dornellas

ponsabilidade social pela reprodução e cuidado dos filhos, então todas as ou-
tras atividades acabam tornando-se secundárias, desvalorizando assim o tra-
balho feminino.
Dessa forma, o exercício pleno dos direitos reprodutivos parte da
reorganização do que é público e o que é privado, com a extinção dessa divi-
são, e com o estabelecimento da igualdade de gênero em toda a sociedade.
Somente através de mudanças sociais estruturais, no seio das famílias, com a
reorganização da divisão do trabalho doméstico e de cuidado com os filhos,
que reflete na diferença de remuneração e de oportunidades no trabalho de
mercado, poderemos viver em um mundo onde a maternidade não seja um
ônus para a mulher, mas que implique em responsabilidades e prazeres a se-
rem compartilhados por ambos os cônjuges. Por mais que tenham sido reali-
zadas mudanças no espaço público, enquanto não houver uma transformação
na forma de organização das tarefas dentro da família, a desigualdade persis-
tirá, tendo em vista que as mulheres não podem conquistar novos espaços na
esfera pública sobrecarregadas com o trabalho da esfera privada.
Analisaremos a seguir as alterações recentes da legislação brasileira
no que diz respeito a parentalidade, inicialmente por meio da legislação traba-
lhista, com a licença-maternidade e a licença-paternidade, que sofreram mu-
danças com a Lei da Primeira Infância, que tem previsões que buscam reduzir
a disparidade de tratamento de homens e mulheres no cuidado inicial com os
filhos. Então, seguiremos com a análise da legislação civil, em especial as ino-
vações como a guarda compartilhada e os alimentos gravídicos, que instituem
maior participação paterna no cuidado com a criança, até mesmo antes de seu
nascimento.
Já em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL. Decreto-
lei nº 5.452, 1943) previu a licença-maternidade para as mulheres que tivessem
filhos, sem que houvesse previsão semelhante para os homens, visto que o
cuidado com os filhos era (e ainda é) considerado uma responsabilidade da
mulher, principalmente no período neonatal. Havia uma seção destinada so-
mente à proteção da maternidade, que vedava o trabalho da mulher grávida
no período de seis semanas antes e seis semanas depois do parto, indicando
que ela teria direito aos salários integrais durante esse período. Desde logo foi
instituído o direito a dois descansos especiais durante a jornada de trabalho,
de meia hora cada um, para que a mulher amamentasse o próprio filho, até
que este complete seis meses de idade. Após sucessivas alterações, a redação

142
Qual o futuro da sexualidade no direito?

oficial atual, instituída pela Lei nº 10.421/02, determina que a empregada ges-
tante tem direito à licença-maternidade de cento e vinte dias, sem prejuízo do
emprego e do salário, sendo mantidos os descansos especiais.
Uma inovação importante, trazida pela Lei nº 12.873/13, é a previsão
de que, em caso de morte da genitora, é assegurado ao cônjuge ou compa-
nheiro empregado o gozo de licença por todo o período da licença-materni-
dade ou pelo tempo restante a que teria direito a mãe, exceto no caso de fale-
cimento do filho ou de seu abandono. Aqui observa-se que a mulher é con-
siderada a principal responsável pelo cuidado do recém-nascido, mas que na
falta desta, o homem terá direito à licença pelo mesmo prazo que tinha a mu-
lher, para que a criança não fique desamparada. Assim, infere-se que o cui-
dado da criança é uma tarefa que pode ser realizada tanto pelo pai quanto pela
mãe, ainda que nos primeiros dias de vida, pois ambos são responsáveis e
igualmente capazes de desenvolvê-las (BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, 1943).
Ainda sobre o tema, a Lei 11.770/08 foi instituída para prorrogar por
sessenta dias a duração da licença-maternidade prevista na Constituição Fe-
deral, por meio do Programa Empresa Cidadã. Essa prorrogação é garantida
à empregada da pessoa jurídica que aderir ao Programa, desde que ela a re-
queira até o final do primeiro mês após o parto, e concedida imediatamente
após a fruição da licença-maternidade prevista na Constituição Federal. A re-
ferida lei institui ainda que durante o período de prorrogação da licença-ma-
ternidade, a empregada tem direito à sua remuneração integral, nos mesmos
moldes devidos no período de percepção do salário-maternidade pago pelo
regime geral de previdência social. Assim, essa trabalhadora teria, ao final, até
seis meses de licença-maternidade, computando o tempo previsto na Consti-
tuição e a prorrogação instituída pela lei (BRASIL. Decreto-lei nº 5.452,
1943).
Cabe salientar que uma das explicações para a persistente diferença
de salários entre homens e mulheres é a participação intermitente destas no
mercado de trabalho, pois muitas acabam se afastando nos primeiros anos
após o nascimento dos filhos, para dedicarem-se ao cuidado deles. Isso oca-
siona uma redução em seus salários em comparação ao dos homens, pois leva
as empresas a não investir no capital humano de mulheres, e a alocar as tra-
balhadoras em idade fértil em ocupações com menor treinamento e menores
possibilidades de ascensão profissional. Ademais, quando retornam ao mer-
cado de trabalho após alguns anos, as mulheres recebem salários inferiores ao

143
Mariana Paganote Dornellas

que recebiam anteriormente, e podem ter dificuldades para recolocação pro-


fissional (DE CARVALHO; FIRPO; GONZAGA, 2006).
Assim, uma licença-maternidade mais longa é importante pois pode
alterar esse padrão de participação intermitente da mulher no mercado de tra-
balho, evitando a decisão de se retirar da força de trabalho com o nascimento
do filho, o que tem impacto sobre seus salários e empregos. No entanto, ao
conceder à mulher uma licença muito mais longa que aos homens, o Estado
está implicitamente reconhecendo que o cuidado com os filhos é responsabi-
lidade predominantemente feminina, contribuindo para a manutenção da di-
visão sexual do trabalho doméstico (DE CARVALHO; FIRPO;
GONZAGA, 2006).
A Lei 13.257/16 (BRASIL, 2016), conhecida como Lei da Primeira
Infância, trouxe algumas mudanças importantes nesse sentido, prevendo que
os genitores possuem responsabilidade igual no cuidado das crianças, que
deve ser compartilhado, prevendo as formas em que a sociedade pode parti-
cipar da proteção e promoção da criança e prevendo a prorrogação da licença-
paternidade. Dessa forma, a lei alterou o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, acrescentando o parágrafo único em seu art. 22, que indica que a mãe
e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades
compartilhados no cuidado e na educação da criança. Ademais, listou as for-
mas pelas quais a sociedade participa solidariamente com a família e o Estado
da proteção e da promoção da criança na primeira infância, em consonância
com o art. 204 da Constituição Federal, como por meio da criação, apoio e
participação em redes de proteção e cuidado à criança nas comunidades ou
com a promoção de campanhas e ações que visem a aprofundar a consciência
social sobre o significado da primeira infância no desenvolvimento do ser hu-
mano. Ela alterou ainda a Lei 11.770/08, incluindo a prorrogação da licença-
paternidade, por quinze dias, além dos cinco dias estabelecidos no § 1º do art.
10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, garantida ao empre-
gado da pessoa jurídica que aderir ao Programa Empresa Cidadã, desde que
ele a requeira no prazo de dois dias úteis após o parto e comprove participação
em programa ou atividade de orientação sobre paternidade responsável, asse-
gurado seu direito à remuneração integral.
A Lei 11.804/08 (BRASIL, 2008), por sua vez, disciplinou o direito
da gestante aos alimentos gravídicos, que devem ser custeados pelo futuro
pai, ressaltada a obrigação complementar em caráter subsidiário dos avós,

144
Qual o futuro da sexualidade no direito?

conforme previsão do Código Civil. Estes alimentos são destinados à mulher,


para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez, da concepção ao
parto, incluindo alimentação especial, assistência médica e psicológica, exa-
mes complementares, internações, parto, medicamentos e demais necessida-
des indicadas pelo médico. O juiz fixará os alimentos gravídicos quando con-
vencido da existência de indícios da paternidade, e para tanto sopesará as ne-
cessidades da gestante e a do suposto pai. Segundo Maria Berenice Dias
(2016), no impasse entre a dúvida pelo suposto pai e a necessidade da mãe e
do filho, prevalece a necessidade da gestante, no limite das despesas decor-
rentes da gravidez.
Após o nascimento da criança, os alimentos gravídicos são converti-
dos em pensão alimentícia em favor desta, até que uma das partes solicite a
sua revisão, visto que os parâmetros para o estabelecimento do valor dos ali-
mentos gravídicos e da pensão alimentícia é diverso, pois no segundo caso é
necessário o atendimento do critério da proporcionalidade entre as condições
econômicas do genitor e as necessidades da criança, que tem o direito de viver
de modo compatível com a sua condição social, de acordo com o Código
Civil. Cabe salientar que, comprovada má-fé da gestante ao imputar a um ho-
mem a paternidade de um filho que saber não ser seu, há o dever de indenizá-
lo, cabendo inclusive a imposição de danos morais, ainda que em geral os
alimentos sejam irrepetíveis. Assim sendo, a previsão de alimentos gravídicos
é importante porque revela a responsabilidade do pai pela criança desde a
gestação, fazendo com que a mulher não tenha mais que suportar todos os
encargos decorrentes desta condição sozinha, sendo possível inclusive de re-
embolso destas despesas após o nascimento (DIAS, 2016).
A Lei 13.058/14 (BRASIL, 2014), também chamada de Lei da Igual-
dade Parental, alterou o Código Civil para regulamentar a guarda comparti-
lhada, que consiste na responsabilização conjunta e o exercício de direitos e
deveres referentes ao poder familiar pelo pai e pela mãe que não vivam sob o
mesmo teto. A lei determina que na guarda compartilhada o tempo de conví-
vio dos genitores com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada, vi-
sando sempre o interesse dos filhos, ainda quando não houver acordo entre
a mãe e o pai. Segundo Maria Berenice Dias:

É a modalidade de convivência que garante, de forma efetiva, a corresponsa-


bilidade parental, a permanência da vinculação mais estrita e a ampla participação

145
Mariana Paganote Dornellas

de ambos na formação e educação do filho, o que a simples visitação não dá es-


paço. (...) A preferência legal é pelo compartilhamento, pois garante maior parti-
cipação de ambos os pais no crescimento e desenvolvimento da prole. O modelo
de corresponsabilidade é um avanço. Retira da guarda a ideia de posse e propicia
a continuidade da relação dos filhos com ambos os pais. A regra passou a ser a
guarda compartilhada (DIAS, 2016).

Dessa forma, com a guarda compartilhada a responsabilidade pelos


filhos deve ser realizada de forma conjunta pelos genitores, com uma divisão
equilibrada do tempo de convívio com eles. Essa é uma previsão importante
que reflete as mudanças sociais no que diz respeito à maternidade/paterni-
dade, posto que não cabe mais a antiga divisão entre a mãe cuidadora, res-
ponsável pela guarda do menor (e todos os cuidados a ela inerentes), e o pai
provedor, que resume sua participação na vida da criança a uma pensão ali-
mentícia mensal e visitas esporádicas. A regra hoje é a participação de ambos
de forma conjunta e mais igualitária, visando o interesse da criança.
Nesse contexto, repudiamos a naturalização da responsabilidade ex-
clusiva das mulheres no cuidado das crianças. A Constituição de 1988
(BRASIL, 1988) institui, no seu artigo 227, que é dever da família, da socie-
dade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cul-
tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comuni-
tária. Assim, devemos compreender que o interesse pelo bem-estar das crian-
ças ultrapassa o âmbito familiar e se estende a toda a sociedade, não sendo
uma atribuição exclusiva da mãe, nem mesmo da família. Apenas quando toda
a sociedade se responsabilizar pelas crianças na forma do mandamento cons-
titucional, a tarefa de cuidar dos filhos não vai ser um fardo que implique na
restrição de direitos das mulheres.
Por fim, para que a igualdade de gênero se estabeleça de forma efetiva
em toda a sociedade, é imprescindível que haja maior participação dos ho-
mens no trabalho doméstico e de cuidados com os filhos, de forma paritária,
bem como o fim da discriminação contra a mulher no mercado de trabalho,
que decorre em grande parte da forma como concebemos a maternidade atu-
almente. Só poderemos exercer plenamente nossos direitos reprodutivos a
partir de uma mudança de paradigma no que diz respeito à parentalidade, que
elimine a diferenciação entre maternidade e paternidade, para que as tarefas

146
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de cuidado com as crianças sejam compartilhadas igualmente dentro da famí-


lia, com o apoio de toda a sociedade. Assim, podemos refletir sobre o futuro
da sexualidade no direito e, particularmente, o futuro da autonomia reprodu-
tiva, a partir da ressignificação da parentalidade, com a superação da divisão
de papéis sociais por gênero, em especial no que tange ao cuidado com os
filhos, para que se alcance a equidade entre os gêneros.

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6
O “PEDÁGIO DA NATUREZA”:
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NOS DEBATES JURÍDICOS SOBRE
HOMOSSEXUALIDADES E TRANSEXUALIDADES

Thiago Coacci1

Q ual o futuro para a sexualidade no Direito? Essa é a per-


gunta proposta pelos organizadores deste livro para costu-
rar o debate. Gostaria de começar afirmando que essa é
uma pergunta impertinente2. É impertinente, em um primeiro sentido, em
função das figuras que imediatamente emergem em nossa mente ao pensar
sobre o futuro: a criança e o velho. Duas figuras sobre as quais impera o taboo
da sexualidade, que possuem sua sexualidade extremamente controlada e até
interditada. A criança é vigiada o tempo todo para que não tenha sua pureza
perturbada. Não se masturbe! Não assista pornografia! Dizem os adultos res-
ponsáveis. Para o velho, o taboo impõe uma imagem da pessoa velha como
assexuada e por oposição a figura do velho tarado, para classificar aquelas
pessoas que ousam ser sexualizados.

1 Advogado. Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas

Gerais. É pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM/UFMG).


2 Minhas breves reflexões sobre temporalidade e futuro são influenciadas por contato

pouco sistemático com o debate que vem sendo travado há alguns anos sobre temporalidades
queer. Um interessante balanço desse debate pode ser visto em (DINSHAW et al., 2007)

151
Thiago Coacci

É impertinente, em um segundo sentido, porque o próprio futuro é


tantas vezes negado a nós, pessoas LGBT, que somos assassinadas diaria-
mente pelo Brasil, que morremos em consequência da AIDS e do abandono
estatal. Qual futuro me pertence se posso ser assassinado antes mesmo deste
texto ser publicado? Em um terceiro sentido, é possível pensar ainda que a
forma como contamos a passagem do tempo e que projetamos um futuro é
um tanto quanto heterossexual e cisgênera, são histórias lineares da continui-
dade da espécie pela reprodução heterossexual das famílias. São histórias que
muitas vezes não cabem toda a complexidade de nossas vidas marginais, se-
não como anedotas jocosas do “tio” que “se vestia de mulher” ou da tia que
“morava com a amiga”.
Por outro lado, justamente por ser um tanto quanto impertinente, se
torna uma pergunta interessante e fundamental. Será possível repensar a his-
tória e o futuro de outra maneira? Construir narrativas do tempo que não
sejam tão centradas na história da reprodução heterossexual? Será possível
construir futuros possíveis que não sejam contaminados pela cisheteronor-
matividade, em que o Direito seja reinventado para suportar as vidas das pes-
soas LGBT sem exigir que essas se assimilem a padrões de normalidade he-
gemônica? Será possível escapar de tudo isso sem cair na armadilha de cons-
truir uma narrativa da progressão da sociedade? Não tenho tanta certeza, mas
gostaria de tentar. A minha forma de colaborar com esse projeto, no entanto,
é um pouco peculiar. Não me proponho a fazer um estudo histórico, nem a
imaginar um futuro propriamente dito. Buscarei olhar o presente e o passado
recente, exercendo um esforço crítico sobre esses, para resistir a algumas li-
nhas de força pelas quais o poder tem conformado o gênero e a sexualidade.
Espero, com isso, ampliar o horizonte de futuros possíveis.
Para essa minha contribuição, não focarei em um direito específico,
mas antes em uma estratégia argumentativa. Ao realizar pesquisas empíricas
sobre julgamentos que são atravessados pela homossexualidade e transexua-
lidade me deparei com uma estratégia discursiva que apelidei de “pedágio da
natureza”. Isto é, ao decidir sobre os direitos das pessoas LGBT, invariavel-
mente, os e as magistradas passavam, em suas decisões, por debates sobre a
natureza da homossexualidade, da transexualidade ou da família. Percebi
ainda que esse debate podia tomar diversos rumos e influenciar de forma di-
versa as decisões. Mas por que esses debates aparecem tão frequentemente e

152
Qual o futuro da sexualidade no direito?

qual função exercem dentro da argumentação jurídico-política? Por que a per-


gunta sobre a natureza é relevante para a solução desses casos? Essas são as
questões que buscarei responder aqui.

Metodologia

Não há uma quantificação sobre a presença do “pedágio da natureza”


nos casos, mas as pesquisas empíricas que mapearam e a analisaram disputas
jurídicas relacionadas às homossexualidades e transexualidades insistem pela
quase onipresença desse debate sobre a natureza, de forma implícita ou explí-
cita (COACCI, 2013a, 2014; OLIVEIRA, 2009). Essa quantificação, embora
interessante, é dispensável para a presente discussão, uma vez que pretendo
analisar aqui casos em que efetivamente o pedágio foi pago, interpretando-o
como uma estratégia discursiva que traz consequências práticas para os casos
e para o Direito.
Para isso, dentre o universo de casos julgados sobre uniões entre pes-
soas de mesmo gênero3 e retificação de registro civil de pessoas trans, optei
por analisar dois votos, proferidos em acórdãos diferentes4. O voto do Minis-
tro Ayres Brito, no julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4277, pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) e o voto do Desembargador Almeida Melo,
na Apelação Cível Nº 1.0000.00.296076-3/000, pelo Tribunal de Justiça de
Minas Gerais.
Tal escolha não foi aleatória, mas influenciada pela argumentação de
Gerring (2007) de que em estudos de caso a escolha intencional pode ser mais
produtiva. Para realizar a seleção, levei em conta a diversidade quanto: (a) o
resultado buscado com o uso da natureza; (b) o direito em discussão, e (c) a
visibilidade que o pedágio da natureza possui no voto. Optei ainda por esco-
lher um caso do STF e outro do TJMG, sendo que o caso desse tribunal é
anterior ao julgamento daquele. Isso demonstra que o pedágio efetivamente
ocorre nos mais variados níveis da justiça e que não é uma mera consequência
de um julgamento vinculante do tribunal hierarquicamente superior.

3 Faço a opção por utilizar o termo gênero em detrimento do termo sexo ao longo do

texto. Todavia, ao descrever os casos adoto os termos êmicos utilizados por quem proferiu
cada voto.
4 Para mais informações sobre a estrutura dos acórdãos e seus usos em pesquisas empíricas

ver Coacci (2013b)

153
Thiago Coacci
Quadro 1

DESCRIÇÃO DOS CASOS SELECIONADOS

Número 1.0000.00.296076-3/000 132 e 4277

Tipo de
Apelação Cível ADPF e ADI
Recurso

Tribunal TJMG STF

Ano 2003 2011

Relator Almeida Melo Ayres Britto

Retificação de nome e União Estável


Tema
gênero (transexualidade) (homossexualidade)

Visibilidade Explícito Implícito

Uso da
Recusar Conceder
Natureza
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de
Minas Gerais, 2003 e Brasil, 2011

A análise se restringirá apenas ao voto vencedor de cada caso, pois é


ele que orienta os efeitos jurídicos que se concretizarão, mas é preciso reco-
nhecer que nas divergências e até mesmo nos votos concordantes há diferen-
tes pedágios da natureza que poderiam ser analisados. No que se segue, re-
construirei os votos, trazendo à tona como a ideia de natureza é mobilizada e
como essa se articulou para produzir distintos efeitos jurídicos. Reconheço,
ainda, que com essa reconstrução focada, algumas discussões jurídicas rele-
vantes podem passar para segundo plano ou até mesmo desaparecer, o que
não significa que sejam irrelevantes para o caso.

154
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Apelação Cível 1.0000.00.296076-3/000

A Apelação Cível (AP) 1.0000.00.296076-3/000 foi julgada em


março de 2003, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O caso teve origem
com uma ação em que uma mulher transexual ou travesti (o acórdão não dá
informações suficientes para se saber), após realizar a cirurgia de transgenita-
lização ingressa na justiça para retificar seu nome e sexo. Em primeira instân-
cia, os pedidos foram deferidos, mas o Ministério Público de Minas Gerais
recorreu, buscando reverter o resultado.
O acórdão foi relatado pelo Desembargador Almeida Melo e seu
voto é extremamente curto. É possível dividir o voto em três partes, uma
relativa a cada pedido. O primeiro é um pedido de declaração de nulidade
absoluta do julgamento. A ação teria sido julgada numa vara de família, na
opinião do Ministério Público a competência para o julgamento caberia a uma
de registros públicos. O Desembargador rejeita a preliminar por acreditar que
se trata de mudança de estado e não simples controvérsia sobre a regularidade
do registro da pessoa. O segundo e o terceiro pedido se referem a retificação
do nome e do sexo, respectivamente.
A natureza aparece como uma esfera das coisas como são e como
deveriam ser. O Direito, por sua vez, serviria para organizá-las, mas sendo
vedado a contrariar a natureza das coisas. Essa concepção atravessará as duas
últimas partes do acórdão, definindo a forma como aborda cada pedido. Ao
falar sobre a retificação do nome essa concepção aparece de forma tímida,
mas é explicitada inequivocamente ao falar sobre a possibilidade de retificação
do sexo.
A segunda parte do voto discute a retificação do nome, autorizada
em primeira instância. Citando a Lei de Registros Públicos, Almeida Melo
afirma que o nome é imutável, exceto nos casos em que esse conter erro grá-
fico ou provocar constrangimento na pessoa. Não seria o caso de erro. O
Desembargador chega a admitir que existe um constrangimento no caso, po-
rém o constrangimento não teria como fonte o nome. Nas palavras do pró-
prio relator: “Em verdade, a causa do constrangimento, alegada pelo apelado,
não é o seu prenome, que é adequado a seu sexo, mas, sim, a falta de corres-
pondência entre a atual aparência e seu sentimento psicológico”. (MINAS GERAIS,
2003, destaque nosso). Dessa maneira, não seria causa de alteração.

155
Thiago Coacci

É na parte seguinte que fica mais claro a razão que justifica a forma
que essa decisão tomou. Ao analisar a possibilidade jurídica de retificação do
sexo no registro civil, também autorizada em primeira instância, Almeida
Melo acaba por discorrer sobre a “natureza do sexo”. Inicialmente o desem-
bargador afirma, com base em perícia médica e em fotos, que a pessoa em
questão é “muito semelhante a uma mulher” (MINAS GERAIS, 2003), toda-
via a legislação não traria a possibilidade de mudança do sexo.
Almeida Melo chega a mencionar brevemente que seria possível es-
tabelecer uma analogia do caso com a personalidade moral (das empresas, por
exemplo), mas que para isso a legislação deveria ser expressa. O “silêncio” da
lei seria “eloquente” e não autorizaria tal analogia. De toda maneira, essa con-
sideração é rapidamente descartada.
O sexo, em sua divisão binária, integraria a natureza, sendo parte de
uma essência imutável dos seres que possui as funções fundamentais de pro-
criação, afetividade e criação de vínculos entre as pessoas. A diferença sexual
entre homem e mulher seria entendida como uma complementaridade dos
seres, orientada para o casamento e a formação da família. Almeida Melo
chega a afirmar que a harmonia social dependeria dessas relações, isto é, qual-
quer ação que vá contra a natureza do sexo, seria atentatória a própria harmo-
nia social.
O raciocínio desenvolvido pelo desembargador estabelece uma ca-
deia de significados opostos. Em um polo, da artificialidade, coloca a identi-
dade psíquica do ser e sua aparência feminina, no outro polo, da naturalidade
e da verdade, o sexo essencial masculino e a identidade biológica do ser.
Em função da naturalidade do sexo e da relação estabelecida entre
Direito e natureza, derivam duas consequências. Primeira, que independente-
mente da aparência e do sentimento de identificação, a pessoa permaneceria
eternamente com seu sexo imutável. Por mais que a parte reivindique para si
a identidade feminina, essa seria falsa. Segunda, que o Direito não poderia
atuar nesses casos, senão vedando a alteração. Essas consequências estão sin-
tetizadas na seguinte passagem: “O Direito é a organização da família e da
sociedade. Não pode fazê-lo para contrariar a natureza. Ainda que a aparência plás-
tica ou estética seja mudada, pela mão e pela vontade humana, não é possível
mudar a natureza dos seres” (MINAS GERAIS, 2003, destaque nosso). Em uma

156
Qual o futuro da sexualidade no direito?

passagem mais a frente, Almeida Melo chega a considerar que autorizar a re-
tificação poderia, inclusive, ferir o direito de terceiros de boa-fé, o Direito,
estaria, assim, legitimando uma mentira.
Para encerrar seu voto, o desembargador afirma que a solução para
o caso não seria a retificação, mas legislações que proíbam a discriminação
contra essas pessoas e conclui revertendo o resultado do julgamento de pri-
meira instância, negando a retificação de nome e sexo. O voto do relator re-
cebeu uma divergência do desembargador revisor, mas foi seguido pelo vogal,
ficando o revisor vencido.

Quadro 2
Síntese da Estrutura Argumentativa do Voto de Almeida Melo
Parte Parágrafos5 Tema Síntese dos Argumentos
(i) A competência correta é da vara de
família, por se tratar de mudança de estado,
I 1 ao 11 Preliminares
rejeitando, assim, a preliminar de
incompetência.
(i) O nome é imutável por princípio.
(ii) Admite-se alteração do nome em casos
de erro ou constrangimento
Retificação (iii) Não há erro no nome.
II 12 ao 20
de Nome (iv) Há constrangimento, mas esse não
decorre do nome, uma vez que é um nome
adequado ao sexo da parte.
(v) Não é caso de alteração.
(i) O sexo faz parte da natureza e é uma
essência imutável dos seres. A cirurgia não
pode alterá-lo.
(ii) O sexo possui funções essenciais a
Retificação
III 21 ao 34 sociedade e a vida em comunidade.
de Sexo
(iii) A diferença sexual é complementar e
direciona para o casamento.
(iv) O Direito não pode alterar o sexo, sob o
risco de lesar terceiros de boa-fé.
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de Minas Gerais, 2003

5 Por se tratar de um texto corrido em página web, sem paginação e sem numeração de

parágrafos optei por numerar da seguinte forma: a numeração dos parágrafos se inicia no
parágrafo que se inicia com “Conheço do recurso [...]” e se interrompe na frase “Rejeito a
Preliminar”. A numeração retorna no parágrafo que se inicia com “O pedido é de adaptação
jurídica do sexo” e se interrompe ao final do voto, antes do voto do desembargador Hyparco
Immesi.

157
Thiago Coacci

ADPF 132 e ADI 4277

No dia 04 de maio de 2011, teve início no pleno do Supremo Tribu-


nal Federal o julgamento conjunto da Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277. A ADPF
132 foi proposta em 2008 pelo governador do Estado do Rio de Janeiro, por
meio do procurador-geral do Estado do Rio de Janeiro. Já a ADI 4277 foi
ingressada por Deborah Duprat, durante o curto período que exerceu a fun-
ção de procuradora-geral da República, em 2009. Apesar de suas diferenças,
ambas ações discutiam a possibilidade jurídica do reconhecimento das uniões
entre pessoas de mesmo sexo como uniões estáveis, interpretando, assim, o
parágrafo terceiro do Art. 226 da Constituição e por essa razão foram julgadas
em conjunto.
O histórico julgamento durou dois longos dias, contou com a parti-
cipação de 14 amici curiae, e todos os Ministros proferiram argumentos ao vo-
tar, o que resultou em um acórdão anormalmente longo. Ayres Britto estabe-
lece uma relação específica entre Direito e natureza, em que a presença dessa
coloca o Direito em estado de alerta. Na presença da natureza, o Direito de-
veria se abster ou atuar para promovê-la, retirando os obstáculos para sua
mais perfeita concreção. Vejamos como o Ministro desenvolve sua argumen-
tação.
É possível dividirmos o voto de Ayres Britto em quatro partes. Ini-
cialmente, o relator discute algumas questões preliminares, como se a ação
seria pertinente ou não e, caso fosse, qual seria a forma pela qual receberia a
ação. As três partes que se seguem são específicas sobre o mérito da causa, o
debate se dá de forma que o Ministro transita, sem deixar muito claro quando
está fazendo o que, entre um debate sobre o texto constitucional e reflexões
sobre a natureza dos fenômenos regulados constitucionalmente.
A segunda parte foca nos usos da palavra “sexo” na Constituição,
principalmente no art. 3º, inciso IV. A interpretação desse artigo é fundamen-
tal para a argumentação do Ministro, pois por esse artigo se referir aos obje-
tivos fundamentais da República, todo o resto do texto constitucional deveria
ser interpretado de forma similar.
Como a Constituição não define o que entende por sexo, Ayres
Britto precisa preencher de sentido essa palavra, interpretando-a, importando
para o Direito saberes e valores externos a esse. Diferentemente de outras

158
Qual o futuro da sexualidade no direito?

estratégias argumentativas encontradas, o Ministro não coloca em suspenso a


naturalidade ou não do sexo6, para ser concluída a partir de uma investigação,
mas já parte do pressuposto dessa naturalidade. Segundo o Ministro, sexo
seria uma palavra polissêmica, com três sentidos complexos e indissociáveis,
todos protegidos constitucionalmente. Em seu primeiro sentido, o sexo é en-
tendido como “conformação anátomo-fisiológica descoincidente entre o ho-
mem e a mulher” (BRASIL, 2011, 24), isto é, como o sistema binário de clas-
sificação dos seres humanos. Tal sentido é colocado como nítido e a diferen-
ciação como “a mais natural diferenciação entre as duas tipologias do gênero
humano” (BRASIL, 2011, 24)
Esse primeiro sentido, permitiria interpretar o texto legal de forma
que a divisão sexual, por ser natural, não poderia ser razão para discriminação
e desigualdade jurídica. Em seu segundo sentido, a palavra sexo se torna si-
nônimo dos órgãos genitais e em seu terceiro, o sexo é entendido como a
“sexualidade”, ou seja, a utilização concreta desse aparelho sexual para a rea-
lização de três funções: “a estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução
biológica” (BRASIL, 2011, 27). Na compreensão de Ayres Britto, essas fun-
ções seriam naturais e instintivas, não sendo moldadas pela cultura. Embutido
nesse instinto, portanto também natural, estaria a orientação sexual em sua
diversidade, inclusive a homossexualidade. O Ministro chega aqui num ponto
crucial de sua argumentação, pois ao falar das variações da orientação sexual
e da autonomia dos sujeitos em relação a sua sexualidade, surge a dúvida se
essa autonomia protegeria ou não a homossexualidade, ou seja, se essa é per-
cebida como uma variação natural da sexualidade ou não. Para não deixar
dúvidas da naturalidade da homossexualidade e, portanto, de sua proteção, o
relator cita a seguinte passagem do psicólogo Carl Jung: “A homossexuali-
dade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identi-
dade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra
no seu processo de individuação” (JUNG, [s.d.] apud BRASIL, 2011, 30).
Se o sexo, em seus três sentidos, é visto como fazendo parte da na-
tureza, o preconceito, por outro lado estaria fora desse âmbito, como pode
ser visto na passagem abaixo:

6 Acredito que nenhum jurista efetivamente coloque em suspenso sua concepção de

natureza, mas que a suspensão funcione como estratégia argumentativa de forma a parecer
que a conclusão, pela naturalidade ou não, não está presente desde o início, dando um verniz
de neutralidade.

159
Thiago Coacci

Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana


fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo, juízo de valor
não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade, a
ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscuran-
tista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscuran-
tista e industriada ao mesmo tempo (BRASIL, 2011, 25–26)

Ou ainda nessa outra passagem:

No particular, as barreiras artificial e raivosamente erguidas contra ele (sexo


ou aparelho sexual) corresponde a um derramamento de bílis que só faz embara-
çar os nossos neurônios. Barreiras que se põem como pequenez mental dos ho-
mens, e não como exigência dos deuses do Olimpo, menos ainda da natureza.
(BRASIL, 2011, 30).

Por estar fora da natureza e configurar como uma indevida interfe-


rência nessa, o preconceito deve ser proibido. Na verdade, Ayres Britto dá
um salto qualitativo e anuncia não apenas a proibição do preconceito, mas
um direito à liberdade a partir do “mutismo” da Constituição sobre o exercí-
cio concreto da sexualidade. Esse salto é dado, pois para Britto, o mutismo
constitucional é intencional, é uma recusa de se legislar por reconhecer aí, nas
formas de usar a sexualidade concretamente, um espaço de liberdade que não
deve sofrer intervenção restritiva do Direito. Uma vez estabelecida essa inter-
pretação do artigo 3º, configurando-se a oposição discursiva entre sexo-natu-
reza-proteção e preconceito-artificialidade-proibição, o Ministro-relator pode
passar a terceira parte de seu voto.
Se a segunda parte é o norte interpretativo constitucional, a terceira
entra especificamente nas questões colocadas pelas ações. Ayres Britto busca,
nesta parte, analisar se a Constituição garantiria às uniões entre pessoas de
mesmo sexo a mesma proteção jurídica conferida as uniões estáveis heteros-
sexuais. Para fazer isso, o Ministro-relator analisa o capítulo da Constituição
sobre as famílias7, buscando entender o sentido de família no texto legal. A
argumentação parte do texto legal, salta para um debate abstrato sobre a na-

7 Trata-se do Capítulo VII, do Título VIII, intitulado “Da família, da criança, do

adolescente, do jovem e do idoso”.

160
Qual o futuro da sexualidade no direito?

tureza das famílias e retorna ao texto legal para concluir sobre a correta inter-
pretação de família. A primeira análise é da estrutura do texto constitucional,
demonstrando que no art. 226, a Constituição garante a proteção da família,
para, só após, nos incisos que complementam o caput, definir as formas de
constituição de família como o casamento e a união estável.
Essa estrutura do texto legal leva Ayres Britto a interpretar que a
Constituição não adotou um significado tradicional de família, como a Cons-
tituição anterior. Família não seria reduzida ao casamento, mas constituída de
diversas formas. Ademais, a proteção especial prevista no artigo se daria a
família, “pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se
integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafe-
tivas” (BRASIL, 2011, 37).
A ausência de definição explícita de família na Constituição, para
Britto, se dá, pois, a família é mais do que “um singelo instituto de Direito” e
de “impossível fechamento conceitual das espécies em que pode cultural-
mente se desdobrar” (BRASIL, 2011, 38–39). A natureza aqui, no entanto,
não possui uma associação direta com o biológico, como no caso do sexo. A
família não estaria apenas na “natureza da biologia”, mas na “natureza da so-
ciedade”, além disso seria naturalmente boa8. A família é colocada, dentre ou-
tras coisas, como: o vínculo primordial e mais íntimo entre as pessoas; a mais
natural e estável forma de agregação humana, fonte de afeto e cuidado; pro-
motora de virtudes nos indivíduos; responsável pela educação, o cuidado da
criança e o amparo ao idoso. Daí derivaria a razão pela qual a Constituição
afirma que a família é a base da sociedade, devido a sua relevância e ao desejo
da sociedade de se espelhar na família para ser, também, estável e afetiva.
O Ministro usa a metáfora da família como um continente e as diver-
sas formas em que se desdobra culturalmente estariam imersas nesse, parti-
lhando da mesma natureza e merecendo proteção jurídica. Com essa argu-
mentação, as interpretações que restringem os institutos como a união estável
exclusivamente a casais heterossexuais iriam em contrário a própria natureza

8 Seria possível desenvolver uma crítica a essa visão de família como extremamente

idealizada e heteronormativa. Principalmente se levarmos em conta a realidade das pessoas


LGBT, percebemos que a família é uma das principais fontes de violência, medo e
insegurança (VENTURI e BOKANY, 2011).

161
Thiago Coacci

da família e aos objetivos da Constituição, nas palavras de Ayres Britto: “im-


plicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso in-
disfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico” (BRASIL, 2011, 42).
Uma vez pagos esses dois pedágios da natureza, do sexo e da família,
Ayres Britto passa para a quarta parte de seu voto, onde finalmente aplica o
raciocínio desenvolvido anteriormente para realizar a interpretação dos inci-
sos do Art. 266 da Constituição e do Art. 1.723 do Código Civil9, afastando
do mundo jurídico qualquer interpretação que exclua as famílias constituídas
por casal de mesmo sexo ou que crie distinção entre família e “entidade fami-
liar”. A menção explícita a “homem e mulher”, presente no §3º, do Art. 226
da Constituição e repetida no referido artigo do Código Civil seria, nessa in-
terpretação, uma tentativa do texto constitucional de afirmar a igualdade entre
os dois gêneros humanos, não uma exigência legal de diversidade de sexos
para o reconhecimento da união, exigência essa que inexiste mesmo para o
casamento.
O voto do Ministro Ayres Britto foi seguido por todos os outros que
participaram do julgamento, sem que houvesse divergência quanto ao resul-
tado, apenas quanto aos fundamentos10.

9 Trata-se do artigo do Código Civil que regula as uniões estáveis.


10 Em outro lugar discorri sobre essa divergência de fundamentos, analisando como se
tratava de uma estratégia discursiva para tentar limitar os efeitos jurídicos decorrentes desse
julgamento (COACCI, 2014).

162
Qual o futuro da sexualidade no direito?
Quadro 3
Síntese da Estrutura Argumentativa do Voto de Ayres Britto
Parte Parágrafos11 Tema Síntese dos Argumentos
I 13 ao 22 Preliminares -
(i) Sexo é uma palavra polissêmica:
divisão binária da espécie humana,
aparelho sexual e sexualidade (uso do
aparelho).
(ii) Sexo, em seus três sentidos, pertence
Natureza do
II 23 ao 38 a natureza e não à cultura.
Sexo
(iii) A homossexualidade é uma variação
natural da sexualidade.
(iv) A artificialidade está no preconceito
que tenta barrar o fluxo natural da
sexualidade.
(i) Não há um conceito fechado de
família na Constituição.
(ii) Família é mais do que um instituto
jurídico.
(iii) A família integra a natureza da
sociedade e é naturalmente boa, por isso
Natureza da deve ser promovida.
III 39 ao 47
Família (iv) A família pode tomar diversos
formatos, variando culturalmente.
Família é um “continente”, habitado
pelas distintas formas de se constituir
cultural e juridicamente. Cabe ao Direito
promover essas formas e não as
restringir.
(i) Casamento não é a única forma de
constituição de família.
(ii) A referência a homem e mulher no
art. 226, §3º não é uma vedação.
(iii) Entidade familiar é sinônimo perfeito
Aplicação da de família, não havendo diferença.
IV 48 ao 50
Interpretação (iv) Casamento e união estável são coisas
distintas, mas nenhuma traz vedação a
ser constituída por pessoas de mesmo
sexo.
(v) Que não pode se criar distinção entre
adotantes hétero e homossexuais.
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de Brasil, 2011

11 O próprio Ayres Britto numera os parágrafos em seu voto, segui essa numeração.

163
Thiago Coacci

Contra o pedágio da natureza

Como foi possível observar nos dois casos analisados, a natureza se


portou como um pedágio obrigatório para o deslinde da questão jurídica. A
discussão sobre algo que possamos classificar como a “natureza” da homos-
sexualidade ou do sexo serviu, ao fim e ao cabo, como uma forma estratégica
e muito importante para se legitimar a entrada das pessoas homossexuais e
trans na condição de cidadãs, de sujeitos com demandas jurídicas legítimas.
A natureza não possui um conteúdo dado e óbvio, apesar da insis-
tência retórica nesse sentido, e é isso que permite sua manipulação estratégica
para abrir caminho a diferentes resultados jurídicos. Assim, para pagar esse
pedágio os e as magistradas importaram para o Direito saberes e valores,
mesmo que não explicitamente, sobre o sexo e a sexualidade. No caso do voto
de Ayres Britto, é explícita a menção, por exemplo, a Jung para dizer da na-
turalidade da homossexualidade. Já o voto de Almeida Melo apesar de expli-
citar sua compreensão de natureza, não explicita as fontes dessa. É possível
interpretá-las como orientadas por um senso comum biológico e valores reli-
giosos, essa interpretação seria autorizada principalmente pela forma com que
Almeida Melo traz a reprodução, a família e o casamento para o debate,
mesmo não se tratando disso. Discursos biomédicos tendem a ter uma força
grande para definir a natureza das coisas nesses casos, os religiosos também,
mas de forma mais tímida e geralmente suportada por outros discursos auxi-
liares. Isso transforma, muitas vezes, as disputas jurídicas sobre transexuali-
dade e homossexualidade em disputas sobre quais discursos podem dizer a
verdade sobre a natureza do sexo e da sexualidade.
Não por acaso, a heterossexualidade e a cisgeneridade12 não sofrem
o mesmo tipo de escrutínio nos votos aqui analisados, ambas são dadas como
“legítimas” e “naturais” a priori. Como argumenta Sedgwick (2013), tornar a
heterossexualidade visível através da história é uma tarefa difícil, pois ela sem-
pre se ocultou por pseudônimos como herança, casamento, dinastia, família,
população ou até mesmo sob a alcunha da história propriamente dita, um

12 Cisgênero é um conceito criado dentro do pensamento transfeminista para marcar a

diferença daquelas pessoas que não são trans. É um conceito importante por nomear aquela
diferença que antes não era nomeada e tida acriticamente “normal”, em oposição as pessoas
trans, que ficavam, nessa oposição, marcadas como anormais. Para mais informações ver
Vergueiro (2015).

164
Qual o futuro da sexualidade no direito?

raciocínio similar poderia ser aplicado a cisgeneridade. Esse fato é reconhe-


cido até mesmo por Ayres Britto que deixa claro que anteriormente a 1988,
família era sinônimo de casamento, e, esse, por sua vez, era um instituto ex-
clusivo entre pessoas de mesmo sexo.
Todavia, se a heterossexualidade, em si, não tem a sua “natureza”
analisada, seus “pseudônimos”, para usar do termo de Sedgwick, suas insti-
tuições, passaram pela análise pública, com certeza. Um pouco diferente,
ocorre com o sexo, que tem sim sua natureza própria analisada. Essas análises,
no entanto, não tomaram o mesmo rumo ou sentido normativo e moral da-
quelas as quais a homossexualidade e transexualidade foram submetidas. Seus
estudos nunca foram para verificar a legitimidade, hora nenhuma se questio-
nou a legitimidade do casamento, da família ou do sexo em si. A “natureza”
dessas instituições foi analisada, apenas para saber se elas poderiam abarcar,
finalmente, as uniões entre pessoas de mesmo sexo e as pessoas trans.
Para que o reconhecimento das uniões entre pessoas de mesmo sexo
se tornasse juridicamente possível foi preciso abarcá-las dentro da natureza.
A natureza da família foi sendo configurada, então, por um outro valor, pelo
“afeto”. Já a transexualidade não coube dentro da esfera da natureza, sendo
empurrada para a artificialidade e o limbo jurídico. O Direito, na compreen-
são de Almeida Melo e tantos outros, não poderia legitimar algo que vai contra
a natureza.
Os casos analisados foram apenas dois, mas são representativos de
uma constância discursiva nos debates político-jurídicos sobre a homossexu-
alidade e transexualidade que ocorrem em diversas instâncias, não apenas no
judiciário. As argumentações contrárias aos direitos LGBT de Marco Felici-
ano e Jair Bolsonaro, por exemplo, são recheadas de afirmações que a homos-
sexualidade seria uma “doença” e um “desvio da natureza”. O próprio movi-
mento LGBT também paga o pedágio da natureza e utiliza, por diversas opor-
tunidades, do discurso, à moda de Lady Gaga, de que “eu nasci assim13”, para
justificar que suas demandas jurídicas são válidas.

13 Born This Way é o nome do segundo álbum de estúdio da cantora pop Lady Gaga e

também de uma das faixas do álbum. A expressão, que significa eu nasci assim, é uma
referência explícita a homossexualidade. A canção foi feita como um hino de
empoderamento e aceitação, que repete a exaustação que “deus não comete erros; estou no
caminho certo; eu nasci assim” (Lady Gaga, 2011, faixa 2, tradução livre).

165
Thiago Coacci

Apesar do relativo sucesso dessa estratégia, acredito que se temos


uma preocupação em pensar o futuro do Direito e da sexualidade seja impor-
tante dar um passo atrás e se perguntar por que o debate político e jurídico
sobre a homossexualidade e transexualidade deveria passar pelo “pedágio” da
discussão sobre as origens e “natureza”? Por que a naturalidade de uma con-
dição permitiria o acesso ao status de cidadania e a legitimidade de demandas
de direito? A obrigatoriedade do pedágio da natureza ainda é um “sintoma”
da fragilidade dos valores democráticos de efetivas liberdade e autonomia dos
sujeitos identificados por Rios (2011). É também uma forma de os sujeitos se
desresponsabilizarem das decisões que tomam, pois compreendem seus po-
sicionamentos - contrários ou favoráveis - como uma decorrência de deter-
minada “natureza”.
Nessa perspectiva estreita, não é que os “Marco Felicianos” sejam
contrários aos direitos humanos e aos direitos sexuais, é a “natureza” da ho-
mossexualidade, como uma doença que demandaria um tratamento, que pre-
cisa ser reafirmada, inclusive para se tentar humanizar esses sujeitos. Não é
que os “Ayres Brittos” sejam favoráveis aos direitos das pessoas LGBT, é que
a “naturalidade” da homossexualidade o obrigaria a reconhecê-los. A princi-
pal consequência desse pedágio é um apagamento da agência dos sujeitos e
um esvaziamento da dimensão política, prejudicando, assim, a democracia e
o exercício efetivamente democrático do Direito.
Um retorno ao primeiro caso pode ajudar a perceber essas conse-
quências perversas do pedágio. É interessante notar a forma como a história
que motiva a ação é contada, trazendo a cirurgia de transgenitalização para o
primeiro plano. Infelizmente, como a pesquisa acessou apenas o acórdão, não
é possível saber se esse enquadramento da história foi proposto originalmente
pelo advogado da parte, o Ministério Público ou o Desembargador-relator. A
centralidade da cirurgia para a história coloca o foco numa “mudança”, numa
“construção cirúrgica do sexo” e a mudança dos documentos como uma con-
sequência jurídica dessa. Ao mesmo tempo abre oportunidade para o desem-
bargador argumentar que essa construção seria artificial, um falseamento da
verdade. Outra forma de enquadrar a mesma história, ainda sem fugir do pe-
dágio da natureza, seria contar a história da naturalidade do gênero feminino
dessa pessoa, seguindo o roteiro das histórias que dizem “eu sempre fui as-
sim”. Essa versão do argumento permite escapar da armadilha da construção
cirúrgica do sexo, permitindo o reconhecimento do direito, mas continuaria

166
Qual o futuro da sexualidade no direito?

retirando a autonomia do sujeito da história. A relação entre Direito e natu-


reza permaneceria imutável, alterando apenas a natureza da transexualidade
para permitir o reconhecimento jurídico. Um terceiro caminho seria justa-
mente tirar de foco a cirurgia, a patologia ou o roteiro “eu sempre fui assim”
e focar na autonomia do sujeito para decidir sobre seu corpo e sua identidade
como a origem própria do direito à retificação, um argumento mais arriscado
como estratégia, mas mais forte em suas consequências.
Parece-me muito mais radical e certamente um aprofundamento do
Direito e da Democracia, argumentar de forma independente ou até mesmo
contra o argumento da natureza. Direitos não são meras decorrências de uma
condição natural, como querem as tradicionais concepções jusnaturalistas14,
mas decorrem de articulações histórico-políticas, de contratos e pactos soci-
ojurídicos realizados entre pessoas. A pergunta sobre a “natureza” é, então,
uma falsa pergunta, que serve mais para limitar ou para deslocar o debate real:
desejamos construir uma democracia de fato, que promova os sujeitos em
suas singularidades? Se sim, argumentos como esse não deveriam ser utiliza-
dos.
Temos sempre seguido um mesmo caminho nos debates jurídicos-
políticos sobre gênero e sexualidade, que passa sempre pelo pedágio da natu-
reza. Todavia, uma olhada para os lados revela que esse não é o único cami-
nho. As obrigações éticas e legais de respeito não dependem de concordarmos
sobre as origens ou a natureza de algo, as escolhas dos sujeitos podem e em
alguns casso são inteiramente protegidas pelo Direito. Por mais que alguém
possa nascer em um lar religioso e se educar nessa crença, é plenamente acei-
tável e “normal” que alguém opte por abandoná-la, escolhendo outra ou não.

14 Como alerta Nascimento (2013), o Jusnaturalismo não é uma escola ou corrente

facilmente identificável. “Podemos dizer que o direito natural é formado por um vasto
conjunto de doutrinas que sustentam que o direito, para legitimar-se, precisa estar fundado
na natureza, que seria a referência em última instância para julgarmos sobre a justeza ou não
das leis positivas” (NASCIMENTO, 2013, p. 37). Bobbio (2004) argumenta que ainda hoje
existem concepções jusnaturalistas do direito, mas “dificilmente se poderia hoje sustentar,
sem revisões teóricas ou concessões práticas, a doutrina dos direitos naturais” (BOBBIO,
2004, p. 55). Segundo o autor italiano, desde a metade do século XIX até o fim da II Guerra
Mundial, o positivismo jurídico prevaleceu àquela doutrina jusnaturalista. A partir do pós-
guerra, surgiram críticas à adoção estrita do positivismo (GALUPPO, 2013), gerando
abordagens mistas, pós-positivistas ou ainda um retorno ao jusnaturalismo. Atualmente, o
paradigma positivista ainda prevalece em grande medida, mesmo que com suas
reformulações.

167
Thiago Coacci

A liberdade de escolha de uma religião é protegida constitucionalmente, inde-


pendentemente de ser algo “natural” ou uma mera escolha dos sujeitos. O
debate sobre a natureza da religião parece desnecessário e as escolhas podem
ser protegidas. Por que, então, continuar, no futuro, a trilhar o caminho que
cobra o pedágio da natureza?

Referências

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168
Qual o futuro da sexualidade no direito?

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2015.

169
170
7

Qual o futuro dos direitos sexuais e


reprodutivos nas relações familiares?

Laís Lopes 1

A
família se encontra, contemporaneamente, no centro de
embates políticos e jurídicos de expressiva relevância so-
cial. Apontada como base da organização da sociedade,
não são raras as disputas sobre seus significados, seus alcances e suas funções
na vida das pessoas e dos grupos sociais. Muitas dessas controvérsias derivam
da complexidade trazida por questões de gênero e sexualidade, bem como das
novas possibilidades abertas pela difusão de tecnologias de modificação cor-
poral. Este capítulo abordará a interseção entre tais temáticas, perquirindo
pelo futuro das relações familiares e reprodutivas a partir das tensões, vivên-
cias e normatividades que já se apresentam na atualidade.
Para tanto, serão analisados os pressupostos teóricos que compõem
a regulação da família no Direito brasileiro, desvelando-se a política sexual e
de gênero que delimita não apenas o que é protegido juridicamente, mas tam-
bém o que é “pensável” em termos de relações possíveis. Uma análise dos
discursos juscientíficos – e, dentre eles, mesmos os mais inclusivos - sobre o
conceito de família não prescinde de considerações a respeito de um argu-
mento recorrente: a força da ideia de natureza como fonte moral para se aferir

1 Bacharela, mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minais Gerais.

171
Laís Lopes

a legitimidade dos vínculos de parentesco entre as pessoas. O primado da


natureza proporciona estratégias paradoxais na tutela de direitos, servindo ora
para reforçar uma concepção hegemônica de família heterossexual, ora para
forçar os limites do que é protegido como entidade familiar. O recurso às
biotecnologias de reprodução assistida insere-se nessa complexa dinâmica,
suscitando contendas morais sobre quais intervenções corporais são admissí-
veis e quem pode realizá-las. Nesse sentido, embora possam ser discernidas
importantes conquistas recentes de reconhecimento jurídico de novos arran-
jos conjugais e de filiação, inúmeras demandas por direitos restam invisibili-
zadas, sobretudo aquelas ligadas à população LGBTI+ e demais dissidentes
de gênero e orientação sexual2.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de reformulação da base teó-
rica dos direitos sexuais e reprodutivos, admitindo-se os aportes trazidos pe-
los estudos de gênero e sexualidade. A democratização da vida privada, ex-
pressa em verdadeira radicalização do pluralismo familiar, exige que os direi-
tos sexuais e reprodutivos sejam pensados para além da concepção hetero-
normativa e binária em que têm sido conformados. Reconceber o uso de bi-
otecnologias a partir da crítica dessa política sexual hegemônica permite en-
trever um futuro mais democrático para as relações familiares e procriativas.

O pluralismo familiar: tensões do passado e do presente

A noção de pluralismo familiar tornou-se, visivelmente, um lugar-


comum do direito de família. As transformações mais recentes no conceito
de família são exaustivamente anunciadas no âmbito jurídico.

2 A sigla LGBTI+ se refere ao movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexu-

ais, transgêneros e quaisquer outras identificações de gênero e orientação sexual organizadas


em torno das reivindicações por direitos e reconhecimento ao longo das últimas décadas do
século XX. Com a adoção da abreviatura, contudo, não se pretende ontologizar tais identi-
dades, mas demonstrar um processo social de produção e mobilizações de experiências da
diferença pela política sexual vigente. Nesse sentido, essa fórmula remete à própria hetero-
normatividade, sistema político que impõe o alinhamento e a coerência cogentes entre sexo,
gênero e orientação sexual, como imprescindíveis à inteligibilidade cultural, ou seja, ao reco-
nhecimento de determinados corpos como pessoas. As normas de gênero engendram a ne-
cessidade de constante adequação aos padrões hegemônicos de heterossexualidade e cisge-
neridade (respectivamente: orientação sexual e correspondência entre identidade de gênero
sexo biológico atribuído ao nascimento). Aqueles que não se conformam a esses parâmetros,
sobretudo identificados como LGBTI+, tendem a ter a existência precarizada, destituída de
direitos imprescindíveis à condução de vidas dignas (BUTLER, 2011).

172
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Nesse viés, uma concepção unívoca de família, supostamente pre-


ponderante em outros períodos históricos, teria cedido espaço à perspectiva
de pluralismo familiar. Para além da família heterossexual e nuclear - assen-
tada na hierarquia exercida pelo pai sobre a mãe e os filhos biológicos, no
quadro do casamento cristão e monogâmico - passou-se a reconhecer for-
malmente uma diversidade de composições. Dentre os vínculos de convivên-
cia abarcados pelo ordenamento jurídico, encontram-se a união estável, as
famílias monoparentais, as recombinadas, as estendidas, as unipessoais, as for-
madas por pessoas do mesmo gênero, as com filhos adotivos, os casais sem
filhos (RIOS, 2002). No caso brasileiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) identificou, no Censo de 2010, que o modelo de casal he-
terossexual com filhos já não é preponderante, contrastado com 50,1% dos
lares, em que prevalecem as outras modalidades familiares. Ainda, as mulheres
comandam 38,7% dos domicílios registrados, frequentemente sem a presença
de marido ou companheiro, e enfrentando desigualdades salariais frente aos
homens no mercado de trabalho.
Na história recente de diversos países, observou-se também uma
considerável redução do tamanho do núcleo familiar, concomitante à maior
valorização afetiva de seus integrantes (GIDDENS, 1993). Como esfera pri-
mordial de satisfação das necessidades das pessoas, a família passa a se assen-
tar na liberdade e na variedade de composições.
Essas mudanças estão associadas a uma intrincada convergência de
fatores históricos e culturais - como o declínio da organização patriarcal, a
urbanização, a busca por emancipação e igualdade da mulher, o recurso a mé-
todos contraceptivos, a desbiologização da paternidade, as reivindicações pelo
reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo gênero, a emergência da
criança como sujeito de direitos - em um impulso por democratização da in-
timidade, com a opção por formatos diferentes do casamento e com o au-
mento da frequência de divórcios e separações (CARVALHO, 2008).
Entretanto, ainda que a família tenha assumido diversos contornos e
esteja inscrita em novas dinâmicas sociais, sua abordagem permanece, em al-
guns aspectos, marcada por anacronismos. O tratamento político e jurídico
das relações de parentalidade e filiação, sobretudo diante das possibilidades
abertas pelas biotecnologias e pelos debates de gênero e sexualidade, mostra-
se permeado por concepções ainda obscuras e excludentes.

173
Laís Lopes

Atores sociais reacionários discernem nas relações familiares um


ponto sensível a ser disputado. No contexto brasileiro, a defesa da família
tradicional tem sido assumida como bandeira de grupos fundamentalistas de
base religiosa (preponderantemente neopentecostais e católicos), contra a im-
plementação de debates e direitos relacionados a gênero e sexualidade. Nos
anos mais recentes, bancadas religiosas com inserção significativa nos poderes
legislativo e executivo têm empreendido uma ferrenha oposição à inclusão,
nos currículos escolares, de temáticas de combate às discriminações de gênero
e orientação sexual, sob o pretexto de que essas políticas afirmativas ameaça-
riam a transmissão de valores às crianças por suas famílias (VITAL; LOPES,
2013). Contra a destruição da família pelo que chamaram de “ideologia de
gênero”, esses grupos também têm pressionado pela aprovação, no Con-
gresso Nacional, de um “Estatuto da Família” (Projeto de Lei nº 6583/2013),
projeto de lei que objetiva restringir a proteção jurídica, como entidade fami-
liar, ao “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mu-
lher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade for-
mada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Nas discussões parlamen-
tares, evidenciou-se o prestígio especialmente concedido à família nuclear he-
terossexual, com o rechaço às uniões homossexuais recentemente reconheci-
das como entidades familiares pelo Supremo Tribunal Federal, sob a alegação
de que “os novos arranjos familiares são verdadeiros desarranjos”, e que o
Estatuto possibilitaria “salvaguardar o país da anarquia” (AGÊNCIA
CÂMARA NOTÍCIAS, 2015).
Essa exaltação da família tradicional evoca o que a historiadora
Stephanie Coontz (2000) identificou como “armadilha da nostalgia” na com-
preensão do contraste entre o passado e o presente das relações familiares. A
autora considera urgente desvelar o mito da família pacificamente conduzida
pelo patriarca, exímio provedor de sua esposa e seus filhos, unidos numa
(quase sacrossanta) trindade considerada a base harmônica da organização so-
cial. Um exame em retrospecto da história da sociedade norte-americana per-
mitiu a Coontz desconstruir a romantização em torno do modelo nuclear,
marcado pela autoridade opressiva - e longe de ser responsável - do homem,
desdobrada em desigualdades, abusos, violência doméstica, estupros conju-
gais e abandono econômico da prole. A assistência material e emocional aos
membros da família estava longe de ser prioridade, impondo-se uma situação
de contumaz vulnerabilidade especialmente para mulheres, crianças e idosos.

174
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Apesar desse imaginário distorcido e idealizado de uma “era de ouro” preté-


rita, contudo, são as famílias atuais aquelas retratadas como desestruturadas e
disfuncionais.
Além dessa visão idílica e saudosista, contribui para a hegemonia da
família tradicional, ainda, o pensamento ocidental acerca da própria constitui-
ção dos laços de parentesco. Subsiste uma dicotomia axiológica entre natureza
e cultura, que não apenas informa critérios de legitimação das formações fa-
miliares, mas também circunscreve o que é “pensável” diante das novas bio-
tecnologias e das dissidências de gênero e orientação sexual. Novas possibili-
dades relacionais são abertas (e estimuladas) pelas técnicas biomédicas e pelos
arranjos não-heterossexuais. Contudo, dilemas morais evidenciam a restrição
do que é possível de ser realizado e o que conta como “entidade familiar”.
Radicalizar o princípio do pluralismo familiar, portanto, implica em um ques-
tionamento crítico do impacto dessas concepções valorativas no conteúdo
dos direitos sexuais e reprodutivos.

O primado da natureza

Lógicas binárias e paralelas permeiam a tradição do pensamento eu-


roamericano3. O antropólogo Tim Ingold ressalta a oposição frequentemente
traçada entre o que é o social e o biológico, ao lado das dualidades estabeleci-
das entre corpo e espírito, emoção e razão, instinto e arte, animalidade e hu-
manidade (INGOLD, 1994). Já as dicotomias entre procriação-parentesco,
biológico-social, natural-artificial, real-fictício, integram as discussões acerca
da constituição da família, reatualizando uma polarização fundante entre na-
tureza e cultura. Verdadeiros “domínios ontológicos”, essas categorias orien-
tam as representações modernas acerca da reprodução (COLLIER e
YANAGISAKO, 1987). Sustenta-se, repetidamente, que

[a] filiação, pois, é fundada no fato da procriação, pelo qual se evidencia o


estado de filho, indicativo do vínculo natural ou consanguíneo, firmado entre o
gerado e os seus progenitores. É, assim, a indicação do parentesco entre os pais e

3 A opção pela referência ao pensamento “euroamericano” em lugar do mais recorrente

“ocidental”, em consonância com a obra de Strathern (2015), objetiva ressaltar a dissemina-


ção global, mas não uniforme, de visões de mundo racionalistas e insurreições religiosas após
o século XVII e XVIII, em que o saber científico assume protagonismo crescente.

175
Laís Lopes

os filhos, considerados na ordem ascensional, destes para os primeiros, do qual


procedem, em ordem inversa, os estados de pai (paternidade) e de mãe (materni-
dade) (SILVA, 1982, 297).

Considerações dessa ordem sugerem uma leitura das relações sociais


como “epifenômeno” da natureza: os distintos vínculos familiares poderiam
sempre ser remetidos a uma base estanque última, a reprodução natural. A
parentalidade seria derivada, em última instância, do encadeamento lógico en-
tre intercurso sexual heterossexual, fecundação, gestação e parto. Mesmo que
admitida sua constituição convencional, do domínio da cultura, a família so-
mente seria viabilizada pelos “fatos naturais da vida” (STRATHERN, 1992).
A procriação, nesse viés, significa a geração biológica de uma criança
pela contribuição de um pai e uma mãe identificáveis – ainda que esses atores
possam, em momento posterior, virem a ser substituídos por (múltiplos) pais
ou mães adotivas ou delegados (STRATHERN, 1995).
Mais do que fornecer uma descrição causal de eventos tidos como
naturais, entretanto, esse modelo atua no reforço de uma determinada ordem
moral, ao sancionar aquilo que deve ou não ser realizado em termos de repro-
dução, o que é tornado mais explícito com as inovações biotecnológicas da
segunda metade do século XX4.
Métodos contraceptivos, em especial após o advento da pílula anti-
concepcional, em 1951, permitiram desvincular o sexo da reprodução. Ainda,
fertilização assistida, gestação de substituição, diagnóstico genético pré-im-
plantatório, manipulação genética, redução embrionária, doação e comercia-
lização de gametas são alguns dos procedimentos pelos quais a ciência tem
revolucionado as possibilidades da reprodução, contornando inclusive a ne-
cessidade de relações sexuais. Apesar desse impulso tecnocientífico por total
desacoplamento entre procriação e exercício da sexualidade, a natureza con-
tinua a ser inscrita como princípio que norteia os “bons costumes”, com a
consequência de orientar e coibir o que não deve ser praticado.
Nesse cenário, a natureza tende a ser, cada vez mais, vista como do-
tada de uma racionalidade ínsita - acessível, em maior ou menor grau, à com-
preensão e manipulação pela ciência. Essa racionalidade própria, a “sabedoria

4 Para uma análise mais minuciosa do argumento da natureza, cf. capítulo de autoria de

Thiago Coacci nesta obra.

176
Qual o futuro da sexualidade no direito?

da natureza”, é traduzida pelos discursos da biologia e da medicina. A antro-


póloga Marilyn Strathern enfatiza essa imbricação entre as relações de conhe-
cimento e a produção do parentesco nas sociedades modernas, ao afirmar que
“quanto mais os (euro)americanos aprendem sobre os fatos biológicos da
procriação, mais bem informados sentem-se sobre os fatos do parentesco”
(STRATHERN, 2015, 15).
Além de expressar verdades sobre os seres e suas relações, a natureza
apontaria também direções e finalidades legítimas na ordem dos acontecimen-
tos. Essa visão torna-se mais manifesta pela indicação de cautela diante da
possibilidade técnica de se alterarem aspectos humanos concebidos como in-
trínsecos e inatos:

[A] natureza também tem servido como modelo para a ação humana; a natu-
reza tem sido uma base potente para o discurso moral. Ser antinatural, ou agir de
forma antinatural, não tem sido considerado saudável, moral, legal ou, em geral,
uma boa ideia (HARAWAY, 1991, 172).

Com efeito, a natureza é elevada à posição de fonte privilegiada para


a moralidade, supostamente fornecendo parâmetros seguros que orientariam
modos legítimos de ser pessoa, de se relacionar e de estabelecer vínculos fa-
miliares.
A bioética e o Direito são campos precisamente profícuos para se
investigar a força cogente do argumento da natureza: neles, juízos de valores
entram em conflitos, demandando dos sujeitos envolvidos o acionamento das
verdades e dos argumentos ora disponíveis em prol de uma solução. Dilemas
éticos, embora concretos e pontuais, têm o potencial de revelar as concepções
axiológicas subjacentes - ou seja, princípios, nem sempre expressos ou elabo-
rados, mas que se constituem em elementos ordenadores da vida social.
Um exemplo de interessante controvérsia ética pode ser encontrado
no que Strathern narrou como a “Síndrome do Nascimento Virgem” (1995).
Na Inglaterra do início da década de 1990, as técnicas de fertilização medica-
mente assistidas - particularmente a inseminação com esperma de doador
anônimo - foram intensamente procuradas por mulheres sem experiência se-
xual prévia e sem intenções de estabelecer intercursos sexuais com homens.
Essas pacientes admitiam abertamente preferir a reprodução artificial às rela-
ções sexuais. Com o decorrer do tempo, os médicos passaram a demonstrar

177
Laís Lopes

um incômodo em realizar esses procedimentos, alegando que acabariam as-


sumindo o papel de pais dos embriões assim criados, na medida a fertilização
in vitro foi desenvolvida como nada mais que um substitutivo das relações
(heteros)sexuais em que ocorrem problemas orgânicos para a concepção, tais
como a infertilidade. Na base de um empecilho moral - a vedação de estabe-
lecimento de um vínculo procriativo unilateral, destituído da paternidade ade-
quada - estaria um fundamento biológico: a inaptidão para conceber “natu-
ralmente”.
O que essa contenda coloca em questão são os arranjos circunstan-
cialmente admitidos como apropriados para a maternidade e a paternidade. A
reação dos médicos sugere ser o modelo heterossexual, em última instância,
a legítima configuração conjugal propícia para receber a criança ainda por nas-
cer. Vários críticos leigos também rechaçaram fervorosamente o “nascimento
de mãe virgem”, desacompanhada da figura masculina, conforme relata Stra-
thern:

O setor privado cruzaria seres humanos com animais se pudesse encontrar


mercado para isso. Não se trata mais de moralidade. Trata-se apenas de um caso
de quem se dispõe a nos vender o que queremos. Que tipo de mulher repeliria os
homens e que tipo de criação teria o filho? [...] Gostaria de saber o que essa mulher
dirá sobre os homens ao filho quando ele crescer e que impressão causará, acres-
centou. É perverso recusar os meios saudáveis, normais de gerar um filho numa
relação viva com um homem. É um exemplo particular de mente deturpada e
desencaminhada, e revela o que nos tornamos: uma sociedade em que nada fun-
ciona (1995, 309-310).

Embora a fertilização assistida monoparental tenha se popularizado


nos anos posteriores, deixando de ser vista como uma ameaça à paternidade,
outros aspectos ainda atestam a predominância do modelo excludente e he-
terocentrado.
No Brasil, a formulação de normas e políticas públicas parece estar
orientada pela pressuposição de que as tecnologias reprodutivas se limitam a
promover um mero auxílio “quando a natureza falha”, ou seja, atuam como
tratamento que substitui a reprodução natural em casos de infertilidade
(DINIZ, 2002). A intervenção biotecnológica, nessa formatação, garante o

178
Qual o futuro da sexualidade no direito?

acesso à parentalidade apenas por casais heterossexuais com alguma impossi-


bilidade orgânica para a procriação5.
Essa restrição de elegibilidade para as tecnologias reprodutivas en-
contra-se explicitamente presente em políticas públicas de planejamento fa-
miliar, como a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Hu-
mana Assistida do Sistema Único de Saúde Brasileiro (SUS), explicitamente
voltada a casais com infertilidade ou com risco aumentado de transmissão
vertical e/ou horizontal de doenças infectocontagiosas, genéticas, entre ou-
tras (Portaria de nº 3149/2012 do Ministério da Saúde)6. A Resolução de nº
2121/2015 do Conselho Federal de Medicina (CFM) prevê a autorização ex-
pressa de métodos de reprodução assistida, incluindo gestação de substituição
sem caráter comercial ou lucrativo, para casais de pessoas do mesmo gênero.
Entretanto, trata-se de um ato normativo emitido por uma entidade de classe,
que regulamenta a prática biomédica, e que não está inscrito em uma política
pública articulada para atender, gratuitamente, as necessidades reprodutivas
dos mais diversos arranjos conjugais que possam pleitear tais procedimentos.
A administração restrita do acesso às biotecnologias, portanto, reins-
creve as relações reprodutivas na dicotomia natureza-cultura. Mesmo que as
possibilidades técnicas apontem para a cisão, ao menos potencial, entre sexo
e reprodução, os discursos médico e jurídico circunscrevem determinados

5 Para uma discussão sobre a infertilidade e a esterilidade, bem como sobre as normas que

incidem sobre as representações sociais dessas condições, em diferentes grupos humanos, cf.
cap. 4 de HÉRITIER, 1994.
6 Apenas cinco estados da federação contam com hospitais que realizam a reprodução

assistida pelo Sistema Público de Saúde. É possível discernir, inclusive, uma desigualdade
regional na distribuição de hospitais habilitados a realizar procedimentos de reprodução as-
sistida. De acordo com a Portaria nº 3.149, três hospitais de São Paulo, dois do Rio Grande
do Sul, um de Minas Gerais, um do Distrito Federal e um de Pernambuco dispõem de tec-
nologias reprodutivas. Os procedimentos restringem-se à fertilização in vitro e/ou injeção
intracitoplasmática de espermatozoides (Portaria nº 3.149 de 28 de dezembro de 2012). Prá-
ticas como a redução embrionária, a disponibilização comercial de gametas e a gestação de
substituição remunerada foram vedadas pela Resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal
de Medicina sem prévio escrutínio democrático na esfera pública - ao contrário do que acon-
teceu no Reino Unido, em que a inserção das tecnologias reprodutivas foi acompanhada de
um intenso debate nacional, culminando, por exemplo, na formulação do Relatório Warlock
sobre Fertilização Humana e Embriologia (1984) e suas atualizações subsequentes. Outras
técnicas mais avançadas, como diagnóstico genético pré-implantatório, que permite a detec-
ção de doenças hereditárias, somente se encontram ao alcance de quem tem condições eco-
nômicas de arcar com seus altos custos.

179
Laís Lopes

corpos e processos biológicos como exclusivamente habilitados, pela natu-


reza, para derivar relações primárias de parentalidade e filiação. A partir de
uma perspectiva de gênero e sexualidade, é possível constatar que essa dinâ-
mica acaba por restringir a prerrogativa de que pessoas, arranjos e grupos não-
heterossexuais constituam, de forma plena e livre, as famílias que almejam ter.
Não raro, pessoas LGBTI+ e mulheres cisgêneros precisam inclusive reafir-
mar o argumento da natureza para terem seus direitos sexuais e reprodutivos
reconhecidos, tensionando estrategicamente, desse modo, os próprios limites
do que se considera “entidade familiar”.

Recomposição estratégica da “natureza” e seus limites

As biotecnologias reprodutivas abrem possibilidades inéditas de in-


tervenção nos processos procriativos - inclusive a serviço, ao menos potenci-
almente, das formações familiares não heterossexuais. Ainda que o argumento
da infertilidade seja preponderante, a exploração dessas novas possibilidades
tem sido reivindicada pelos arranjos não tradicionais. Estrategicamente, as rei-
vindicações formuladas utilizam-se, com frequência, dos próprios argumen-
tos biologizantes para fazer valer os direitos sexuais e reprodutivos pertinen-
tes, desafiando os contornos aceitos do conceito de família. A natureza é re-
conduzida à discussão ética, paradoxalmente sendo instrumentalizada em prol
do reconhecimento jurídico até mesmo das relações que têm sido considera-
das “antinaturais”.
Um exemplo dessa elasticidade induzida da noção de natureza pode
ser encontrado no caso de Marisa e María del Pilar, um casal cuja história
ganhou repercussão nacional na Argentina (GARCÍA, 2011). Elas queriam
ser mães com o recurso à fertilização assistida. O primeiro desafio encontrado
foi a ausência de cobertura a María, pelo plano de saúde privado de Marisa,
em um contexto legal em que os tratamentos de reprodução assistida ainda
não eram gratuitamente assegurados pelo sistema público de saúde argentino7.
Vencido esse obstáculo, elas se depararam com a negativa de fornecimento
do procedimento de fertilização artificial por parte do plano de saúde. Em
referência ao critério da infertilidade, os representantes da empresa disseram

7 Os procedimentos de reprodução assistida somente vieram a ser concedidos pelos hos-

pitais públicos argentinos, inclusive para casais do mesmo gênero, a partir da Ley 26.862 de
Reproducción Médicamente Asistida de 2013.

180
Qual o futuro da sexualidade no direito?

a María que ela “não tem qualquer problema de saúde. Se deseja tanto ter um
filho, tenha pela via natural” (BIMBI, 2013, 271). O casal conseguiu a cober-
tura dos procedimentos por decisão judicial, que obrigou o plano de saúde a
arcar com todos os custos econômicos da inseminação, da gravidez, do parto
e da assistência ao bebê das pleiteantes.
Finalmente dispondo de acesso às tecnologias reprodutivas, María e
Marisa resolveram utilizar o argumento da biologia a seu favor para facilitar o
futuro reconhecimento jurídico da maternidade conjunta. O ordenamento ju-
rídico argentino ainda não previa a dupla filiação para a prole de casais do
mesmo gênero. As argentinas decidiram, então, implantar o óvulo de María,
fecundado com esperma doado, no útero de Marisa. Após gestar e dar à luz,
Marisa seria regularmente registrada como mãe da criança gerada - tendo em
vista o imemorial entendimento jurídico e médico de que a maternidade é
ostensiva e comprovada pela gravidez (VILLELA,1979)8. Nascido o bebê,
María pretendia solicitar a realização de um exame de DNA, que confirmaria
a vinculação genética e lhe permitiria reclamar judicialmente a maternidade.
As biotecnologias auxiliariam Marisa e María a concretizar seus desejos pro-
criativos, oferecendo a vantagem de redirecionar a noção de natureza com o
intuito de assegurar à criança vindoura a totalidade dos direitos já titularizados
por filhos de casais heterossexuais9.
Embora circunstancialmente o recurso à natureza possa servir para
expandir o alcance dos direitos sexuais e reprodutivos, como exemplifica o
caso de María e Marisa del Pilar, é preciso atentar para o caráter insidioso
desse argumento. A tentativa de realocar a biologia, com todo seu histórico
moralizante e heteronormativo, em benefício de novas configurações famili-
ares se aproxima sobremaneira da perspectiva de “essencialismo estratégico”.
Essa expressão foi cunhada pela teórica Gayatri Spivak (1985) para nomear
as práticas de concessão a descrições naturalizantes das identidades políticas
como meio para conquista de direitos. A adesão a concepções essencialistas,

8 Tal certeza referente ao vínculo materno também vem sendo mitigada pelas possibilida-

des abertas pelas tecnologias de reprodução assistida, com a inseminação artificial e a mater-
nidade de sub-rogação, pela figura da “barriga de aluguel”, que apesar de gestar e dar à luz,
não é considerada a mãe da criança.
9 Bimbi (2013) demonstra que a lacuna quanto à dupla filiação impôs aos filhos de casais

do mesmo gênero uma desigualdade de direitos em relação aos filhos de casais heterossexu-
ais, no que diz respeito, por exemplo, aos direitos sucessórios e à assistência à saúde.

181
Laís Lopes

mesmo que em busca de contrapartidas jurídicas, acarreta repercussões bas-


tante problemáticas. Além de ignorar que o próprio conceito de “natureza” é
um construto cujo sentido é bastante mutável no tempo e no espaço das ex-
periências sociais, esse tipo de essencialismo estratégico tende a negligenciar
o efeito moralizante da ideia de natureza, que opera como um critério para
separar aqueles que são aceitos, respeitáveis e protegidos como sujeitos de
direito daqueles que são vistos como abjetos, desumanizados e excluídos de
proteção jurídica (MISKOLCI, 2011).
Ainda, reforçar a centralidade da natureza na regulação jurídica das
biotecnologias e das relações familiares reverbera em uma consequência polí-
tica excludente: o ocultamento persistente de diversas demandas e reivindica-
ções por direitos que se encontram de tal modo marginalizadas que não aden-
traram ainda a esfera oficial do Direito. Um plexo de demandas de direitos
sexuais e reprodutivos de pessoas que se identificam como LGBTI+ e demais
dissidentes sexuais e de gênero não tem sequer existência discursiva perante
o ordenamento jurídico. Para visibilizar essas necessidades, torna-se impres-
cindível, portanto, afastar a ideia de natureza e formular uma nova base para
os direitos sexuais e reprodutivos.

Refundando os direitos sexuais e reprodutivos

Levar o pluralismo familiar a sério exige uma reformulação do pró-


prio Direito de Família. Mais do que reconhecer o caráter de entidades fami-
liares aos vínculos que fogem do modelo nuclear e heterossexual, é preciso
considerar também as demandas jurídicas formuladas por esses novos arran-
jos e atores. O molde tradicional de família, assentado no casamento heteros-
sexual cristão e monogâmico, não pode, dessa forma, continuar sendo a con-
figuração de referência, dotada da plenitude de direitos sexuais e reprodutivos,
principalmente aqueles atinentes ao acesso a biotecnologias de modificação
corporal e intervenção nos processos procriativos.
Nesse sentido, a noção de biologia deve deixar de ser a base última
das relações sociais de parentesco, o que implica também em uma “desinsti-
tucionalização” do conceito de família. É preciso reposicionar o fundamento
da família: do privilégio natureza para o estímulo à autonomia. Em lugar de
uma instituição com estrutura e regras pré-formatadas, a família deve passar
a ser um conceito aberto, um locus de autorrealização das pessoas em que as

182
Qual o futuro da sexualidade no direito?

escolhas e alianças sejam, de fato, respeitadas. A organização das questões


familiares passa a ser regida por uma perspectiva contratualista.
A família é formada por e para pessoas, seres que se autoconstroem
autonomamente, conformando normas para a própria vida e sedimentando
arranjos familiares com base em laços de afeto e compromisso recíprocos
(CARVALHO, STANCIOLI, 2009). As relações de filiação, tanto quanto as
conjugalidades, está na ordem da vontade e do envolvimento com os outros
- e não da natureza, o que acarreta a necessidade de uma abordagem mais
aberta e crítica da regulação jurídica do parentesco. A família somente existe
quando há espaço propício para a formação da própria pessoalidade. Por con-
sequência, sendo diferentes os relacionamentos em que as pessoas encontram
esse tipo de suporte, também o próprio conceito de família deve ser aberto.
A respeito de um modelo eudaimonista da família, fincado na busca pela feli-
cidade, afirma Nara Carvalho:

[À]s pessoas devem ser propiciadas a liberdade de serem elas mesmas e


de buscarem a autorrealização. O modelo de família deve contemplar, portanto,
as variadas necessidades das pessoas, em que “cada qual [viva] e [pense] a
família como resposta às suas aspirações de desenvolvimento pessoal”. Pugna-se,
então, por um modelo aberto de família, inspirado na liberdade. Neste, os pró-
prios membros que a constituem são os encarregados de delinearem à insti-
tuição os contornos que entenderem ser os mais acertados. Afinal, “a família só
será espaço do sonho, da liberdade e do amor à condição de que a construa os
partícipes mesmos da relação de afeto” (2008, 17).

Os direitos sexuais e reprodutivos apresentam-se, nessa perspectiva,


como os instrumentos adequados do Direito para prover as condições con-
cretas para que, em cada caso, as pessoas possam constituir as próprias famí-
lias de acordo com seus respectivos projetos de vida boa ou digna.
Somente se justifica qualquer intervenção do Estado e da sociedade
na família para proteger os direitos de pessoas em vulnerabilidade, bem como
assegurar as condições materiais imprescindíveis para a decisão e constituição
autônomas dos vínculos familiares - dentre essas condições, figuram as bio-
tecnologias. Sobre a assistência específica de pessoas vulneráveis, esse princí-
pio já se encontra no Direito Civil contemporâneo, inclusive em princípios
consolidados, como o do melhor interesse da criança e do adolescente. A esse
respeito, afirma Borrillo que

183
Laís Lopes

[a]ssumir uma teoria contratual da vida familiar, tanto no nível do matrimônio


quanto na filiação, não significa se desentender com os mais frágeis (os menores,
os idosos, aos animais, os empregados…). Pelo contrário, a técnica contratual do
equilíbrio dos benefícios e a proteção da parte mais débil (contrato de adesão,
contrato de consumo, cláusula leonina, teoria da lesão...) permite garantir eficaz-
mente a liberdade e a igualdade de todos os membros dessa comunidade afetiva
e/ou patrimonial. Em última instância, a contratualização da família é o resultado
lógico da democratização da vida privada e a vitória de uma concepção nova do
indivíduo emancipado, definido em função de si mesmo, capaz de escolher o
curso de sua vida e julgar as consequências de seus atos. ([s.d.], 16)

Nessa perspectiva, a autonomia familiar se desdobra também na


prerrogativa de livre planejamento familiar - a possibilidade de que à pessoa
seja resguardada a escolha de seus vínculos familiares, se terá arranjos conju-
gais ou não, o número de filhos pretendidos, a forma como serão gerados e
quando os terá. Mais além, o livre planejamento familiar pressupõe, em um
contexto de amplas intervenções biotecnológicas sobre os processos orgâni-
cos, a faculdade de decidir sobre o próprio corpo e conformá-lo em conso-
nância com os próprios desejos.
A compatibilidade entre responsabilidade e autonomia na constitui-
ção familiar, inclusive com fornecimento público e gratuito de procedimentos
médicos, tem previsão constitucional:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º


Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade respon-
sável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

A Lei 9.263 de 12 de janeiro de 2013 regula esse princípio constitu-


cional do livre planejamento familiar, estabelecendo explicitamente o dever
estatal de fornecer materialmente todas as biotecnologias reprodutivas admis-
síveis, conforme demonstram os seguintes dispositivos:

Art. 5º - É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associa-


ção, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover
condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que asse-
gurem o livre exercício do planejamento familiar.
Art. 9º Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos
todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos

184
Qual o futuro da sexualidade no direito?

e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade
de opção.

A partir dessas garantias, torna-se imprescindível revisar o escopo


dos direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo à luz das demandas de pessoas
LGBTI+ e demais vivências de gênero e sexualidade, de modo a afastar a
insustentável dicotomia natural-artificial e evitar desigualdades de acesso às
tecnologias reprodutivas.
Múltiplas formas de ser pessoa e constituir família podem ser viabili-
zadas pelo acesso às biotecnologias. Conforme já mencionado, as homopa-
rentalidades encontram respaldo na Resolução nº 2.121/2.015 do Conselho
Federal de Medicina, que garante o acesso de casais do mesmo sexo à repro-
dução assistida e à gestação de substituição solidária. Entretanto, políticas pú-
blicas articuladas devem contemplar o acesso gratuito e universal a biotecno-
logias, como resposta a essas e outras necessidades suscitadas pela diversidade
de gênero.
A vivência da parentalidade por casais e pessoas transexuais e traves-
tis, por exemplo, articula-se de forma complexa com a transição, ou seja, a
construção de corpos com os quais se identificam. Nesse caso, a subversão
das expectativas de coerência normativa entre sexo, gênero e identidade se-
xual pode ser ilimitada. Notícias dos primeiros homens grávidos – homens
transexuais que mantiveram seus órgãos internos, úteros e ovários, e deram à
luz – colocam em xeque a arraigada associação entre maternidade e gravidez
(SEGATTO, 2013; DAGNELL, 2012). Pesquisas científicas têm sido empre-
endidas, inclusive, no sentido de possibilitar transplantes de útero, indicando
que, em futuro bem próximo, a gestação pode ser possível também para mu-
lheres transexuais e travestis (GRADY, 2002).
Também as decisões relacionadas à paternidade responsável passam
a ser remodeladas à luz da desconstrução de identidades sexuais através das
biotecnologias. Tentativas de socializar crianças livres, tanto quanto possível,
das injunções de estereótipos de gênero tem ganhado adeptos. Nos últimos
anos, alguns pais têm optado por não revelar informações sobre as genitálias
de seus filhos recém-nascidos, bem como a não lhes impor roupas e brinque-
dos definidores de um gênero especifico (ALLEYNE, 2012; NEWTON,
2011). A “criação neutra de gênero” é apresentada, por seus defensores, como

185
Laís Lopes

uma concretização do princípio do melhor interesse da criança e da benefi-


cência procriativa, uma vez que essa proposta lhe permitiria uma maior auto-
nomia na composição da própria pessoalidade.
Nesse viés, o acesso às biotecnologias é crucial também para o bem-
estar e para a construção da autodeterminação sexual de crianças e adolescen-
tes. A puberdade tende a ser um momento particularmente difícil para pessoas
transexuais: inicia-se o desenvolvimento de caracteres corporais associados ao
gênero com o qual essas crianças e adolescentes, de forma persistente, não se
identificam (SPACK & LEIBOWITZ, 2011). As intervenções biomédicas,
através de hormônios bloqueadores, desempenham a função de assegurar a
construção futura de corpos passíveis de fazerem sentido para essas crianças
e adolescentes.
É preciso insistir, sobretudo, na despatologização das experiências
trans e intersexo. A medicalização da transexualidade impõe em severas con-
sequências para a cidadania e a autodeterminação das pessoas dissidentes de
gênero. No Brasil, para terem acesso a hormonioterapias e cirurgias, dentre
as quais as de trangenitalização, as pessoas transexuais e travestis devem se
submeter a dois anos de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar,
formada por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, endocrinologistas, gi-
necologistas e cirurgiões (Portaria nº 457 de 2008, do Ministério da Saúde). O
objetivo desse protocolo é atestar ser o/a paciente uma/um “transexual ver-
dadeiro”, em conformidade com os parâmetros de feminilidade e masculini-
dade dominantes na sociedade. Esse quadro se revela ainda mais reificante na
medida em que a cirurgia e o diagnóstico que ateste esse transtorno psiquiá-
trico são requisitos exigido pelo judiciário para a alteração dos dados registrais
das pessoas trans, ou seja, para modificação de suas certidões e documentos
de identificação de modo a fazê-los corresponder ao nome e sexo com que se
identificam10. Desse modo, ao condicionar os direitos das pessoas trans à ci-
rurgia transgenitalizadora e à apresentação de laudo psiquiátrico, o Direito
reproduz o modelo patologizante e solapa a autodeterminação das pessoas
transexuais e travestis (LOPES, 2015).

10 Apenas recentemente os tribunais vêm deferindo a retificação dos dados do registro

(sexo e prenome) sem exigência de cirurgia transgenitalizadora (TJSP, 2016). Persiste, toda-
via, a patologização, por meio da exigência de laudo psiquiátrico atestando a transexualidade
sob o rótulo de disforia/transtorno de gênero.

186
Qual o futuro da sexualidade no direito?

No caso da intersexualidade, a autonomia sobre o próprio corpo im-


plica em questionar o imperativo cultural que obriga às intervenções de de-
signação sexual em recém-nascidos com genitália ambígua. Considerado um
caso de “urgência médica”, o diagnóstico de um recém-nascido como inter-
sexual desencadeia um processo de decisão e atribuição cirúrgica de um sexo
(MACHADO, 2008). O Direito corrobora com essa lógica patologizante e
binária na medida em que exige, para o registro civil de qualquer pessoa, a
indicação de sexo/gênero masculino ou feminino. Sem a indicação médica de
um “sexo verdadeiro”, uma criança não pode ser registrada no Brasil. As pes-
soas intersex, na condição de intersex, não existem para o ordenamento jurí-
dico nacional11. Os movimentos políticos intersex têm questionado incisiva-
mente a necessidade de intervenções precoces de designação sexual, ressal-
tando que não há razões éticas que sustentem a imposição de cirurgia mutila-
doras ou tratamento hormonal à revelia de qualquer possibilidade de consen-
timento informado por parte das crianças operadas (CHASE, 2002).
A beneficência procriativa pode ser apontada como um parâmetro
para as intervenções biotecnológicas. Tal princípio, segundo Savulescu
(2001), vincula as pessoas que se submetem a métodos de reprodução assis-
tida à obrigação moral de selecionar geneticamente embriões com as maiores
chances de um futuro aberto ou de vida boa. Com fundamento na paternidade
responsável, a beneficência procriativa pode, portanto, ser estendida para ou-
tras esferas decisórias, apontando para a responsabilidade de que os familiares
empreguem todos os recursos tecnológicos, desde que disponíveis ao seu al-
cance, para assegurar a maior possibilidade de vida feliz a seus filhos.
Engajadas na concretização de decisões reprodutivas e sexuais mol-
dadas por projetos autorrealização, as biotecnologias constituem-se, portanto,
em melhoramentos humanos. Essas técnicas inscrevem um enorme potencial
de promover “mudança na biologia e na psicologia de uma pessoa que au-
menta suas possibilidades de levar uma vida boa, em um conjunto relevante
de circunstâncias”, de modo que devem ser consideradas direitos fundamen-
tais (SAVULESCU, SANDBERG E KAHANE, 2011). Normas e políticas

11 A adoção pelas distintas nomenclaturas aqui, se justifica em consonância com a obra de

Machado (2008). Os “estados intersexuais”, como termo guarda-chuva, se referem a todas


aquelas condições em que os saberes médicos vislumbram características de dois sexos em
um paciente. Em um esforço crítico à própria medicalização da intersexualidade, os movi-
mentos e pessoas têm se organizado ética-politicamente como “intersex” e, a partir dessa
identidade política, vêm reivindicando direitos e reconhecimento social.

187
Laís Lopes

públicas devem inscrever e garantir o acesso público e universal às biotecno-


logias, que devem ser consideradas direitos fundamentais (STANCIOLI,
2012).
Articular o pluralismo familiar, a desconstrução da heteronormativi-
dade e o acesso às biotecnologias, portanto, significa reconhecer demandas
que se apresentam, na esfera pública, para a concretização de projetos de fe-
licidade. O exercício de direitos sexuais e reprodutivos, mediado pelo acesso
a biotecnologias, deve ser modulado segundo vivências plurais da sexualidade
e do gênero. A consideração dessas particularidades confere existência jurí-
dica a múltiplas formas de ser pessoa e realizar-se em composições familiares
democráticas.

Considerações finais

A pergunta pelo futuro das relações familiares e reprodutivas não


pode ser destacada de uma reflexão crítica sobre a política sexual do passado
e do presente. Ainda que a família tenha sido reinventada em seus formatos e
funções, subsiste uma nostalgia do “modo como nunca fomos”, nos termos
de Stephanie Coontz (2000). O modelo nuclear heterossexual não apenas não
foi o arranjo unívoco na história, como tampouco foi plenamente capaz de
suprir as necessidades afetivas e materiais de seus integrantes.
A insistência nesse modelo, contudo, transparece ainda no modo
como as relações de parentesco são pensadas, com o privilégio da natureza e
da biologia. Mesmo diante de um impulso pelo desacoplamento entre sexua-
lidade e reprodução, a natureza continua a ser um critério de reconhecimento
de quais laços familiares devem ser legitimados e protegidos pelo Direito -
sobretudo por meio do reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos
ligados ao acesso às biotecnologias de modificação corporal. A infertilidade
como requisito para a elegibilidade para os métodos de reprodução assistida
é um exemplo do primado da biologia na política sexual heteronormativa.
Em contrapartida, uma abordagem crítica dos direitos sexuais e re-
produtivos, atenta a questões de gênero e sexualidade, permite vislumbrar um
futuro mais democrático para as relações procriativas e de parentesco. O fun-
damento da família reside na autonomia e no afeto, por meio dos quais as
pessoas se comprometem e se dedicam umas às outras. A natureza, nesse viés,

188
Qual o futuro da sexualidade no direito?

se resume a um artifício heteronormativo que desampara juridicamente pes-


soas e arranjos dissidentes das convenções de gênero e sexualidade. Reverter
essa lógica excludente exige ressignificar as biotecnologias de modificação
corporal: ao invés de tratamentos para restaurar uma suposta normalidade
orgânica (a fertilidade), devem ser consideradas verdadeiros melhoramentos
humanos, intervenções com o objetivo de promover o bem-estar e a autono-
mia das pessoas. Demandas por essas tecnologias, em especial por parte de
pessoas e grupos LGBTI+, já podem ser delineadas, tais como as apresenta-
das neste capítulo. A democratização da vida privada e das relações familiares
exige, mais além, atentar para outras reivindicações por direitos sexuais e re-
produtivos ainda por serem formuladas.

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193
194
8
Política sexual na modernidade e perspectivas de
masculinidades aplicadas ao direito brasileiro

David Emmanuel da Silva Souza1

A
política é a política dos homens (CONNELL, 2003). Esta
frase inicial abre campo para discussões a respeito da po-
lítica desenvolvida pelos homens para construir, legitimar
e perpetuar estruturas de dominação masculina sobre a vida social e, sobre-
tudo, sobre as mulheres. A luta das mulheres para compartilhar este poder
revela uma defesa intransigente deste poder operado por homens, que per-
passam as exclusões legais, as regras de recrutamento que exigem experiência,
qualificações e méritos mais difíceis de serem alcançado por elas, variedade
de prejuízos e suposições informais que operam em favor deles.
As táticas realizadas para a perpetuação da dominação masculina in-
sistem na seleção dos homens para o poder, não requerendo uma política de
masculinidade explícita. Na história da sociedade, sendo o Estado uma insti-

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade

Federal Fluminense. Bolsista CAPES

195
David Emmanuel Souza

tuição patriarcal, as posições dos homens nas relações de gênero são transfor-
madas em objeto de política, influenciando questões como violência, desi-
gualdade e distribuição de oportunidades.
Assim, propor a inclusão de perspectivas de masculinidade na pro-
dução de política sexual se demonstra indispensável para compreender a for-
mação racionalidade do direito e, por implicação, transformá-la a fim de se
alcançar a emancipação das barreiras impostas pela tradição de pensamento
filosófico masculino, que influenciam nas esferas pública e privada da socie-
dade.
Para tanto, desmascarar a divisão da sociedade em esferas distintas e
pertencentes a grupos distintos de pessoas, especificamente a esfera pública
como âmbito masculino e a esfera privada como local do feminino, apresenta-
se como possibilidade de desconstruir a tradição de pensamento ocidental,
que pautado nas diferenças biológicas as transforma em diferenças sociais,
criando categorias dicotômicas e binarizantes, que alocam homens e mulheres
em oposições estáticas e – tais como exemplos, homem-ativo-racional-agres-
sor e mulher-passiva-emotiva-vítima –, as quais legitimam a hierarquia das
relações de gênero, assim como a supremacia masculina. Feito isto, rema-
nesce a questão central deste livro: qual o futuro da sexualidade no direito?
Ou ainda, qual o futuro da masculinidade no direito?
Para tentar responder estas questões, urge trazer à discussão já ins-
taurada o desafio de implicar a epistemologia dos estudos das masculinidades
na discussão de uma política sexual emancipatória de gênero, que envolva
também os homens na luta por uma sociedade em que as diferenças sociais
históricas sejam substituídas por um exercício igualitário do poder e do acesso
às esferas públicas e privadas indistintamente.
Nesse sentido, busca-se discutir a produção de política sexual na mo-
dernidade, compreendendo-a como resultado de uma filosofia de pensa-
mento masculinista, que formata as relações de gênero em termos binários,
dicotômicos, nucleares e heterossexuais. Adiante, apresentam-se os estudos
de masculinidades construídos no ocidente enquanto fechamento epistemo-
lógico para os estudos de gênero, por visualizar que os estudos de mulheres e
de gays não são suficientes para levantar as críticas à racionalidade do Direito.
Em seguida, far-se-á uma breve crítica aos estudos de homens e masculinida-
des no Brasil, tanto para contemplar a importância do avanço teórico nas de-

196
Qual o futuro da sexualidade no direito?

mais áreas de conhecimento das ciências sociais e humanas, quanto para re-
fletir a ausência de atenção às masculinidades no campo do Direito – razão
pela qual se justifica esta pesquisa. Na última parte do capítulo, busca-se per-
ceber empiricamente a relação entre masculinidade e política sexual, discu-
tindo as transformações das relações familiares e a paternidade que foram
incorporadas pelo Direito, tocando especificamente na igualdade formal e
material entre homens e mulheres, bem como as discussões decorrentes da
paternidade nesse processo de formalização de paridade – a partir da análise
de leis e jurisprudências que tocam nos elementos acima mencionados.
Diante deste cenário de investigação, a hipótese sustentada é que a
crítica dos estudos de masculinidades à racionalidade do direito pode fornecer
elementos problematizadores para pensar e formatar as bases para um futuro
justo, democrático e igualitário entre as identidades sexuais.

Política sexual na modernidade e a masculinidade

Neste tópico será discutida a tradição de pensamento masculino que


funda a produção de política sexual na modernidade. Este caminho a ser per-
corrido visa desmascarar os alicerces masculinistas que formatam a ciência e
a produção de conhecimento sobre a sexualidade, visando, sobretudo, repen-
sar o futuro da sexualidade no direito. Deste modo, serão apresentados os
argumentos que legitimaram a configuração das relações entre sexos, assim
como as críticas levantadas a eles, buscando perceber que estas críticas não
foram suficientes para repensar o direito e o futuro da sexualidade, razão pela
qual se justifica incluir as críticas realizadas pelos estudos de masculinidades.
Pensar as políticas sexuais na modernidade direciona os estudos para
quatro movimentos importantes para a reconfiguração das relações entre se-
xos – sobretudo para reconfigurar o masculino –, pois incorporam perspecti-
vas políticas, sociais, culturais e econômicas da sexualidade. Estes movimen-
tos – identificados por Richard Parker – ocorreram, sobretudo, a partir dos
anos 1960 no ocidente, sendo eles: a revolução sexual, o advento do femi-
nismo, o movimento de liberação dos gays e a luta por direitos civis
(PARKER, 2000, 135).
A ideia de que nenhum destino biológico, psíquico, econômico é ca-
paz de definir a forma que o macho humano assume dentro da sociedade foi

197
David Emmanuel Souza

criticada por esses movimentos, que ressaltavam que é o conjunto da civiliza-


ção que elabora o produto do homem viril construído contextual, social e
politicamente, estendendo ao gênero masculino a demonstração do caráter
alienante das identidades sexuais.
Aqueles movimentos denotam que o aumento do interesse acadê-
mico em relação à sexualidade decorre do contexto mais amplo de modifica-
ção das normas sociais, do avanço dos movimentos de mulheres, gays e lés-
bicos, do impacto do HIV/AIDS, da preocupação com a saúde reprodutiva
e sexual, assim como permitem pensar que estas mudanças nas normas sociais
provocam alterações na sexualidade e no futuro dela, sobretudo porque ques-
tionam o modelo tradicional de virilidade.
À noção de sexualidade no final da década de 1980 foi acrescido o
sentido produtivo de liberdade, permitindo aos indivíduos o exercício saudá-
vel da sexualidade. Porém sendo a sexualidade um conceito produzido no
final do século XVII, ela não é uma qualidade inerente à carne. Portanto, o
questionamento que surge é: por que a sexualidade foi produzida?
Quando Jann Matlock questiona o futuro da sexualidade, soa que a
principal provocação se encontra no agora, pois as mudanças na sociedade
promovem transformações na sexualidade (MATLOCK, 2002, 12). Raewyn
Connell, também preocupada com o futuro da sexualidade, ao discutir a ques-
tão do gênero em perspectivas globais afirma que “o gênero como um sistema
de relações é criado nesse processo histórico e, sabidamente, não pode jamais
ser fixado, nem exatamente reproduzido” (CONNELL, 2015, 118).
A sociedade forma e forja os sujeitos produzindo subjetividades in-
finitas, assim como a identidade executa conteúdos diferenciados no tempo,
de modo que os sentidos sobre identidade não podem simplesmente ser des-
considerados e excluídos do processo histórico. Atualmente, verifica-se uma
tendência maior de permissividade em relação às normativas da sexualidade
no sistema estatal, atentando que a sexualidade ao provocar tensionamentos,
produz novas normativas. Como exemplos, a cobrança do sistema por reor-
ganizações das relações de parentesco; a integração da mulher na esfera pú-
blica, em que ela acaba comprando conceitos que não foram produzidos para
sua realidade, resultando numa colonização das noções que tocam conceitos
de autodeterminação, aborto, de formação do sujeito a partir de um disposi-
tivo que já está pronto; e a recente compreensão da identidade homossexual,

198
Qual o futuro da sexualidade no direito?

assim como a heterossexual. De igual modo é preciso reconhecer que inúme-


ros avanços ainda precisam ser alcançados na teoria e na prática.
O enfoque no desenvolvimento da pesquisa antropológica sobre se-
xualidade e comportamento sexual no final dos anos 80 e anos 90 destaca as
perspectivas teóricas que orientam a formulação de análises comparativas, tra-
çando, sobretudo, a relação entre as teorias construcionistas sociais da sexua-
lidade, bem como explicita os modos pelos quais os fatores da cultura e da
economia política se imbricam a construção da experiência social (PARKER,
2000, 125).
Richard Parker afirma que a teoria da construção social sustenta o
argumento de que a sexualidade é construída de diferentes formas a partir da
cultura e do tempo, em contraposição às teorias que prezam pela influência
cultural sobre as expressões universais e consistentes da sexualidade. Parker
aduz que este modelo de análise desconsidera a importância do relativismo
cultural e da influência da variabilidade intercultural, restando por não ques-
tionar a suposta universalidade da sexualidade. (PARKER, 2000, 126).
Assim, os estudos que focam na variação cultural têm sido utilizados
para questionar os modelos imutáveis e estáticos das normas e dos costumes
sexuais ocidentais.
As assertivas das pesquisas sobre universalidade da sexualidade são
próprias da análise liberal, que trabalha com a ideia da influência cultural e
com noção de multiculturalismo, buscando a base que é comum e imutável
do indivíduo. O erro da universalidade da sexualidade é que encontrar uma
base de construção do sujeito também é construir a base. O sujeito é constru-
ído pelo sistema. Ao falar em base, tem que se considerar as construções so-
ciais que foram empreendidas, pois o contrário pressupõe que o indivíduo
que é anterior à culturalidade.
Em muitos relatos etnográficos, o trânsito cultural não é possível de
maneira simplória, e em outros se trabalha com uma perspectiva universali-
zante cultural, levando conceitos de uma localidade para outra sem o cuidado
de perceber as nuances que distinguem os contextos sociais e culturais. A no-
ção da influência cultural é um primeiro passo para o questionamento da uni-
versalidade de pesquisas antropológicas clássicas.
Os estudos feministas, o trabalho histórico sobre a identidade sexual
masculina nos EUA e Europa no século XIX e a política social da sexualidade

199
David Emmanuel Souza

nos séculos XIX e XX são as origens do impulso da teoria da construção


social da sexualidade.
As discussões sobre a identidade sexual ganham notoriedade acadê-
mica, apesar da ausência de interesse dado às pesquisas sobre a sexualidade.
Tendo sido empreendida inicialmente para buscar as raízes históricas da ho-
mossexualidade masculina, a pesquisa sobre identidade sexual, especialmente
após Jeffrey Weeks, passou a considerar o comportamento homossexual dis-
sociado da identidade sexual, o que permitiu a elaboração de pesquisas antro-
pológicas que explicitassem a natureza e a origens das categorizações a res-
peito da identidade sexual (PARKER, 2000, 128; WEEKS, 2000, 63;
MATLOCK, 2002, 12).
O discurso estatal sobre saúde e doença que emergiu ao longo dos
séculos XIX e XX também influenciou as teorias da construção social. A re-
gulação da sexualidade pelo Estado influenciada pelos discursos médicos na
produção das políticas da saúde foi confrontada por membros de subculturas
sexuais e políticas ao modelar as formas como a sexualidade é configurada e
conceituada, tensionando o status quo através da organização dos movimentos
de base, demonstrações simbólicas e ocupações dos espaços públicos, fomen-
tando novas áreas para investigação (PARKER, 2000, 128).
A emergência da epidemia HIV/AIDS nos anos 80 provocou impor-
tantes pesquisas sobre a sexualidade e promoveu pesquisas sobre a construção
social, de modo a explicitar as inadequações metodológicas evidentes nas pes-
quisas sobre sexualidade, cujas premissas são baseadas em concepções con-
vencionais e formatadas a partir de uma racionalidade masculinista. A de-
manda apresentada forçou as abordagens culturais para desconstruir as no-
ções aceitas sobre a conduta sexual, posto que esta racionalização do pensa-
mento masculino na filosofia alimentou a doutrina da separação do mundo
social em duas esferas e promoveu a inscrição dos homens na esfera pública
ao mesmo tempo em que se esforçava para relegar as mulheres à esfera pri-
vada.
Antes mesmo de Carol Pateman discorrer que as teorias do contrato
social tenham sido inscritas em uma ordem de diferenças sexuais que pregava
a exclusão das mulheres da vida pública, Christopher Forth (2013) relembra
que a ideia da divisão espacial do mundo em domínios público e privado en-
contrava ressonância na psicologia dos indivíduos, na medida em que a psique
dos homens produzia uma clivagem entre o “eu” público, moral e racional e

200
Qual o futuro da sexualidade no direito?

um “eu” privado, doméstico e aprisionado à carne. Forth acrescenta que as


mesmas instituições consideradas racionais que legitimaram o controle das
mulheres pelos homens também provocaram uma cisão na psicologia do ma-
cho em duas esferas contrárias (FORTH, 2013, 173).
A crítica realizada aos modelos do “construcionismo social” é que
eles são permeados por noções essencialistas sobre a sexualidade, pois ainda
que entendam que os elementos da sexualidade sejam construídos social-
mente e, portanto, mediados por fatores culturais e históricos, a eles é questi-
onada a imposição das crenças ocidentais sobre a sexualidade a outras cultu-
ras, contrastando, pois, a reflexividade do modelo da construção social
(PARKER, 2000, 127). O risco ao encontrar a base na teoria da construção
social é que se forja a base a partir de outra realidade. Cair num relativismo
absoluto também se demonstra problemático, pois anula a possibilidade de
existência comunicacional.
Parker e Connell ressaltam a importância de avaliar a dinâmica local
das relações de poder, pois constituem as relações de gênero. Parker produziu
críticas ao paradigma marxista tradicional, afirmando que tomar uma superes-
trutura cultural determinista para explicar as relações de gênero, finda por re-
duzir as complexidades das experiências das pessoas e deixa de perceber ou-
tras interações entre gênero, sexualidade, classe e poder. Assim, as variações
culturais, somadas às questões de produção, política e economia, são utiliza-
das para confrontar as noções dos papeis universais do gênero e das sexuali-
dades uniformes, inspirando uma reconfiguração analítica das categorias de
sexualidade e gênero.
Decorrente destas compreensões, a questão que floresce não é dis-
cutir se a sexualidade é cambiável ou não, mas perguntar para onde está mu-
dando. Não se está falando de extinção do gênero ou da sexualidade, posto
que os dispositivos ideológicos permanecerão formatando as identidades, mas
apregoar a extinção de diferenças hierárquicas entre as identidades sexuais é
urgente. Para tanto, determinadas perguntas remanescem: qual o futuro da
sexualidade? Havendo um futuro, qual será o desejado? Qual sexualidade será
produzida? A masculinidade permanecerá formatando a produção de conhe-
cimentos supostamente verdadeiros? Existe uma sexualidade verdadeira?
A materialização da sexualidade e a demanda do corpo visível ex-
põem a fantasia da sexualidade na sociedade fundada no preceito de liberdade.

201
David Emmanuel Souza

Porém, existe um sexo verdadeiro? Existe uma identidade verdadeira? Os in-


divíduos são demandados a produzir verdades sobre suas identidades. Mas a
identidade não é algo realizável, pois é um papel social a ser encenado, tal qual
o sentido de masculinidade para Connell ou o conceito de performatividade
de Judith Butler: reiteração intencional de normas ou conjunto de normas que
configuram os indivíduos como tais, de tal modo que a reiteração da perfor-
matividade permite a materialização do corpo e esconde o papel regulatório
do mesmo. Construir sentidos sobre a sexualidade e ressignificá-los revela a
fantasia regulatória da sociedade sobre a sexualidade, que os indivíduos fan-
tasiam na identidade. O problema não reside na identidade em si, mas nos
processos de produção política de identidade e na construção dos significados
políticos.
Pelo fato de as construções das identidades sexuais estarem vincula-
das às dinâmicas de poder – retirando a possibilidade de liberdade de identi-
ficação – e estando o ideal de liberdade vinculado ao aparelho institucional,
questiona-se: os ideais da modernidade de liberdade, identidade e autonomia
resistirão ao futuro da sexualidade no direito?
De igual modo, o “verdadeiro sexo” não entra como uma questão
definitiva, mas o que se entende por esse termo. Ao adotar o verdadeiro sexo,
se resgata uma ontologia dos sujeitos, uma discussão metafísica do sujeito.
Negar a categoria sujeito pode conduzir a uma filiação pós-moderna. O meio
termo é dizer que o verdadeiro sexo não é verdadeiro nem possível. Butler
aduz que “a hipótese prevalecente da integridade ontológica do sujeito pe-
rante a lei pode ser vista como um vestígio contemporâneo da hipótese do
estado natural [...] que é constitutiva das estruturas jurídicas do liberalismo
clássico” (BUTLER, 2015, 20).
Compreender a sexualidade como socialmente construída conduz as
pesquisas a focar na natureza intersubjetiva dos significados sociais, de modo
a ser compreendida como um produto dos símbolos e significados intersub-
jetivos associados com a sexualidade, nos diferentes espaços temporais, soci-
ais, políticos e culturais.
Desta forma, o comportamento sexual é visto de forma intencional,
que é moldada no “interior dos contextos específicos de interação social e
culturalmente estruturadas” (PARKER, 2000, 129).
Diante desta compreensão, passa a se enfocar o contexto das intera-
ções sociais, que são permeadas por negociações complexas. Incidindo sobre

202
Qual o futuro da sexualidade no direito?

as estruturas e nas possibilidades de interação sexual em contextos distintos,


pesquisas sobre as práticas discursivas e sobre os complexos sistemas de saber
e poder apontaram para a produção do significado e da experiência da sexua-
lidade em contextos históricos, sociais e culturais distintos. Centrando-se em
contextos culturais mais amplos e, por conseguinte, na investigação das vari-
adas “culturas sexuais”.
A análise das “categorias dos sistemas de classificação culturais nati-
vos que estruturam e definem a experiência sexual em diferentes contextos
sociais e culturais” (PARKER, 2000, 130) passam a ser enfatizadas, analisando
os comportamentos sexuais em si mesmos, para alcançar os espaços culturais
nos quais o comportamento sexual tem lugar e organiza os papeis sexuais.
Isto, tendo em vista que as categorias ocidentais sobre a sexualidade
não são universais, naturais, tampouco existem em contextos socioculturais
diversos – assim como outras categorias podem passar despercebidas da aná-
lise etnocêntrica, como as análises interseccionais entre raça, gênero e classe.
Assim, buscar as experiências locais em que os membros de uma comunidade
utilizam para significar suas próprias realidades torna-se o direcionamento das
pesquisas sobre sexualidade.
As categorias analíticas etnocêntricas são insuficientes para abarcar a
complexidade da experiência sexual vivida em diferentes contextos. O traba-
lho a ser empreendido pelas pesquisas sociais e culturais é o de dissociar o
comportamento sexual da identidade sexual, bem como do desejo sexual,
posto que as formas que as identidades sexuais tomam dependem das catego-
rizações e das classificações sexuais disponíveis.
A partir destas categorizações locais os significados de macho e fê-
mea podem variar em grandes escalas dependendo do contexto social, cultu-
ral, político e econômico vivenciado. O processo de socialização sexual é que
conduz os indivíduos a apreender os desejos, os papeis e as práticas sexuais,
internalizá-los e reproduzi-los na interação social e sexual, de modo que a
depender da modificação das condições de sociabilidade, os sentidos sobre
ser homem e ser mulher podem variar, explicitando a fragilidade da fronteira
entre gêneros.
A formulação contemporânea da sexualidade deixa de lado a biologia
e passa a falar da materialização dos atos e comportamentos, sob uma pers-
pectiva construtivista. Mesmo que a nova definição rejeite as características

203
David Emmanuel Souza

anatômicas ou mesmo as normas sociais, permitindo aos indivíduos nomina-


rem suas próprias identidades, estes termos permanecem enquadrados pelas
diferenças normativas e moralizantes categorizadas pelos discursos sobre a
sexualidade produzidos no século XIX (MATLOCK, 2002, 19).
Uma definição da sexualidade que se constrói no corpo e reconstrói
os corpos conduz a uma acepção do conceito ou como identidade ou como
experiência do eu na produção de identidade (MATLOCK, 2002, 18). A per-
cepção da sua situação produtora de sexualidade se naturalizou, alcançando a
compreensão de que todos os indivíduos são seres performáticos, como afir-
mou Butler. Algumas destas práticas são tão incidentes na sociedade que são
imperceptíveis, como a masculinidade hegemônica. Em contrapartida, outras
são tão dissidentes que provocam estranhamento, como as masculinidades
subalternas ou mesmo as mulheres e as identidades transexuais.
A questão da transexualidade é fator relevante para se pensar o futuro
da sexualidade no sentido de tensionar a necessidade de controlar e revelar a
sua própria sexualidade. Como as instituições fazem parte do nosso compo-
nente linguístico, percebe-se que há uma dificuldade de se aceitar uma indife-
rença da sexualidade. Porém este fator pode se tornar uma perspectiva trans-
cendental e utópica de tensionar a estrutura e obter ganhos com isso. A tran-
sexualidade é o ponto final da provocação da diferença, permitindo aos indi-
víduos se perceberem diferentes e constituídos pelo sistema, como também
acessar a ideologia do que se vê, no sentido da junção de prazer e representa-
ção, ou mesmo na exterioridade que extrapola o corpo, revelando que o corpo
também importa. O corpo não formata os comportamentos. São os compor-
tamentos construídos, reconstruídos e reiterados historicamente e coletiva-
mente que formatam os corpos.
Enxergar o corpo como um produto material e simbólico da cultura
propicia uma reformulação dos estudos sobre a sexualidade, que envolva no-
ções de classe e etnicidade. Disto decorre a importância aferida às análises
críticas que investigam o impacto do colonialismo e do neocolonialismo
como contextos de poder, nos quais a sexualidade é formada. Pensar na eco-
nomia política da sexualidade, como fez Parker, faz perceber que as noções
de gênero ainda são alimentadas por noções colonialistas, que prediz rigidez
e consistência das categorias sexuais, impondo-as universalmente. E este é o
trabalho das perspectivas pós-coloniais (PARKER, 2000, 138).

204
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Porém, as noções da diferença sexual não podem mais ser compre-


endidas como produtos de contextos sociais e culturais distintos, pois a sexu-
alidade tem se tornado cada vez mais sujeita a uma série de processos acele-
rados de mudanças ocorridas no contexto da complexa globalização que mar-
cam o final século XX. Connell tem utilizado este modelo de pesquisa crítica,
acrescentando às discussões as noções de neoliberalismo, para descolonizar o
pensamento europeu e norte americano sobre a sexualidade que fora levado
para quase todas as partes do mundo, sobretudo, aos países colonizados do
sul global, como o Brasil.
Somente ao interpretar as culturas sexuais como partes dos processos
globais de mudança é que a pesquisa de sexualidade será capaz de superar
leituras superficiais sobre similaridade e diferenças sexuais, atingindo uma
compreensão intercultural mais abrangente das complexidades das experiên-
cias sexuais. Situar as culturas sexuais no interior dos processos amplos de
mudança histórica, política e econômica, fornecendo elementos para tensio-
nar analiticamente os significados culturais locais e as compreensões dos pro-
cessos globais (PARKER, 2000, 138 e 139).
Além disso, criticar o modo de produção de conhecimento, tendo
em vista que a ciência cria categorias e busca encaixar o corpo nelas, parece
ser um trabalho relevante.
Elizabeth Grosz, ao discorrer sobre o modo de produção de conhe-
cimento sobre a sexualidade feminina diz que ela “aguarda conhecimentos
futuros, que estejam sintonizados com a singularidade de seus objetos, com
aquilo que é deixado para trás, quando os objetos são reduzidos para a gene-
ralização” (GROSZ, 2003). Grosz adota uma postura crítica que se coloca
como falível. Segue demonstrando a precariedade epistemológica da produ-
ção do conhecimento sobre a sexualidade feminina a partir do viés feminista,
de modo que “qualquer tentativa de se conhecer a sexualidade de todas as
mulheres perderá a especificidade de cada mulher em particular, ao invés de
indicar termos probabilísticos suas características gerais” (GROSZ, 2003).
Grosz revela a precariedade da noção de conhecimentos verdadeiros. Igual-
mente ocorre no campo de estudos das masculinidades. Grosz aduz que a
sexualidade masculina é a própria origem dos números. Ela nega a alteridade
feminina como sendo o contrário do padrão masculino. O feminino é dife-
rente com relação ao masculino, é o “outro outro”. Nega a diferença que é
oposta, usa a diferença que não é igual. Como explicar o outro por si mesmo

205
David Emmanuel Souza

sem oposição a si mesmo? Como falar sobre o outro que não se diz, mas que
só pode ser dito em relação ao outro?
Para a maioria dos homens, o corpo esconde as fontes íntimas do
feminino relacionadas ao local da desordem das paixões e dos prazeres, da
vulnerabilidade, da mortalidade e da animalidade. A discussão sobre política
sexual identifica que a memória do pensamento ocidental marginalizou o
corpo e as paixões, realizando uma tradição racionalista que estabelece a equi-
valência entre a razão e a concepção de uma masculinidade extrínseca ao pró-
prio corpo.
Compreender esta tensão entre a razão masculina em detrimento do
corpo feminino foi crucial para a construção das epistemologias feministas
que visavam criticar e desconstruir a masculinização do pensamento filosófico
cartesiano (FORTH, 2013, 173).
Porém, como se inscrever na ciência de forma objetiva? Como fugir
das categorias masculinizadas? Como pensar a representatividade dos sujeitos
na produção do conhecimento, para garantir a legitimidade da política identi-
tária sexual? A vida privada e íntima concretiza hierarquias de sujeitos e que
dali emana saberes necessários para produzir ciência e política do ponto de
vista teórico, que tenha caráter objetivo e, a partir disto, produzir política se-
xual.
Torna-se urgente pensar como essas categorias foram criadas. Com-
preender os padrões de justificação das categorias. A psicologia e a fisiologia
da natureza feminina não são únicas. Igualmente a masculina.
A crítica feminista não parece ter sido suficiente para explicitar a
construção das identidades masculinas e como elas influem diretamente na
produção do conhecimento e, sobretudo, na construção da política sexual. A
necessidade de incorporar os estudos de masculinidades nas pesquisas de gê-
nero para pensar o futuro da política sexual parece um caminho que ainda se
encontra fechado.
A problematização dos estudos de masculinidades e suas implicações
na sociedade e na história foram organizadas pela ideia da existência de uma
masculinidade hegemônica que se funda através da dominação masculina e
no poder do patriarcado. A legitimação das variadas formas de dominação foi
inicialmente colocada enquanto condição natural, e com o decorrer da história
passou a ser compreendida como uma construção social, cultural e simbólica
passível de ser criticada.

206
Qual o futuro da sexualidade no direito?

De modo geral, os estudos das masculinidades se dividem em duas


perspectivas teóricas entre as críticas materialistas e as pós-estruturalistas da
formação das identidades sexuais. Estas perspectivas pretendem fornecer
meios para a compreensão das práticas e coerções materiais, culturais e psi-
cológicas que fundam a construção das masculinidades.
Os defensores das críticas materialistas se atêm aos fundamentos so-
ciais e institucionais sob os quais repousa a produção das normas masculinas.
Em contrapartida – focam na relação da masculinidade com o patriarcado e
adotam um conceito de masculinidade hegemônica –, os defensores pós-es-
truturalistas lutam contra as ambiguidades, instabilidades e contradições que
se revelam neste processo de produção de normas, explorando as contradi-
ções e a fluidez do termo, mantendo-se distantes de qualquer modelo cientí-
fico do social.
Dentro da perspectiva materialista encontram-se duas correntes das
masculinidades que se dividem entre aquelas consideradas vitimistas e as con-
sideradas teorias críticas das masculinidades: A corrente vitimista considera
os homens como vítimas do sistema de opressão masculinas e realizam defi-
nições essencialistas sobre o ser homem (KAUFMAN, 1989, 14); a corrente
crítica aponta a existência de uma masculinidade hegemônica que utiliza da
violência e da segregação para manter poderes e privilégios historicamente e
socialmente construídos (CONNELL, 1997, 38; 2003; KIMMEL, 1995, 51).
A partir da década de 80 pesquisadores pós-estruturalistas contesta-
ram a existência de uma masculinidade hegemônica e conferiram maior enfo-
que às metodologias transdisciplinares. As teorias sobre a desconstrução dos
opostos binários e com a ideia de poder descentrado de Foucault (1988) ser-
viram bastante para os discursos feministas. Isto porque as teorias da década
de 1970 faziam do gênero um conjunto estratificado de discursos sociais. Na
ótica pós-estruturalista, o sexo não está desvinculado do gênero, haja vista
que ambos são construções culturais. Assim, o gênero está ligado ao fazer que
constitui as identidades masculinas e femininas, livre de qualquer determina-
ção material biológica ou social (FORTH, 2013, 160).
Dentro do pensamento pós-estruturalista, destaca-se a terceira cor-
rente dos estudos sobre as masculinidades que visa fugir do reducionismo
sociológico, sem abandonar o pensamento social, tentando reunir as catego-

207
David Emmanuel Souza

rias do social e do cultural, enquanto elementos constitutivos da masculini-


dade, para atingir a compreensão de uma masculinidade plural (ABOIM,
2010, 3).
Enquanto que na perspectiva da história social o gênero estava atre-
lado às estruturas e às instituições sociais, o pós-estruturalismo conduz os
pesquisadores a visar o papel dos discursos na formação dos ideais e das iden-
tidades sexuais. Joan Scott fala sobre a utilidade do gênero enquanto categoria
de análise histórica, demonstrando que o gênero é elemento constitutivo das
relações sociais fundado nas diferenças percebidas entre os sexos, assim como
uma maneira de significar as relações de poder. Scott convida os historiadores
para atentar como as diferenças sexuais estruturam uma gama de conceitos,
relações e instituições. Para tanto, foca sua análise para além das discrições da
opressão patriarcal e do protagonismo das mulheres na história. Desta forma,
permite uma análise histórica mais fluída das masculinidades, sobretudo pela
influência dos saberes do sexo encapado por Foucault, que fala de um poder
descentrado não reduzido às instituições políticas e sociais.
O papel metodológico que se evidencia com o surgimento dos estu-
dos de masculinidades é de problematizar as relações entre os gêneros, como
forma tanto de criticar a hegemonia masculina, quanto incluir os homens em
perspectivas emancipatórias de gênero.
Pensar a construção social do masculino e seus reflexos nas práticas
de dominação, marginalização e subordinação das mulheres e de outros ho-
mens que não se encaixam no padrão hegemônico de masculinidade parece
ser um caminho que ainda se encontra aberto e que precisa ser desbravado
com profundidade.
De igual modo, refletir a sexualidade sob o viés do Direito confere
potência às pesquisas de gênero para repensar a política sexual e a reconfigu-
ração da política, que permanece atrelada ao gênero masculino, com vistas a
alcançar o reconhecimento das plurais expressões de gênero, assim como prá-
ticas emancipatórias de gênero.
Por isso a importância de fortalecer os estudos de masculinidades
para além das questões usualmente trabalhadas no Brasil, tendo em vista que
os estudos de masculinidades aqui ainda permanecem precários no interior

208
Qual o futuro da sexualidade no direito?

das pesquisas de gênero, estando focados quase que essencialmente às pes-


quisas sobre saúde sexual e reprodutiva, à paternidade, violência e a relatos
antropológicos, sem desconsiderar as outras pesquisas encontradas2.
Somente ao incluir as dimensões das masculinidades na perspectiva
de gênero e incluir suas discussões no campo do direito é que a teoria crítica
da sexualidade pode abrir caminhos para uma discussão epistemológica que
implique masculinidades e feminilidades na luta por um projeto de justiça so-
cial e de emancipação das amarras das construções patriarcais e de hegemonia
masculina nas relações de gênero. Isto, porque, como Connell assinalou ao
realizar a crítica às masculinidades, a masculinidade e a feminilidade são con-
ceitos inerentemente relacionais que adquirem seus significados das conexões
entre si, como delimitação social e oposição cultural.

Perspectivas de masculinidades aplicadas ao Direito brasileiro

Refletir sobre masculinidades e Direito no Brasil conduz a crítica à


produção dos estudos de masculinidades desenvolvidos no seio das pesquisas
de gênero já desenvolvidas no país, considerando, sobretudo, que esta crítica
não se perfaz no sentido de reduzir a importância dos trabalhos desenvolvi-
dos, posto que circundam e tangenciam a formação das identidades sexuais.
Porém surge a necessidade de trazer ao Direito as reflexões sobre sexualidade,
e, especificamente, masculinidades para potencializar o futuro da política se-
xual, repensando as ideologias binárias, dicotômicas, universalizantes e hete-
rossexuais que forjam os sujeitos de direitos e incluindo os homens na disputa
por um projeto de sociedade plural, democrática e justa, que respeite as iden-
tidades sexuais e redistribua oportunidades.
No segundo tópico do capítulo apontou-se a necessidade de fortale-
cer os estudos de masculinidades nas pesquisas de gênero para aprofundar as
críticas à política sexual, visando destradicionalizar os pressupostos evidentes
na constituição dos sujeitos de direitos fortemente atrelados a uma visão libe-
ral de sujeito universal masculino. No terceiro e quarto tópicos apresentou-se

2 Cf. ADORNO, ALVARENGA E VASCONCELLOS, 2005, pp; 15-29; CORBIN,

COURTINE E VIGARELLO, 2013a; 2013b; 2013c; LAGO E WOLFF, 2013, p. 233;


MEDRADO e LYRA, 2008, pp. 809 e 811; NASCIMENTO, 2004, pp. 105-128; SCHPUN,
2004, 9-13; SEFNNER, 2004, 85-10; WELZER-LANG, 2001, 460

209
David Emmanuel Souza

o desenvolvimento dos estudos de homens e de masculinidades no plano in-


ternacional e nacional, evidenciando que a pesquisa de masculinidades no Bra-
sil ainda é incipiente quanto ao questionamento da racionalidade do Direito,
e, por isso, demonstra-se insuficiente para propor e alcançar alterações na
produção de política sexual.
Portanto, como forma de problematizar as prerrogativas heteronor-
mativas e masculinistas do Direito é que se apresenta a discussão a seguir. Foi
pensada uma categoria de análise para pensar a reconfiguração das masculini-
dades na atualidade. O material a ser analisado compõe-se de leis e jurispru-
dências que tangenciam temas a respeito das transformações das relações fa-
miliares e de paternidade – especificamente no tocante à igualdade de direitos
entre homens e mulheres. Ainda em tempo, recorda-se que esta reflexão se
encontra em desenvolvimento, tendo em vista ser fruto de uma pesquisa de
mestrado em andamento, que procura identificar, mapear e discutir pontos de
transformações da masculinidade que foram incorporadas pelo Direito – ava-
liando o papel do Direito na reconfiguração das relações de gênero e bus-
cando perceber se estes pontos de toques são suficientes para modificar as
masculinidades a ponto de promover política sexual emancipatória.
No contexto nacional, a lei e a jurisprudência têm sido importantes
instrumentos de avanços sociais, políticos, econômicos, culturais e simbóli-
cos, pois proporcionam pensar o futuro da sociedade em termos mais demo-
cráticos e participativos, através do reconhecimento e da garantia dos direitos
humanos.
Entretanto, para garantir a eficácia e a efetividade destas mudanças
no plano fático demonstra-se urgente problematizar as mudanças com vista a
alcançar sentidos mais positivos no processo de construção das identidades
sexuais, proporcionando respostas mais adequadas aos anseios individuais e
sociais diante das tamanhas adversidades e diversidades encontradas no coti-
diano.
Para isso, algumas questões tensionam a produção do conhecimento
a ser aplicado no Direito, tais quais: de que modo os marcos internacionais
de direito de mulheres, gays e de direitos civis tratam a questão das masculi-
nidades? Quais as possibilidades e os limites dos instrumentos jurídicos para
a obtenção de avanços na defesa destes direitos? Como compreender as mas-
culinidades sob um sentido de limitação legal? Quais as táticas legais para re-
configurar as masculinidades no Brasil? Quais as definições de masculinidades

210
Qual o futuro da sexualidade no direito?

encontradas no Direito pátrio? Qual o futuro da masculinidade no direito


brasileiro?
Mesmo que estas perguntas ainda não tenham respostas formuladas,
elas proporcionam repensar questões que permanecem sendo realizadas na
produção de política sexual. Seria possível adotar um critério cronológico das
táticas realizadas na elaboração de políticas específicas, sendo, pois, capaz de
identificar a reunião de forças dos movimentos considerados minoritários e
dos seus argumentos no confronto da masculinidade hegemônica. De igual
modo, a elaboração de categorias de análise permite confrontar em sentido
mais amplo a historicidade e a defesa dos pressupostos heteronormativos,
binários e dicotômicos do Direito. O trabalho a ser realizado opta pela elabo-
ração de categorias, e, para este momento, dedica-se a discussão das transfor-
mações das relações familiares abordando o tema da paternidade.
No tocante às transformações das relações familiares buscam-se os
dispositivos do Código Civil de 1916 que abordam sociedade conjugal e a
capacidade civil das mulheres. Logo no início do código revogado, em seu
artigo 6º, inciso II, prevê que as mulheres casadas são consideradas relativa-
mente incapazes enquanto subsistir a sociedade conjugal. Mais adiante, no
artigo 233 consta expressamente estabelecido que o marido é o chefe da so-
ciedade conjugal (caput), conferindo-lhe direitos sobre a representação da fa-
mília (Art. 233, I), administração dos bens (Art. 233, II) decisão sobre a mu-
dança de domicílio (Art. 233, III), direito a autorizar a profissão da mulher e
a sua residência fora do teto conjugal (Art. 233, IV) e prover a manutenção
da família (Art. 233, V). Às mulheres o direito de dirigir a administração do
casal era permitido somente nos casos expressos pelo Art. 251. Na seção que
tratava especificamente do pátrio poder, o artigo 381 aduz que durante o ca-
samento o marido exerce o pátrio poder.
Diante deste cenário, vislumbram-se fortes raízes do direito romano
e canônico, que privilegia a dominação dos homens sobre as mulheres e os
filhos, escancarando a dicotomia da ocupação dos espaços público e privado,
assim como a ausência de controle do corpo pelas mulheres e de dignidade.
Com o avanço das teorias sobre a valorização dos seres humanos,
consubstanciadas nas premissas de exercício da dignidade e humanização das
relações privadas, tornou-se ofensa à dignidade o tratamento humano equi-
parado à condição de objeto.

211
David Emmanuel Souza

Nesse sentido, a Lei 4.121/1962, conhecida como Estatuto da Mu-


lher Casada, promoveu a isonomia entre homens e mulheres no âmbito das
relações conjugais – alterando a redação original do Código Civil de 1.916,
estabelecendo que a mulher exerce a chefia da relação conjugal em colabora-
ção com o marido –, propiciando abrir caminhos para a discussão sobre as
obrigações de cuidados com os filhos.
O advento da Constituição Federal constitui marco de direitos hu-
manos, incidindo com maestria nas transformações do direito de família ao
positivar a paridade entre homens e mulheres, estabelecer a pluralidade e a
dignidade humana como preceitos a serem seguidos e respeitados veemente-
mente. A Constituição de 88 aclara, por conseguinte, a igualdade na criação
dos filhos como reflexo da paridade de direitos e deveres a serem comparti-
lhados entre homens e mulheres no âmbito familiar. Considerando também
a determinação da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, docu-
mento específico para a proteção e cuidado deste público alvo.
Estas concepções sobre igualdade de direitos e obrigações entre ho-
mens e mulheres e paridade no trato familiar também foram consubstanciadas
no Código Civil de 2002, que revogou o Código de 1916, servindo como mais
um instrumento de reconfiguração dos espaços público e privado. Sendo o
principal documento jurídico de regulação das relações privadas, o Código de
2.002 ao tratar da família preocupou-se em responsabilizar ambos os genito-
res pelo cuidado, criação e educação dos filhos. Esses avanços denotam inte-
resse do legislativo em cumprir com as demandas apresentadas pela socie-
dade, correspondendo aos avanços teóricos e práticos empreendidos pelos
estudos e movimento de mulheres.
Entretanto, a regulamentação das normas atinentes ao direito pri-
vado, especialmente em respeito às relações familiares, gera pontos contro-
vertidos, os quais merecem destaque, pois ainda que a instrução normativa
seja no sentido de retirar a expressão pátrio poder, que privilegia a supremacia
dos homens em detrimento das mulheres, as práticas reais de paternidade e
maternidade passam despercebidas quanto ao tratamento da isonomia. Por
isso, reforçar a inclusão dos estudos de masculinidades corroborando o coro
já levantado pelos estudos de feminilidades assume caráter notório para re-
pensar a aceitação da manifestação de masculinidade hegemônica tida como
correta e natural.

212
Qual o futuro da sexualidade no direito?

A lei 13.257/2016, que dispõe sobre políticas públicas para a primeira


infância, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente no sentido de incluir
no artigo 22 o parágrafo único que versa que “mãe e o pai, ou os responsáveis,
têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado
e na educação da criança”. Considerando o tempo passado desde a promul-
gação do Estatuto da Mulher Casada, que estabeleceu a paridade na relação
conjugal, questiona-se: Por que acrescentar o termo pai no Estatuto da Cri-
ança e do Adolescente? Já estando consolidada na legislação brasileira a iso-
nomia entre os direitos e deveres entre homens e mulheres, sobretudo, no
cuidado e educação dos filhos, o que esta modificação implica para a mascu-
linidade hegemônica?
A necessidade de reconfigurar os espaços públicos e privados, co-
brando do homem a sua volta ao espaço doméstico, para a assunção de res-
ponsabilidade das atividades do cotidiano de cuidado e educação dos filhos,
é indiscutível ponto que precisa ser aprofundado através de políticas que ga-
rantam a estabilidade da família, proporcionando aos homens a possibilidade
de dedicar-se ao âmbito doméstico e assegurar a continuidade da participação
das mulheres nos espaços públicos – por exemplo, com a criação de creches
em universidades e nos locais de trabalho. Nesse sentido, a ampliação da li-
cença paternidade para 20 dias, pelo advento do decreto 8.737/2016, funciona
como vetor de ressignificação do papel social masculino.
Porém como compatibilizar esta afirmação binária expressa na mo-
dificação do Estatuto da Criança e do Adolescente com a configuração de
novas famílias não binárias e não heterossexuais? Mais uma vez, parece ser o
trabalho dos pesquisadores sobre sexualidade a questionar este fator.
Com as decisões do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277 e na
ADPF 132 de 2.011 foi reconhecida a união estável de casais homossexuais
ratificando a ausência de hierarquia entre gênero, conferindo-lhe o caráter de
entidade familiar e todos os direitos decorrentes do reconhecimento da união,
tal qual o direito a adoção, confirmado pela decisão que negou seguimento ao
Recurso Extraordinário (RE 846.102) imposto pelo Ministério Público do Pa-
raná em face de adoção de criança por casais homossexuais.
Nesse sentido, cabe mais uma vez trazer à discussão a racionalidade
masculina e heterossexual compulsória da concepção do Direito e reconhecer
o papel do judiciário no atendimento de novas demandas. O legislativo então
parece estar atrasado quanto ao comprometimento firmado na Constituição

213
David Emmanuel Souza

Federal de promover a pluralidade com vista a garantir a igualdade de direitos,


pois estando reconhecida a união entre pessoas do mesmo sexo e a possibili-
dade de adoção por estes casais, o caminho realizado pelo legislativo quanto
a estabelecer expressamente a responsabilidade da mãe e do pai denota-se na
contramão das exigências sociais, revelando, mais uma vez os resquícios da
racionalidade heteronormativa que exclui outras identidades de gênero, tais
quais as masculinidades subalternas, mulheres lésbicas e pessoas travestis e
transexuais. Problematizar questões como esta ou como as decorrências da
violência doméstica e da aplicação da Lei Maria da Penha são caras aos estu-
dos de mulheres e gays, porém, para avançar a crítica, urge o fortalecimento
dos estudos de masculinidades enquanto potencializador de críticas à heteros-
sexualidade compulsória e as dicotômicas expressões que marcam e seguem
forjando o papel de homens e mulheres na sociedade.

Considerações finais

Após a discussão sobre política sexual é urgente a necessidade de


promover avanços teóricos que possam aprofundar as críticas e reformular
dimensões sociais que permanecem invisíveis e subentendidas por força de
uma tradição de pensamento ocidental baseada na racionalidade dos homens.
Acrescentar os estudos de masculinidades na discussão sobre apre-
sentação e reconstrução das molas de opressões patriarcais que assolam a so-
ciedade cumpre o papel de trazer à luz a crítica epistêmica dos conjuntos ar-
ranjados da formação da masculinidade centrada no sujeito racional mascu-
lino, para, em seguida, realizar teorizações não dicotômicas e binarizantes.
Por ser considerada a regra da sociedade, a masculinidade e os estu-
dos que refletem sobre as construções sociais da hegemonia do homem so-
frem um débito histórico para desenvolver novas postulações. Não se deve
desconsiderar a trajetória acadêmica dos estudos de masculinidades, que inicia
com a teoria dos papeis sociais formulados pela psicologia e se estende pelas
teorias psicanalíticas da formação do sujeito para alcançar a dimensão refle-
xiva do pensamento sócio-político, filosófico e epistemológico atual.

214
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Apesar deste caminho já ter sido percorrido pelos movimentos de


mulheres e de gays, verifica-se a necessidade de implicar os homens nas aná-
lises que enfatizaram a sua posição estrutural na sociedade e descreveram cri-
ticamente o sistema de dominação baseado no gênero.
O que se propõe é a inserção dos estudos de masculinidades como
um fechamento epistemológico capaz de propor outros planos analíticos de
discussões para alcançar o complexo entendimento da justiça social e da de-
mocracia, relembrando sempre que este novo entendimento sugerido não
funciona de forma separada às críticas que já foram levantadas na história.
A autocrítica da masculinidade se esforça em reconstruir um arca-
bouço teórico que contemple a forma complexa, histórica, dinâmica e para-
doxal da institucionalização das diferenças de gênero, para, então, avançar nas
discussões sobre a justiça, igualdade social e pluralismo político.
Romper com o positivismo científico da masculinidade denota-se
emergente para compreender as relações entre os corpos e os processos soci-
ais, distanciando-se das teorias sociais que explicam o mundo a partir de uma
determinação biológica e de uma vocação dos homens para o espaço público,
em detrimento das mulheres.
As relações de gênero constituem um objeto de conhecimento coe-
rente para a ciência e o conhecimento sobre as masculinidades surgem do
projeto de conhecer as relações de gênero. Pensar de modo distinto, como se
a própria masculinidade fosse um objeto de conhecimento é negar que a mas-
culinidade e a feminilidade são conceitos inerentemente relacionais, que ad-
quirem significação a partir das conexões entre si, assim como da delimitação
social e da oposição cultural.
Compreender a masculinidade como um conjunto de práticas estru-
turadas por relações de gênero permite reconhecer o caráter histórico e polí-
tico que afeta o equilíbrio de interesses da sociedade por mudanças sociais.
Os estudos de uma realidade política e histórica se baseiam em uma crítica do
real, haja vista visualizar que o mundo é resultado da ação social. E a ação
social que definiu o mundo moderno a partir de um contrato social é consti-
tuída pela ação dos homens por um projeto racional de pensamento e de ação
que excluiu as mulheres. Aceitar o caráter inerentemente político do conheci-
mento sobre a masculinidade demonstra-se fundamental para considerá-lo
uma vantagem epistemológica, pois permite aprofundar a ciência crítica das
relações de gênero e de suas trajetórias históricas tanto na ciência social como

215
David Emmanuel Souza

na política, destradicionalizando o gênero e experimentando dimensões crí-


tico-emancipatórias e democráticas que ainda lutam para se estabelecerem na
modernidade, cujos processos de justiça ainda se apresentam inconclusos.

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218
9
Gênero, justiça e políticas públicas
sob a ótica de Nancy Fraser

Natália Caroline Soares de Oliveira1

O presente trabalho surge dos estudos realizados no grupo


de pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia, e tem
como questão central Qual o futuro da sexualidade no Di-
reito? Partindo dessa pergunta o capítulo utiliza principalmente a teoria de
Nancy Fraser para uma possível articulação com políticas públicas brasileiras
voltadas às mulheres. Utilizo a teoria crítica da filósofa americana Nancy Fra-
ser, não só por sua relevância no meio acadêmico, mas principalmente pela
análise teórica que a autora realiza sobre a práxis através de conceitos funda-
mentais para entendermos a democracia social e as questões de justiça.
O capítulo se inicia com uma importante diferenciação nos estudos
de gênero e no movimento feminista, que teve início por volta da década de
1970, nos Estados Unidos, e a discussão acerca da diferença e da igualdade.

1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Univer-

sidade Federal Fluminense, integrante do grupo de pesquisa em Sexualidade, Direito e De-


mocracia (SDD). Dedica-se aos estudos relacionados à política de reconhecimento, redistri-
buição e representação, em especial na obra de Nancy Fraser, bem como a autores relacio-
nados à teoria crítica e às políticas públicas brasileiras voltadas a mulher.

219
Natália Soares de Oliveira

Essa questão é de extrema importância para podemos entender em um se-


gundo momento a teoria da Fraser e o que a difere de autores igualmente
relevantes que se dedicam a estudar a justiça, a participação na esfera pública,
à política da identidade e reconhecimento, bem como as questões relaciona-
das à democracia. Com base na análise de sua teoria e a proposta em relacioná-
la nas políticas públicas brasileira, o diálogo entre Habermas e Fraser, aqui em
especial abordaremos os conceitos de sistema, mundo da vida e esfera pública
- foi essencial para compreendermos o modelo de discurso proposto e enten-
dido por Fraser. Em um último momento em relação à análise e explicação
do que seriam as políticas públicas voltadas para as mulheres, retomamos con-
ceitos trabalhados nos tópicos anteriores, a fim de compreendermos a parti-
cipação das mulheres na esfera pública e como essa participação poderia levar
a uma mudança estrutural e a superação da diferenciação e subordinação, para
que então possamos pensar no futuro da sexualidade no direito.

Gênero e o feminismo: diferença ou igualdade?

Inicialmente devemos situar uma discussão importante quando pen-


samos em gênero e os diferentes caminhos e questionamentos que o femi-
nismo vem enfrentando ao longo de anos. É necessário analisarmos uma im-
portante diferenciação que a teoria feminista juntamente com o que chama-
mos de multiculturalismo que “considera todas as identidades e diferenças
como dignas de reconhecimento” (FRASER, 1997, 232) vem enfrentando,
em especial, desde a segunda onda do feminismo: essa discussão se divide em
política da diferença e política da identidade.
Esse debate entre diferença e igualdade, segundo Fraser (2007) é per-
cebido principalmente no que chamamos de segunda onda do feminismo.
Para ela, a história que conhecemos da segunda onda, na qual passamos de
um movimento exclusivista representado por mulheres brancas de classe mé-
dia e heterossexuais, para um movimento que pudesse integrar diferentes de-
mandas como a das mulheres negras, trabalhadoras, pobres, de diferentes na-
cionalidades, entre outras, não é suficiente para entendermos a ligação do mo-
vimento com o clima externo e as questões históricas que fazem parte do
contexto social e político da época.

220
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Inicialmente, a preocupação em torno da diferença não era relacio-


nada à diferença entre as mulheres representadas dentro do movimento femi-
nista, mas sim à diferença e igualdade de gêneros. Fraser (1995, 1997 e 2007),
em sua análise a respeito da discussão entre igualdade e diferença, nos traz
dois pontos cruciais para entendermos como surgiu esse diálogo e como ele
evoluiu. Ele se divide basicamente entre meados da década de 60 e 80 em uma
discussão voltada para as diferenças entre os gêneros. No final de 1980 e início
da década 1990 aos dias atuas, o interesse se volta para a diferença entre as
mulheres que esse feminismo representava. Em um primeiro momento da
discussão, os debates entre as feministas da igualdade e as feministas da dife-
rença giravam em torno da natureza e as causas das injustiças de gênero e
quais soluções seriam propostas partindo na noção de “equidade de gênero”
(FRASER, 1997, 232). O contexto pós-guerra proporcionou um debate que
se voltava para a política economicista, que tinha atenção especial para os
problemas relacionados à distribuição de renda e classe. No entanto, nessa
nova fase o feminismo começou a discutir diferentes aspectos relacionados à
dominação masculina e uma nova questão foi levantada: o pessoal.
Durante muito tempo a questão da diferença foi considerada como
um aspecto da dominação masculina. O fato, por exemplo, de classificarmos
características exclusivas das mulheres, como a irracionalidade, afetividade, o
cuidado só “racionaliza a subordinação e os resultados da desigualdade soci-
almente construídos” (FRASER, 1997, 232, tradução nossa). Essas caracte-
rísticas, segundo Fraser, “nos privam de nossas posições e de bens sociais
essenciais, tais como, o emprego, a propriedade, a saúde, a educação, a auto-
nomia, o respeito, o prazer sexual, a integridade física e a segurança pessoal”
(FRASER, 1997, 233). Essa concepção da diferença, enquanto um fator de
desigualdades e gerador da subordinação, no movimento feminista norte-
americano, se perpetrou durante mais de uma década desde os anos 60. Por
volta de meados e fim da década de 70, uma nova configuração social e eco-
nômica se instalava ressignificando e incorporando um novo imaginário po-
lítico que colocou questões culturais como ponto central em suas discussões.
As feministas que propuseram a diferença como algo positivo, e reconhece-
ram que as mulheres realmente são distintas dos homens, afirmavam que essa
diferença não era algo ruim, mas sim de igual valor. Para elas, essa questão era
vista como algo “real e profundo, a diferença humana mais fundamental”

221
Natália Soares de Oliveira

(FRASER, 1997, 234, tradução nossa). A justiça então estaria em reconhecer


a diferença e valorizar aquilo que era relacionado ao feminino.
Por volta de meados dos anos 80, a discussão entre as feministas da
igualdade e as feministas da diferença não se sustentava mais. O debate entre
as igualitaristas se repousava na ideia de que “as injustiças fundamentais do
sexismo eram a marginalização das mulheres e a má distribuição dos bens
sociais. E o principal objetivo da igualdade entre os gêneros era alcançar uma
participação e redistribuição igualitária” (FRASER, 1995, 40, tradução nossa).
Enquanto isso as feministas da diferença consideravam que identidade femi-
nina era o ponto central para superarmos o androcentrismo2 que gerava a
subordinação dessas mulheres, e a igualdade entre os gêneros se daria através
da revalorização da feminilidade (FRASER, 1995). O debate percorreu tanto
a esfera cultural como a política. Embora não houvesse um consenso entre
os feminismos, críticas apontadas por ambos deveriam ser à base de fundo
para a principal questão: a subordinação e exclusão da mulher em diferentes
âmbitos, através de uma nova perspectiva que se opusesse de forma simultâ-
nea tanto ao androcentrismo cultural como a desigualdade social.
Fraser, em seu texto Multiculturalidad y equidad entre los gêneros: um nuevo
examen de los debates en torno a la diferencia en EE.UU (1995), nos retrata talvez a
mais importante virada na questão da diferença e a igualdade dentro do mo-
vimento feminista:

Em última análise, as feministas estadunidenses não resolveram o dilema


igualdade/diferença desenvolvendo uma nova perspectiva. O que ocorreu foi
que, por volta dos anos 1990, todo o contexto em que se desenvolvia o debate
havia mudado de forma tão radical que este já não podia ser desenvolvido nos
mesmos termos. Entretanto, as principais correntes feministas haviam chegado a
rejeitar a ideia de que a diferença entre gêneros pudesse ser proveitosamente dis-
cutida sem se isolar de outros eixos de diferença, especialmente a raça, a etnici-
dade, a sexualidade e a classe (FRASER, 1995, 41, tradução nossa).

Desta forma o debate em torno da diferença e da igualdade inaugu-


rava uma nova fase, que passava a centrar-se nas diferenças entre as mulheres.
A questão assim não estava mais voltada à igualdade entre os gêneros, mas

2 É a organização das estruturas econômicas, socioculturais e políticas a partir da perspec-

tiva do sexo masculino. É baseada na ideia de que o olhar masculino é o único possível e
universal, por isso é generalizada para toda a humanidade, seja homem ou mulher. É, assim,
uma visão de mundo que coloca o homem no centro de todas as coisas.

222
Qual o futuro da sexualidade no direito?

sim às diferenças entre as mulheres e à representatividade, que as mulheres


negras e lésbicas ora haviam questionado.

Uma concepção da justiça em duas dimensões: reconhecimento e


redistribuição, coletividades bivalentes e paridade participativa

Para Fraser, em seu artigo Reconhecimento sem ética? (2007), essa con-
cepção do gênero enquanto uma relação social vem entrando em conflito,
dentro do meio acadêmico, com aqueles proponentes que constroem o gê-
nero como um código cultural ou identidade. Para a autora (Fraser, 2007,
102), “essa situação exemplifica um fenômeno mais amplo: a política cultural
e a política social, a política da diferença e a política da igualdade”. Essa dis-
tinção entre a busca por igualdade de gêneros relacionada a aspectos da redis-
tribuição e aqueles proponentes que reconhecem o gênero enquanto identi-
dade cultural, não se faz necessária para um conceito amplo de justiça, que
consiga englobar a igualdade social e o reconhecimento da diferença.
Em seu artigo Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa
era “pós- socialista” (2006) Fraser, afirma que em um contexto pós-socialista os
conflitos políticos vêm assumindo como injustiça fundamental as questões
ligadas à dominação cultural em lugar das reivindicações de exploração mate-
rial. Desta forma, as reivindicações dos movimentos sociais têm recaído mais
sobre o reconhecimento cultural do que sobre a redistribuição socioeconô-
mica. Para a autora, no entanto, as questões que se ligam às desigualdades
materiais também se destacam em diferentes países. O que se questiona é
como devemos então englobar em um modelo de justiça às questões relacio-
nadas à exploração e redistribuição de recursos bem como aquelas relaciona-
das com a identidade e dominação cultural. Quando pensamos nas questões
relacionadas ao gênero, devemos primeiramente entender que elas atuam de
maneira bifocal: tanto para demandas ligadas ao reconhecimento como para
aquelas ligadas a redistribuição. Ao analisarmos a estrutura econômica pode-
mos perceber que ela gera formas específicas de injustiças ligadas ao gênero
que incluem a exploração e a marginalização econômica.
Ao analisarmos a política feminista de reconhecimento devemos en-
tender qual caminho deve ser percorrido para que se alcance esse “reconhe-
cimento”. Inicialmente, deve-se reformular a imagem androcêntrica que liga

223
Natália Soares de Oliveira

o feminino a algo pejorativo ou de menor valor, como o que ocorre no tra-


balho doméstico desempenhado exclusivamente pelas mulheres durante anos,
a consequência que podemos observar é um dano à autoestima das mulheres.
Segundo Fraser, é necessário que as próprias mulheres realizem uma nova
elaboração das suas representações; essa nova identidade deve ser defendida
coletivamente para que sejam alcançados o respeito e estima social. Assim,
“no modelo da identidade, portanto, a política feminista de reconhecimento
implica uma política da identidade” (FRASER, 2012, 279, tradução nossa).
No entanto, para entendermos a crítica realizada por Fraser ao mo-
delo de reconhecimento enquanto uma política de identidade é necessário
analisarmos a diferença entre o que ela chama de modelo de status e o modelo
de identidade.
O que difere o modelo de reconhecimento adotado por Fraser é a
subordinação de status como ponto central. O diferencial entre o “modelo de
identidade” e o então chamado “modelo de status” é a importância dada à
identidade e as questões institucionais. Enquanto o modelo de reconheci-
mento foca na identidade de um grupo e abstração da matriz institucional, o
modelo de status, proposto por Fraser, não se detém a identidade, mas procura
reparações institucionais para danos institucionalizados. Seria então a supera-
ção do status de subordinação, desta forma:

Considerar o reconhecimento como uma questão de status, significa averiguar


os padrões institucionalizados de valor cultural com respeito a seus efeitos sobre
a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais modelos instituem atores
como pares, capazes de participar no mesmo nível um com o outro na vida social,
então podemos falar de reconhecimento recíproco e de igualdade de status.
Quando, ao contrário, eles instituem alguns atores como inferiores, excluídos, in-
teiramente outros, ou simplesmente invisíveis – ou seja, como menos do que par-
ceiros integrais em interação social – então podemos falar de não-reconhecimento
e subordinação de status. Desta perspectiva, o não-reconhecimento não é nem
uma deformação psíquica, nem um dano cultural independente, mas uma relação
institucionalizada de subordinação social (FRASER, 2010, 121).

O modelo de status não encontra na reparação das identidades a so-


lução primeira para os problemas ligados a desvalorização cultural ou a su-

224
Qual o futuro da sexualidade no direito?

bordinação a padrões socialmente estabelecidos, mas sim leva em considera-


ção uma variedade de demandas que depende do que cada parte subordinada
necessita para que sejam capazes de participarem como pares na vida social.
Quando Fraser repensa a ideia de analisarmos a política de identidade
como um viés de reparação psíquica e uma construção de identidades social-
mente desvalorizadas, não significa que as representações de mudança nos
efeitos psicológicos causados pelo sexismo3, por exemplo, não geraram um
dano a estima pessoal, no entanto essa política, segundo Fraser (2012) possui
duas razões fundamentais para ser considerada deficiente. A primeira: tende
a reificar a identidade feminina e a obscurecer os eixos transversais de subor-
dinação. Como resultado, recicla estereótipos de gênero dominantes e pro-
move o separatismo e o politicamente correto. Já no segundo ponto o modelo
de identidade trata a falta de reconhecimento como um prejuízo cultural in-
dependente. Consequentemente obscurece a ligação que o gênero possui com
a má distribuição, limitando assim os esforços para combater os dois aspectos
do sexismo simultaneamente.
A escolha para um enfoque alternativo, segundo Fraser (2012) é uma
política de reconhecimento diferente. O que requer reconhecimento não seria
a identidade feminina, mas sim o status de mulheres dentro da interação social.
Para um maior esclarecimento, devemos entender o que seria esse status social:
o objetivo desse modelo é a superação da subordinação. Isso se dá com a
inserção das mulheres na sociedade. Elas estariam como pares dos homens.
Não é a mudança de modelos que ligam o feminino a algo degradante; é a
substituição de padrões institucionalizados de valoração cultural, os padrões
estabelecidos hoje em dia na nossa sociedade que situam as mulheres como
invisíveis socialmente, inferiores, excluídas do âmbito político e social, vulne-
ráveis dentre outros. Isso se deve pelo fato de nossas instituições sociais se-
rem reguladas através de normas e padrões androcêntricos. Como exemplo,
o Código Penal de 1.940 tratava o estupro como um crime contra os costumes

3 É um sistema sociocultural que estabelece a desigualdade como uma função natural da

divisão rígida entre gênero masculino e feminino, em relação aos papéis, comportamentos e
atitudes: o que está ligado ao masculino é tido como superior e vigente em relação ao femi-
nino. É assim uma rejeição, desinteresse e desprezo pelo que se caracteriza como feminino.
Para mais informações relacionadas à terminologia acessar: http://www.stu-
nam.org.mx/41consejouni/14comisionequidadgenero/160614/16%20Definiciones+Glo-
sario+sub-dif+CEEG.29-10-2012.pdf

225
Natália Soares de Oliveira

e não contra a pessoa. O antigo Código Civil de 1916, revogado pelo novo
Código Civil que só entrou em vigor no ano de 2003, desvalorizava a mulher,
quando a considerava relativamente incapaz, ou quando o seu domicílio era
considerado o mesmo do marido, ou quando o homem era o chefe da socie-
dade conjugal e a ele era destinada a competência do pátrio poder. Em relação
ao casamento, o Código estipulava que a mulher assumia a condição de com-
panheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos da família.
Embora saibamos que essas leis foram modificadas, em especial pela
Constituição de 1.988, que prega a isonomia entre homens e mulheres, é fácil
percebermos que as leis adotadas tinham como cerne a discriminação em re-
lação à mulher, restringindo seus direitos e delegando aos homens papéis de
controle, posse e centralidade de representação e participação na esfera pú-
blica e social4. É notória a evolução principalmente do pensamento jurídico,
no sentido de se reconhecer a igualdade de gêneros. No entanto, esses pa-
drões de valoração cultural permaneceram enraizados em uma cultura an-
drocêntrica. Podemos notar no Brasil que o Legislativo e o Judiciário ainda se
orientam por modelos tradicionais de interpretação afirmando e consoli-
dando estereótipos de identidade ligados à mulher, o que resulta em sua des-
valorização, subordinação econômica e cultural, ausência de representação
nas diferentes esferas sociais e políticas e uma inferiorização do que é relaci-
onado às características ou aspectos femininos.
O problema encontrado quando pensamos na interpretação, atuação
e aplicação, de normas é que os padrões androcêntricos encontrados e esta-
belecidos na nossa sociedade irão regular e direcionar o pensamento e atuação
prática das leis operantes em nosso judiciário, como no caso do estupro e a
culpabilização da vítima, ora pelo lugar onde se encontrava, ora pelas roupas
que vestia, entre outros. O que é analisado não é de fato a lei penal ou a iso-
nomia de direitos, mas sim padrões que estabelecem o que a mulher deve
vestir, qual o comportamento que deve seguir, qual lugar deve frequentar,
regulando, desta forma, suas atitudes e corpos. Isso tudo impossibilita uma
participação social plena das mulheres. Fraser (2012) afirma que a falta desse

4 Esses conceitos de esfera pública e participação social serão melhor trabalhado no tópico

4 desse capítulo.

226
Qual o futuro da sexualidade no direito?

reconhecimento, como um viés de status, constitui uma grave violação à jus-


tiça. No modelo de status proposto por Fraser existe então uma pretensão de
desinstitucionalizar padrões que impedem a participação das mulheres.
Um importante conceito que deve ser analisado é a interação entre
diferentes demandas, como por exemplo, aquelas relacionadas ao gênero e a
raça, ou ao gênero e a religião, o que ela denomina de coletividades bivalentes.

(...) em suma, podem sofrer da má distribuição socioeconômica e da descon-


sideração cultural de forma que nenhuma dessas injustiças seja um efeito indireto
da outra, mas ambas primárias e co-originais. Nesse caso, nem os remédios de
redistribuição nem os de reconhecimento, por si sós, são suficientes. Coletivida-
des bivalentes necessitam dos dois (FRASER, 2006, 233).

Devem ser analisadas, nesses casos, as questões entre diferentes gru-


pos para que se possa avaliar os efeitos que os padrões de valor cultural insti-
tucionalizados têm na posição relativa à minoria e a maioria, para que depois
seja aplicada uma análise dentro do próprio grupo que demanda reconheci-
mento, para evitar os danos que a prática minoritária pode ocasionar aos
membros desse grupo. Segundo Fraser, essas duas análises irão atender a dois
requisitos:

Em primeiro lugar, que os demandantes do reconhecimento demonstrem que


a institucionalização de normas culturais majoritárias os impedem de desfrutar da
paridade participativa, e em segundo lugar, que as práticas que solicitam o reco-
nhecimento não limitam a paridade participativa de outros grupos ou alguns dos
seus membros (FRASER, 2012, 281, tradução nossa)

Essas análises são realizadas quando encontramos uma transversali-


dade nas demandas por reconhecimento. Ao analisarmos a política de reco-
nhecimento não identitária podemos claramente julgar aqueles conflitos que
são centrados no gênero, mas que possuem outros aspectos como raça, sexu-
alidade, etnia, nacionalidade e que fazem parte da produção de subordinação.
Assim, para Fraser (2002) a participação paritária deve primeiramente ser apli-
cada como um processo democrático, no qual o debate público possibilita
que os participantes discutam se padrões institucionalizados de valor cultural
impedem a paridade de participação e se existem alternativas propostas para
incentivar essa participação.

227
Natália Soares de Oliveira

No entanto, para que a participação ocorra são necessários dois re-


quisitos não excludentes entre si: o primeiro está ligado a uma questão obje-
tiva de redistribuição, que por consequência possibilita a independência eco-
nômica e supera a desigualdade. O segundo requisito a ser cumprido, seria
aquele ligado a aspectos intersubjetivos: é a exclusão de padrões instituciona-
lizados que desprezam certas categorias de pessoas e suas qualidades, as im-
pedindo de adquirirem o status social de forma igualitária para interação, igual-
dade de oportunidades e aceitação social (FRASER, 2012). Quando atendido
esses dois requisitos existe a real possibilidade de que se ocorra à paridade
participativa com o intuito de condenar e identificar as injustiças de gênero.

Esfera pública e privada: a politização do pessoal

A ideia de que as esferas pública e privada são distintas e atuam de


forma diferente em nossas vidas ainda é válida principalmente quando discu-
timos o público e o político. A teoria feminista encontra nessa questão um
dos principais pontos para se discutir a diferença sexual e a participação das
mulheres nos diferentes âmbitos. A crítica feita pelas feministas, segundo Pa-
teman (1996), se baseia basicamente na separação entre as esferas pública e
privada na teoria e prática liberal, apesar de encontrarmos semelhanças como
a liberdade e igualdade dos indivíduos nas teorias liberais e de algumas femi-
nistas, existem ambiguidades fundamentais quando pensamos nas distinções
e sentidos dados ao público e privado. O gênero é o ponto crucial para levan-
tarmos essas questões, pois “é um conceito usado por aqueles que entendem
não apenas a desigualdade sexual, mas muitas das diferenciações sexuais,
como socialmente construídas.” (OKIN, 2008, 306). A teoria política femi-
nista utiliza-se desses termos para questionar a participação e o isolamento da
mulher na esfera doméstica, o que por muito tempo impediu a participação
das mulheres nas decisões e deliberações ocorridas na esfera pública.
A crítica que Carole Pateman realiza acerca da dicotomia público-
privado se baseia principalmente na tensão existente entre o liberalismo e o
patriarcado. Em seu livro Contrato Sexual (1993), a autora nos apresenta uma
importante questão ao afirmar que o contrato social é também um contrato
sexual (PATEMAN, 1993, 69). As implicações que essa afirmação nos traz é
que as características ligadas a um ser humano universal dotado de direitos e

228
Qual o futuro da sexualidade no direito?

liberdades, estavam relacionadas a características e atributos masculinos.


Desta forma, as teorias sobre o contrato social jamais estenderam sua dou-
trina da liberdade e da igualdade universal às mulheres.
Diversos teóricos políticos discutiram tanto a esfera pública como a
privada afirmando uma diferenciação tanto na atuação como nos princípios
aplicados a elas. O problema encontrado por Pateman e outras feministas é
em relação à esfera doméstica, que não se encontra nem no conceito de pú-
blico nem do privado: o espaço familiar encontra-se esquecido na discussão
liberal. A divisão do trabalho doméstico nos revelaria uma igualdade, pregada
pela política liberal, como sendo meramente formal.
Quando Pateman realiza uma discussão entre natureza/cultura e pri-
vado/público, respectivamente, é fácil observar como características e fun-
ções destinadas às mulheres são inferiores aquilo ligado ao masculino, ou ao
cultural.

A humanidade tenta transcender uma existência meramente natural, de ma-


neira que a natureza sempre se considera como algo de ordem inferior a cultura.
A cultura se identifica com a criação e ao mundo dos homens, porque a biologia
e os corpos das mulheres se identificam mais com a natureza (...) as mulheres e a
esfera doméstica aparecem como algo inferior à esfera cultural e a as atividades
masculinas, de maneira que as mulheres se consideram como seres necessaria-
mente subordinados aos homens. (PATEMAN, 1996, 9, tradução nossa)

Essa comparação entre cultural e natural, segundo Ingrid Cyfer


(2010, 139) em um estudo comparado entre a obra de Pateman e Martha Nus-
sbaum possui três consequências importantes: a primeira se relaciona a des-
valorização das atividades consideradas femininas, a segunda seria considerar
essa dicotomia cultura e natureza inquestionável e estática, e a terceira seria a
relação que essa dicotomia apresenta com questões históricas, como é o caso
da relação entre patriarcado, liberalismo e capitalismo, pois, na medida em
que esse último se desenvolveu, ele concentrou suas práticas políticas na es-
fera civil e pública, deixando de lado a esfera doméstica. O capitalismo então
não teria apenas realizado uma divisão baseada em classes, mas também uma
divisão sexual.
Segundo Okin (2008, 307) a distinção e os diferentes significados em
referência ao público e ao privado provocam confusão quando falamos em
natureza política da família, justiça na vida pessoal, desigualdades de gênero,

229
Natália Soares de Oliveira

divisão sexual do trabalho. Esse último vem definindo papeis e reafirmando


práticas da estrutura patriarcal.

Os homens são vistos como, sobretudo, ligados às ocupações da esfera da


vida econômica e política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam
responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e reprodução.
As mulheres têm sido vistas como “naturalmente” inadequadas à esfera pública,
dependentes dos homens e subordinadas à família (OKIN, 2008, 307 e 308).

Um importante lema vem ao longo de décadas levantando e


reafirmando essa discussão entre público e privado e os diferentes feminis-
mos: o pessoal é político. Ele está, segundo Okin (2008, 312) “na raiz das
críticas feministas à convencional dicotomia liberal público/doméstico”. A
tensão em torno do papel da mulher no âmbito doméstico e a divisão sexual
do trabalho sempre esteve presente nas discussões feministas, embora exis-
tissem diferentes opiniões em torno da família enquanto opressora. O lema
“o pessoal é político” acabou por ser o cerne da desigualdade e segregação
que as mulheres sofriam nos âmbitos público e privado, bem como a subor-
dinação que gerava. Okin destaca o que algumas feministas querem dizer com
esse lema:

Nós queremos dizer, primeiramente, que o que acontece na vida pessoal, par-
ticularmente nas relações entre os sexos, não é imune em relação à dinâmica de
poder, que tem tipicamente sido vista como a face distintiva do político. E nós
também queremos dizer que nem o domínio da vida doméstica, pessoal, nem
aquele da vida não-doméstica, econômica e política, podem ser interpretados iso-
lados um do outro (OKIN, 2008, 314).

Podemos perceber que embora existam diferentes formas de femi-


nismo, o liberalismo possui uma relação direta com o discurso feminista e
suas diferentes demandas. Já no início das reivindicações, como as ligadas ao
sufrágio e a educação, a participação e igualdade de direitos já era uma questão
a ser trabalhada na dicotomia público-privada. Assim como afirma Cyfer
(2010, 137), reivindicações como o direito ao aborto, ao trabalho, à liberdade
sexual “aparecem frequentemente atreladas à noção de autonomia, entendida
principalmente como não-intervenção estatal na esfera da privacidade do su-
jeito”. Essas questões, assim como as desigualdades entre homens e mulheres

230
Qual o futuro da sexualidade no direito?

na política, estão ligadas diretamente às dinâmicas que a sociedade contem-


porânea se encontra, “afetada pela percepção predominante da vida social
como sendo dividida em duas esferas separadas e distintas” (OKIN, 2008,
315).
O debate levantado pelas feministas ao longo de anos acerca dos
equívocos e desigualdades que essa dicotomia público-privado assume, nos
traz a certeza que essa estrutura legitima a subordinação e diferenciação de
gênero na sociedade, a fim de reafirmar o sistema patriarcal ainda vigente.
Portanto, a distinção liberal existente entre público e doméstico pode ser ide-
ológica, pois “apresenta a sociedade a partir de uma perspectiva masculina
tradicional baseada em pressupostos sobre diferentes naturezas e diferentes
papéis naturais de homens e mulheres” (OKIN, 2008, 315), não servindo as-
sim como um conceito central a uma teoria política que tenha como objetivo
incluir tanto homens como mulheres.

As principais críticas de Fraser a Habermas:


gênero sob a perspectiva da democracia e ação comunicativa

Nancy Fraser ao longo de seus trabalhos se destacou pelo diálogo e


críticas à obra do filósofo alemão, Jürgen Habermas, questionando entre ou-
tros aspectos a concepção de âmbito público e esfera pública. Os esforços de
Fraser em relação a Habermas são, sem dúvidas, o de tentar incorporar a
perspectiva da política feminista a parâmetros substantivos de justiça dentro
do que chamamos de esfera pública. A busca e esforços para retratar as difi-
culdades e lacunas teóricas na proposta desenvolvida por Habermas passaram
por um longo período dos seus estudos a serem um dos principais trabalhos
desenvolvidos pela autora no qual o ponto de origem é a perspectiva de uma
teoria social crítica.
Em uma comparação as críticas realizadas por Axel Honneth e
Nancy Fraser à política deliberativa de Jürgen Habermas, Jorge Adriano Lu-
benow, em seu artigo As críticas de Axel Honneth e Nancy Fraser à filosofia política
de Jürgen Habermas (2010), aborda como tema central a esfera pública, em Ha-
bermas, para as concepções relacionadas a um novo procedimento político e
a práxis, as quais Fraser procura trabalhar em sua obra, principalmente no que
se refere ao movimento feminista. Para Fraser (1993) o conceito de “âmbito
público” desenvolvido por Habermas é sem dúvida um recurso normativo

231
Natália Soares de Oliveira

que proporcionou à autora ao longo de seus trabalhos utilizar-se como marco


teórico o tema “esfera pública”.
Em seu artigo, Lo Público y lo Privado? Aproximaciones a la pregunta desde
la teória crítica feminista de Nancy Fraser (2010), Romina C. Lerussi, faz uma aná-
lise das principais questões que Fraser desenvolve na crítica à obra de Habe-
rmas, em especial, ao incorporar o subtexto gênero, como leitura aos seus
principais conceitos. Quatro pontos são fundamentais a essa crítica: 1. a aná-
lise feita por Habermas em relação ao sistema e mundo da vida, e o público e
privado, 2. trabalhador e consumidor, 3. cidadão e cidadã e 4. reprodução
social simbólica e produção material (LERUSSI, 2010, 125). Para este traba-
lho, a fim de compreendermos a relação com o discurso e participação das
mulheres na esfera pública, iremos nos atentar ao primeiro questionamento
sistema/mundo da vida e o público/privado.
Em sua obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas desenvolve uma
teoria que busca explicar a sociedade contemporânea, suas inter-relações sis-
têmicas e os processos de socialização. Segundo REESE-Schäfer,

A ideia central da teoria do agir comunicativo é a seguinte: é possível atribuir


as patologias da Modernidade, sem nenhuma exceção, à invasão da racionalidade
econômica e burocrática em esferas do mundo da vida, às quais essas formas de
racionalidade não são adequadas e, por isso, levam a perdas de liberdade e de
sentido. O agir comunicado é concebido por Habermas de modo a abrir as opor-
tunidades para um entendimento em sentido abrangente, não restritivo (REESE-
SCHÄFER, 2009, 46).

Ao pretender a recuperação do conteúdo emancipatório do projeto


moderno, no fundo, Habermas está preocupado com o restabelecimento dos
vínculos entre socialismo e democracia. Dois conceitos são essenciais para
compreendermos essa questão e as críticas propostas por Fraser. O conceito
de mundo da vida se refere à esfera de 'reprodução simbólica' da linguagem,
das redes de significados que compõem certa visão de mundo relacionados às
normas sociais ou aos conteúdos subjetivos. Seriam as vivências e situações
que os atores sociais presenciam e compartilham, a objetividade dessas rela-
ções estaria na interação entre eles, a linguagem e as ações comunicativas se-
riam prevalência nesse meio social. Já o que entendemos por sistema, na obra
de Habermas, se relaciona com a realidade social que atua a razão instrumental
e técnica e se divide em duas diferentes esferas: econômico e político que são

232
Qual o futuro da sexualidade no direito?

regidas respectivamente pelo dinheiro e pelo poder. Nessa visão o diálogo é


excluído e encontra no dinheiro uma linguagem universal. O filósofo busca,
assim, explicar a origem da sociedade ocidental moderna, diagnosticando as
suas patologias e buscando soluções para a sua correção (FREITAG, 1994,
61).
Realizada essa breve contextualização e conceituação dos principais
pontos trabalhados por Habermas, vamos analisar as principais críticas de
Fraser. Como vimos acima dentro do que Habermas entende como sistema
podemos enxergar duas redes de integração, a economia e o aparato adminis-
trativo e judicial do Estado, que se coordenam através do dinheiro e poder.
No entanto, como discutido no tópico anterior, existem duas esferas que se
integram socialmente: a privada ligada à intimidade e à família e a pública
relacionada à participação política. Assim, “no nível associado ao privado,
quer dizer, a família nuclear moderna e a economia (oficial), seus intercâmbios
estão mediados pelo dinheiro. A família abastece a economia (oficial)”
(LERUSSI, 2010, 127). No nível do mundo da vida, a esfera de intercâmbio
e participação política dos sujeitos é denominada esfera pública, em que
ocorre a interação entre os sujeitos de forma a discutir assuntos de preocupa-
ção pública e interesse comum (FRASER, 1993). A esfera pública em Habe-
rmas pode ser entendida como mediadora entre Estado e esfera privada: “ela
é política em sua função, mas privada em sua composição, pois consiste nas
pessoas privadas reunidas num público” (REESE-SCHÄFER, 2008, 36).
Em seu artigo Repensar el ámbito público: una contribución a la crítica de la
democracia realmente existente (1993), Fraser esclarece uma comum confusão em
relação ao termo “âmbito público”, utilizado por Habermas e pelo movi-
mento feminista. Como vimos anteriormente, dentro da teoria política femi-
nista a expressão vem sendo utilizada como uma referência a tudo aquilo que
não está dentro do que é familiar e doméstico, combinando assim “estado”,
“economia oficial do trabalho assalariado” e os “espaços do discurso público”
(FRASER, 1993, 24). Para a autora, ao analisarmos essas formas analitica-
mente distintas devemos observar que elas não possuem somente uma ques-
tão teórica, mas que possuem consequências práticas, como:

(...) quando se confundem as campanhas de agitação contra manifestações


culturais misóginas com programas para censura do estado, ou quando se con-
fundem as lutas para quitar o caráter privado ao trabalho doméstico e ao cuidado

233
Natália Soares de Oliveira

dos filhos são igualadas com a mercantilização. Em ambos os casos, o resultado é o


de obstruir a pergunta de se a subordinação dos assuntos de gênero a lógica do
mercado ou o estado administrativo é promover a liberação das mulheres
(FRASER, 1993, 25, tradução nossa).

O conceito de “âmbito público” trabalhado em Habermas é, segundo


Fraser (1993, 25), “um recurso conceitual” que ajudaria na superação de pro-
blemas como esse do exemplo acima, é um espaço de interação discursiva no
qual podemos afirmar ser um espaço distinto do Estado, é um ambiente de
discussão, produção e circulação de discursos que podem inclusive serem crí-
ticos ao estado. Assim esse conceito utilizado por Habermas nos permite
identificar as diferenças entre estado, mercados econômicos e associações de-
mocráticas. Fraser (1993, 25), afirma que a “teoria social crítica e a prática
política democrática requerem algo semelhante ao âmbito político de Haber-
mas”, mas a forma específica que Habermas elaborou a ideia de “âmbito pú-
blico” não é completamente satisfatória. Fraser utiliza-se do termo “concep-
ção historiográfica revisionista” (1993, 33) para identificar quatro questões
centrais de uma concepção “masculinista burguesa” em referência ao “âmbito
público” apresentado por Habermas.

1. A suposição de que é possível para os interlocutores em um âmbito público


por entre parênteses as diferenças de status e deliberar “como se” fossem social-
mente iguais; por fim, este suposto assume que a igualdade social não é uma con-
dição necessária para a democracia política.
2. O suposto de que a proliferação de uma multiplicidade de públicos em
competência está necessariamente mais distante e não mais próximo de uma ver-
dadeira democracia e que um âmbito público único é sempre preferível a um nexo
de múltiplos públicos.
3. A demarcação de que os discursos nos âmbitos públicos devem restringir-
se a deliberação sobre o bem comum e que a aparição de interesses privados e
assuntos privados são sempre indesejáveis.
4. A alegação de que um âmbito público em função requer uma aguda sepa-
ração entre a sociedade civil e o estado. (FRASER, 1993, 34, tradução nossa).

Fraser coloca em questão algumas importantes deficiências relacio-


nadas ao modelo de Habermas, como a ligação que faz entre família, dinheiro
e poder, reconhecendo o espaço familiar como um espaço de trocas explora-
tórias, serviços e trabalho, dinheiro, e frequentemente ligado à coerção e vio-
lência (LERUSSI, 2010, 128). Talvez um dos fatos mais importantes fosse o

234
Qual o futuro da sexualidade no direito?

que Fraser observa em sua crítica habermasiana à unilateralidade do sistema


ao mundo da vida, o que impede a influência multidirecional que as diferentes
ordens possuem, impossibilitando assim uma interação entre os movimentos
sociais e políticos.
Ao utilizarmos as críticas e o subcontexto do gênero, como bem faz
Nancy Fraser ao modelo habermasiano de esfera pública, podemos observar
que haveria um déficit de compreensão em uma concepção de esfera pública
que tenha por objetivo unicamente a reconstrução dos procedimentos for-
mais que permitam a todos os interessados no discurso uma igualdade de par-
ticipação.

Política de interpretação das necessidades: um modelo de discurso

Quando analisamos a concepção de mundo da vida em Habermas


entendemos como a linguagem e os discursos são importantes para interação
entre os sujeitos, pois nesse contexto os processos comunicativos possuem
como mediadora a linguagem e como recurso a solidariedade. As ações co-
municativas, no mundo da vida, prevalecem e o emprego da linguagem é uti-
lizado para o entendimento dos falantes ali envolvidos. Para Fraser, o enfoque
relacionado às necessidades não é o de atender somente as reivindicações e
ter por consequência a satisfação, mas sim o discurso utilizado para reivindi-
car as necessidades. Quando pensamos em reivindicações de necessidades ge-
ralmente pensamos em uma estrutura relacional, por exemplo, existe uma ne-
cessidade X para resolver um problema Y, o problema levantado por Fraser
em seu livro Fortunas del feminismo (2015), está exatamente na questão do
“para”, pois quando pensamos em questões muito transparentes e gerais a
formula relacional não consegue resolver demandas de cunho mais profundo
e especial. Fraser (2015) utiliza-se do exemplo de pessoas desabrigadas: a for-
mula relacional seria uma pessoa desabrigada X necessita “para” resolver o
seu problema de uma moradia Y. No entanto, quando pensamos nessa ques-
tão existem pontos mais complexos como: quem são essas pessoas, mulheres,
homens, crianças? Quais os tipos de moradia precisam? Como serão os aces-
sos dessas pessoas aos grandes centros para a busca de emprego, supermer-
cados, colégio? Essas moradias serão permanentes ou abrigos temporários?
(Fraser, 2015, 77). Para a autora, as reivindicações estão integradas com outras

235
Natália Soares de Oliveira

necessidades intrínsecas ao problema que se relacionam para se alcançar uma


determinada finalidade. Ocorre um desvio de questões políticas importantes,
pois quando Fraser propõe esse modelo de discurso ela aborda acerca das
“redes de relação de finalidade controvertidas”5.
Quando pensamos nas teorias superficiais sobre as necessidades, Fra-
ser encontra alguns problemas fundamentais: o primeiro é que assumem uma
interpretação acerca das necessidades das pessoas de forma que parece algo
dado e não problemático e assim ocorre uma ocultação da dimensão interpre-
tativa dessas políticas e da real solução para os problemas existentes. O se-
gundo seria quem interpreta essas necessidades? A luz de que interesse? Passa
a ser também um assunto político a questão da visibilidade e interpretação das
reais necessidades. Um terceiro ponto levantado pela autora são as formas de
discurso público utilizadas para interpretar essas necessidades: será que elas
são adequadas e equitativas? Ou são auto interpretações a favor dos interesses
de grupos sociais dominantes? Por último, levanta o questionamento de que
essas teorias superficiais:

não problematizam a lógica social e institucional dos processos da interpreta-


ção de necessidades, deste modo negligenciam questões políticas tão importantes
como: em que parte de uma sociedade, em que instituições se desenvolvem as
interpretações oficiais das necessidades? E que tipo de relações sociais regem en-
tre os interlocutores e os cointerpretes? (FRASER, 2015, 79, tradução nossa)

Para solucionar essas questões, Fraser (2015) propõe uma alternativa


orientada ao discurso e uma solução politicamente mais crítica. Ela aponta
para isso três aspectos distintos, mas que na prática se relacionam para a in-
terpretação das necessidades:

O primeiro é a luta para estabelecer ou negar o status político de uma neces-


sidade dada, a luta por validar a necessidade como um assunto de interesse polí-
tico legítimo ou situa-la como um assunto não político. Em segundo é o debate
acerca da interpretação da necessidade, a luta pelo poder de defini-la e, deste

5 Para a autora “são ditas redes de relações de finalidade controvertidas as que eu pretendo

destacar quando proponho que nos centremos na política de interpretação de necessidades”


(2015, p.78) seria as diversas ramificações de uma necessidade que a princípio nos parece
simples de resolver, como no caso, por exemplo, de igualdade de direitos entre homens e
mulheres, outras questões devem ser abordadas como acesso a cargos e salários iguais, supe-
ração de conceitos culturais que rebaixem a mulher, características ligadas à figura da mulher
(delicadeza e fragilidade), dentre outros.

236
Qual o futuro da sexualidade no direito?

modo, por determinar o que iria satisfazê-la. O terceiro aspecto é a luta acerca da
satisfação da necessidade, a luta por garantir ou recusar uma ajuda. (FRASER,
2015, 79, tradução nossa)

Desta forma, para Fraser (2015), é necessário um modelo de discurso


social. Esse modelo identifica uma pluralidade de polêmicas nas discussões
acerca das necessidades, já que em uma sociedade de bem-estar social encon-
tramos diversos modos de discutir uma mesma questão. Esse modelo utili-
zado pela autora teoriza o que ela denomina de “meios de interpretação e
comunicação socioculturais” (2015, 79).
Esses meios seriam os recursos que os membros de uma coletividade
possuem para reivindicarem uns aos outros, seria um conjunto histórico e
culturalmente específico, como as diferentes formas de narrativa que cons-
troem a identidade social das pessoas, sejam através de grupos ou relatos in-
dividuais, as maneiras que o discurso coloca os indivíduos, como no caso de
normais e desviantes, vítimas, ativistas, representam também a situação dos
interlocutores em relação as suas ações e capacidades.
Outra questão seria falar abertamente de suas reivindicações de ne-
cessidade, direitos, interesses específicos através de diferentes formas de vo-
cabulários. Um ponto também que deve ser levado em consideração seria
como resolvemos os conflitos acerca da interpretação das necessidades. Pelo
meio científico ou social? Ou por meio de acordos sociais? Ou ainda, utiliza-
mos de uma norma majoritária como, por exemplo, a constituição. Deste
modo, a função desses diferentes meios de interpretação seria também lem-
brar-nos que as sociedades estão longe de possuírem uma visão coerente e
monolítica. Pelo contrário, elas possuem redes heterogêneas de possibilidades
de interpretações para os problemas, assim como diversas interpretações para
as necessidades. Portanto:

Os discursos acerca das necessidades fazem referência minimamente implícita


a interpretações alternativas. As distintas afirmações acerca das necessidades estão
“internamente dialogizadas”, recordando implicitamente ou explicitamente inter-
pretações de necessidades rivais. Aludem, em outras palavras, a um conflito de
interpretações. (FRASER, 2015, 80, tradução nossa)

O que devemos perceber é que as sociedades não possuem somente


diferentes formas de interpretações, elas estão enraizadas em padrões sociais

237
Natália Soares de Oliveira

de dominação e subordinação. Elas se moldam em grupos sociais com distin-


tos status, poder e acesso a recursos que atravessam diferentes marcadores
sociais como a raça, sexo, etnia, idade, e nos levam a interpretações e comu-
nicações socioculturais moldadas em padrões determinados por uma cultura
e/ou grupos dominantes. Assim, a discussão sobre as necessidades, para Fra-
ser (2015, 82, tradução nossa), parece um “espaço de lutas em que os grupos
com desiguais recursos discursivos (e extradiscursivos) competem por esta-
belecer como hegemônicas suas respectivas interpretações sobre quais são as
necessidades sociais legítimas”.
Desta forma, tanto os grupos dominantes, que buscam desarticular,
excluir ou absolver as contrainterpretações acerca das reais necessidades,
como também nos grupos subordinados ou de oposição que pensam em
meios de interpretações das necessidades que modifiquem a estrutura domi-
nante, as interpretações não são meras representações, são sim atos e inter-
venções na estrutura social.

As políticas públicas brasileiras:


suas relações com o gênero e a teoria de Nancy Fraser

Os estudos de gênero no Brasil juntamente com o movimento femi-


nista consolidaram-se no final dos anos 1970. No entanto as políticas públicas
com viés de gênero ainda não são um campo amplamente explorado. Pode-
mos entender em Políticas públicas destinadas ao combate da violência contra as mu-
lheres – por uma perspectiva feminista, de gênero e de direitos humanos (BANDEIRA;
ALMEIDA, 2004) que as políticas públicas são entendidas como sendo dire-
trizes e princípios que norteiam a ação do poder público, mas que ao mesmo
tempo se transformam ou se organizam em regras, procedimentos e ações
entre o poder público e a sociedade: em outras palavras, são relações/media-
ções entre atores da sociedade e do Estado.
A participação da mulher nessa esfera ainda é limitada e transparece
uma sociedade baseada nas diferenças de gênero e divisão entre esferas públi-
cas e privadas, como pudemos discutir acima nesse trabalho.
As políticas públicas geralmente são destinadas em sua grande maio-
ria aos grupos minoritários que visam promover a participação e integração
desses grupos. Essas decisões são diretamente relacionadas ao sistema polí-
tico, social e econômico vigente. No executivo federal, as políticas públicas
passam a ser orientadas pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres

238
Qual o futuro da sexualidade no direito?

(PNPM) e os organismos de cada município e estado que se destinam ao de-


senvolvimento de políticas que estimulem a participação dentro e fora da es-
fera pública.
O ativismo das mulheres é de extrema importância para assegurar
essas políticas direcionadas ao gênero. É importante pensarmos também na
superação e reestruturação da esfera doméstica que contribui para a conquista
de autonomia das mulheres. Deve-se criar um novo arranjo que articule a
esfera pública e privada rompendo com a tradicional divisão sexual do traba-
lho, a divisão de papeis femininos e masculinos que se ligam a esfera de re-
produção e produção respectivamente. Esses modelos predominantes na so-
ciedade em que o homem atua em grande parte como provedor e as mulheres
responsáveis pelo âmbito doméstico e cuidado dos filhos viabilizam as situa-
ções de conflitos relacionadas à violência sexista.
Em Evolução da participação feminina no setor público brasileiro no período
1992-2008, (2010), capítulo do livro organizado pelo IPEA sob o título Redis-
tribuição, reconhecimento e representação diálogos sobre igualdade de gênero (2010), Da-
niela Vaz faz uma importante análise da participação da mulher tanto na es-
fera econômica como na participação política, constatando uma disparidade
de dados entre homens e mulheres:

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2002,


há maior participação feminina no emprego público total (55,4%). No entanto,
no âmbito da União, há maior incidência de funcionários do sexo masculino
(64,9%) em relação ao feminino (35,1%). Na instância municipal, esta situação se
inverte, ou seja, passa-se a ter uma incidência maior de mulheres (61%) frente aos
homens (39%) (VAZ, 2010, 109).

Em diversas análises percentuais e gráficos que ela propõe em seu


artigo, em relação à participação feminina nos diversos segmentos do setor
público entre os anos de 1992 e 2008, podemos concluir que “desagregando
o setor público por esfera de governo, é sabido que a sub-representação fe-
minina se manifesta nos âmbitos estadual e municipal, ao passo que, na esfera
federal, elas se encontram sub-representadas em relação à sua participação na
PEA” (VAZ, 2010, 131).
Uma característica que podemos afirmar e contatar com os dados
apresentados acima, em relação à participação da mulher na política, consiste
na tendência a estar mais presente nos espaços locais, como é o caso dos

239
Natália Soares de Oliveira

municípios – em oposição aos espaços estaduais e federal – por ser mais fácil
o acesso a tais espaços. Essa tendência também se confirma pelo fato de nor-
malmente o ingresso da mulher na política ocorrer a partir de uma atuação
inicial em organizações da sociedade civil, filantropia, casas de apoio e dife-
rentes áreas sociais, em grande parte de seus municípios.
Embora nesse trabalho nossa análise seja mais teórica e referente a
conceitos importantes dentro da discussão da participação da mulher na es-
fera pública, dados como esses indicam que embora tenhamos conquistado
espaço em diferentes setores, a sociedade ainda deve mudar padrões e este-
reótipos que subordinam e impedem as mulheres de uma real participação.
As formas como se dão a busca por superação das injustiças sociais muitas
vezes impedem soluções que englobem tanto necessidades de cunho culturais
como aquelas ligadas a distribuição. As diferentes formas que a sociedade bra-
sileira busca para estimular e aumentar a participação das mulheres na esfera
pública é que irão proporcionar uma condição de desenvolvimento, justiça
social e de cidadania para as mulheres.
Outra questão que devemos certamente analisar é aquela necessária
para que as diferentes “mulheres” – aqui usamos esse termo para justificar as
diferentes demandas que a interseccionalidade nos revela – criem meios que
reforcem o poder, ampliem a capacidade para as escolhas que levem a uma
emancipação, a fim de conduzi-las a uma real participação e ausência de desi-
gualdade e discriminações. A paridade participativa desenvolvida na teoria de
Fraser, então, serve como a linguagem da razão pública, como a linguagem
utilizada na argumentação política democrática sobre questões relacionada à
distribuição e reconhecimento. O que Fraser busca desenvolver com o intuito
principalmente de superar a subordinação, nesse caso ligada ao gênero, é uma
integração entre o melhor de ambas as políticas, o reconhecimento e a redis-
tribuição no qual o centro normativo é a concepção de paridade de participa-
ção.
Para tanto, a experiência e a crítica feminista, como podemos notar
ao longo desse trabalho, são cada vez mais eficazes no âmbito das demandas
de políticas nacionais nas quais a defesa dos interesses das mulheres assume
uma relevância muito maior.

240
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Conclusão

A consolidação do movimento feminista no Brasil ocorreu por volta


dos anos 1.970 e 1.980 e teve reflexo direto na tentativa de incorporar o gê-
nero às políticas públicas com o objetivo de direcionar as pautas políticas di-
retamente relacionadas à mulher. É evidente que diferentes demandas relaci-
onadas a desigualdades como a classe, raça, sexualidade também devem fazer
parte da proposta de contemplar a emancipação e autonomia das mulheres.
É necessário, no entanto que o Estado evidencie e reconheça as diferentes
demandas, para que assim a distribuição das riquezas e poder ocorra entre os
homens e as mulheres a fim de uma superação da subordinação e padrões que
inferiorizem a mulher.
Quando pensamos nas políticas públicas relacionadas ao gênero cer-
tamente voltamos à questão da diferença e da igualdade, pois não é simples-
mente o fato das mulheres serem tratadas como destinatárias principais em
determinadas políticas ou programas que sua centralidade estará assentada em
uma perspectiva ou enfoque de gênero, ou seja, na construção da igualdade e
no combate às discriminações.
Um bom exemplo para essa questão seriam as políticas que reforçam
o papel tradicional das mulheres como mães e cuidadoras dos filhos, sem dar
alternativas e/ou suporte para estas funções. O problema de políticas que re-
forcem esses papeis, é a ausência de uma reestruturação de padrões que iden-
tificam as mulheres como cuidadoras ou as relacionam a esfera doméstica,
elas não possuem o objetivo de transformar os conceitos e significados de
gênero.
A participação paritária bem como os conceitos trabalhados em es-
fera pública e privada e a importância que estes tiveram para as críticas que as
feministas fizeram e ainda fazem em relação à teoria política, como bem vi-
mos na concepção de liberalismo e patriarcado, também como essas defini-
ções realizadas pela teoria feminista nos estudos relacionados à democracia
social em Habermas, nos revelam aspectos e defasagens que um estudo que
não se baseia ou então não leva em consideração o gênero pode apresentar.
A proposta da teoria e análises realizadas por Fraser nos diferentes
setores e conceitos ligados à sociedade, justiça e democracia, nos ajuda a en-
tender como e porque essa participação das mulheres na esfera pública deve

241
Natália Soares de Oliveira

ser realizada, não somente com o intuito da igualdade, mas principalmente na


representação e busca por demandas próprias. Encontramos na teoria pro-
posta pela autora, uma possível solução para superar o androcentrismo na
cultura jurídica brasileira, a discriminação de gênero na sociedade e a distri-
buição de papéis no mercado de trabalho.
Desta forma, podemos pensar em um real sentido ao inciso I do art.
5º da Constituição Federal brasileira, reconhecendo assim a mulher como par-
ceira plena de integração social, que seja capaz de interagir com o homem em
posição de igualdade. Pensemos também no envolvimento das mulheres na
construção de seus direitos, mediante discussões públicas, onde elas mesmas
pronunciem e justifiquem os aspectos que consideram relevantes para o tra-
tamento igual ou desigual e se responsabilizem pelas questões que as afetam,
de modo que as leis, ainda que ausente qualquer intento discriminatório, não
se transformem em mecanismos de opressão ou de diminuição de valor social.
Esse talvez seja um importante passo para pensamos o futuro da sexualidade
no direito.

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(DES)CONSTRUINDO REDES E ESTRUTURAS:
PERSPECTIVAS SOBRE O FUTURO DA DISCIPLINA E A
REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE

Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha1


Gabriel Cerqueira Leite Martire2

P ensar o futuro da sexualidade dentro do direito nos traz


antes disso a necessidade de repensar esses dois conceitos
e a sua relação. Para isso é preciso compreender o seu “es-
tado da arte” a partir do presente, levando em conta a sua trajetória passada.
Não podemos, portanto, falar de futuro sem antes compreender e questionar
as maneiras de “tratamento” e “regulamentação” das sexualidades (dentro e
fora do direito), e sem antes problematizar as suas possíveis redes e estruturas
de definição, ação, reprodução, resistência e ruptura.
Apesar da amplificação de vozes, discursos e ambientes disponíveis
para se evidenciar questões relacionadas à sexualidade, ainda hoje sentimos
que tal temática encontra-se restrita a ambientes acadêmicos e de movimentos
e redes sociais específicos, sendo necessário o alcance massivo e qualificado
da discussão.
Falar de sexualidade ainda é para muitas pessoas e instituições (in-
cluem-se aqui as famílias, escolas, igrejas, Estados, etc.) um tabu. Esse é um

1 Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense


2 Mestrando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense

245
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

tema que não transita tranquilamente na esfera pública, e a compreensão desse


“estado de coisas” é essencial para que, por um lado, a estrutura machista e
heteronormativa possa ser questionada e, por outro, para que dispositivos de
resistência sejam colocados em cena. A ocupação dos espaços públicos e po-
líticos se apresenta, portanto, como tarefa essencial para pensar os espaços de
resistência e as possibilidades de produção de saberes outros sobre as ques-
tões da sexualidade.
O saber hegemônico forjado sobre a “sexualidade normal” configura
e estrutura, a partir da exclusão, também um modelo de “sexualidade desvi-
ante”, ou seja, tudo aquilo que não corresponde ao modelo de sexualidade
padrão. A internalização e reprodução desses modelos, ocorre ainda, majori-
tariamente, a partir de uma assimilação acrítica capaz de estabelecer uma rup-
tura que interfere e determina, ao mesmo tempo, nítida e silenciosamente,
múltiplas dimensões das relações sociais, tocando sensivelmente questões que
vão desde a própria constituição de si dos indivíduos (enquanto sujeitos), até
a promoção de políticas públicas envolvendo as populações (enquanto corpo
social).
Para se pensar o futuro da sexualidade e a sua relação com o direito,
propomos, portanto, forjar a constituição de um sujeito ético capaz de invo-
car o seu lugar no mundo e na vida e de se posicionar criticamente para além
das tarefas e papéis sociais pré-estabelecidos. Para isso, precisamos pensar o
conceito de sexualidade e o seu futuro para além do direito, implicando con-
siderar as dimensões pública e privada, subjetiva e objetiva, ultrapassando a
razão governamental, tendo como horizonte a superação da “racionalidade
sexual moderna”, conceito formulado a partir da compreensão foucaultiana
de “biopoder”, “racismo” e “governamentabilidade”.
Para isso, nos propusemos i) a compreender como o conceito hege-
mônico de sexualidade adquiriu a sua compreensão atual; ii) a formular e pro-
blematizar o conceito de “racionalidade sexual moderna”, identificando nos
discursos dos parlamentares brasileiros contrários ao programa educacional
“Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discrimina-
ção contra LGBT e Promoção da Cidadania Homossexual”, vulgarmente cha-
mado de Kit Gay, a mobilização política da relação entre os conceitos fou-
caultianos de biopoder, racismo, sexualidade; e iii) discutir e problematizar a
“racionalidade sexual moderna” a fim de pensar estratégias de resistência e

246
Qual o futuro da sexualidade no direito?

possibilidades de superá-la, e de deslocar a compreensão limitada de sujeito


de direito para a proposição de um sujeito ético.
Em caráter de resistência, buscamos associar a dimensão subjetiva-
privada da sexualidade, à sua dimensão objetiva-regulamentar dentro dos
campos de discussão de políticas públicas, para nos permitir lançar um olhar
mais amplo e integrado sobre o direito e a sexualidade, e pensar o futuro dessa
relação para além das técnicas de governamentabilidade, e pensar, talvez, em
uma outra (in)definição de sexualidade(s).

Porque falar de sexualidade(s): em busca de uma indefinição

Compreender o jogo de relações de poder transpassadas pelas ques-


tões da sexualidade carece de uma compreensão prévia a respeito do surgi-
mento e desenvolvimento do próprio conceito hegemônico de sexualidade
enquanto construção social, observando suas trajetórias de configuração, es-
pecificamente no que concerne à homossexualidade, tratada ora enquanto
desvio, ora enquanto normalidade.
Adotando como marco temporal dos nossos estudos o período pós
Segunda Guerra Mundial, e entendendo o direito a partir de uma “visão com-
plexa dos direitos”3, forjada a partir de mecanismos de resistência e descen-
tralização, nos convém destacar que o aparecimento de forças de resistência
ou reacionárias desempenharam um papel significativo para a construção dos
chamados “novos direitos”.
Estamos falando de marcos que contribuíram significativamente para
a construção de novas formas de se compreender a noção de sexualidade
(FACCHINI, 2005), como por exemplo, a luta por direitos de pessoas LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, entre ou-

3 A partir da noção de racionalidade de resistência, não é negada a possibilidade de se chegar

a uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. Tampouco é descartada
a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que
negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros.
Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou de confluência” (FLORES, in:
WOLKMER, 2004, p. 374-375). Logo, “se a universalidade não se impõe, a diferença não se
inibe; sai à luz” (FLORES, in: WOLKMER, 2004, p. 375).

247
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

tros), bem como do surgimento de tecnologias, tal como o advento de con-


traceptivos e a criação de medicamentos no combate ao HIV-Aids, entre ou-
tros.
Segundo Facchi (2005), a ação dos movimentos feministas possibili-
tou a observância da construção de falsas neutralidades em diversos campos
do saber. Como enuncia Gontijo (2009, 24):

Como exposto por Hekma (1996) – e antes dele, por Weeks (1985) e por
Foucault (1976) – a heterossexualidade, enquanto projeto político de controle so-
cial das massas por um grupo/classe que ascendeu ao poder, foi instituída no
século XIX e alicerçada em elementos fornecidos pelas ciências biomédicas – as
novas provedoras da verdade sobre o corpo individual e, por extensão, sobre o
corpo social.

Esse projeto político se ampliava nas formulações de discursos teó-


ricos do direito, através de elaborações de normas, por referências genéricas.
Nesse sentido, a igualdade se revelava como princípio, ao mesmo tempo uni-
versal das diferenças, sem raça, sem gênero, sem sexo, sem idade, sem classe
social.
No século XVIII, a noção de universalidade, aliada à noção de auto-
nomia, (compreendida através do binômio “capacidade de raciocinar” e “in-
dependência de decidir por si mesmo”), excluiu a participação de crianças,
loucos, desviantes, escravos, criados, mulheres, e todos aqueles que não pos-
suíam propriedade. Assim, por não ter “autonomia”, ficaram de fora das dis-
cussões sobre os direitos humanos “naturais, iguais e universais” (HUNT,
2009, 26).
As relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, por sua vez, nem
sempre foram classificadas em termos de autonomia e constituição de identi-
dade. A identidade homossexual foi criada e construída historicamente sob
significados e códigos específicos de determinadas sociedades.
A construção do discurso do homossexual, que perpassa a ideia de
sujeito desviante, mas que pode se restabelecer ao corpo social através de
condutas “normais”, parece obedecer a classificações culturalmente variáveis.
Algumas razões e condições sócio-históricas de compreensão de tais práticas
enquanto “desviantes” e “anormais” nos são apresentadas por Sousa Filho:

248
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Transformada numa anormalidade, a homossexualidade foi, durante um sé-


culo, combatida ao mesmo tempo como doença, vício, crime e pecado. Não é
senão muito recentemente que a homossexualidade cessou de ser considerada
como um problema mental, com a decisão, em 1973, da Associação dos psiquia-
tras americanos de retirá-la da lista das doenças mentais. Até 1975, as sociedades
de psicanálise não aceitavam homossexuais como psicanalistas. E foi apenas em
1991 que a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista
das doenças (2009, 101).

Não é possível resumir a sexualidade às possibilidades corporais de


vivenciar prazer e afeto, tampouco ao que se entende por “instintos” ou ques-
tões meramente ligadas à genética ou essencialmente naturais. Entre os seres
humanos não há comportamento que se desprenda do cultural, assim, as ava-
liações morais estão constantemente entrelaçadas nas mais diversas formas de
discursos. Assim, a avaliação moral é um fato social. Como explica o soció-
logo norte-americano John Gagnon (2006, 406), “o comportamento sexual é
constituído socialmente, de modo que se transforma em conduta sexual”, ou
seja, “não temos um comportamento sexual biologicamente nu, mas uma
conduta sexual socialmente vestida”.
Para este autor, “a vida sexual se assemelha a toda a vida social: é uma
atividade provocada pelas circunstâncias sociais e culturais, e uma atividade
que difere de uma época histórica para outra ou de uma cultura para outra”
(GAGNON, 2006, 215.) A importância dada à sexualidade, nas sociedades
ocidentais, deriva do fato de que lhe é atribuído um significado relacionado à
gênese do social: relações sexuais estariam associadas à formação de famílias
que, por muito tempo, foram consideradas as “células” da sociedade, e res-
ponsáveis por sua reprodução.

A sexualidade envolve um processo contínuo e não linear de aprendizado e


reflexão. Assim, elabora-se a percepção de quem se é e os sentimentos mais ínti-
mos ou profundos sobre o que é ou não desejável. Esse processo se desdobra em
meio a condições históricas, sociais e culturais específicas. Nascemos dotados/as
de determinadas capacidades biológicas. Todo o resto se constrói e vai se for-
mando ao longo da vida (CARRARA, 2010, 22).

Dadas as múltiplas possibilidades de expressões da sexualidade, nos


restaria praticamente impossível homogeneizar as diferentes formas de cons-

249
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

tituição dos seres em relação à sexualidade, isso porque, não existe uma esta-
bilidade, e sim uma constante produção, reprodução e (re)constituição de no-
vos significados.
Corpos e atos sexuais aparentemente idênticos do ponto de vista fí-
sico podem ter variada significação social, a depender de como sejam defini-
dos e compreendidos nas diferentes culturas e períodos históricos. É impos-
sível, portanto, separar o organismo e atos, considerados sexuais, do conjunto
de significados e práticas a partir dos quais são percebidos, elaborados e vivi-
dos. Por isso mesmo, também não é possível tomar o organismo como expli-
cação isolada da sexualidade ou de qualquer outra conduta humana (VANCE,
1995).
John Gagnon (2006), por sua vez, considera que as instruções cultu-
rais a respeito de como as pessoas devem se comportar sexualmente estão
inseridas na organização das instituições sociais e na prática da vida cotidiana
dessas instituições. Desse modo, sexualidade é assunto tanto pessoal quanto
político.
O surgimento e a expansão do Estado moderno, contudo, são mar-
cados pela assunção da razão governamental como mecanismo regulador, dos
corpos e da população, para assegurar os seus poderes de soberania. Diversas
relações específicas de poder diretamente ligadas à noção de controle em
torno da reprodução e construção de forças de guerra podem ser notadas, por
exemplo. A estatização do biológico, utilizada para fins de controle e regula-
ção, serviu também para justificar inúmeras atrocidades, inclusive mecanis-
mos que deixaram profundas marcas transfiguradas enquanto crimes de
guerra, perseguições e extermínios contra homossexuais. Esses crimes não
foram, entretanto, compreendidos em termos de violações contra os direitos
humanos por diversos países, por um razoável período de tempo, e ainda não
o são em muitos países.
Ao analisarmos, por exemplo, diferentes reformas e transformações
nos documentos internacionais, podemos perceber que a criação do Estatuto
de Roma, em 1998, tratado que cria o Tribunal Penal Internacional, não
aponta a sexualidade em termos de categoria elevada ao status de direitos hu-
manos. Convém perguntarmo-nos, portanto, diante das atrocidades cometi-
das contra populações específicas em decorrência de preconceitos e estereó-

250
Qual o futuro da sexualidade no direito?

tipos sexuais, especificamente contra a homossexualidade, tida como expres-


são desviante, quais são os sentidos subjacentes à omissão, ainda que invo-
luntária, e as estratégias de ocultamento dos discursos produzidos à época?
Até hoje, os discursos e saberes sobre a sexualidade foram pensados
de maneira hegemônica em termos de racismo. Racismo este que traz consigo
especificidades que fundamentam a razão governamental e os mecanismos
reguladores do Estado moderno, inclusive os tratados internacionais, legisla-
ções nacionais, dispositivos educacionais, políticas de segurança e de saúde,
dentre outras. Para Foucault (1976, 309) “o racismo é ligado ao funciona-
mento de um Estado que e obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e
a purificação da raça para exercer seu poder soberano”. A especificidade do
racismo moderno não está ligada às mentalidades ou ideologias, mas às tec-
nologias do poder que permitem ao biopoder exercer-se.
O regime nazista “levou até o paroxismo o jogo entre o direito sobe-
rano de matar e os mecanismos do biopoder” (FOUCAULT, 1976, 312).
Obstinados pelo projeto de “pureza ariana”, os nazistas, utilizaram-se do po-
der disciplinar e do biopoder para “transformar” a sociedade, condenando
várias práticas e sujeitos. Nas palavras de Foucault:

O nazismo é, de fato, o desenvolvimento até o paroxismo dos mecanismos


de poder novos que haviam sido introduzidos desde o século XVIII. Não há Es-
tado mais disciplinar, claro, do que o regime nazista; tampouco há Estado onde
as regulamentações biológicas sejam adotadas de uma maneira mais densa e mais
insistente. Poder disciplinar, biopoder: tudo isso percorreu, sustentou a muque a
sociedade nazista (assunção do biológico, da procriação, da hereditariedade; as-
sunção também da doença, dos acidentes). Não há sociedade a um só tempo mais
disciplinar e mais previdenciária do que a que foi implantada, ou em todo caso
projetada, pelos nazistas. O controle das eventualidades próprias dos processos
biológicos era um dos objetivos imediatos do regime (1976, 309).

Para além do paroxismo nazista, contudo, é possível perceber em di-


versos espaços, discursos, e técnicas de Estado disciplinar, os reflexos das
regulações e mecanismos de biopoder, que se desdobram nas estratégias de
normalização de comportamentos a partir do controle informal e do controle
formal, inclusive, em tratados, leis, acordos e demais instrumentos de regula-
mentação legal, a nível local, nacional e internacional.
Esses mecanismos de poder se dão em uma relação entre o corpo, os
indivíduos e as instituições. E esta relação, por sua vez, supõe possibilidades

251
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

de ação e, inclusive, de inversão das relações de força (MERLIN, 2009). Nesse


contexto de tensão permanente entre poder e liberdade, é importante destacar
as lutas dos movimentos sociais que provocaram e provocam a ruptura das
compreensões e dos modos de disciplina e regulamentação das questões so-
bre a sexualidade.
No que diz respeito à relação de forças concernente às discussões
sobre direitos sexuais e a sua regulamentação legal no âmbito internacional
mais recente, podemos destacar uma trajetória ascendente de documentos in-
ternacionais que visam reconhecer direitos relacionados à sexualidade, dentre
os quais poderíamos citar desde a Carta das Nações Unidas (1945) e a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Conferência do Cairo (1994),
a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em Pequim
(1996), e a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher.
Recentemente, foram aprovados os Princípios de Yogyakarta (2006),
documento internacional resultante da iniciativa da Comissão Internacional
de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos em nome de uma
coalizão de organizações de direitos humanos. Dessa proposta surgiu um pro-
jeto

com o objetivo de desenvolver um conjunto de princípios jurídicos internaci-


onais sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos huma-
nos com base na orientação sexual e identidade de gênero, no sentido de dar mais
clareza e coerência às obrigações de direitos humanos dos Estados (CORRÊA,
MUNTARBHOM, 2006, 8).

Assim, um conjunto de conceitos foram esclarecidos para orientar as


legislações internacionais a respeito da orientação sexual e identidade de gê-
nero. Para isso, pessoas envolvidas no assunto e nas ações a favor das causas
LGBT se reuniram para as deliberações.

Em novembro de 2006, um grupo de especialistas em direitos humanos e de


ativistas envolvidos(as) com debate sobre sexualidade – em especial os direitos de
lésbicas, gays, transgêneros, travestis e pessoas intersex – reuniram-se na Univer-
sidade de Gadjah Mada, em Yogyakarta, na Indonésia. Esse encontro tinha como
objetivo produzir um documento de referência para guiar a aplicação da lei inter-
nacional de direitos humanos às situações de violação de direitos, discriminação
e estigma as quais estão submetidas as pessoas cujas orientação sexual e identidade

252
Qual o futuro da sexualidade no direito?

de gênero divergem da norma heterossexual dominante nas sociedades


(CORRÊA, 2007).

No Brasil, os Princípios de Yogyakarta foram lançados em 27 de


agosto de 2007. Neste documento “não se mencionam, em nenhum mo-
mento, os termos mulher, homem, gay, lésbica, transgênero, travesti, inter-
sexo” (CORRÊA, 2007). Podemos perceber, por um lado, o desenvolvimento
de novas perspectivas de embates envolvendo gênero, sexualidade, classe e
raça que tendem a questionar arranjos fixos de identidades. Por outro lado,
pensar no sujeito requer soluções possíveis para que as identidades possam
ser reconhecidas sem que isso implique em formas de exclusão, discriminação
e desigualdade.
Judith Butler (2003) enfrenta as estruturas pré-fixadas ao questionar
“o que acontece ao sujeito e à estabilidade das categorias quando o regime
epistemológico da presunção é desmascarado, explicitando o produto de uma
arrogante ontologia”? (BUTLER, 2003, 8) Nessa mesma linha, poderíamos
nos questionar “que possibilidades políticas são consequências de uma crítica
radical das categorias de identidade” (BUTLER, 2003, 10). Nesse sentido,

Esta noção, [...] pretende explicar que a lei não deve atuar sobre um sujeito
que a precede, mas sim é a lei que inventa o objeto que regula. Assim, por exem-
plo, não existiriam homossexuais antes das regulações culturais médicas e jurídicas
que os avaliassem como seres abjetos (como tampouco existiriam os heterosse-
xuais antes da existência dos homos, constituindo uma dupla semântica e um
mesmo ato). Dessa maneira, na linguagem, a gramática corporiza os gêneros e os
comportamentos eróticos em termos da matriz heterossexual obrigatória e os faz
inteligíveis. É no momento da geração da matriz heterossexual, da sexualidade
“normal”, que se definem as sexualidades periféricas como seu correlato abjeto,
aquilo que não é para que o outro seja (DÍAZ-BENITEZ, FÍGARO, 2009, 22).

Considerando as possibilidades políticas relacionadas à (im)compre-


ensão das categorias de identidade, poderíamos destacar, por um lado, a di-
mensão da concessão de alguns direitos reivindicados pelos movimentos
LGBTs, como por exemplo: a) o reconhecimento da legalidade dos atos ho-
mossexuais; b) o reconhecimento de relacionamentos entre pessoas do
mesmo sexo; c) o casamento entre pessoas do mesmo sexo; d) a adoção por
pessoas do mesmo sexo; e) a permissão de que homossexuais assumidos sir-

253
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

vam às forças armadas; f) a existência de políticas/leis anti-discriminação (ori-


entação sexual); g) a existência leis sobre identidade e sobre gênero/expres-
são.
Contudo, destacamos também, por outro lado, um árduo caminho a
ser seguido até assegurar a efetividade desses direitos. A ruptura com as anti-
gas estruturas e a criação de possibilidades e estratégias de resistência e inven-
tividade relacionadas às questões da sexualidade é um processo de enfrenta-
mento longo e complexo que passa pela própria compreensão da sexualidade
e desses novos direitos. A violência, o preconceito e os estigmas sociais infor-
mais são apenas alguns dos empecilhos que se colocam. As compreensões,
saberes e ações formais institucionais também representam um paradigma a
ser problematizado e superado em prol do respeito das múltiplas sexualidades
e suas maneiras de expressão.

A perspectiva do racismo na “racionalidade sexual moderna”

A compreensão biológica-moral-heteronormativa a propósito da se-


xualidade ainda é hegemônica e precisa ser discutida e redefinida em prol da
produção de outros saberes, compreensões e modos de lidar com as suas
questões. Como dissemos acima, apesar dos avanços nas perspectivas de cri-
ação desses outros modos de pensar a sexualidade, ainda percebemos um
modo predominante de conceber e reproduzir esse conceito, que é um modo
bastante pejorativo, e encontra-se presente nas atitudes cotidianas em diversas
instituições, até nas políticas de Estado.
No Brasil, por exemplo, Estado (em tese) laico, democrático, de di-
reito e que figura como signatário de vários tratados internacionais em prol
dos direitos humanos, e supostamente progressista no que concerne às dis-
cussões sobre reconhecimentos dos direitos LGBTs, vimos, recentemente, a
dificuldade em discutir políticas públicas que variam desde a definição do
conceito de família, à discussão de políticas de redução de danos com relação
ao aborto, e à adoção de políticas educacionais para a discussão de políticas
sexuais através do “Programa de Combate à Violência e à Discriminação con-
tra LGBT e Promoção da Cidadania Homossexual”, por exemplo.

254
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Esses três casos são emblemáticos e nos evidenciam as práticas do


Congresso Parlamentar mais conservador desde a (suposta) reabertura demo-
crática do país. No que concerne especificamente ao material “Brasil sem Ho-
mofobia - Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e Promoção
da Cidadania Homossexual” as discussões giraram em torno de argumentos
que acusavam o material de “promover o homossexualismo e a promiscui-
dade”, argumento moral clássico, utilizado por muitos parlamentares à época
da discussão, que reflete também a concepção histórica da homossexualidade
ligada ao mal e à enfermidade a serem combatidos.
A elaboração do material “Programa de Combate à Violência e à Dis-
criminação contra LGBT e Promoção da Cidadania Homossexual” faz parte
do Projeto Escola Sem Homofobia, feito pela ONG Pathfinder do Brasil, a
Global Alliance for LGBT Education (Gale), a Comunicação em Sexualidade
(Ecos), a Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva (Reprolatina)
e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexu-
ais (ABGLT). Entidades como a Unesco e o Conselho Federal de Psicologia
defenderam o conteúdo do material cuja produção acontece desde 2007 e
estava inserida na gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação.
Para os produtores do material, no entanto, esse Programa “deve ser
visto como um crucial e necessário avanço na ampliação e fortalecimento do
exercício da cidadania por consolidar direitos políticos, sociais e legais tão
arduamente conquistados pelo movimento LGBT brasileiro no enfrenta-
mento à homofobia”. Com a proposta de discutir temas como questões de
“gênero”, de “diversidade sexual”, “homofobia” e a luta pela “cidadania
LGBT”:

O Projeto Escola sem Homofobia visa contribuir para a implementação e a


efetivação de ações que promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à ga-
rantia dos direitos humanos e da respeitabilidade das orientações sexuais e iden-
tidade de gênero no âmbito escolar brasileiro. Essa contribuição se traduz em
subsídios para a incorporação e a institucionalização de programas de enfrenta-
mento à homofobia na escola, os quais pretendemos que façam parte dos projetos
político-pedagógicos das instituições de ensino do Brasil (BRASIL, 2011).

Curioso é pensar que após o convênio do Programa Escola sem Ho-


mofobia ter tido uma dotação orçamentária de R$ 1,8 milhão; após o material

255
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

ter sido aprovado pela Secad (Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti-


zação e Diversidade), com a recomendação de ONGs e do próprio MEC e
declaração favorável do Conselho Federal de Psicologia; a distribuição do kit,
que estava prevista para ocorrer no segundo semestre de 2011 em 6 mil esco-
las de ensino médio, foi cancelada em maio daquele ano após pressão das
bancadas religiosas e uma série de mal entendidos que até hoje não foram
esclarecidos.
As discussões trazidas pelo Programa não avançaram e povoam o
imaginário popular a partir de uma perspectiva violenta e preconceituosa, fun-
dada na noção de anormalidade e necessidade de eliminação. Trouxemos, a
título ilustrativo, algumas falas emblemáticas de parlamentares a propósito do
Programa (BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Discursos e Notas Ta-
quigráficas. 2016) para que possamos identificar a presença do “racismo”, na
perspectiva foucaultiana, nesses discursos que expressam mais do que uma
opinião política, mas um exercício da biopolítica enquanto técnica governa-
mental de disciplina e regulamentação:

Sessão: 007.1.54.O (10/02/2011):


O SR. JAIR BOLSONARO (Bloco/PP-RJ) - Sr. Presidente, tão logo sejam
formadas as Comissões, vamos convocar o Ministro da Educação para vir a esta
Casa explicar o kit gay, que começa a ser distribuído nas escolas de primeiro grau
a partir de março. Eu quero que ele entregue um kit desses para cada Deputado
desta Casa, inclusive com os filmetes Encontrando Bianca, Boneca na Mochila e Beijo
Lésbico. Isso é uma imoralidade que o Ministério da Educação está fazendo, jun-
tamente com grupos LGBT, que não têm nada a oferecer no tocante a currí-
culo, a bons costumes, ética e moral para a garotada do primeiro grau. Du-
vido, depois de distribuído esse kit gay a todos Deputados, que esse trabalho con-
tinuará sendo feito nas escolas públicas de primeiro grau. É inadmissível que a
garotada de 6, 7, 8, 9, 10 anos receba esse material de combate à homofobia.
Na verdade, esse material promove o homossexualismo e a promiscuidade.
Assim sendo, Sr. Presidente, quero contar com o apoio de todos para convocar o
Ministro da Educação a vir a esta Casa explicar o kit gay.
(...)
O SR. RONALDO FONSECA (Bloco/PR-DF): (...) Pela primeira vez, na
Câmara dos Deputados, estamos com o número expressivo de 72 Parlamen-
tares que defendem a fé evangélica, como eu a defendo. (...). Também assumo
esta tribuna para comunicar algo que está trazendo grande preocupação, espe-
cialmente para a família brasileira: estamos ouvindo falar, porque até agora
nada é oficial, que o Ministério da Educação está elaborando o intitulado
Kit contra a Homofobia, que popularmente já recebeu o nome de kit gay.

256
Qual o futuro da sexualidade no direito?

O Ministério da Educação está preocupado com a homofobia, a discriminação e


o preconceito nas escolas - e todos os educadores e líderes desta Nação estão
realmente preocupados com a violência, o bullying que está acontecendo nas esco-
las.
Esta atitude deve ser louvada: o Ministro, um homem público, luta contra
a discriminação, o preconceito, a homofobia. Contudo, estamos preocupa-
dos, porque há muita divulgação desse kit, mas até agora ninguém o viu.
Não quero ser irresponsável e falar desta tribuna de algo que não vi, de
algo a que ainda não assisti. A família brasileira está chocada com essa
ameaça, até porque a família brasileira não suporta mais tantas ameaças à
estrutura da família.
(...)
Sessão: 129.1.54.O (26/05/2011):
(...)
Mostramos a S.Exa. a preocupação que este grupo de Parlamentares
tinha com a produção desse kit gay, que estava para ser distribuído nas
escolas, depois de interpelarmos o Ministro da Educação, como eu fiz. Encami-
nhei dois requerimentos ao Ministro da Educação, mas o Ministério da Educa-
ção estava determinado a colocar na mão das crianças um material, uma
produção de muito mau gosto, que induzia, que defendia, que propagava,
que fazia apologia do homossexualismo.
(...)
Vejam: homofobia não significa defesa da família, dos bons costumes,
do princípio da moralidade. Quero dizer também que, com essa decisão da
Presidenta Dilma Rousseff, junto com o Ministro Gilberto Carvalho, decidi-
mos que todo material que venha a mexer com os costumes da família bra-
sileira deve ser produzida com a presença de representantes das bancadas
da educação, da Comissão de Educação e Cultura, de orientação evangé-
lica, católica e de outras religiões. Isso dá segurança às famílias brasileiras.
(...)
Sessão: 227.1.54.O (31/08/2011): Repúdio ao posicionamento do Conselho
Federal de Psicologia, favorável à distribuição do chamado Kit Gay nas escolas
brasileiras. Solidariedade à psicóloga Marisa Lobo diante de ameaças de cassação
do seu registro profissional, em face do posicionamento contrário ao chamado kit
gay. (...)
O SR. PASTOR MARCO FELICIANO (PSC-SP): “Esses psicólogos es-
tão indignados com a postura do seu órgão representativo perante a opinião pú-
blica e a imprensa, uma vez que, em passeata e de forma pessoal, induz a popula-
ção e os profissionais da área a se posicionarem a favor daquilo que já sepulta-
mos aqui, o Kit Gay, ao exigirmos do Governo a sua suspensão.
Psicólogos de todos os conselhos regionais estão questionando a posição do Con-
selho Federal, por não terem sido consultados e também por não apoiarem o
conteúdo desse kit chamado Projeto Escola sem Homofobia, por ser material

257
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

muito sexualizado e impróprio, que expõe as crianças a uma sexualidade


precoce e causa sérios problemas ao desenvolvimento psicossocial.
O Código de Ética do psicólogo diz, no seu art. 2º, que "ao psicólogo é vedado
induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou
a favor de qualquer tipo de preconceito, quando no exercício de suas funções profissionais".”

O repúdio dos parlamentares, manifestado em seus discursos a partir


da referência à moralidade, aos bons costumes, à ética, à promiscuidade, ao
desrespeito à fé e às famílias, à perversão, ao homossexualismo (representado
enquanto doença) traduz a compreensão de que a suposta inadequação do
material citado advém de preconceitos formulados a partir de uma racionali-
dade específica que confunde e reduz as questões da sexualidade a demarca-
ções de normalização fundadas na incompreensão, intolerância e desrespeito
às diferenças.
A prevalência do conservadorismo e disso que Foucault chama de
racismo, em seu sentido mais amplo, ilustram nesses discursos isso que opta-
mos chamar de “racionalidade sexual moderna”: um conceito formulado a
partir da compreensão de que o racismo, enquanto modo de funcionamento
do Estado, a partir de tecnologias de normalização (na qual a disciplina do
corpo e a regulamentação da sexualidade ainda fundam a compreensão popu-
lar da sexualidade), proporciona que a economia do biopoder sustente a go-
vernamentabilidade.
O conceito de “racionalidade sexual moderna” apresenta-se como
um conceito complexo que demanda a compreensão dos conceitos foucaul-
tianos de: “racismo”, “tecnologias de normalização”, “disciplina do corpo”,
“regulamentação da sexualidade”, “economia do biopoder”, “governamenta-
bilidade”. Para entender esses conceitos é necessário situar a trajetória que
Foucault realizou para compreender o que ele chama de “racismo de Estado”.
Quando Foucault propõe uma genealogia do Estado Moderno e de
seus diferentes aparelhos a partir de uma história da razão governamental, que
vai desde a entrada da modernidade com o triunfo da Soberania (Estado de
Justiça), passando pelo Estado Administrativo (à época da razão do Estado
potente) que procura prevenir, corrigir (através das técnicas policiais, médicas
e psicológicas adequadas), até o Governo cuja economia política é a técnica
principal de intervenção, ele procurou compreender uma diversidade de espí-
ritos e de racionalidades governamentais (BUDET, 2006), e ele procura tam-

258
Qual o futuro da sexualidade no direito?

bém mostrar “uma história que dê conta da constituição dos saberes, dos dis-
cursos dos domínios de objeto” (REVEL, 2008), das práticas, das relações de
poder, etc.
Foucault (2000) nos apresenta os modos como as tecnologias de dis-
ciplinas centradas nos corpos foram aos poucos sendo integradas e substituí-
das pelas tecnologias de regulamentação das populações. As técnicas de raci-
onalização e de economia e de tecnologia disciplinar do trabalho instauradas
no final do século XVII e no decorrer do século XVIII cuidavam do corpo
individual, dos “procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espa-
cial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em
série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de
todo um campo de visibilidade” (FOUCAULT, 2000, 288).
Durante a segunda metade do século XVIII, desenvolve-se uma tec-
nologia de poder diferenciada, que integra a primeira e modifica as suas téc-
nicas disciplinares para dirigir-se ao homem enquanto ser vivo, enquanto es-
pécie. Nas palavras de Foucault (2000, 289):

a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa


multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigia-
dos, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia
que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles
se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa
global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são pro-
cessos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.

Desse modo, o século XIX coloca em evidencia “uma tomada de


poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do bio-
lógico” (FOUCAULT, 2000, 286). Precedida pela tomada de poder individu-
alizante, exercido sobre o corpo, essa segunda tomada de poder, massificante,
dirigida ao homem espécie, “já não é uma anátomo-política do corpo hu-
mano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana”
(FOUCAULT, 2000, 289).
A biopolítica tem como propósito/alvo o gerenciamento das massas
a partir de técnicas que levam em conta as taxas e processos de natalidade, de
mortalidade, de longevidade e morbidade, de modo que não só a medicaliza-
ção da população, mas também a sua neutralização, passam a ser campo de
atuação dessa nova política. A amplificação dos discursos sobre “a função

259
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

maior da higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos


médicos, de centralização da informação, de normalização do saber”
(FOUCAULT, 2000, 291) dão à medicina um lugar privilegiado no gerencia-
mento da biopolítica.
É importante destacar que a noção de biopolítica se desenvolve pa-
ralelamente à noção de população, que se diferencia da noção de indivíduo-
corpo e também da noção de sociedade (corpo social tal qual definem os ju-
ristas). É nesse momento que a população aparece “como problema a um só
tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder”, de modo que “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimen-
tos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração”
(FOUCAULT, 2000, 293). Desse modo, enquanto a tecnologia disciplinar do
corpo pretende transformá-lo em útil e dócil, a partir de uma perspectiva in-
dividualizante, a tecnologia regulamentadora da vida, encontrada na biopolí-
tica, visa aos efeitos de massa próprios da população, buscando controlar uma
série de eventos fortuitos ligados a ela.
Diante da “necessidade em adequar e aperfeiçoar a velha mecânica
do poder de soberania ao contexto de explosão demográfica e de industriali-
zação”, os Estados aperfeiçoam a primeira “acomodação dos mecanismos de
poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento” (disciplina
exercida na escola, hospital, quartel, oficina, durante os séculos XII e XIII)”
para uma segunda acomodação, que ocorre no final do século XVIII “sobre
os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos
biológicos ou biossociológicos das massas humanas” (FOUCAULT, 2000,
298).
O elemento que circula entre o disciplinar e o regulamentador, apli-
cando-se ao mesmo tempo ao corpo e à população é a norma. A norma deli-
mita a clivagem oferecida pelo biopoder, e o seu excesso “aparece quando a
possibilidade e técnica é politicamente dada ao homem, não só de organizar
a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo
monstruoso, de fabricar - no limite - vírus incontroláveis e universalmente
destruidores” (FOUCAULT, 2000, 303).
A bioregulamentação do Estado, conjunto biológico e estatal, incor-
pora e supera, pois, o conjunto orgânico-institucional que tinha como objeto
o corpo/organismo e como pretensão a sua disciplina - docilização e utilidade
- exercida a partir das práticas instituicionais. A função da biopolítica é, no

260
Qual o futuro da sexualidade no direito?

entanto, diferente da função dos mecanismos disciplinares. Essa nova tecno-


logia de poder pretende assegurar uma regulamentação. A partir de previsões,
estimativas estatísticas e medições globais a biopolítica busca criar mecanis-
mos reguladores capazes de estabelecer uma regularidade, um equilíbrio, uma
espécie de homeostase; ela busca assegurar compensações a nível populacio-
nal, ou seja, criar uma média. Desse modo, para além da racionalidade da so-
berania, que fazia morrer e deixava viver, a regulamentação surge como um
poder capaz de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 2000, 294).
O surgimento desse novo poder de fazer viver e deixar morrer, a
partir das técnicas de regulamentação, pode ser compreendido, por exemplo,
a partir da execução de determinadas políticas públicas em detrimento de ou-
tras. Nos convém perguntar: quem deixamos morrer e quem fazemos viver
quando propomos o congelamento do valor real do salário mínimo e os in-
vestimentos em saúde e educação? Quem o Supremo Tribunal Federal deixa
morrer e faz viver quando decide que servidor público pode ter o seu salário
cortado em caso de greve desde o início da paralisação?4 No âmbito da sexu-
alidade, a quem se faz viver e a quem se deixa morrer quando não nos permi-
timos discutir políticas públicas de educação e combate ao machismo e à ho-
mofobia? A Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal (2012) nos
informa que “em 2012, foram divulgadas nos principais canais midiáticos bra-
sileiros 511 violações contra a população LGBT, envolvendo 511 vítimas e
474 suspeitos. Entre as violações noticiadas encontram‐se 310 homicídios”.
A sexualidade apresenta aqui uma importância estratégica na com-
preensão desse contexto de transição de disciplina dos corpos e regulamenta-
ção da população. “De um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exa-
tamente corporal, depende de um controle disciplinar, individualizante, em
forma de vigilância permanente”, e, “por outro lado, a sexualidade se insere e
adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos
que concernem não mais ao corpo do indivíduo, mas a esse elemento, a essa
unidade múltipla constituída pela população” (FOUCAULT, 2000, 300).

4 Nos referimos a discussões de debates recentes da política brasileira relativas, respectiva-

mente, à Proposta de Emenda Constitucional nº 55 de 2016 (antiga PEC 241), conhecida


como PEC do Teto dos Gastos Públicos; e à decisão de 27/10/2016 do Supremo Tribunal
Federal, na qual os ministros analisaram um recurso apresentado pela Fundação de Apoio à
Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC) e consideram legítima a possibili-
dade de órgãos públicos cortarem o salário de servidores em greve desde o início da parali-
sação.

261
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

A posição privilegiada da sexualidade entre organismo/corpo e po-


pulação/fenômenos globais, provocou a sua valorização médica e a propaga-
ção das teorias da degenerescência e das doenças individuais a partir da

ideia médica segundo a qual a sexualidade, quando é indisciplinada e irregular,


tem sempre duas ordens de efeitos: um sobre o corpo, sobre o corpo indiscipli-
nado que é imediatamente punido por todas as doenças individuais que o devasso
sexual atrai sobre si. Uma criança que se masturba demais será muito doente a
vida toda: punição disciplinar no plano do corpo. Mas, ao mesmo tempo, uma
sexualidade devassa, pervertida, etc., tem efeitos no plano da população, uma vez
que se supõe que aquele que foi devasso sexualmente tem uma hereditariedade,
uma descendência que, ela também, vai ser perturbada, e isso durante gerações e
gerações (FOUCAULT, 2000, 300).

A medicina se constitui, portanto, “enquanto um saber-poder que


incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o orga-
nismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos discipli-
nares e efeitos regulamentadores” (FOUCAULT, 2000, 302).
O racismo se insere neste cenário como mecanismo fundamental de
poder que introduz o corte delimitador entre o que deve viver e o que deve
morrer, ele fragmenta esse campo do biológico de que o poder se incumbiu;
representa “uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em
relação aos outros”, sendo esta a função primeira do racismo: “fragmentar,
fazer cesuras no interior desse continuo biológico a que se dirige o biopoder”
(FOUCAULT, 2000, 305).
Para Foucault (2000, 305), não é o racismo nem o Estado moderno
que inventam o que ele chama de “relação do tipo guerreiro”, a qual preza
pela máxima da necessidade de poder fazer morrer para que se possa viver.
Contudo, o racismo permite que essa lógica funcione compatível com o bio-
poder dentro do Estado Moderno. Essa lógica perversa e extremamente pe-
rigosa funciona sob o argumento de que

De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida
e a morte do outro, uma relação que não é uma relação militar e guerreira de
enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico: “quanto mais as espécies in-
feriores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eli-
minados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu - não enquanto
indivíduo, mas enquanto espécie - viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei,
mais poderei proliferar”. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na

262
Qual o futuro da sexualidade no direito?

medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça
ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a
vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 2000, 305).

No sistema de biopoder, a perspectiva do racismo marca a aceitabili-


dade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Aqui o que se objetiva
não é a vitória sobre os adversários políticos, mas “a eliminação do perigo
biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria
espécie ou da raça” (FOUCAULT, 2000, 306). O poder de normalização é
exercido, portanto, através do poder de matar justificado pelo racismo. Fou-
cault não entende aqui o ato de tirar a vida simplesmente como o assassínio
direto, “mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor
à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente,
a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2000, 308).
O racismo moderno traz em si uma especificidade que diz respeito à
tecnologia/mecanismo do poder exercido a partir da biopolítica. Os riscos do
vínculo estabelecido entre a teoria biológica do século XIX e os discursos de
poder vão além dos perigos em ter o evolucionismo como “maneira de trans-
crever em termos biológicos o discurso político” (FOUCAULT, 2000, 308).
No que concerne ao racismo, especificamente, ele “assegura a função de
morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos
outros e o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela
é membro de uma raça ou de uma população, na medida em que se é elemento
numa pluralidade unitária e viva” (FOUCAULT, 2000, 308).
A partir dessas considerações podemos compreender como a sexua-
lidade foi e vem sendo pensada em termos do racismo que torna possível, a
partir do biopoder, o estabelecimento dessa clivagem entre homens e mulhe-
res, entre heterossexuais e homossexuais, ou seja, entre sociedade normali-
zada, bem adequada aos seus papéis e funções sociais, e sociedade “desvi-
ante”. É nesses termos que a “racionalidade sexual moderna” tem sido pen-
sada e desenvolvida. E é a partir dessa análise que nos dispomos a pensar em
possibilidades de superar e resistir a esse modo de racionalidade.

263
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

Em busca de um sujeito ético: estratégias de resistência e


possibilidades de superação da racionalidade sexual moderna

O conceito que descrevemos acima, “racionalidade sexual moderna”,


está intimamente ligado a uma racionalidade política moderna através da qual
o governo busca gerir uma população específica através de tecnologias e dis-
positivos determinados. Considerando o contexto de inserção das políticas e
direitos sexuais na atualidade, como poderíamos pensar o futuro da sexuali-
dade para além da previsão legal desses direitos e para além de uma “evolução
formal” que não corresponde à realidade social?
A compreensão de que a lei não é suficiente (embora importante)
para garantir o respeito e a promoção de direitos nos traz a necessidade de
pensar estratégias outras para interferir nas relações sociais, inclusive valori-
zando a autonomia dos sujeitos. Seria preciso, portanto, pensar para além da
positivação de direitos e além da própria noção de sujeito de direito, seria
preciso pensar na consecução de um sujeito ético.
A consecução desse sujeito ético demanda alternativas capazes de
desvincular a noção da sexualidade da lógica do racismo, do risco e da subal-
ternidade no que concerne tanto a sua dimensão corporal quanto populacio-
nal. Isso significa dizer que é preciso superar a dimensão moral da sexualidade
a partir do questionamento da (in)visibilidade e da normalização de compor-
tamentos, bem como dos controles informal e formal que se exercem em re-
lações de poder que permeiam as instituições sociais.
Entendemos que a dimensão jurídica, legal, não é suficiente para dar
conta dessa problemática e que propor um olhar sobre a sexualidade dentro
e a partir do direito também é uma perspectiva insuficiente. É preciso, por-
tanto, desenvolver estratégias que busquem superar e romper com o racismo
governamental, ou seja, superar a clivagem biopolítica instituída e compreen-
der a máxima de que a reivindicação de direitos de uma parte da população
não deve se dar em função da fragilidade ou em detrimento de outra parcela
da população. Essas estratégias perpassam tanto as dimensões corporais, sub-
jetivas e individuais, quanto as políticas e coletivas e gerenciais da sexualidade.
As técnicas de governamentabilidade se apoiam sobre técnicas de do-
minação, de vigilância, de controle, de regulamentação e também sobre téc-
nicas de si (as maneiras como alguém se constitui enquanto sujeito de sua

264
Qual o futuro da sexualidade no direito?

própria existência). Essas técnicas produzem um certo tipo de sujeito com


uma identidade forjada a partir do assujeitamento.
Desassujeitar a sexualidade da lógica da governamentalidade não é,
portanto, uma tarefa simples, sobretudo quando temos a compreensão de que
essa lógica está imbrincada nas relações de poder capazes de “fabricar sujei-
tos”. Para Foucault, o sujeito não se constitui sobre o fundo de uma identi-
dade psicológica, mas através de práticas que podem ser de poder, ou de co-
nhecimento ou de técnicas de si. Na nossa subjetividade, nós temos sempre
o problema de agenciar “a maneira a qual o sujeito faz a experiência de si
mesmo em um jogo de verdade onde ele tem uma relação consigo” (REVEL,
2008).
Admitir que o saber muda com o sujeito significa admitir que essa é
uma construção dupla. Saber e poder estão ligados e o exercício do poder é
também ligado à manifestação da “verdade”, que toma forma na subjetividade
das pessoas, e a sua manifestação também está ligada ao saber. O saber im-
plica, por vezes, uma relação com os objetos de conhecimento (movimento
de objetivação, ou seja, maneira à qual os seres humanos se transformam em
sujeitos) e ao sujeito conhecedor (processos de subjetivação). As possibilida-
des de ação de se governar (governo de si) passam, portanto, pelo encontro
entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si.
A tomada de consciência da existência dos regimes de verdade é
muito importante nesse movimento de liberação do indivíduo e de desassu-
jeitamento, na construção de um sujeito ético, principalmente quando falamos
de um regime de verdade que institui uma noção clivante de sexualidades a
partir de lógicas de subalternização cujas relações de poder mobilizam tam-
bém regimes disciplinares e de biopoderes.
O “governo de si” passa por um “duplo processo de objetivação dos
indivíduos” pela “noção de um saber positivo” e “de assujeitamento dos cor-
pos por todo um conjunto de dispositivos técnicos” (MERLIN, 2009). De
que maneira seria possível, entretanto, promover um governo autônomo so-
bre si mesmo face a esse modelo de governamentalidade?
Ao fazer a genealogia do Estado Moderno, Foucault apresenta a ra-
zão governamental como elemento modificador da maneira de pensar as re-
lações entre o Estado, a sociedade civil e a construção do “corpo social”. Ao
colocar a racionalidade biopolítica em evidência ele nos convida a fazer uma
crítica (HORTONÉDA, 2005).

265
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

Foucault nos sugere a possibilidade de ter uma pretensão revolucio-


nária de se autogovernar através da reinterpretação da nossa racionalidade
política (BUDET, 2006). Essa pretensão revolucionária está ligada a um exer-
cício de compreensão de como a sociedade “toma corpo” e na compreensão
de como nós nos constituímos enquanto sujeitos. Essa é uma das maneiras
de se desassujeitar, ou seja, pela contestação da ordem estabelecida. A esse
exercício precede a recusa de qualquer abstração na análise das múltiplas arti-
culações entre a constituição de um saber, suas relações de poder e processos
de subjetivação (MERLIN, 2009).
Durante a sua trajetória intelectual, Foucault sistematiza o seu pen-
samento articulando formas e relações de saber e os processos de subjetiva-
ção, e é através dessas análises que ele propõe o engendramento de um sujeito
ético. Nos perguntamos, portanto, como seria possível a constituição de um
sujeito ético fora da forma de assujeitamento disciplinar e agenciamento re-
gulamentar? Como seria possível encontrar novas formas de pensar, sentir e
viver para além de uma lógica de governamentabilidade?
O encontro com o sujeito ético passa, primeiramente, pela compre-
ensão de que o poder produz um saber, ou seja, o saber e o poder se implicam
diretamente e se constituem um ao outro, sendo que as relações de poder
supõem sempre uma possibilidade de ação e de resistência, bem como uma
provocação constante entre as noções de poder e liberdade (MERLIN, 2009).
Em termos de mudança elencamos algumas ações de resistência: a) a
compreensão do binômio saber-poder e sua interferência nas relações indivi-
duais e sociais; b) o questionamento das configurações dos corpos, popula-
ções e políticas; c) a luta política que se opõe às formas de dominação (éticas,
sociais e religiosas); d) a denúncia das formas de exploração que separam o
indivíduo daquilo que ele produz; e) o combate ao assujeitamento e à submis-
são do indivíduo aos outros e às condições de subalternidade que o ligam a
ele mesmo.
O sujeito é, desse modo, sempre produtor e produto de um discurso,
estando sempre imerso em um jogo de verdade. O binômio sujeito/verdade
deve ser interpretado em função do binômio saber/poder. O conceito de su-
jeito de direito, portanto, traz consigo uma conjuntura de relações de poder,
jogos de verdade, saberes e práticas que o afastam de maneira exponencial
disso que poderíamos chamar de sujeito ético.

266
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Essa lacuna existente entre o horizonte do sujeito de direito e o ho-


rizonte do sujeito ético implica, por sua vez, a concepção de o sujeito político
(forjada pelos contratualistas) pensado essencialmente como sujeito de di-
reito, que só seria possível a partir da lógica do Estado (ZARKA, 2002) da
governamentabilidade, o que seria, portanto, um sujeito construído de ma-
neira hiper-reduzida.
Os processos de subjetivação, de governamentabilidade e de exercí-
cio do poder demandam também “atos de verdade” indexados à sua subjeti-
vidade. Os sujeitos humanos se constituem a partir do acesso aos jogos de
verdade científicos e institucionais e de suas relações de poder. Como disse-
mos, a relação entre os sujeitos e os jogos de verdade se dá a partir de práticas
coercitivas, de jogos teóricos ou científicos, e também através das práticas de
si (ZARKA, 2002).
Os cuidados, práticas ou técnicas de si, elementos que exercem um
papel importante na relação entre sujeito e seu registro de verdade, surgem
para Foucault a partir de estudos sobre o pensamento grego e da problemati-
zação constante das relações, das práticas e das maneiras de pensar a invenção
de si mesmo, ou seja, a produção da subjetividade como uma criação, quer
dizer, como uma ontologia constituinte que leva em conta as clivagens às
quais nós somos submetidos cotidianamente (REVEL, 2009).
O projeto de Foucault, no que concerne os seus estudos sobre a sub-
jetividade, “era o de constituir um conceito ético de subjetividade como ética
da liberdade. O cuidado de si definiria o movimento pelo qual o sujeito se
constitui ele mesmo ao acessar a verdade experimentando a sua liberdade”
(ZARKA, 2002). Se partirmos do princípio da possibilidade de criticar as téc-
nicas de assujeitamento e de acesso à verdade a partir da experimentação da
liberdade, seria, portanto, o momento de reivindicar a ausência não só dos
dispositivos disciplinares, mas também das técnicas de regulamentação?

Considerações finais

O modo hegemônico como ainda olhamos as questões da sexuali-


dade nos traz a necessidade de complexificar as discussões a propósito da
desconstrução das estruturas de biopoder, fundadas em um modelo moral

267
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

heteronormativo e, a necessidade de construir novas redes de produção de


saber fundadas na alteridade e no respeito aos direitos humanos.
Tendo como contexto as inovações legislativas sobre a sexualidade,
enquanto dispositivos e técnicas de regulamentação a nível populacional, per-
cebemos que o Brasil, apesar do aparente progressismo formal, figura um re-
trocesso material que protagoniza técnicas de governamentalidade fundadas
em argumentos racistas que justificam o exercício de biopoder que oprime e
assujeita grupos a partir de tecnologias normalizadoras.
Atualmente, temos a necessidade de discutir e pensar a sexualidade
para além do modelo heteronormativo e da “racionalidade sexual moderna”
e para além dos fins instrumentais de governamentabilidade, inclusive dos fins
jurídicos, ou seja, também para fins da política, da ética de si e da liberdade.
A combinação bastante complexa entre técnicas de individualização e proces-
sos totalizadores perceptíveis tanto a nível do corpo, quanto populacional nos
apresenta um panorama cheio de novidades e que traz consigo múltiplas ques-
tões.
O acesso às novas tecnologias reprodutivas por casais formados por
pessoas do mesmo sexo que une homens e mulheres homo e bissexuais; as
demandas pelo acesso à adequação dos corpos às identidades de gênero e as
demandas por adequação da identidade jurídica (mudança de prenome) e pela
possibilidade de uso e reconhecimento do nome social em serviços de saúde
e escolas, entre outros, são exemplos de demandas que tem ganhado destaque
no que concerne as discussões a respeito da sexualidade.
Podemos ainda citar, a nível macro, as lutas dos movimentos LGBTs
pelo reconhecimento e o respeito de suas identidades, na sociedade e no in-
terior do movimento; o reconhecimento da união civil; da adoção; da luta
contra a discriminação e a violência; a luta pelo respeito à laicidade do Estado,
a garantia das diferenças para afirmação de uma igualdade substancial, etc.
As múltiplas relações entre o sujeito e o poder são capazes de produ-
zir diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura. Para
se desassujeitar é necessário mudar a relação de evidência com relação a si
próprio, é necessário tentar se desprender das identidades redutoras, confron-
tar as técnicas de governamentabilidade, os regimes de verdade, ressignificar
as técnicas de si e conseguir se inscrever em uma lógica autônoma de assujei-
tamento para forjar um futuro crítico.

268
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Pensar o futuro da sexualidade e sua relação com o direito significa


pensar também os lugares da sexualidade fora do direito a fim de permitir aos
sujeitos de se constituírem criticamente, produzindo as suas próprias verda-
des, superando as clivagens necessárias para instituir o controle e regulação.
O desenvolvimento das “técnicas de si” e da construção de um sujeito ético
inclui, portanto, a habilidade de fazer coexistir subjetividades, sensibilidades,
lutas políticas e ocupação dos lugares de saber e de poder visando o questio-
namento de si e da própria noção de governamentabilidade.
As técnicas de si, como cruzamento de uma diferença possível, per-
passam a invenção de formas de ser que ultrapassem as categorizações pré-
vias. Enquanto técnicas de subjetivação, as técnicas de si possuem também
uma inscrição no tempo, no espaço e na cultura, não sendo estanques e po-
dendo ser sempre reinventadas e repensadas.
Criticar as formas de veredicção e as maneiras de produzir a verdade
é também um caminho que se apresenta para propor outras técnicas de go-
vernamentabilidade fundadas na compreensão de um sujeito ético, o que para
nós seria irrealizável sem considerar a perspectiva dos direitos humanos. É
possível intervir de diversas maneiras nos processos de subjetivação das pes-
soas em culturas diferentes, e é também possível de se produzir, dentro de
uma mesma cultura, uma técnica que se afaste da lógica mercadológica, raci-
onal, objetivante e neoliberal.
Permitir o desassujeitamento dos sujeitos constitui ainda uma outra
maneira de subjetivação estabelecida caso a caso. Sentimos hoje a necessidade
de refletir e questionar as práticas no domínio jurídico e político, em particular
essas ligadas à regulamentação (inclusive legislativa) da sexualidade e à supe-
restimação da racionalidade sexual moderna, das práticas racistas excludentes,
que favorecem as clivagens em detrimento da compreensão e ampliação das
percepções das individualidades.
A proposta de repensar a sexualidade a partir de um novo marco
(dentro e fora do direito) aparece como uma sugestão de ocupar os espaços
privados, individuais e subjetivos e também os espaços públicos, de discussão
política, os espaços de poder, os espaços de decisão e de produção do saber.
Temos a consciência que essa ocupação não será pacífica, sendo a própria
sexualidade um conceito em disputa. Ainda precisamos falar muito de sexua-
lidade para que mudemos o seu paradigma de compreensão, ou até mesmo

269
Ana Míria Carinhanha & Gabriel Martire

para que um dia não precisemos nos pautar nessa ideia para orientar nossas
condutas e agenciar os nossos corpos e nossas vidas.
Essas discussões possuem um custo simbólico, subjetivo, político e
social. As insuficiências da ideologia neoliberal do Estado em gerir as discus-
sões sobre a sexualidade dentro de suas propostas regulamentares foram de-
terminantes no processo que resultou em uma sociedade onde o sentimento
de anomia e “inadequação” estão fortemente presentes na construção das
subjetividades. É preciso olhar o sujeito, portanto, a partir de lentes constru-
tivistas. As relações de poder e saber mobilizadas na fabricação dos sujeitos
são também construídas paulatinamente.
É preciso reinventar-se também enquanto população. Ter uma cons-
ciência crítica da existência das relações de poder, da disciplina, dos regimes
de verdade, dos biopoderes e da governamentabilidade, é o que Foucault nos
propõe, e para isso precisamos ser inventivos e buscar possibilidades de in-
tervenção e de ressignificação criando novas redes e estruturas que nos per-
mitam reinventar maneiras de resistir e interferir na razão governamental vi-
sando a construção de sujeitos éticos.
A promoção de debates, de ações, de formações educacionais volta-
das para o respeito e a percepção das diferenças, a ocupação dos lugares pú-
blicos e de tomadas de decisão, a criação de redes de solidariedade, a promo-
ção de estratégias de sensibilização, a organização dos movimentos sociais em
busca do fortalecimento das pautas comuns, a luta pela positivação de direi-
tos, inclusive, são estratégias que nos permitem pensar a superação das cliva-
gens racistas e a criação de uma nova racionalidade que oriente as discussões
sobre sexualidade.
Repensar as estruturas institucionais para além das construções mo-
rais e insistir no pensamento laico e crítico é uma tarefa árdua que carece de
resistência no âmbito particular-privado e coletivo-público. A resistência e a
ocupação se faz, portanto, contra o assujeitamento, a partir dos cuidados de
si, pela organização dos movimentos sociais em prol da resistência e da ocu-
pação dos espaços de disputa de poder e pela luta por reformas estruturais de
educação e saúde pública, por exemplo.
É preciso ocupar os espaços de produção de saber, ideológica e ma-
terialmente, e expor as questões da sexualidade a fim de torná-las algo mais
palatável e discutível dentro das instituições (família, escola, igreja, Estado,
entre outras) e só assim sair do caráter de negação e de moralidade. É preciso

270
Qual o futuro da sexualidade no direito?

repensar os currículos das escolas e universidades, tendo os estudos de gênero


como ação imprescindível para a consecução de um projeto democrático de
Estado. Para superar a “racionalidade sexual moderna”, portanto, são ações
políticas necessárias, como falar de feminismo, de regulamentação da prosti-
tuição, de aborto, de racismo, de masculinidades e de outros saberes que gi-
ram em torno das questões da sexualidade e dos direitos humanos.

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273
274
11
TEORIA E PRÁTICA NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:
UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

Arííni Guimarães Bomfim1


Beatriz Hiromi da Silva Akutsu2

E m agosto de 2016, a Lei nº 11.340/06, conhecida como


Lei Maria da Penha (LMP), completou dez anos. Sua exis-
tência legal marca para o Estado e para a política brasileira
a publicidade da violência contra a mulher como problema social. A forma de
compreender os espaços público e privado modificou-se, e, assim, percebeu-
se que as violências e desigualdades que ocorrem no âmbito privado têm con-
sequências para o mundo público. Essa ressignificação da violência, fruto da
militância organizada de mulheres, provocou a necessidade de repensar práti-
cas de enfrentamento, além de expor o problema de tal forma a reconhecer
outras complexidades sobre essa temática.
Embora o enfrentamento da violência contra a mulher tenha se in-
tensificado nos últimos anos, principalmente após o advento da Lei nº

1 Mestranda em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF. Pesquisadora do Grupo de Pes-

quisa Sexualidade, Direito e Democracia.


2 Mestranda em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF. Pesquisadora do Grupo de Pes-

quisa Sexualidade, Direito e Democracia.

275
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

11.340/06, diversas pesquisas demonstram a persistência do problema na so-


ciedade (WAISELFISZ, 2015, 11; CNJ, 2013, 18; CAMPOS, 2015, 230). O
presente capítulo tem como tema as discussões teóricas e práticas sobre essa
questão, desde que ela ganhou relevo no debate público até a atualidade.
Para isso, inicialmente, considera-se importante resgatar a discussão
sobre as disputas pelo reconhecimento estatal da violência contra a mulher
como um problema de ordem pública, pois este foi o fundamento inicial de
publicização dessa questão e da percepção estrutural da desigualdade de poder
entre os gêneros, compreendida nas formas de dominação. Em seguida, com
a finalidade de pluralizar os debates sobre o tema, foram apresentadas algu-
mas das principais contribuições da teoria relacional sobre a violência contra
a mulher.
Em um segundo momento, passada uma década do marco regulató-
rio legal, importa analisar como as relações de violência vêm sendo compre-
endidas na prática, mais especificamente, pelo Poder Judiciário, destinatário
principal de efetivação da Lei. Para isso, foram selecionadas e analisadas algu-
mas jurisprudências que tiveram maior repercussão sobre a temática.
Por fim, buscou-se refletir sobre o lugar da teoria relacional nas prá-
ticas do Judiciário, mais especificamente, pretendeu-se pensar sobre quais fa-
tores são relevantes para a compreensão relacional da violência contra a mu-
lher e quais são suas possibilidades de construir e repensar práticas de enfren-
tamento. As formulações deste capítulo são provocações para expandir e pen-
sar o futuro das discussões sobre violência contra a mulher no Direito.

Da mulher vítima à mulher cúmplice:


discussões teóricas sobre o tema

No cenário jurídico e político brasileiro, o marco das discussões so-


bre violência contra a mulher é a Lei nº 11.340/06. O complexo contexto de
afirmação da Lei protetiva, via imposição internacional por violação de direi-
tos humanos ao Estado Brasileiro, reflete as dificuldades encontradas, à época
e até hoje, de enfrentar o debate sobre o tema.
Para além da possível discussão sobre eficácia e/ou efetividade dos
elementos normativos presentes no texto legal, após seus dez anos de vigên-
cia, interessa discutir, inicialmente, um dos elementos centrais que fora tra-
zido pelo feminismo para se pensar o gênero: a estrutura do espaço privado

276
Qual o futuro da sexualidade no direito?

influencia a do âmbito público e vice-versa, assim, as duas esferas não podem


ser pensadas separadamente, uma vez que estão intimamente relacionadas.
Durante muito tempo, os espaços público e privado foram tratados
como se fossem esferas separadas e independentes entre si. Baseando-se em
visões de mundo androcêntricas - que dão uma falsa aparência de naturalidade
às diferenças construídas socialmente entre os corpos-, o mundo foi dividido
entre dois polos opostos sexualizados e hierarquizados. Segundo Olsen, fe-
minista americana crítica do pensamento liberal clássico, essa separação fez
com que o feminino fosse identificado com o privado, o irracional, o passivo,
o inferior; ao passo que o masculino foi identificado com o público, o racio-
nal, o ativo, o superior (1990, 1).
De acordo com Carole Pateman, conhecida como uma das principais
feministas críticas da democracia liberal, a separação entre as duas esferas
sempre foi uma questão criticada pelos movimentos feministas, ainda que de
forma diversa, a depender do tempo e da fase do movimento (PATEMAN,
2013, 55; BIROLI, 2014, 34).
Para Pateman, embora o liberalismo e o patriarcalismo tenham, apa-
rentemente, concepções diferentes sobre os indivíduos - uma vez que o pri-
meiro compreende todos como livres e iguais, e o segundo pretende justificar
a desigualdade entre os gêneros, a partir das diferenças socialmente construí-
das entre homens e mulheres -, as duas doutrinas acabaram por estabelecer
um ponto em comum sobre quem seria livre e igual: os homens (2013, 57-
58).
O problema é que os liberais, segundo Pateman, consideravam que
as desigualdades do âmbito privado - derivadas do poder do homem sobre a
mulher - não tinham qualquer influência nas questões relativas à esfera pú-
blica, tais como igualdade política e sufrágio universal, e, por essa razão, as
duas esferas, para eles, deviam ser tratadas separadamente (2013, 56).
Para Biroli, especialista brasileira nas áreas de gênero e democracia e
uma das autoras do livro Feminismo e Política - que procurou fornecer um pa-
norama da teoria política feminista -, a separação das duas esferas acabou por
ser "uma forma de isolar a política das relações de poder na vida cotidiana,
negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho
e das relações familiares" (2014, 31).
O âmbito privado, ao mesmo tempo que foi o espaço de proteção da
privacidade e da intimidade - considerados como valores fundamentais por

277
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

algumas correntes feministas -, foi utilizado como ferramenta para a "manu-


tenção da dominação masculina" (BIROLI, 2014, 32-41), já que esse espaço
era tratado como independente da esfera pública e como o lugar da mulher,
que acabava por ficar isolada. Por essa razão, não é de se estranhar que a
esfera privada tenha se configurado, até hoje, como campo fértil para práticas
de diversos tipos de violências contra as mulheres.
A constituição de um marco legal traduz, portanto, parte do anseio
de superação do limitado espaço de discussão e de enfrentamento da violência
contra a mulher. A intensificação da discussão como problema de ordem pú-
blica permitiu compreender a violência como expressão da desigualdade de
poder construída socialmente entre os gêneros. A descrição desse processo
revela-se importante na medida em que fornece informações para uma me-
lhor compreensão da dinâmica das relações e para se pensar caminhos alter-
nativos para a redução da violência.
No Brasil, até a década de 1970, em virtude da separação entre as
duas esferas, a violência contra a mulher era considerada como um assunto
de âmbito privado, no qual terceiros e nem o Estado deveriam intervir. A
partir dessa década, devido ao processo de abertura política do Brasil, diversas
questões femininas, como o enfrentamento da violência contra a mulher, ga-
nharam relevo no debate público (SARTI, 2004, 39). Nota-se, assim, que esse
momento pode ser caracterizado como uma fase de transição de dispositivos
- do repressivo para o permissivo -, uma vez que foi a partir dessa década que
questões como o enfrentamento da violência contra a mulher ganharam per-
missão para serem discutidas no espaço público.
Acompanhando esse movimento, na década de 1980, surgiram as pri-
meiras teorias sobre violência contra a mulher. Como até então não era co-
mum discutir essa temática, tais teorias tiveram por finalidade primeira dar
visibilidade aos casos e identificar o perfil das queixas. Por essa razão, inicial-
mente, o binômio mulher vítima/homem agressor era muito utilizado e
pouco problematizado.
De acordo com a classificação proposta por Izumino e Santos, nos
anos de 1980, havia duas principais correntes que analisavam o tema: a domi-
nação masculina e a dominação patriarcal (2005, 2).
As pesquisas que se propõem a explicar como se deu - e ainda se dá
- o processo de construção da desigualdade são diversas e diferem entre si.
Uma das obras de maior referência na temática é A Dominação Masculina, de

278
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Pierre Bourdieu, sociólogo francês. Neste livro, o autor procurou demonstrar


que homens e mulheres incorporam de forma inconsciente as estruturas his-
tóricas da ordem masculina, e, por essa razão, compreendem o mundo em
dois polos opostos e hierarquizados (BOURDIEU, 2002, 12-17).
A corrente da dominação masculina, no Brasil, tem como expoente
a filósofa Marilena Chauí. Assim como Bourdieu, Chauí defende a ideia de
que a violência contra a mulher é o resultado de uma ideologia de dominação,
que primeiro naturaliza construções históricas e sociais sobre os corpos mas-
culino e feminino, e, posteriormente, faz com que essa naturalização seja in-
teriorizada, e, assim, a violência passa a ser entendida como não-violência.
Para Chauí, pelo fato dessa ideologia não ser só reproduzida por homens, mas
também por mulheres, faz com que essas últimas sejam consideradas cúmpli-
ces da violência (1985, 38-47).
Supondo que seja essa a realidade das mulheres, de que forma podem
elas ser consideradas cúmplices da violência e, ao mesmo tempo, desprovidas
de liberdade? Se, em virtude da ideologia de dominação masculina, a mulher,
por nascer mulher, e, portanto, não ter liberdade de escolha, já nasce com
uma posição imposta, como pode ela ser considerada cúmplice dessa imposi-
ção?
Crítica parecida foi realizada pela socióloga Heleieth I. B. Saffioti, que
introduziu no Brasil a perspectiva feminista marxista do patriarcado:

Se as mulheres sempre se opuseram à ordem patriarcal de gênero; se o caráter


primordial do gênero molda subjetividades; se o gênero se situa aquém da cons-
ciência; se as mulheres desfrutam de parcelas irrisórias de poder face às detidas
pelos homens; se as mulheres são portadoras de uma consciência de dominadas;
torna-se difícil, se não impossível, pensar estas criaturas como cúmplices de seus
agressores (2001, 10).

Segundo Saffioti, considerar a mulher como ser passivo e, ao mesmo


tempo, como cúmplice do agressor é algo bastante ambíguo. Na concepção
da autora, tratar a mulher nessa perspectiva é o mesmo que responsabilizá-la
pelas agressões, culpabilizá-la pela dominação-exploração a que está subme-
tida e tomá-la incapaz de agir (2001, 11).
Saffioti critica a perspectiva essencialista que vitimiza a mulher, uma
vez que esse entendimento não deixa espaço para que as relações de poder
sejam ressignificadas (SAFFIOTI, 2001, 10). Assim, a autora defende a ideia

279
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

de que, em alguns momentos, a mulher possui liberdade para resistir


(SAFFIOTI, 2001, 6), e que, em outras situações, não possui essa liberdade,
uma vez que se submete a violência não porque quer, mas porque é forçada
a ceder (SAFFIOTI, 2004, 128).
Para Saffioti, a violência contra a mulher está intimamente relacio-
nada com o capitalismo e com o patriarcalismo, uma vez que o primeiro se
apropria de valores do segundo - que naturalizam construções sociais sobre o
feminino e o masculino, colocando sempre a mulher em uma condição de
inferioridade em relação ao homem - para justificar a sua marginalização no
sistema de produção.
Gayle Rubin, antropóloga americana, em seu artigo intitulado O trá-
fico de Mulheres, contesta esse tipo de perspectiva, como a proposta por Saffioti,
pois considera insuficiente explicar as origens da opressão da mulher medi-
ante a análise da sua utilidade para o capitalismo, uma vez que a opressão
feminina, por exemplo, ocorre em sociedades nas quais o sistema capitalista
não está presente. Para ela, o capitalismo apenas "retomou e pôs em circula-
ção conceitos de masculino e de feminino que o antecedem de muitos sécu-
los" (RUBIN, 1993, 7; 8).
As diversas conceituações sobre dominação pautadas na diferença de
gênero partem do pressuposto da existência de uma estrutura que perpassa o
âmbito público das relações sociais. No entanto, tais teorias encontram difi-
culdades de compreender as particularidades envolvidas nos casos de violên-
cia contra a mulher.
De um modo geral, as pesquisas da década de 1980 que visaram ana-
lisar a violência contra a mulher no Brasil refletem as mudanças sociais e po-
líticas da época, que foram impulsionadas pelos movimentos feministas e pelo
processo de redemocratização, e assumem uma perspectiva binária e fixa em
relação às partes da relação. Tais estudos, com o objetivo de dar visibilidade
às denúncias das mulheres, procuraram identificar o perfil das queixas: quais
eram os crimes mais cometidos, quem eram os autores da violência e quem
eram as mulheres em situação de violência. Por essa razão, é que, nesse mo-
mento, a ideia de vitimização da mulher foi pouco problematizada
(IZUMINO; SANTOS, 2005, 1-5).
O problema de compreender as partes das relações violentas de
acordo com o binômio mulher vítima/homem agressor é universalizar as re-
lações como se todas elas fossem essencialmente iguais e como se os sujeitos

280
Qual o futuro da sexualidade no direito?

ocupassem, a todo o momento, a mesma posição. Ademais, conceber a mu-


lher como vítima retira dela qualquer poder de transformação, além de refor-
çar estereótipos de gênero.
Assim, como forma de problematizar concepções que acabam por
universalizar as relações e essencializar as partes, surgiu, na década de 1990,
uma outra corrente, a teoria relacional, que tem como uma de suas principais
representantes a antropóloga e especialista nos estudos de gênero, Maria Fi-
lomena Gregori.
Em Cenas e Queixas, Gregori analisou doze entrevistas de mulheres
que, na época, estavam em situação de violência conjugal e que visitavam o
SOS-Mulher em busca de apoio (1993, 11-137). A partir dessas análises, foi
possível perceber que as posições dos sujeitos não são fixas nem universais,
mas que o “ser homem” e o “ser mulher” são construídos e negociados em
cada relação:

na situação familiar, cruzam-se concepções sobre sexualidade, sobre educa-


ção, sobre convivência, sobre dignidade de cada um. Exercer um papel é agir em
função de várias dessas concepções, é combiná-las mesmo quando são conflitivas.
As combinações são as mais variadas […] (GREGORI, 1993a, 138-139).

Para Gregori, é importante que as ambiguidades e tensões que per-


meiam as relações sejam observadas:

Estabelecendo um limite muito demarcado entre doméstico/público e ho-


mem/mulher, esses autores perdem algo que considero importante nesse tipo de
análise: apreender as ambiguidades e tensões nas relações entre os papéis de gê-
nero. A incorporação dessa perspectiva permite entender que os padrões distintos
de comportamento instituídos para homens e mulheres são atualizados em rela-
ções interpessoais, ou melhor, entram em uma operação combinatória particular
em cada relação de violência considerada (1993, 146).

Com relação à posição ocupada pela mulher, Gregori também en-


tende que ela, por vezes, pode ocupar a posição de vítima e de cúmplice. No
entanto, essas possibilidades estão intimamente relacionadas com a sua auto-
nomia. Para Gregori, estar na posição de vítima não significa, necessaria-
mente, ser passiva, significa também ser ativa, uma vez que é a própria mulher
que "ajuda a criar aquele lugar no qual o prazer, a proteção ou o amparo se

281
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

realizam desde que se ponha como vítima", é ela que "coopera na sua produ-
ção como não-sujeito". Dessa forma, a autora caracteriza essa situação como
"buraco negro", uma vez que a mulher não é somente produzida, mas tam-
bém se produz (GREGORI, 1993, 184).
A cumplicidade feminina descrita por Gregori em muito se difere da
ideia desenvolvida por Chauí. Para a autora, é possível perceber a existência
da cumplicidade nos depoimentos das mulheres, pois elas constroem suas
narrativas da seguinte forma: de um lado, relatam o mau comportamento de
seus parceiros, as agressões sofridas, e, de outro, ressaltam a perfeição de suas
condutas. Assim, para Gregori, além das consequências esperadas da queixa,
há, por parte da mulher, "a fruição, o desejo de enlaçar o outro e se auto-
aprisionar em um modelo em que nada exige de si mesmo, pois é no outro
que continuará a residir o dever de proteção, do amparo e da benevolência"
(GREGORI, 1993, 191). Para Gregori, ser cúmplice não significa reproduzir
a ideologia de dominação, como quer fazer crer Chauí, mas se enlaçar ao ou-
tro, de forma que através da culpabilização de um, as qualidades do outro
possam ser ressaltadas.
Assim como Gregori, Wânia Pasinato Izumino e Cecília MacDowell
Santos, brasileiras, sociólogas e especialistas nos estudos de violência contra
a mulher, também apontam as insuficiências da concepção universalizante das
relações, que vitimiza a mulher, ao invés de tratá-la como sujeito:

[...] entendemos que a noção de dominação patriarcal é insuficiente para dar


conta das mudanças que vêm ocorrendo nos diferentes papéis que as mulheres
em situação de violência vêm assumindo. Defendemos uma abordagem da vio-
lência contra as mulheres como uma relação de poder, entendendo-se o poder
não de forma absoluta e estática, exercido via de regra pelo homem sobre a mu-
lher, como quer-nos fazer crer a abordagem da dominação patriarcal, senão de
forma dinâmica e relacional, exercido tanto por homens como por mulheres,
ainda que de forma desigual. (IZUMINO; SANTOS, 2005, 14).

Assim, ao considerar o homem e a mulher como sujeitos autônomos


de uma relação, para uma melhor compreensão do fenômeno da violência, é
importante considerar as construções da feminilidade e da masculinidade que
é realizada por ambos:

Por exemplo, precisamos compreender melhor não apenas o papel das mu-
lheres nas relações de violência, como também o papel exercido pelos homens, já

282
Qual o futuro da sexualidade no direito?

que ambos participam na produção dos papéis sociais que legitimam a violência.
Nesse sentido, é importante que se estude como a construção social tanto da fe-
minilidade quanto da masculinidade está conectada com o fenômeno da violência
(IZUMINO; SANTOS, 2005, 15).

Levar em consideração os arranjos sociais desempenhados por ho-


mens e mulheres é, também, ter em vista o fato de que o gênero relaciona-se
com outras categorias, como raça/etnia, geração, capacidade e sexualidade,
fazendo com que as mulheres se configurem como sujeitos complexos e plu-
rais (CAMPOS, 2011, 5), Segundo Connell, cientista social australiana e uma
das principais pesquisadoras sobre os estudos das masculinidades, tanto a
masculinidade quanto a feminilidade "são processos de configuração da prá-
tica através do tempo" (1997, 6) e "o gênero interatua com raça, classe, naci-
onalidade e posição na ordem mundial" (1997, 10), estando, portanto, em
constante (des)construção.
Dessa forma, observa-se a importância de discutir esse tema sob a
perspectiva relacional. De acordo com essa ótica, tanto o homem quanto a
mulher, enquanto sujeitos complexos e plurais constituintes da relação, de-
vem ser levados em consideração para a compreensão da violência, uma vez
que os seus arranjos sociais são construídos, de acordo com Bourdieu, de
forma complementar, ou seja, a construção de um é realizada a partir da dife-
renciação do outro e vice-versa (2002, 33).
Todo esse arcabouço teórico reflete a complexidade envolvida na
compreensão do fenômeno da violência, que também pode ser observada na
prática judiciária, que, ao longo do tempo, sofreu algumas transformações na
sua forma de lidar com o tema. Até o ano de 2006, por exemplo, as violências
cometidas com mais frequência contra a mulher eram tuteladas pela Lei
9.099/95, e, portanto, eram tratadas como crimes de menor potencial ofen-
sivo. As críticas dirigidas a essa Lei foram diversas e acabaram contribuindo
para a criação de uma Lei específica, em 2006. Após o advento da LMP, o
Judiciário foi compelido a defender a sua política de reconhecimento na ação
de constitucionalidade (ADC 19), que argumentava lesão ao princípio da
igualdade.
Nota-se que o Poder Judiciário, assim como as teorias que analisam
a temática, tem modificado suas concepções sobre violência contra a mulher
de acordo com as demandas que lhes são solicitadas a participação. Dessa
forma, a análise de decisões jurisprudenciais que tiveram grande repercussão

283
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

sobre o tema constitui-se, também, como um importante campo de discussão


sobre o modo de compreensão da violência. Por essa razão, o tópico que se
segue será dedicado a observar se na prática do Judiciário há elementos para
pensar a teoria relacional.

A produção dos sujeitos na prática judiciária

Nesse tópico, foram selecionadas algumas das principais jurisprudên-


cias de ampla repercussão, uma vez que serviram de fundamento para outras
decisões em diversos juízos, inclusive em grau superior; bem como, para de-
cisões veiculadas pelos próprios tribunais como sendo "inovadoras", por atri-
buírem sentido diverso do entendimento majoritário.
Como a proposta não tem por objetivo a avaliação do comporta-
mento do Poder Judiciário ou uma análise complexa sobre seu perfil, a seleção
das jurisprudências foi realizada de acordo com alguns critérios: decisões ju-
diciais de maior notoriedade; decisões cunhadas nas mais altas instâncias que
se formatam como precedentes jurisprudenciais; decisões que divergem do
entendimento majoritário.
Em resumo, como o Judiciário é um poder que exercita um discurso
que permeia a academia e a vida social e que se modifica mediante a interação
com diversas forças sociais, os argumentos apresentados para pensar a vio-
lência doméstica e/ou familiar contra a mulher nos casos postos em análise
podem ser discutidos a partir das contribuições teóricas abordadas.
Em decisão proferida pela 5ª Câmara Criminal, o Tribunal de Justiça
de Minas, ao julgar a competência do Juizado de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher sobre o conflito entre duas mulheres, informa o se-
guinte:

O tratamento diferenciado que existe - e isto é fato - na Lei 11340/06 entre


homens e mulheres não é revelador de uma faceta discriminatória de determinada
política pública, mas pelo contrário: revela conhecimento de que a violência tem
diversidade de manifestações e, em algumas de suas formas, é subproduto de uma
concepção cultural em que a submissão da mulher ao homem é um valor histó-
rico, moral ou religioso – a origem é múltipla. Esta violência é geradora de uma
situação de desigualdade material entre homem e mulher, determinando, assim,
uma especial atenção do legislador na busca da sua prevenção. Não se pode, desta
forma, igualar situações que, ainda que unidas pela característica da violência,

284
Qual o futuro da sexualidade no direito?

apresentam diversidade de valor. É dizer: o marido que espanca a esposa não


comete a mesma violência da esposa que agride o marido. Não se trata de situa-
ções idênticas, a não ser que os olhos do intérprete estejam cerrados para o con-
ceito de violência de gênero e a forma como os valores sociais são consolidados
ao longo dos tempos. (TJ-MG - CJ: 10000130891930000 MG, Relator: Alexandre
Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 08/04/2014, Câmaras Criminais / 5ª
CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 14/04/2014)

Nota-se que, nesse caso, o critério utilizado pelo juiz para justificar a
proteção da parte pela Lei não é a violência, mas sim a desigualdade de poder
socialmente construída entre homens e mulheres, que faz com que a mulher
esteja em uma situação de maior vulnerabilidade, e, portanto, deva ser ampa-
rada por uma Lei específica. Dessa forma, por não verificar essa assimetria de
forças no caso posto em análise, não foi reconhecida a proteção da Lei.
Uma das jurisprudências consolidadas, constante no acórdão acima
mencionado, e muito utilizada de forma geral, é a decisão do STJ de 2008
sobre a situação de um casal de namorados heterossexuais que teriam prati-
cado agressões físicas e mútuas:

Sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida lei é a mulher. Su-


jeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracteri-
zado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade. (CC n.
88.027/MG, Relator Ministro OG FERNANDES, DJ de 18/12/2008)

Nesta parte da decisão, fica ainda mais clara a necessidade do julgador


de definir e singularizar os sujeitos passíveis de configurarem uma relação de
violência doméstica e/ou familiar. Além disso, como se verá a seguir, para o
juiz, o fato dos ataques físicos terem sido proferidos por ambas as partes des-
configurou a hipossuficiência e vulnerabilidade da mulher, requisitos indis-
pensáveis para a prática da violência do homem contra a mulher ser enqua-
drada na Lei nº 11.340/06. Por essa razão, o juiz decidiu pelo indeferimento
da aplicação da Lei especial:

Entretanto, resta dimensionar que tipo de situação desencadeou a situação de


violência. Ambas as partes afirmam e concordam (fls. 2 e 6) que a agressão teve
origem por motivo de ciúmes da namorada com relação à descoberta de uma
ligação feita pelo namorado por meio de seu celular. Depreende-se dos autos que
as agressões foram mútuas e o que as motivou não foi um caso de opressão à

285
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

mulher, que é o fundamento da aplicação da Lei Maria da Penha. Não fica evi-
denciado, no caso, que as agressões ocorreram por causa da condição de
fragilidade e hipossuficiência da mulher em relação ao seu namorado. (…)
A análise do caso mostra que o delito supostamente praticado não encerra moti-
vação de gênero, tendo havido mútuas agressões entre dois namorados (grifou-
se). (CC n. 88.027/MG, Relator Ministro OG FERNANDES, DJ de
18/12/2008)

Nota-se, mais uma vez, que o reconhecimento de uma disparidade


de poder entre o homem e a mulher é apontado como requisito indispensável
para a configuração da violência. No caso em questão, para o ministro, o fato
das agressões terem sido mútuas afasta a opressão da mulher e os elementos
da relação são usados para desconfigurar aquilo que é subentendido como
violência doméstica. Ao que parece, nessa situação, a desigualdade estrutural
construída socialmente entre homens e mulheres e que perpassa todas as re-
lações de gênero é desconsiderada, uma vez que a análise de elementos espe-
cíficos da relação parece ter sido realizada de forma independente do contexto
no qual ela está inserida.
A discussão sobre hipossuficiência e vulnerabilidade na caracteriza-
ção da violência doméstica e/ou familiar foi amplamente reverberada na de-
cisão monocrática proferida no caso envolvendo artistas conhecidos nacio-
nalmente. Ainda que a denúncia tenha sido feita, considerada válida e o laudo
médico apontando a existência de agressão tenha sido ratificado, o Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, nos embargos infringentes n.º 0376432-
04.2008.8.19.0001, entendeu que não era o caso de aplicar a lei 11.340/06:

O campo de atuação e aplicação da respectiva lei está traçado pelo binômio


hipossuficiência e vulnerabilidade em que se apresenta culturalmente o gênero
mulher no conceito familiar, que inclui relações diversas, movidas por afetividade
ou afinidade. No entanto, uma simples análise dos personagens do processo, ou
mesmo da notoriedade de suas figuras públicas, já que ambos são atores renoma-
dos, nos leva a concluir que a indicada vítima, além de não conviver em relação
de afetividade estável como o réu ora embargante, não pode ser considerada
uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade (grifou-
se).(TJ-RJ - EI: 03764320420088190001 RJ 0376432-04.2008.8.19.0001, Relator:
DES. MARCIA PERRINI BODART, Data de Julgamento:
02/10/2012, SÉTIMA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação:
14/08/2013 08:55)

286
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Da mesma forma que a decisão anterior, nota-se, aqui, que para que
a mulher seja protegida pela Lei, deverá ela ser classificada como hipossufici-
ente ou vulnerável. Mais uma vez, parece que o juiz desconsiderou elementos
estruturais da sociedade para a compreensão da dinâmica de poder na relação
em questão. A interpretação da posição ocupada pelas partes, conforme ex-
presso pelo magistrado, na verdade, modifica apenas a caracterização da mu-
lher no conflito.
No seguimento desse processo foi ofertado o recurso especial nº
1.416.580 ao STJ, cuja relatoria da Ministra Laurita Vaz modificou a decisão
para reconhecer a existência de violência doméstica e a aplicação da Lei espe-
cial protetiva, pelos seguintes motivos:

A situação de vulnerabilidade e fragilidade da mulher, envolvida em relacio-


namento íntimo de afeto, nas circunstâncias descritas pela lei de regência, se revela
ipso facto. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar a
necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a despropor-
cionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria lei. Vale
ressaltar que, em nenhum momento, o legislador condicionou esse tratamento
diferenciado à demonstração dessa presunção, que, aliás, é ínsita à condição da
mulher na sociedade hodierna. (STJ - REsp: 1416580 RJ 2013/0370910-1, Rela-
tor: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 01/04/2014, T5 - QUINTA
TURMA, Data de Publicação: DJe 15/04/2014)

Ainda que contraditórias nos seus resultados, as decisões expressam


visões essencializadas sobre a mulher e a construção da violência. Parece, aqui,
não ser possível sofrer violência, nos moldes da Lei nº 11.340/06, sem ser
hipossuficiente ou vulnerável se o sujeito for mulher.
Nessa decisão, consta uma discussão sobre outro critério envolvido
no reconhecimento da violência doméstica e/ou familiar, que é o caráter afe-
tivo da relação. A lei estabelece, a priori, no artigo 5º, inciso III, alguns ele-
mentos para a caracterização do conflito afetivo, que são: “em qualquer rela-
ção íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação.” No caso anteriormente menci-
onado, a relatora traz uma decisão que reverbera como importante na juris-
prudência majoritária:

O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; por-


tanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o

287
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência do-


méstica (CC 96.532/MG, Rel. Ministra JANE SILVA – Desembargadora Con-
vocada do TJMG, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe
19/12/2008)

Ainda que a construção do conflito ocorra usando os artigos defini-


dos no sentido binário namorado-agressor/namorada-agredida, o argumento
parece recorrer a uma construção mais casuística para a configuração da vio-
lência doméstica. Pensar que a violência pode ocorrer dentro e fora de um
relacionamento parece ser um indício importante para dar seguimento a no-
ções mais relacionais da violência contra a mulher.
Em 2013, o STJ, no habeas corpus nº 250.435 - RJ (2012/0161493-0),
entendeu que a violência perpetrada por duas mulheres, responsáveis legais,
contra uma criança do sexo feminino de apenas quatro anos, configurava vi-
olência doméstica pela presença da vulnerabilidade:

Na presente hipótese, observa-se que a violência contra a mulher teria ocor-


rido dentro do âmbito doméstico e familiar, pois as Pacientes - tia e prima da
vítima – foram acusadas de agredir a menor de quatro anos de quem detinham a
guarda por decisão judicial, causando-lhe as lesões descritas pela denúncia. Ou-
trossim, o Tribunal de origem, com o grau de discricionariedade próprio à espécie
constatou estar preenchido o requisito de motivação de gênero, sendo impossível,
à luz dos fatos narrados, infirmar-se essa ilação. Lembre-se que há precedentes
desta corte superior que se amoldam à hipótese. Com efeito, a Terceira Seção
deste Superior Tribunal entende que o legislador, ao editar a Lei Maria da Penha,
teve em conta a mulher numa perspectiva de gênero, mas também ressalta as con-
dições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica em relações patri-
arcais, o que se encaixa à grave conduta delituosa ora tratada. (STJ - HC: 250435
RJ 2012/0161493-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento:
19/09/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/09/2013)

Com relação à possibilidade de homens serem considerados sujeitos


passivos do conflito e consequentemente receberem a tutela da legislação es-
pecial, em decisão monocrática e de urgência, uma juíza de primeiro grau do
estado do Mato Grosso, no processo nº 6670-72.2014.811, decidiu de acordo
com a vulnerabilidade da vítima na relação afetiva pela aplicação da Lei
11.340/06, mesmo sem ter sido esse o fundamento do pedido de tutela:

288
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Não obstante o diploma legal em comento atina expressamente a violência


doméstica e familiar contra a mulher, entendo, no lastro da mais atualizada dou-
trina a respeito da matéria, que é possível sim conceder medida protetiva de
urgência prevista de forma expressa na Lei n. 11.340/06 a qualquer pessoa
que esteja vulnerável em razão de espécie de violência doméstica e fami-
liar. Aludido permissivo se pauta, de igual modo, no poder geral de cautela do
magistrado, de forma a salvaguardar o ofendido de possíveis investidas delituosas
por parte do outrora companheiro (grifou-se). (Medida Protetiva. Processo nº
6670-72.2014.811. Vara Criminal. Comarca de Primavera do Leste. 20/07/2014).

As decisões trazidas aqui tentam abordar diversas situações e dife-


rentes entendimentos sobre as configurações da violência doméstica e/ou fa-
miliar. Alguns critérios são importantes de serem percebidos nessa plurali-
dade. Uma ponderação que se propõe é a discussão sobre a vulnerabilidade e
hipossuficiência na configuração da violência abarcada pela Lei nº 11.340/06.
Esses critérios parecem recortados por outros argumentos, como classe e ge-
ração, no caso da artista famosa e da criança de quatro anos. De igual monta
a possibilidade reativa do sujeito agredido também se coloca como argumento
verificador da existência de opressão, e, portanto, de violência.
É interessante perceber, nas decisões judiciais, que ainda que sejam
diversas as suas formas de avaliar se a vulnerabilidade e/ou a hipossuficiência
estão presentes em uma relação, parece que há algo comum nessas avaliações.
Em muitas das decisões, observa-se que foram utilizados apenas os fatos
constantes nos casos concretos para decidir se há ou não tais requisitos nas
relações como um todo, desconsiderando o contexto mais amplo no qual elas
estão inseridas. No caso que envolveu agressões mútuas, por exemplo, o fato
de a mulher também ter agredido o homem parece ter sido suficiente para o
juiz concluir que essa relação não estava permeada pelos requisitos exigidos
pela Lei. Em outras palavras, parece não haver uma compreensão das relações
como complexas e plurais, bem como uma ausência de uma análise macro.
Retomando o caso utilizado como exemplo, algumas perguntas podem ser
colocadas: o fato da mulher ter agredido o homem fixa sua posição como não
vítima, e, talvez, como agressora? Esse mesmo fato é suficiente para transfor-
mar a estrutura da sociedade, marcada por uma desigualdade de poder social-
mente construída entre os gêneros, e suas consequências na vida das mulhe-
res?

289
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

Reconhecer que a estrutura da sociedade ainda é desigual e que, por


essa razão, justifica-se a proteção específica da mulher não significa compre-
ender homens e mulheres em posições universais, essencializadas e imutáveis.
É completamente possível que, dentro dessa estrutura, haja negociações e fle-
xibilidade nas posições que são (des)ocupadas pelos sujeitos. Isso significa
dizer, por exemplo, que a mulher, por vezes, pode agredir e, ainda assim, no
contexto geral, estar em posição de desvantagem de poder em relação ao ho-
mem.
A existência de tais elementos, ao mesmo tempo contraditórios en-
tre si e válidos, e que, ainda assim, não provocaram qualquer alteração legis-
lativa, contribui para a compreensão dos fatores que são considerados essen-
ciais, nas práticas judiciárias, para a caracterização da violência doméstica
e/ou familiar. Visualiza-se, a priori, que os argumentos que atravessam os ca-
sos, mesmo que diversos, parecem formatá-los em um padrão universal, ainda
que não se valore negativa ou positivamente as escolhas judiciais.
As diferentes situações de violência podem apontar, também, para
algumas mudanças nas concepções de gênero ou de uma perspectiva da sexu-
alidade. No entanto, observa-se que a compreensão das relações e das violên-
cias ainda é configurada através de um mecanismo binário de matriz heteros-
sexual. Essa limitação parece advir da dificuldade de compreensão das rela-
ções violentas em uma perspectiva relacional pela racionalidade judiciária.
Não se trata de uma disfunção entre teoria e prática, mas de uma dificuldade
ontológica de constituição de tais espaços a partir de matrizes tão diversas.
Isso não pressupõe que haja uma retração das possibilidades práticas
da teoria relacional. A concepção do instituto judicial verticalizado e substi-
tuto de vítimas não parece compatível com a perspectiva crítica da teoria re-
lacional. Logo, novas construções práticas podem reconstruir a perspectiva
prática da teoria relacional.
Há, atualmente, algumas iniciativas que parecem dialogar com ele-
mentos da teoria relacional, tais como os grupos reflexivos para homens au-
tores de violência. A existência de tais grupos está prevista no artigo 35, inciso
V da Lei 11.340/06, que permite pensar de forma múltipla os centros de edu-
cação e reabilitação dos homens autores de violência. Partindo do diálogo
entre elementos da teoria relacional, das perspectivas da justiça restaurativa e
da responsabilização ativa, pressupõe-se que o homem autor de violência não

290
Qual o futuro da sexualidade no direito?

formata uma identidade imutável e que, portanto, é necessário resgatar os ou-


tros arranjos e relações estabelecidas entre os sujeitos:

É importante frisar que não questionamos as diversas situações que envolvem


opressões de gênero que conduzem a subalternização das mulheres, mas, sobre-
tudo, apontamos para a necessidade de complexificar o modo como observamos
estas relações e, ao mesmo tempo, não sermos neutralizados por respostas/cami-
nhos preconcebidos que inviabilizam o entendimento mais aprofundado das re-
lações e destes contextos de violências (LEITE & LOPES, 2013, 25-26).

Os grupos reflexivos ainda são iniciativas incipientes e pouco fomen-


tadas, mas parecem conter elementos que dialogam com a perspectiva relaci-
onal da violência, uma vez que o seu próprio pressuposto de existência con-
siste na relativização da posição do homem enquanto agressor. Isso não quer
dizer que tais grupos tenham a finalidade de afastar a eventual responsabili-
dade do homem em uma situação de violência, o que ocorre é que esse reco-
nhecimento parece não cristalizar a sua identidade como agressor, uma vez
que as suas ações são pensadas como formas de transformação e superação
da produção e reprodução de práticas violentas contra mulheres.

Considerações Finais

Pensar a violência contra a mulher requer conhecer as desigualdades


de poder na sociedade e nas relações. A primeira ruptura é, portanto, resgatar
o aspecto público das violências produzidas no espaço privado. As críticas
feministas que vêm denunciar a separação entre o público e o privado, como
forma de manutenção do poder dos homens sobre as mulheres, ressignificam
a produção de uma esfera territorial de poder público, realocando a discussão
sobre as opressões às mulheres.
A percepção sobre o não espaço da mulher nas esferas de poder de-
cisório político e coletivo desmascara as desigualdades estruturais das relações
de poder estabelecidas entre os gêneros. Os acúmulos de resistência dos pen-
samentos feministas conduzem, a partir daí, ao adensamento na complexi-
dade dos elementos envolvendo violência nas relações interpessoais.
O reconhecimento da dominação estrutural sobre a mulher permitiu
solidificar a discussão sobre as violências no âmbito da política pública. A

291
Ariíni Bomfim & Beatriz Akutsu

partir desse pressuposto, os avanços teóricos preocupam-se em pensar as re-


lações de violência através de uma concepção dos sujeitos não essencializa-
dos. O paradigma relacional é um avanço crítico na possibilidade de discutir
uma outra forma de pensar as relações permeadas por violências. Isso não
quer dizer que, sob a ótica dessa perspectiva, esteja culpabilizando a mulher,
mas tornando a produção da violência uma ocorrência dinâmica e que, por-
tanto, modifica-se.
A violência contra a mulher presente nas relações afetivas e/ou se-
xuais corporifica-se nas pessoas, sendo, em parte, a reprodução do nível es-
trutural enquanto forma de dominação, e como fruto da desigualdade de po-
der nas relações. A análise das decisões judiciais, aparentemente contraditórias
e baseadas no mesmo estatuto legal, pode apontar para uma dificuldade de
absorver a complexidade envolvida nos casos de violência.
Ao que parece, as novas demandas por reconhecimento que desafiam
a norma heterossexual binária acabam por influenciar, ainda que lentamente
e de diversas formas, os modos de compreensão das relações de violência na
prática judiciária. Assim, observa-se que, em algumas situações, vão sendo
realizadas interpretações extensivas da Lei, como na situação de violência en-
tre dois homens homossexuais que mantêm uma relação de namoro, ou como
no caso de violência praticada pelas tutoras contra a criança do sexo feminino.
No entanto, parece que a perspectiva binária e essencializada utilizada
como requisito para a caracterização da violência prevista na Lei ainda não foi
superada na prática. Vulnerabilidade e hipossuficiência ainda são utilizadas
como elementos indispensáveis para caracterizar, de forma cristalizada, qual-
quer pessoa que queira a proteção da Lei. Parece que esse caráter de fixidez
ignora o fato de que, embora haja relação, há diferença entre as estruturas
macro e micro da sociedade. Esse tipo de compreensão parece ignorar a pos-
sibilidade de interpretar as relações sociais em termos mais complexos e di-
nâmicos. Em outras palavras, essa concepção parece ignorar a possibilidade
de coexistir padrões gerais de gênero com práticas específicas de gêneros que,
embora por eles influenciadas, são (des)construídas, (re)negociadas, (re)pro-
duzidas a cada relação.
Visualizar as problemáticas da violência produzidas por e através das
relações díspares de poder estabelecidos pela sexualidade dos envolvidos, pa-
rece ser um caminho alternativo para a produção crítica de uma outra socia-
bilidade, além de poder se configurar como um possível instrumento para

292
Qual o futuro da sexualidade no direito?

uma nova leitura das potencialidades e dificuldades das leis protetivas, como
a Lei 11.340/06.
A dificuldade de encontrar no Judiciário elementos que dialogam
com a teoria relacional apresenta-se como na ordem da estrutura fundante de
tais elementos. A castração da voz da vítima, a busca pela singularidade do
ato ilícito são configurações típicas do processo penal, que engessam o olhar
crítico da teoria relacional. Tal crítica não importa na ausência de uma cons-
tituição prática da teoria relacional, apenas que, considerando o campo teó-
rico, ela pode ser melhor pensada em outros campos discursivos e práticos.
Os grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica parecem
dialogar, pelo seu próprio pressuposto de existência, com a teoria relacional.
Eles existem de formas plurais desde 2008, interagindo com o Poder Judiciá-
rio e fora dele (LOPES, LEITE, 2013).
O que aqui se propõe, como provocação final, a partir da análise das
teorias e das práticas judiciais que tratam do tema, é discutir outras formas de
pensar as relações, que além de problematizarem a perspectiva que cristaliza
a posição das partes, também sejam mais abrangentes e menos excludentes
possíveis. No entanto, uma das preocupações centrais dessa outra forma de
compreensão é não retirar, nem diminuir, a importância de se discutir as de-
sigualdades de poder historicamente construídas entre homens e mulheres.
Nota-se, com isso, a percepção de mais uma camada de complexidade das
dinâmicas de poder que envolvem a sexualidade e a produção das violências.

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vembro de 2016.

295
296
12
O tratamento da identidade transexual
e travesti pelo Sistema Penitenciário
no Rio de Janeiro

Roberta Olivato Canheo1

“Se eu fosse julgada, eles estariam reconhecendo que legal-


mente meus documentos de homem não valem, já que estariam
me lendo socialmente como mulher, e que seria condenada en-
tão por ultraje público ao pudor. Ao mesmo tempo, caso fosse
absolvida, eles estariam reconhecendo legalmente que homens
e mulheres não são iguais perante a lei. [...] Fui rejeitada até pela
polícia.”2

H istoricamente, o Sistema Penitenciário sempre foi mar-


cado pela lógica do binarismo sexual e de gênero e pela
heteronormatividade. Isso se vislumbra pela existência
de prisões femininas e masculinas, ou pela separação das pessoas encarceradas
em alas femininas e alas masculinas, no caso das unidades prisionais mistas.
Nesse contexto, indivíduos que escapam às “normalidades” impostas por esse
engendramento apresentam-se como um desafio ao ordenamento jurídico, e

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Fe-

deral Fluminense (PPGSD/UFF)


2 Indianara Siqueira, em entrevista concedida ao blog “O Dia”. Disponível em

http://blogs.odia.ig.com.br/lgbt/2016/01/29/indianara-icone-da-militancia-trans-desafia-
regras-da-sociedade-e-transforma-vidas

297
Roberta Olivato Canheo

em especial ao Sistema Penitenciário. Como lidar com pessoas que transgri-


dem a binariedade sexual e de gênero em um ambiente essencialmente exclu-
dente como o cárcere?
Pensando então acerca da complexidade das relações sociais que se
constroem na prisão quando do ingresso da população LGBT3, e em especial
da população transexual e travesti, considerando os aspectos que as tornam
vulneráveis no Sistema Penitenciário, visando enfatizar, outrossim, suas cons-
truções de gênero e autodeterminação, alguns questionamentos são levanta-
dos: como é feita internamente a organização das travestis e transexuais pri-
vadas de liberdade no Rio de Janeiro? Como suas demandas sociais e requisi-
ções por acesso a direitos são recebidas? Como os atores institucionais perce-
bem a identidade de gênero no contexto das prisões, masculina e feminina?
Existem normativas que reconheçam a possibilidade de autodeterminação e
uso do nome social no momento do ingresso das travestis e transexuais no
Sistema Penitenciário?
E mais, pensando a questão central deste livro: “Qual o futuro da
sexualidade no Direito?”, qual seria o futuro da questão transexual quando
pensada a partir do Sistema Penitenciário no Rio de Janeiro e problematizada
com a preocupação de se saber esse futuro?
Impulsionado por tais indagações, este capítulo objetiva primeira-
mente resgatar o conceito de transexualidade, traçar a sua datação de recepção
pelo Direito, a qual é iniciada pelas questões de personalidade do Direito Civil,
para então apontar como, quando e por quê o Sistema Penitenciário passa
também a integrar o conceito em sua nomenclatura.
Assim, em um segundo momento, buscar-se-á fazer um inventário
legislativo do que diz respeito à questão transexual no Direito brasileiro e
apontar quando ela passa a ser objeto da política sexual, colocando-se como
o ponto final deste levantamento as resoluções referentes ao estado do Rio
de Janeiro, local elegido como campo da presente pesquisa. Para compor esta

3 Importante esclarecer que há um debate acerca do uso da sigla LGBT (Lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais), que se coloca, por exemplo, no caso do uso da sigla
LGBTTI, incluindo as pessoas intersexuais, ou ainda no caso da sigla LGBTQI, englobando
a perspectiva dos estudos Queer. Não se pretende neste trabalho apontar qual seria a melhor
sigla, defender sua inexistência, ou excluir da apreciação identidades que não se sintam con-
templadas pela abreviatura. A opção aqui de se adotar a sigla LGBT se justifica apenas pelo
fato de ser a sigla empregada nas Resoluções, leis e demais normativas que analisaremos no
decorrer do texto.

298
Qual o futuro da sexualidade no direito?

análise, as narrativas de alguns dos atores institucionais envolvidos no pro-


cesso de produção destas resoluções serão trazidas, levantadas a partir de en-
trevistas semiestruturadas, transcritas, realizadas pelo método qualitativo.
Por fim, para que se tente responder à pergunta de qual seria o futuro
da questão transexual pensada a partir do Sistema Penitenciário, refletiremos
sobre dois conceitos e como o Estado e a instituição carcerária com eles lida-
riam, considerando sua propensão à fixação dos indivíduos às suas máquinas:
o de passabilidade, quando uma pessoa é lida pela sociedade sem que sua
dissidência ao gênero designado ao nascimento seja colocada em evidência; e
o de gênero fluido, correspondente à identidade de pessoas que possuem o
espectro de gêneros em constante mudança, não se restringindo ao gênero
masculino ou feminino apenas.

Resgate do conceito de transexualidade e


datação da recepção pelo Direito brasileiro

Antes de abordarmos o conceito de transexualidade na atualidade,


faz-se necessária uma discussão histórica acerca do dispositivo da sexualidade,
com o fim de demonstrar de que maneira ele passa a operar no caso da tran-
sexualidade. E neste sentido, Foucault tem sido central para as recentes dis-
cussões sobre o corpo e a sexualidade entre estudiosos do tema (e aqui não
seria diferente), mostrando que a história da sexualidade é em realidade a his-
tória dos discursos sobre ela. Ao longo do tópico, desenvolveremos, outros-
sim, conceitos-chave para que se possa travar um debate frutífero sobre como
os discursos médico jurídico e governamental vão se fundir e operar também
na fixação do conceito de transexualidade.
Em A História da Sexualidade: a vontade de saber, Foucault (1984) faz
uma genealogia da sexualidade. Para o autor, se a sexualidade tem início, lhe
parece que tem um fim, e assim, que não há futuro da sexualidade. Discorre
sobre a história dos corpos, dos sexos e dos desejos formatados por novas
formas discursivas e institucionais do século XIX, quais sejam os saberes mé-
dico, psiquiátrico, entre outros. A família conjugal, apta a reproduzir, encerra,
absorve e confina a sexualidade. Foucault mostra na obra um sexo colocado
em discurso à exaustão, e não um sexo reprimido e silenciado, colocando-se
além da hipótese repressiva. E esta sexualidade é a porta de entrada para o
controle dos corpos, produzindo “verdades” sobre o sexo.

299
Roberta Olivato Canheo

Já em Os Anormais, Foucault discute a questão hermafrodita no século


XVIII, sendo que cabia ao indivíduo optar por ser homem ou mulher, sendo
vedada a sodomia. É colocado em prática o projeto de normalização dos su-
jeitos, em que se buscava uma essência universal comum a todos e às leis da
natureza, a fim de que se evitasse o surgimento de “anormais” (FOUCAULT,
2001).
O esquadrinhamento dos corpos para que se estabelecesse a fronteira
entre normalidade e patologia, e a classificação das práticas sexuais entre nor-
mais e anormais culminou na nominação dos sujeitos, e na fundição dos dis-
cursos médico, jurídico e governamental (FOUCAULT, 1984, 29).
Em Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita4, Foucault (1982) conta
a história de Herculine Barbin, uma pessoa intersexo nascida em 1838, e seu
caso é emblemático para ilustrar a técnica do exame. Registrada como mulher
ao nascer, foi submetida a exames durante a adolescência e forçada a mudar
seu nome e seu sexo no registro. O livro é estruturado basicamente a partir
do texto autobiográfico de Herculine, escrito em 1868.
A obra ainda apresenta outros textos sobre o caso, como pareceres
médicos e jurídicos. Quando descoberta a “anormalidade” de Herculine, ela
foi submetida a uma série de exames médicos pelos saberes da época, respal-
dados por um aparato jurídico e pela Igreja. Através dos exames minuciosos
e do dossiê completo de seu corpo, que descreviam em detalhes sua anatomia,
incluindo seus órgãos genitais, foi decidido que a jovem deveria assumir a
identidade masculina, sendo que tal processo de objetivação-subjetivação, ao
qual não se adaptou, descambou, por fim, em seu suicídio.

4 De acordo com Nádia Perez Pino (2007, p. 153-155): “É muito comum à associação do

intersex com o hermafrodita, pessoa que possui os dois sexos. Segundo Mauro Cabral, ati-
vista intersex e pesquisador da temática, essa associação presente em nosso imaginário cul-
tural é oriunda das artes e da mitologia, mas não condiz com a realidade do corpo intersex,
sendo que o conceito chave para entender a intersexualidade é a variedade, já que o corpo
intersex não encerra um corpo único, mas um conjunto amplo de corporalidades possíveis
[...] A genitália ambígua ou indefinida é uma das ocorrências mais frequentes. No entanto,
há casos em que as pessoas nascem com órgãos genitais identificáveis com um sexo, mas
estes não são representativos daquilo que é considerado ideal [...] Há outros casos de pessoas
que nascem com todas as características hormonais, genéticas, do sexo, por exemplo, uma
mulher com cromossomos XX, com útero, ovários, mas sem vagina. Ou nos casos em que
as pessoas nascem com mosaicos genéticos como XXY. Os significados atribuídos a essa
variação dependem não só das maneiras como o corpo intersex é visto pelas diferentes ins-
tâncias discursivas, mas também das concepções aceitas sobre o que deve ser o ‘corpo nor-
mal’”.

300
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Percebe-se então que um conjunto de fatores forçaram a escolha so-


bre a identidade de Herculine, insistindo-se na necessidade de um “verdadeiro
sexo”, sob quaisquer consequências. E dentre estes fatores, podemos destacar
a “nova preocupação entre doutores, advogados e outros especialistas com a
classificação e a fixação de diferentes características e tipos sexuais” (WEEKS,
2010). Por possuir certas marcas de um corpo considerado masculino, como
um pequeno pênis, Herculine, “ela”, deveria se tornar "ele".
À definição do indivíduo, que demanda pelas "verdadeiras" caracte-
rísticas femininas ou masculinas, soma-se a nova preocupação em estabelecer,
nos discursos médico, jurídico e político o que seria "normal" ou "anormal".
Definindo-se o que é anormal (no caso alguém lido como mulher anterior-
mente, mas com evidências físicas de masculinidade), torna-se possível a ten-
tativa de se definir o que é “verdadeiramente normal (uma plena correspon-
dência entre o corpo e a identidade de gênero socialmente aceitável) ”
(WEEKS, 2010). Com isso, Foucault nos ensina que este processo resulta de
uma nova configuração de poder, que objetiva a classificação de uma pessoa
de acordo com a definição de sua “verdadeira” identidade, que expresse inte-
gralmente a verdade do corpo.
As análises de Foucault sobre o dispositivo da sexualidade estão es-
treitamente ligadas à análise feita pelo autor “do desenvolvimento daquilo que
ele vê como a ‘sociedade disciplinar’, que é característica das formas modernas
de regulação social — uma sociedade de vigilância e controle que ele descreve
no seu livro Vigiar Punir”. (WEEKS, 2000). Por isso, fundamental a interlo-
cução destas obras com o estudo que aqui se faz, o qual intersecciona a ques-
tão prisional com a questão identitária de gênero, colocando em foco a disci-
plina, que atinge seu grau máximo dentro das instituições prisionais e ao
mesmo tempo é empregada mais intensamente aos corpos que escapam a uma
inteligibilidade considerada possível.
Há, entre os séculos XVI e XIX, uma vasta literatura sobre herma-
froditas trazendo descrições detalhadas dos exames dos corpos, dos órgãos e
de suas funções. Foucault percebe, todavia, um deslocamento no tratamento
dos hermafroditas entre os séculos XVIII e XIX, que deixam de ser percebi-
dos como monstros para serem encarados como casos médicos, casos de
anormalidades anatômicas (FOUCAULT, 2001, 93). A necessidade de reinte-
gração do sexo “verdadeiro” é produzida neste contexto de surgimento do

301
Roberta Olivato Canheo

dispositivo da sexualidade, sendo que o corpo generificado (ou seja, conce-


bido a partir do sistema corpo-sexo-gênero, em uma equação limitada ao bi-
narismo macho ou fêmea) já aparece como exigência, e a duabilidade como
intolerável, partindo-se do princípio de que alguma “lei” da natureza teria sido
transgredida.
Prosseguindo, neste modelo que passa a vigorar a partir do século
XVIII, em que só se admite a existência de dois sexos com um gênero cor-
respondendo a cada um, o hermafroditismo passa a ser uma condição impos-
sível, e não tão somente o incômodo de um ser humano intermediário. Assim,
a ordem social moderna passa a reclamar uma distinção clara, busca encontrar
o “verdadeiro” sexo, as “verdadeiras” masculinidades e feminilidades. E é
neste mesmo período que a medicina começa a desacreditar o “hermafrodita”
e substituí-lo pelo “intersexual”, o “homossexual” e suas variações diversas
começam a surgir.
As categorias “pseudo-hermafrodita”, “hermafrodita psíquico” e a
pessoa “travesti” aparecem também neste período, “em que a sociedade dis-
ciplinar desenvolve a necessidade e as tecnologias para ‘identificar’, sejam vas-
tas populações ou indivíduos específicos, criando as ‘identidades’ étnicas, na-
cionais, sexuais e culturais”. (LEITE JUNIOR, 132).
Para Jann Matlock (2002), a sexualidade é dispositivo ideológico para
limitar poderes dos corpos. Retomando a pergunta feita em Herculine Bar-
bine: “Temos a necessidade de um verdadeiro sexo?”, argumenta pela sua
desnecessidade. Assiste-se, segundo ela, ao fim das categorias que dão os sen-
tidos da sexualidade. Em “E se a sexualidade não tivesse futuro”, Jan Matlock
defende a acepção do conceito da sexualidade na atualidade como “identidade
ou forma de moldar o eu na ‘experiência da carne’” (MATLOCK, 2002).
Laqueur, segundo a autora, afirma que o modelo de dois sexos su-
planta o modelo de sexo unívoco, entendendo a sexualidade como forma de
produção de identidade. Foi então no interior do dispositivo da sexualidade
que se passou a operar o sistema sexo-corpo-gênero, já mencionado anterior-
mente, conferindo um destino biológico específico para dois corpos distintos:
homem e mulher, dois gêneros e o desejo a eles correspondentes.
(LAQUEUR, 1990 apud MATLOCK, 2002, 18).
Com o dispositivo da sexualidade operando o sistema sexo-corpo-
gênero, através da limitada equação do dimorfismo sexual, isto é, dois sexos
e dois gêneros, foram produzidos os novos sujeitos que passaram a habitar os

302
Qual o futuro da sexualidade no direito?

espaços sombrios e marginais dos séculos XIX e XX. (FOUCAULT, 1984,


47).
Segundo Laqueur, graças às mudanças epistemológicas e políticas
ocorridas desde o século XVIII, associadas a um incremento tecnológico, a
interpretação sobre o corpo humano muda do modelo de um sexo com dois
gêneros hierarquizados para o de dois sexos com dois gêneros opostos. Desta
forma, o discurso privilegiado, mas não único, sobre os “verdadeiros” homem
ou mulher e as questões relativas aos limites entre o masculino e feminino
encontram-se nas mãos da ciência, em especial da medicina em suas muitas
especialidades (LAQUEUR, 1990 apud MATLOCK, 2002, 18).
Em suma, até o final do Antigo Regime5, os saberes das ciências mé-
dicas e biológicas eram os mais legitimados para explicar a questão da sexua-
lidade, já que o desejo sexual era encarado sob a forma de um instinto natural
(CARRARA, 2015). Segundo Weeks (2000), temas relacionados aos corpos e
ao comportamento sexual passam a ganhar, em finais do século XIX, sua
própria disciplina, a sexologia, que contava como base a psicologia, a biologia
e a antropologia, além da história e da sociologia. E os termos do debate sobre
comportamento sexual foram muito por este fator influenciados. Em fins do
século XIX e começo do século XX, a função de instituição significadora da
sexualidade é passada ao Estado, o qual recepciona o discurso da medicina.

5 Entende-se por Antigo Regime o sistema social e político estabelecido originalmente

na França, caracterizado por um regime centralizado e absolutista, em que o poder se con-


centrava nas mãos do soberano. Atribui-se também ao conceito o modo de vida caracterís-
tico das populações europeias entre os séculos XVI e XVIII, até às revoluções liberais. Não
obstante, estamos cientes que não há unanimidade acadêmica em torno dos limites temporais
e das características de tal contexto. Neste sentido, cf. Lopes (2003, p. 129-130): “Como o
termo 'absolutismo', que define um sistema político típico da Europa Moderna, a expressão
Antigo Regime também é fonte de complicações. É preciso lembrar que os dois conceitos
não foram contemporâneos aos objetos que exprimem. Nesse sentido, são construções ide-
ológicas elaboradas por alguns teóricos do Liberalismo e da Revolução Francesa. [...]. Dessa
forma, este rótulo, que define a sociedade francesa da forma como se encontrava organizada
no período anterior a 1789, é uma designação posterior ao fenômeno histórico que ilustra.
Em verdade, Ancien Regime designa bem mais a 'organização' da mais perfeita desordem
que exprime o verdadeiro cipoal de particularismos que caracterizou a França nos séculos
XVI, XVII e XVIII [...]Então, foi a partir da emergência de novas sociedades europeias com
valores diferentes e até opostos e inconciliáveis com as instituições e a cultura da França
Moderna é que, com o devido distanciamento no tempo, se começou a falar em Absolutismo
e em Antigo Regime. Estes conceitos, até a afirmação definitiva do liberalismo no século
XIX, quase sempre foram usados com um conteúdo negativo, programático, para acentuar
os defeitos do passado e exaltar as virtudes das sociedades burguesas.”. Para uma discussão
mais elaborada acerca do Antigo Regime, consultar Antonio Manuel Hespanha, em especial
a obra “Às vésperas do Leviathan” (HESPANHA, 1994).

303
Roberta Olivato Canheo

Apesar do diálogo inicial entre militantes e cientistas, durante a primeira me-


tade do século XX a balança pesou mais para a patologização e malignidade
social das ditas “perversões”. O diálogo se manteve, mas tornou-se, sem dú-
vida, desigual (LEITE JUNIOR, 2011, 192).
O foco da pesquisa científica mudou gradualmente, deixando de bus-
car uma base “natural” e “normal” destas sexualidades, para a prevenção da
“anormalidade”, voltando-se a discutir a aceitação social de sujeitos “desvian-
tes sexuais” e a sua não patologização apenas a partir do final dos anos 60
deste século (LEITE JUNIOR, 2011, 119). Assim, na década de 60, há uma
virada paradigmática, e a instituição de uma nova política sexual, com a con-
sideração de outros marcadores comportamentais.
Destarte, com a revolução sexual, temos um ponto de inflexão, de
passagem do repressivo característico da sociedade vitoriana6, marcada pelos
padrões de domesticidade e subordinação familiar e feminina, para o permis-
sivo (ADELMAN, 2002), reconfigurando-se o público e privado. E com isso
a ascensão de um novo dispositivo anatomopolítico7: permissão ou libertação,
para autodefinição.
E hoje o dispositivo da sexualidade, conforme concebido por Fou-
cault e caraterizado preponderantemente pela fundição do discurso médico,
jurídico e governamental, passa por um processo de transformação no Oci-
dente, sendo que a sexualidade passa a ser lida como fator identitário, de auto
realização de si, verificando-se uma crescente especificação identitária de su-
jeitos políticos e de direitos.
O dispositivo da sexualidade, que é um configurador de sentidos de
subjetividades assume, portanto, uma nova significação, de autodetermina-
ção. Esta nova significação vai ditar os rumos do debate sobre o conceito de
transexualidade na contemporaneidade, que vem sendo afirmado cada vez
mais neste sentido de autodeterminação, como demonstraremos ao longo do
trabalho.

6 A Era Vitoriana compreende um contexto histórico da Inglaterra durante grande parte

do século XIX (1837-1901), no qual as relações não só entre o regime político e o domínio
privado, mas entre os próprios particulares em suas interrelações eram marcadas por forte
censura e restrições morais contra padrões tidos por “desviantes”. Para uma discussão mais
aprofundada sobre a vigilância cotidiana a que eram submetidas as mulheres, em uma estreita
relação com a medicina, ver Groneman (1994).
7 O dispositivo anatomopolítico é aquele representado, na concepção foucaultiana, por

tecnologias de exercício de poder que tem o corpo como objeto e a normalização como fim.

304
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Apresentando agora os casos emblemáticos da cronologia desta dis-


cussão, temos em 1953, Harry Benjamin, que escreve o “fenômeno transe-
xual" e cria o Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association. Harry
Benjamin realiza a tarefa de enumerar as características que acredita definido-
ras da pessoa transexual, e que então se tornariam o padrão científico para o
reconhecimento do “verdadeiro” transexual (LEITE JUNIOR, 2011, 147).
Dentre elas,

a insistência em se considerar uma “mulher em corpo de homem” (ou uma


“alma feminina em corpo masculino”), o repúdio e ódio aos próprios genitais e a
urgente necessidade de alterar seu corpo, adequando-o ao sexo que considera ser
o correto; e, finalmente, uma profunda angústia ou infelicidade quanto à sua con-
dição. este discurso ajuda a formatar o “tipo ideal” de transexual. (LEITE
JUNIOR, 2011, 147).

Um elemento de extrema importância em “O fenômeno transexual”,


é a denominada escala de orientação sexual,

baseada na escala Kinsey, que lista categorias ou tipos (não necessariamente


estágios), englobando desde ideias ocasionais em se vestir com roupas do sexo
oposto até a intenção declarada por mudar de sexo, independentemente de a pes-
soa ser homo, hétero ou bissexual. Mais uma vez, seguindo a tradição de classificar
e organizar os “monstros” ou “anormais”, Benjamin separa estas pessoas em no-
vos grupos e tipos, mas diferentes de seu artigo anterior. No grupo 1 encontram-
se as pessoas que Harry Benjamin classifica como travestis. O tipo 1 é quem veste-
se como o gênero oposto apenas ocasionalmente; o 2 é quem faz isso principal-
mente para obter gratificação erótica, e o tipo 3, o “verdadeiro”, é alguém que
possui esta tendência desde criança, desejando viver e se comportar como o outro
gênero, mas sem desejar a cirurgia, o uso de hormônios ou outras alterações cor-
porais permanentes. Muitas vezes, neste tipo, a transexualidade está latente. Nesta
classificação, voltamos à íntima relação entre sexo, verdade e suas categorias.
(LEITE JUNIOR, 2011, 146).

Na década de 50 John Money (psicólogo) atesta a distribuição binária


como verdade, derivando-se daqui “o conceito de ‘identidade sexual’, já que
uma produção identitária baseada no ‘sexo’ seria resultado de um processo de
aprendizado, como um esquema de socialização dos papéis de gênero”. Após
a constatação, em 1953, do fenômeno transexual e o entendimento do con-

305
Roberta Olivato Canheo

ceito de gênero “como desempenho de papéis culturais relacionados à ‘iden-


tidade sexual’ socializada e apreendida de maneira comportamental”, o termo
“identidade de gênero” foi afirmado pela primeira vez pelo psiquiatra e psi-
canalista Robert Stoller em 1964 (ROVARIS, 2016, 85), para quem o “tran-
sexualismo” não se fundaria na indiferença sexual, mas em uma pulsão da
diferença sexual (MATLOCK, 2002). Segundo Stoller, “identidade de gê-
nero” seria

a mescla de masculinidade e feminilidade em um indivíduo, significando que


tanto a masculinidade quanto a feminilidade são encontradas em todas as pessoas,
mas em formas e graus diferentes. Isso não é igual à qualidade de ser homem ou
mulher, que tem conotação com a biologia; a identidade de gênero encerra um
comportamento psicologicamente motivado. Embora a masculinidade combine
com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a qualidade de ser mulher,
sexo e gênero não estão, necessariamente, de maneira direta relacionados
(STOLLER, 1993, 28 apud LEITE JUNIOR, 2011).

Dessa maneira, como uma categoria distinta, a transexualidade co-


meça a ser criada nos anos 50 nos Estados Unidos, local de desenvolvimento
das pesquisas dos três principais estudiosos do assunto, Harry Benjamin, John
Money e Robert Stoller. Em 1966, a nova classificação psicopatológica ganha
destaque científico mundial com o lançamento do livro de Harry Benjamin
“O fenômeno transexual”.
No Brasil, por sua vez, pode-se afirmar que o surgimento da catego-
ria constante das discussões dos meios de comunicação em massas, mais pre-
cisamente a “temática de transição entre gêneros”, se dá a partir do “fenô-
meno Roberta Close. No ano de 1984, Roberta Close ganha o título de vedete
do Carnaval Carioca, e neste mesmo ano torna-se a capa da Revista Playboy
da edição de maio. A manchete da revista revelava: “A mulher mais bonita do
Brasil é um homem!” (JESUS, 2015, 58-59).
Uma discussão midiática sobre o status social de Roberta é iniciada.
A modelo era de classe média, nunca tinha se associado ao mundo da prosti-
tuição, ou da marginalidade, sendo que sua história era estampada nas princi-
pais colunas sociais, e não nos noticiários policiais. “Roberta encarnava per-
feitamente os valores morais e estéticos de beleza e feminilidade esperados de
uma ‘verdadeira’ mulher burguesa” (LEITE JUNIOR, 2011, 206), Roberta se
“passava” por mulher.

306
Qual o futuro da sexualidade no direito?

O conceito de transexualidade, como visto, é recente neste período,


de modo que não só era constantemente definido no texto, “em várias versões
e por vários autores, como o seu contraste maligno ainda estava generica-
mente relacionado ao ‘homossexual’”. Ainda o próprio início da organização
política e por direitos civis de travesti e transexual, a partir de fins dos anos
80 do século XX, trazia questões se associavam intimamente à problemática
das DSTs/ AIDS e a toda estigmatização presente neste processo” (LEITE
JUNIOR, 2011, 211).
Assim, conclui-se que a transexualidade para se firmar como entidade
própria, passa por um processo de diferenciação de outras categorias, especi-
almente da homossexualidade e da travestilidade. E em nosso país, esta dis-
tinção ganha especial ênfase “pelo fato de o termo ‘travesti’ estar associado
historicamente ao imaginário do desregramento sexual e ao universo da pros-
tituição”.
Ainda o próprio início da organização política e por direitos civis de
travesti e transexual, a partir de fins dos anos 80 do século XX, suas questões
se associavam intimamente à problemática das DSTs/ AIDS e a toda estig-
matização presente neste processo” (LEITE JUNIOR, 2011, 211-213).
Em nosso país, os encontros nacionais de travestis se iniciam na pri-
meira metade dos anos 90 e a categoria travesti é incorporada à sigla que re-
presenta o movimento LGBT a partir de 1995. “O início da organização de
transexuais se dá a partir da segunda metade dos anos 1990 e está relacionada
às lutas por acesso às cirurgias experimentais de transgenitalização, que são
aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina em 1997” (FACCHINI, 2016).
Concluindo, podemos entender as pessoas trans e travestis8, neste
contexto trabalhado, como sujeitos de uma nova normalização. E a categori-
zação como trans ou como travesti aponta para uma inversão, a da procura
pelo “verdadeiro transexual”. No entanto, essa “verdade”, por pressupor uma

8 Cf. Berenice Bento, tradicionalmente diferenciava-se transexualidade e travestilidade pela


realização (no primeiro caso) ou não realização (no segundo caso) da cirurgia de redesigna-
ção. Nos últimos anos, todavia, esta centralidade começou a ser questionada por pessoas
transexuais que reclamavam a mudança de gênero sem que esta estivesse condicionada à
cirurgia (BENTO, 2008, p.73). Por entendermos aqui que o processo de autodeterminação
identitária (que pode envolver entre outros fatores a origem daquele indivíduo, ou ainda a
identificação com pautas políticas daquele grupo identitário) é algo particular de cada qual,
partimos do pressuposto de que o indivíduo é o único habilitado a designar o seu gênero.
Assim, para nós, a diferenciação entre as categorias trans e travesti se apresenta tão somente
no nível da autodeterminação individual.

307
Roberta Olivato Canheo

identidade fixa, é necessariamente falsa. Não há uma verdade, o que existem


são práticas de identificação. E a sociedade contemporânea é herdeira desse
dispositivo, ao passo que se enxerga a historicidade e continuidade das práti-
cas jurídicas e médicas.

Inventário legislativo da transexualidade no Brasil

Como o tópico anterior deixa transparecer, o tratamento da identi-


dade transexual no Direito brasileiro é iniciado pelas questões de personali-
dade, reguladas pelo Direito Civil. Este tópico cumpre a função de mapear as
principais legislações que dizem respeito ao tema, incluindo-se, outrossim, ca-
sos emblemáticos para o ordenamento jurídico, visando ao fim demonstrar
de que maneira a transexualidade passa a ser objeto da política sexual direta-
mente relacionado ao Sistema Penitenciário no Brasil.
Por política sexual, que funciona como elemento de densificação do
dispositivo da sexualidade (ADELMAN, 2000), entendemos aqui o conceito
preconizado por Jeffrey Weeks, que segundo Carrara,

permite interpelar múltiplas dimensões da gestão do sexual e explorar a coe-


xistência de distintos e às vezes contraditórios estilos de regulação moral, conjun-
tos regulares de técnicas de produção de sujeitos, de pessoas dotadas de uma certa
concepção de si e de certa corporalidade. Trabalhar com esse conceito possibilita
abordar o próprio dispositivo da sexualidade, analisando suas fissuras, tensões e
historicidade (2015, 8).

Feito este adendo, partimos para a cronologia da legislação envol-


vendo a questão da transexualidade no Direito brasileiro. Fazemos a ressalva
desde já que temos a ciência de que política sexual não se resume à legislação
sexual. Todavia, consideramos importante a análise cronológica dessa legisla-
ção para a visualização de como os saberes médicos, jurídicos e governamen-
tais se fundem e implicam durante o lapso temporal analisado (a partir da
década de 70 até a atualidade) uma modificação na legislação civil, em um
primeiro momento, com os direitos de personalidade, para se chegar a mu-
danças percebidas na esfera do Sistema Penitenciário.

308
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Em 1975, no estado de São Paulo, uma mulher transexual realiza um


pedido judicial de alteração do seu registro civil, objetivando alterar nome e
declaração de sexo/gênero nos seus documentos. É a primeira vez no Brasil,
pelo que se pôde constatar, que um pedido de alteração de registro civil é
realizado sob o argumento do “transexualismo”.
O advogado da demandante fundamentou o pedido a partir do fato
de que a autora já havia “se tornado mulher”, vez que passara pela cirurgia de
redesignação genital em 1971, “realizada em uma clínica particular pelo Dou-
tor Roberto Farina, na capital paulista”. Não só a Justiça de São Paulo inde-
feriu o pedido de retificação do registro civil, como um processo penal contra
o médico Roberto Farina foi iniciado. (ROVARIS, 2016, 27).
Em 1979, tem-se o primeiro projeto de lei criado, introduzindo a te-
mática no campo legislativo brasileiro, o PL 1.909-A/1979 (MDB/SP), o qual
sugeriu que os médicos que efetivassem cirurgias de “transgenitalização” não
fossem incriminados. Em 1992, o PL 3.349/1992 de autoria de Antonio de
Jesus (PMDB/GO) prevê a alteração do texto da lei de registros públicos,
visando proibir expressamente a alteração do nome de pessoas transexuais no
Brasil. Esse Projeto de Lei está para apreciação na plenária da Câmara dos
Deputados. (ROVARIS, 2016, 76-77).
Em 1997, é publicada a Resolução 1.482/97, do Conselho Federal de
Medicina – CFM. Tal resolução passou a regulamentar, em território nacional,
o procedimento de redesignação genital voltado a mulheres trans, sendo ainda
de caráter experimental à época. Esta Resolução considerava o paciente tran-
sexual como portador de desvio permanente de identidade sexual, sendo a
etapa cirúrgica a mais importante do tratamento. Em 2002, uma nova resolu-
ção do CFM (1652/02) é lançada, estabelecendo novas diretrizes, mas sem
que se mudasse essencialmente o teor da Resolução antecedente.
Em 2006, a partir de uma convenção da Comissão Internacional de
Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos em Yogyakarta, na
Indonésia, são formulados os princípios sobre a aplicação da legislação inter-
nacional de Direitos Humanos relativos à orientação sexual e identidade de
gênero, publicados em 2007. O Brasil é signatário desta Convenção e repre-
sentado pela pesquisadora Sonia Corrêa, então presidente da Associação Bra-
sileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). O documento define identidade de
gênero da seguinte forma:

309
Roberta Olivato Canheo

Compreendemos identidade de gênero a profundamente sentida experiência


interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao
sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode en-
volver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios
médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vesti-
menta, modo de falar e maneirismos. (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007,
6).

Importa aqui lembrar que está em julgamento no Supremo Federal


desde o ano passado o Recurso Extraordinário nº 845.779/SC, com reper-
cussão geral, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, referente à pos-
sibilidade de uma mulher transexual feminina utilizar um banheiro feminino
público e de compensação por danos morais em caso de recusa. O parecer da
Procuradoria Geral da República9, enviado ao Supremo Tribunal Federal
(STF), defendeu a autodeterminação de gênero como um direito, manifes-
tando-se a favor da recorrente, impedida de utilizar o banheiro feminino de
um estabelecimento comercial. Para sustentar a manifestação, Rodrigo Janot
cita diversas vezes os Princípios de Yogykarta, além de se basear na declaração
Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Ci-
vis, da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Intera-
mericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.
Assim, tratados internacionais podem fundamentar decisões impor-
tantes no âmbito interno dos direitos de personalidade, abrindo precedentes
favoráveis para o avanço da legislação nacional no reconhecimento de direitos
à população travesti e transexual. E por este motivo e pela repercussão dos
Princípios de Yogykarta que incluímos aqui sua datação e o fato de o Brasil
lhe ser signatário.
Em 2010, a Resolução CFM nº. 1955/2010 do Conselho Federal de
Medicina passa a dispor sobre a cirurgia de transgenitalização, revogando a
Resolução n° 1652/02. Esta resolução permite a realização da cirurgia para
quem tenha sido acompanhado pelo prazo de dois anos por uma equipe mul-
tidisciplinar constituída, obrigatoriamente, por médico psiquiatra, cirurgião,
endocrinologista, psicólogo e assistente social, com o diagnóstico médico de
“transgenitalismo”.

9 Disponível em < file:///C:/Users/rober_000/Downloads/RE%20845779-


%20Versao%20Final.pdf>. Acesso em 10 set. 2016.

310
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Em 2013, Projeto de Lei 5.002/2013 de Jean Wylys (PSOL/RJ) e


Erika Kokay (PT/DF), “mais conhecido como Projeto de Lei João Nery, que
dispõe de medidas sobre a autoatribuição da identidade de gênero e o sigilo
da pessoa interessada, baseado na lei de identidade de gênero argentina, apro-
vada em 2012” (ROVARIS, 2016).Esse projeto de lei coloca um paradigma
importante, o reconhecimento da identidade de gênero pela autodetermina-
ção, desvinculando-se da ideia de patologização, da transexualidade como dis-
foria, e da necessidade de cirurgia de redesignação sexual para que seja con-
cedido o reconhecimento da identidade de gênero. Como colocaremos mais
à frente, este novo paradigma inclusive servirá de base para as formulações
das resoluções do estado do Rio de Janeiro, último ponto de análise desta
cronologia.
Após essa longa jornada, ainda em andamento, pelo reconhecimento
da identidade transexual e travesti no âmbito dos direitos de personalidade
principalmente, o Sistema Penitenciário passa a assimilar e estabelecer direitos
para essa população. Cumpre dizer que esses direitos não deixam de ser direi-
tos civis e humanos, e relacionados aos direitos de personalidade, mas aden-
tram agora à lógica do Sistema Penitenciário.
No âmbito Nacional, a primeira normativa localizada que diz respeito
ao Sistema Penitenciário é a Resolução Conjunta do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional de Combate à Dis-
criminação CNPCP/CNCD/LGBT n° 01 de 2014, que estabelece os parâ-
metros de acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil serviu
de base para a criação das resoluções estaduais, dentre elas, as do Rio de Ja-
neiro. A Defensora Pública responsável pelo Núcleo de Defesa da Diversi-
dade sexual e Direitos Homoafetivos - NUDIVERSIS, Lívia Miranda Casse-
res explica que

Esta resolução define o que são as identidades LGBTs, identifica esse público
dentro do cárcere, prevê o respeito ao nome social, prevê a possibilidade de um
espaço de vivência específico, ou seja, um alojamento específico para LGBTs,
prevê também o direito da mulher transexual e da mulher travesti serem encami-
nhadas para lugares prisionais femininos, prevê o uso de roupas femininas ou
masculinas, conforme o gênero, o direito à visita íntima, e o acesso integral à sa-
úde. E proíbe em seguida as discriminações fundadas na identidade de gênero ou
orientação sexual da pessoa. (Entrevista concedida por Lívia).

311
Roberta Olivato Canheo

Com base nesta Resolução de caráter Nacional, duas Resoluções no


âmbito estadual foram assinadas em 29 de maio de 2015: a Resolução n° 558,
que estabelece diretrizes e normativas para o tratamento da população LGBT
no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, assinadas pela Secre-
tário de Estado de Administração Penitenciária; e a Resolução conjunta da
Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) e Secretaria de Estado de
Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) nº 34, que cria o Grupo
de Trabalho Permanente de Políticas LGBT no Sistema Penitenciário do Es-
tado do Rio de Janeiro. Além disso, foi assinado um Termo de Cooperação
Técnica entre os órgãos.
Entre os direitos garantidos com essas novas normas, estão a inclu-
são do nome social na Guia de Recolhimento do Preso, o direito ao uso de
uniforme e roupas íntimas de acordo com o gênero com o qual a pessoa se
identifica, inclusive durante os banhos de sol; a garantia de acesso aos serviços
públicos de saúde, incluindo a hormonoterapia; a manutenção dos cabelos
compridos para as travestis e mulheres transexuais que assim desejarem; o
direito à realização de revista íntima de forma reservada. A resolução também
estabelece que a SEAP e a SEASDH deverão garantir a formação inicial e
continuada aos profissionais das unidades prisionais considerando a perspec-
tiva dos direitos humanos e os princípios de igualdade e não-discriminação,
inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Tais resolu-
ções foram encaminhadas através do programa Rio sem Homofobia.
O Grupo de Trabalho (GT) previsto e formado através da resolução
nº 34 iniciou seus trabalhos em outubro de 2015, com a seguinte composição:
– 08 (oito) representantes da SEAP, sendo: a) 01 (um) representante do Ga-
binete do Secretário de Administração Penitenciária; b) 04 (quatro) represen-
tantes da Subsecretaria de Tratamento Penitenciário, sendo: 1. 01 (um) Coor-
denador de Saúde; 2. 01 (um) Coordenador de Serviço Social; 3. 01 (um) Co-
ordenador de Psicologia; 4. 01 (um) Coordenador de Inserção Social. c) 03
(três) representantes da Subsecretaria Operacional, sendo: 1. 01 (um) Agente
Penitenciário; 2. 01 (um) Diretor Prisional; 3. 01 (um) representante do Ga-
binete da Subsecretaria Operacional. II – 03 (três) representantes da
SEASDH/SUPERDir, quais sejam: a) 01 (um) representante do Núcleo de
Monitoramento das Políticas LGBT; b) 01 (um) representante dos Centros
de Cidadania LGBT; c) 01 (um) representante do Gabinete da SUPERDir.

312
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Importante frisar que essas resoluções implementadas em 2015 pelo


Estado do Rio de Janeiro merecem destaque. Isso porque elas avançam ao
garantir às travestis e mulheres transexuais o direito à autodeterminação
quando do ingresso no Sistema Penitenciário, devendo ser a unidade de cus-
tódia compatível ao gênero declarado, se assim desejado. Essa premissa res-
peita a construção identitária da pessoa encarcerada, possibilitando que se
desvencilhe do estigma do sexo biológico. Todavia, até o momento corrente
da pesquisa, novembro de 2016, tem-se ainda uma realidade um tanto desto-
ante do estabelecido pelas resoluções supracitadas, como por exemplo, o não
respeito por todos os agentes do direito ao uso do nome social e à realização
de revista íntima de forma reservada, o não oferecimento de hormônios para
aquelas travestis e transexuais que desejam realizar a hormonoterapia, dentre
outras questões.

O Futuro da questão transexual na ótica do Sistema Penitenciário

Este derradeiro tópico cumpre analisar o futuro da questão transe-


xual na perspectiva do Direito Penal a partir de dois conceitos: o de passabi-
lidade e de gênero fluido. Isso porque é notório o movimento de fixação,
recepção e também de produção de novas identidades e subjetividades pelo
Estado, e pelas instituições, em especial pelo cárcere, centro da análise deste
trabalho. Como colocado no início deste trabalho, passabilidade relaciona-se
ao modo como a pessoa é lida pela sociedade, sem que a dissidência ao gênero
designado ao seu nascimento se evidencie, enquanto gênero fluido diz res-
peito a uma identidade não fixa, em constante mudança, que não se limita ao
gênero masculino ou feminino.
Então pergunta-se: como conciliar as múltiplas categorizações abra-
çadas pelo Estado quando falamos em pessoas de gênero fluido, ou então
pessoas não binárias? É possível falar em passabilidade, quando tomamos
como referência uma unidade prisional classificada como masculina? A com-
plicação é ainda maximizada quando se trata de um local essencialmente ex-
cludente, que é o cárcere.
Assim, cumpre inicialmente enfatizar que atualmente é perceptível
uma maior receptividade estatal de diversas “novas” identidades e das políti-
cas sexuais trazidas por elas, sendo que a possibilidade de novas vidas e outras

313
Roberta Olivato Canheo

normatividades, e de novos regimes discursivos adentram também na esfera


do Estado. Assim, pode-se colocar o Estado na posição de um também cap-
turador e produtor de

(...) modos de subjetivação, controlados em suas singularidades a partir dos


poderes legitimados. O que antes era visualizado como guerra entre sentidos de
vida, assume, na titularização da violência por parte do poder estatal, um viés
conformador, onde o desviante é reconfigurado e reduzido ao “normal” pela po-
tência estatal. (FERNANDES, 2015, 21-22)

O cárcere, por sua vez, enquanto uma instituição disciplinar, deve


também ser entendido como um produtor de indivíduos, e de identidades. À
medida que controla os corpos, impõe também um controle da sexualidade
das pessoas aprisionadas.
Em Vigiar e punir, Foucault (2004), demonstra como, historicamente,
o corpo foi e ainda é alvo de poder e saber. O suplício, além de técnica de
extração e produção da verdade por meio do juramento e tortura, constituiu
um conjunto de técnicas que a todo momento reativava o poder soberano,
tudo através da lei. A tecnologia de poder da soberania articulava lei, poder,
soberano. Foucault apresenta então um deslocamento das práticas soberanas,
em que a técnica de suplício dos corpos é deslocada para outras técnicas dis-
ciplinares.
Nesse segundo momento, o corpo passa a não ser mais tangenciado
por forças físicas, senão controlado por elas. “O desaparecimento dos suplí-
cios é pois, o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o
corpo que se extingue” (FOUCAULT, 2004, 15). A regra é que não se toque
mais o corpo, ou então o mínimo possível, e apesar de as condenações à pri-
são, aos trabalhos forçados, serem penas físicas, e se referirem diretamente ao
corpo, a relação castigo-corpo não é a mesma que aquela vislumbrada nos
suplícios.
Assim, no decorrer do século XVIII, as estratégias de punição tive-
ram por objetivo primordial tornarem-se um esquema regular, compondo o
cotidiano do sistema judiciário, coexistindo dentro e fora dele. Buscava-se
punir melhor, com maior universalidade. O corpo passa a servir então como
um dispositivo de poder disciplinar, o qual ditará que ele precisa ser saudável,
higienizado, comportado, seguidor das leis médicas, psicológicas, etc. Torna-
se, assim, a identificação dos ideais de uma classe dominante na subjetividade

314
Qual o futuro da sexualidade no direito?

social, a representação da aliança entre o dispositivo da sexualidade e as ins-


tâncias científicas, religiosas e econômicas. (FOUCAULT, 2004, 79)
Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no inte-
rior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações”, Foucault (2004, 132), mostra que micropoderes perpassam toda
a sociedade, gerando transformações e modificações de condutas nos indiví-
duos. A sociedade e os indivíduos, ao longo dos séculos, portanto, consoli-
dam-se como algo fabricado, através de uma coação calculada, esquadrinhado
em cada função corpórea, com fins de automatização. O indivíduo é objeto
primordial do poder, que visa a incorporação nos corpos de características de
docilidade. “Um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2004, 132) é um corpo
dócil.
Destarte, uma das funções das Instituições de sequestro seria o con-
trole dos corpos. Elas implicam a organização geral da existência, impondo,
portanto, também o controle da sexualidade. Tais instituições seriam então
polifuncionais, visando, outrossim, corrigir os corpos, torná-los capazes para
o trabalho, torná-los sadios. A disciplina constrói um tecido de normas, de
hábitos, e produz individualidades dentro das instituições. O indivíduo é, en-
tão, produto da instituição disciplinar, que o liga e o fixa; trata-se de uma
exclusão por inclusão, inclusão via normalização do indivíduo. É sabido que
a norma disciplinar, por sua vez, tem o poder generalizante para várias insti-
tuições, é isomórfica, mas é na prisão que atinge seu ponto culminante.
Iniciando pela questão da fluidez de gênero, ou não binarismo, já en-
contramos a questão clara da binariedade sexual e de gênero do Sistema Pe-
nitenciário, com a divisão entre penitenciárias destinadas às mulheres e peni-
tenciárias destinadas aos homens. Corroborando com a divisão realizada com
base no sexo biológico designado ao nascimento, a Lei de Execução Penal (nº
7210/84), preconiza que:

Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres
será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças
maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir
a criança desamparada cuja responsável estiver presa. (...)
Art. 90. A penitenciária de homens será construída, em local afastado do cen-
tro urbano, à distância que não restrinja a visitação.

315
Roberta Olivato Canheo

Quando se trata de unidades prisionais não exclusivamente masculi-


nas ou femininas, ou seja, unidades mistas, impõe-se ainda a divisão pelo sexo
na disposição das alas, espaços separados dentro da unidade prisional que
alocam as pessoas encarceradas de acordo com critérios preestabelecidos,
sendo o sexo um dos critérios notadamente.
Todavia, devemos dizer, que ao menos no Rio de Janeiro essa situa-
ção pode vir a ser contornável. Isso porque, a Penitenciária Evaristo de Mo-
raes, penitenciária que é o maior destino da população travesti e transexual no
estado do Rio de Janeiro, possibilita a convivência na mesma ala de pessoas
cis e trans.
Em entrevista à uma assessora da Secretaria Estadual de Administra-
ção Penitenciária, foi me informado que “elas não querem ir para presídio
feminino, porque lá no Evaristo elas tem seus companheiros, namoram
muito” (entrevista concedida por Adriana Martins). E realmente isso me foi
compartilhado pela grande maioria de mulheres transexuais e travestis encar-
ceradas com quem tive a oportunidade de estar nesta penitenciária, que afir-
mam não quererem ir para onde estão as “mapoas”, termo por elas muito
utilizado para designar as mulheres cisgêneras, ou seja, aquelas que quando
nasceram foram designadas como mulheres, do gênero feminino, e mantive-
ram a referência de si mesmas em consonância com essa designação.10

10 Trabalho aqui com o conceito de cisgeneridade em sua precariedade, tendo em vista sua

recente incorporação no Brasil, muito em decorrência de reivindicações trazidas pela mili-


tância trans. Cf. Rovaris (2016, 21), é provável que um texto da ativista Hailey Kaas sobre
cisgeneridade para o blog brasileiro “Transfeminismo”, em 2011, tenha inaugurado a posição
de se utilizar a palavra com fins de desnaturalizar a condição cisgênera, “norma que até então
nomeava o outro, a transexualidade, sem haver seu contraponto”. Assim, da mesma forma
que a sexualidade heterossexual é marcada após ser marcada a homossexual, inferindo-se que
a identidade só se constrói perante o outro, o processo de cissificação, ou de formatação do
sujeito cisgênero, dá-se, portanto, após a constituição do sujeito trans. Isso pois há uma pro-
dução discursiva na criação das identidades, sendo todas as sexualidades implicadas. Toda
identidade é relacional, produtiva a partir de um contexto, possuindo as subjetividades as-
pecto inter-relacional, como concebeu Foucault, para quem só é possível o outro a partir de
um (dialética dos opostos), num sentido sempre referencial. Nesse contexto, para se construir
sujeitos normais, anormaliza-se os outros. A patologia, é neste sentido, então, um importante
formador da identidade trans. Leila Dumaresq (2015) chama atenção, outrossim, para o fato
de que “o termo não é propriedade exclusiva de seus usuários acadêmicos uma vez que o
sentido delimitado pelas definições acadêmicas não é o único. É preciso tomar cuidado com
palavras muito vívidas politicamente. É necessário cuidar de conhecer os sentidos e usos do
termo. Também é necessário sempre evidenciar o recorte do conceito ao qual dirige-se a
crítica. O preço de não reconhecer o recorte é muito alto: Reduzir vivências a conceitos,
anulá-las discursivamente e silenciá-las politicamente”.

316
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Então, apesar de haver a possibilidade de optarem pela reclusão em


unidades femininas, não há relatos de casos em que isso tenha ocorrido. De-
vemos, porém, fazer a ressalva de que ainda assim, este direito muito rara-
mente lhes é informado no momento da entrada no Sistema Penitenciário,
como qualquer outro direito referente a sua autodeterminação de gênero. Na
Penitenciária Evaristo de Moraes, como em já algumas outras penitenciárias
brasileiras, tem-se adotado a opção de criação de alas LGBTs, portanto.
A questão da passabilidade, por sua vez, se coloca como um pro-
blema mais complicado de pensar uma solução. Segundo Jaqueline Gomes de
Jesus, “para as pessoas trans, a adequação a uma aparência tida socialmente
como feminina é conhecida como ‘passar’”. Explica que, para mulheres e ho-
mens transexuais, diferente do que muitas pessoas não trangêneras equivoca-
damente acreditam, passar não é apenas parecer.

Passar está ligado ao sentimento de ser reconhecido como do gênero ao qual


se sente pertencente, o que alinha a identidade de gênero com a identidade social,
permitindo ser assimilado(a) como homem ou como mulher (PROSSER, 1998
apud JESUS, 2015, 57).

Daniela Andrade, militante transfeminista, coloca que passabilidade


cisgênera

É quando a pessoa trans é lida pela sociedade como se cis fosse.A mulher
trans que tem passabilidade cisgênera geralmente ouve coisas do tipo, quando se
anuncia trans: nossa, mas ninguém nunca diria que você é trans. Você engana bem
viu? Você parece muito com uma mulher. E eu digo sendo lida como trans ou
travesti pois a sociedade não lê da mesma forma a trans ou travesti sem passabi-
lidade e a trans ou travesti com passabilidade. [...]. Há uma busca incessante e
incansável por algo inatingível a todas nós. Afinal de contas, sempre haverá al-
guma característica sua para apontarem e dizerem que você não é mulher o sufi-
ciente ou mulher "de verdade". É a voz, a mão, o pé, a perna, o cabelo, o globo
ocular, os seus cromossomos, o seu coração, intestino, estômago, rins... as suas
células, a sua alma, ufa! [...] (ANDRADE, 2015).

Mas em que sentido podemos pensar a passabilidade no cárcere?


Bem, para esse ponto me baseio em um trabalho de campo realizado na Pe-
nitenciária Evaristo de Moraes. O trabalho consistiu em três visitas à unidade
prisional, com a duração média de cinco horas cada, pelo período de um mês,

317
Roberta Olivato Canheo

entre setembro e outubro de 2016. Conversei com dez mulheres transexuais


e travestis a partir de uma listagem feita pela administração da unidade e pela
indicação das próprias encarceradas11. Objetivou-se averiguar se seus direitos
assegurados pelas Resoluções mencionadas estavam sendo respeitados, basi-
camente.
Assim, o que se destacou a partir dos relatos colhidos em relação a
esse ponto foi que nesta unidade prisional é comum as mulheres trans e tra-
vestis reclamarem que há divergência de tratamento entre as siliconadas, e as
que não têm, segundo elas, aparência tão feminina.
A diferença se mostra em um plano entre as próprias pessoas encar-
ceradas, como por exemplo, na reserva de camas, denominadas “comarcas”
apenas a estas que se poderia dizer, talvez, tenham uma passabilidade cis-se-
xual. Noutro plano, a diferença é bem nítida em relação ao tratamento dos
agentes penitenciários destinado a elas. Muitas reclamam, por exemplo, que a
revista íntima reservada, direito assistido pelas resoluções anteriormente cita-
das, são muitas vezes um privilégio exclusivo daquelas que possuem silicones
nos seios e nos quadris.
E uma fala de um agente da SEAP (Secretaria de Administração Pe-
nitenciária) que para mim exemplifica a questão: “Ah, mas é que os carcerários
ficam desconfiados que tem homens gays que fingem ser trans só pra terem
alguns direitos que elas tem”, diz justificando a conduta de um funcionário
que aplicou à força o corte de cabelo como punição disciplinar a uma travesti
que tinha se envolvido em uma briga na Penitenciária Evaristo de Moraes. E
complementa: “Eu sei que pode ser que todas tenham a alma feminina, mas
quando elas têm silicone, por exemplo, aí é mais fácil identificar”.
E com essa fala, podemos ainda inverter a questão: haveria então uma
passabilidade transexual? Quando se diz que detentos gays se passam por
transexuais para terem direitos a certos “privilégios”? Ou ainda, este discurso
proferido pelo agente da Secretaria de Administração Penitenciária, ainda
muito presente nos dias atuais, não se alinha àquele proferido pelos médicos

11 De acordo com a listagem da unidade prisional e com informações obtidas por mim na

Secretaria Estadual de Administração Penitenciária, o número de mulheres trans e travestis


hoje no Evaristo de Moraes varia entre 70 e 80. Todavia, a pesquisa de campo incipiente
nesta unidade não me possibilitou ainda o recolhimento de todos os relatos, daquelas obvia-
mente que consentirem com a participação na pesquisa desenvolvida.

318
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Benjamin, John Money e Robert Stoller que buscavam caracterizar quem


eram os “verdadeiros” transexuais?
Bem, acredito que a questão da passabilidade no contexto de cárcere
é, portanto, algo que fica a ser questionado no tocante ao futuro do trata-
mento da identidade transexual pelo Sistema Penitenciário.

Considerações finais

Como visto, a transexualidade começa a ser criada como uma cate-


goria própria apenas nos anos 50 nos Estados Unidos, onde se desenvolviam
as pesquisas dos três principais estudiosos do assunto, Harry Benjamin, John
Money e Robert Stoller. E é apenas em 1966 que a nova classificação psico-
patológica ganha destaque científico mundial, com o lançamento do livro de
Harry Benjamin “O fenômeno transexual”.
Já no Brasil, o surgimento da categoria dissociada da criminalidade, e
sua difusão nos meios de comunicação em massa ocorre no início da década
de 80, a partir do “fenômeno” Roberta Close. Já na esfera jurídica, o trata-
mento da identidade transexual no Direito brasileiro é iniciado pelas questões
de personalidade, reguladas como se sabe pelo Direito Civil, com pedidos
para retificação de nome especialmente.
Após um longo caminho, ainda em construção, pelo reconhecimento
da identidade transexual e travesti no âmbito dos direitos de personalidade
principalmente, o Sistema Penitenciário começa a incorporar e estabelecer di-
reitos para a população travesti e transexual em situação de cárcere.
No âmbito Nacional, temos como primeira iniciativa a Resolução
Conjunta do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do
Conselho Nacional de Combate à Discriminação CNPCP/CNCD/LGBT n°
01 de 2014, que estabelece os parâmetros de acolhimento de LGBT em pri-
vação de liberdade no Brasil. Com base nesta Resolução de caráter Nacional,
duas Resoluções no âmbito estadual foram assinadas, estabelecendo diretrizes
e normativas para o tratamento da população LGBT no Sistema Penitenciário
do Estado do Rio de Janeiro. A análise documental mostrou-se um meio im-
portante para se averiguar até que ponto as reivindicações dessa população
correspondem de fato às normatizações estabelecidas.

319
Roberta Olivato Canheo

Por fim, objetivou-se pensar qual seria o futuro da questão transexual


na ótica do Sistema Penitenciário, analisando-se os conceitos de passabilidade
e de gênero fluido num contexto de encarceramento. A questão do gênero
fluido mostrou-se um pouco mais fácil de ser contornada, tendo em vista a
existência de alas LGBTs, que poderiam ser destinadas também ao confina-
mento de pessoas não binárias ou de gênero fluido. A possível passabilidade
cis, todavia, mostra-se como uma questão mais problemática: em primeiro
lugar, porque é difícil falar em passabilidade cis em um contexto de uma pe-
nitenciária qualificada como “unidade masculina”. Em segundo lugar, não se
poderia inverter a questão e se demandar se não seria possível existir ali uma
passabilidade trans, como faz crer a fala transcrita de um agente da Secretaria
estadual de Administração Penitenciária?
Ademais, todas estas questões devem ser pensadas sem que se es-
queça o movimento perpetrado tanto pelo Estado em sentido amplo como
pelas instituições de recepção, fixação e também de produção de novas iden-
tidades, novas subjetividades. Qual o futuro da questão transexual no Sistema
Penitenciário? Parece-me que apenas uma resposta se mostraria satisfatória:
que o direito à autodeterminação fosse plenamente respeitado, sem que o Es-
tado, os agentes estatais ou quaisquer outros atores institucionais tenham o
poder de dizer quem são os “verdadeiros” homens, as “verdadeiras” mulhe-
res, as “verdadeiras” pessoas transexuais. E acredito que este direito à auto-
determinação não se restringe à esfera do Sistema Penitenciário objeto deste
capítulo, mas sim direciona em muitos sentidos a pergunta central deste livro:
qual o futuro da sexualidade no Direito?

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320
Qual o futuro da sexualidade no direito?

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322
Qual o futuro da sexualidade no direito?

população LGBT no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Re-


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SECRETARIA DE ESTADO DE ADMINISTRAÇÃO
PENITENCIÁRIA E SECRETARIA DE ESTADO DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL E DIREITOS HUMANOS. Cria o Grupo de Trabalho Perma-
nente de Políticas LGBT no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Ja-
neiro. Resolução n° 34, de 29 de maio de 2015.

323
324
13
O FUTURO DO ABORTO:
ANÁLISE A PARTIR DO PAPEL DA
PRESIDÊNCIA DOS PODERES DA REPÚBLICA

Rogerio Sganzerla1

E ste capítulo é fruto do Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(UFF) através do grupo de pesquisa Sexualidade, Direito
e Democracia (SDD)2, coordenado pelo professor Eder Fernandes Monica.
Nesse sentido, tão importante quanto as críticas apresentadas durante a for-
mulação deste trabalho, foram as observações e sugestões recebidas durante
as apresentações realizadas para debater os resultados da pesquisa, que per-
mitiram seu refinamento e aprimoramento com os demais integrantes da
equipe3. Como parte integrante dela, este trabalho relaciona as discussões so-
bre gênero, sexualidade e direito abordadas no grupo.
Esta pesquisa teve como ponto de partida o diagnóstico de todos os
projetos de lei sobre aborto na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

1 Doutorando em Sociologia e Direito pela UFF, Mestre em Direito pela UNIRIO. Licen-

ciado em Filosofia pela UNIRIO. Bacharel em Direito pela FGV Direito Rio. Pesquisador
CJUS/FGV.
2 Cf. sítio: www.sdd.uff.br
3 Ana Paula Antunes Martins, Carla Appollinario de Castro, Beatriz Akutsu, Natália Oli-

veira, David Emmanuel, Gustavo Agnaldo de Lacerda, Gabriel Martire, Carolina Câmara,
Bárbara Sena, Ariíni Bomfim, Mariana Dornellas, Gabriel Guarino de Almeida, Roberta Oli-
vato Canheo, Ana Míria Carvalho, Márcio Rocha, Eduardo Magaldi e Ramon Costa.

325
Rogério Sganzerla

Foram realizadas diversas análises sobre as comissões, autores, temas e diver-


sas outras características. As conclusões e os dados foram publicados na Re-
vista de Direito Administrativo & Constitucional com o título “Aborto e Con-
gresso Nacional: uma análise crítica do cenário legislativo”4. Após, estes dados
foram contextualizados em razão do histórico da sexualidade no mundo e no
Brasil. Em conjunto com o prof. Eder Fernandes Monica, estes dados foram
analisados dentro de uma conjuntura maior de estudos sobre políticas sexuais
e sobre a história e as fases da sexualidade moderna, tanto do Ocidente quanto
do Brasil em especial5.
Como parte integrante de uma pergunta maior e balizadora para o
grupo de pesquisa, qual seja “Qual o futuro da sexualidade no Direito?”, o
objetivo final desta pesquisa é analisar os temas da masculinidade, aborto e
sexualidade a partir do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal
do Brasil. A questão que embasa o estudo é: a ressignificação das masculini-
dades para o futuro do aborto através de um modelo de democracia delibera-
tiva. Nesse sentido, o intuito é estudar (quantitativamente e qualitativamente)
a estrutura e as decisões provenientes do Congresso Nacional e do Supremo
Tribunal do Brasil, seja através de projetos de lei, seja através de acórdãos, ou
mesmo através de audiências públicas, de modo a entender as masculinidades
presentes nessas discussões e também repensar as suas práticas para o futuro
do aborto no Brasil. Para isso, também será realizada uma comparação latino-
americana com a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e di-
versos tratados internacionais a fim de verificar o impacto das decisões e le-
gislações estrangeiras na jurisdição constitucional brasileira.
Neste artigo faz-se um recorte com a seguinte pergunta: como se deu
a política sexual sobre o aborto no Congresso Nacional e no Supremo Tribu-
nal do Brasil e como é possível repensar o papel repressivo para o seu futuro?
Trata-se de um ponto importante para entender qual o estado atual do aborto
no Brasil. Logo, se faz necessário investigar e avaliar (repressivamente ou per-
missivamente) como a legislação e as decisões sobre o aborto no Brasil se
desenvolveram no decorrer da sua história.

4 SGANZERLA, Rogerio. Aborto e Congresso Nacional: uma análise crítica do cenário

legislativo. Revista Direito Administrativo & Constitucional. 2017. Jan-Mar 2017.


5 Até o momento de finalização do presente artigo, não houve publicação da análise refe-

rida, provisoriamente intitulada “O caráter repressivo na legislação sobre aborto no Brasil”

326
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Essa questão se justifica na medida em que o tema está cada vez mais
presente na pauta de discussões do Legislativo e do Judiciário no Brasil. A
questão da moralidade e da religião está cada vez mais presente em discussões
sobre a sexualidade. O correto e o incorreto se esbarram com práticas da so-
ciedade e, cada vez mais, tendem a ser questionadas. Na história da civilização
ocidental, pode-se dividir a sexualidade em duas fases principais para efeitos
deste trabalho: a) a primeira mais repressiva, cujo intuito é a legitimação da
sexualidade hegemônica; b) a segunda num sentido mais permissivo, descons-
truindo os padrões sociais e não mais reprimindo condutas sexuais baseadas
unicamente num padrão moral antes aceito como “correto”.
De certa forma, a dinâmica histórica do aborto coincide com a pers-
pectiva da sexualidade e de gênero. Pode-se dizer que há três fases distintas
para a mudança de paradigmas. Como bem esquematiza Guilia Galeotti na
sua obra História do Ab( )rto (2003), a primeira vai desde a Antiguidade até o
final do século XVIII, passando pela Grécia Antiga, a civilização romana, a
Idade Média e a Idade Moderna (repressiva). A segunda fase, também repres-
siva, muda radicalmente com a Revolução Francesa (1789). Já a terceira, per-
missiva, inicia nos anos 70 do século XX, quando as legislações começam a
levar mais em consideração as exigências do outro sujeito da relação, tute-
lando direitos e escolhas da mulher, ainda que com limites e tempos diferentes
de país para país.
Na primeira fase, da Antiguidade até o final do século XVIII, o
aborto é uma coisa das mulheres. O senso comum não via no feto uma enti-
dade autônoma, mas entende-o como parte do corpo materno. Esta visão
pode sugerir que esta seja uma época na qual a mulher tinha poder e controle
sobre seu corpo, sua identidade, voz e escuta. Contudo, ao contrário do que
parece, a fundamentação do aborto ser algo possível está na ideia de sujeito e
essência. O feto, somente quando amadurecido (e nascido), se torna uma en-
tidade autônoma e independente da mãe. Como a “ciência” era uma constru-
ção de crenças e superstições populares, a gravidez era uma competência ex-
clusivamente feminina, sendo a única utilidade da mulher. Sua existência en-
contrava sentido e justificação na condição da maternidade dentro do casa-
mento ou que de qualquer das formas um homem estivesse disposto a assumi-
las. Portanto, sem maternidade não há mulher. O órgão onde o feto está con-
tido, e no qual recebe proteção, é designado como matriz ou mãe; poderá

327
Rogério Sganzerla

então a mulher existir sem ele? A “natureza” da mulher, assim, era a reprodu-
ção. A ênfase biológica da mulher estava em trazer filhos ao mundo na sua
realização, sendo uma expectativa social através de uma passagem filha-mãe.
E, como mulher, nunca chegará a ter o status de um homem. Ela será sempre
inferior a ele, ainda que superior aos animais. Partiu-se de uma ideia inicial de
inferioridade física do sexo feminino advinda da ideia de ser apenas um re-
ceptáculo passivo do sémen do homem (Ésquilo), passando à visão aperfei-
çoada de que o sémen masculino possui uma virtus formativa que predispõe a
matéria feminina, já dotada de alma vegetativa, a receber a alma sensitiva (To-
más de Aquino) para, então, haver o reconhecimento do sangue menstrual
para a concepção, ainda que a força ativa do esperma masculino permaneça
superior (Renascimento). Ou seja, caso algo desse errado na maternidade, o
problema era sempre da mulher.
Essa visão persistiu até a metade do século XVIII com os ideais as-
sociados à Revolução Francesa (1789). Em 1791, por exemplo, depois de ma-
nifestos feministas de Olympe de Gouges (1748-1793) e Mary Wollstonecraft
(1759-1797), houve a abolição do crime de sodomia na Franca, medida que
só foi adotada no Brasil durante o século XX6. Em 1884, com a publicação
do livro A origem da família, propriedade privada e o Estado, Friedrich En-
gels afirma que os homens, patriarcas, controlam a sexualidade feminina para

6 Interessante reproduzir o contexto histórico brasileiro sobre a sodomia. “O sistema jurí-

dico que vigorou durante todo o período colonial no Brasil e que criminalizava a sodomia
foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas Orde-
nações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e, por último, as Ordenações Fili-
pinas, que surgiram como resultado de um domínio castelhano. Ficaram prontas ainda du-
rante o reinado de Filipe I, em 1595, mas entraram efetivamente em vigor em 1603, no perí-
odo do governo de Filipe II. As penas previstas nas Ordenações Filipinas eram consideradas
severas e bastante variadas, destacando-se o perdimento e o confisco de bens, o desterro, o
banimento, os açoites, morte atroz (esquartejamento) e morte natural (forca). Vale lembrar
que a Inquisição na Europa, iniciada no século XII, foi instaurada formalmente em Portugal
em 1536 a pedido do Rei de Portugal, D. João III. É de salientar que a aplicação do direito
no vasto espaço territorial do Brasil-Colônia não fazia parte das preocupações portuguesas,
já que o objetivo da metrópole era principalmente assegurar o pagamento dos impostos e
tributos aduaneiros, mas, mesmo assim, as Ordenações Filipinas foram a base do direito no
período colonial. Foi a partir da Independência do Brasil em 1822 que os textos das Orde-
nações Filipinas foram sendo paulatinamente revogados, mas substituídos por textos que, de
certa forma, mantinham suas influências. Primeiro surgiu o Código Criminal do Império
(1830), que substituiu o livro V das Ordenações; em seguida foi promulgado o Código de
Processo Criminal (1832), que reformou o processo e a magistratura. Em 1850 surgiram o
Regulamento 737 (Processo Civil) e o Código Comercial. Os Livros I e II perderam a razão
de existir a partir das Revoluções do Porto em 1820 e da Proclamação da Independência
brasileira” (Carrara, 2010, 17).

328
Qual o futuro da sexualidade no direito?

assegurar a paternidade e o controle da transmissão da propriedade. Essa


ideia, proveniente desde a idade média e moderna com os feudos e monar-
quias absolutistas, se enraizou na sociedade.
No século XX, por volta dos anos 20/30, surge a primeira onda do
feminismo contemporâneo. Apesar da maioria das feministas não ter questi-
onado ou desafiado o papel essencial da mulher no interior da família, reivin-
dicaram o sufrágio e o direito à educação. Porém, ainda possuíam um argu-
mento calcado na ideia de que seriam esposas e mães melhores, pois havia
ainda uma associação estreita com a esfera doméstica e a responsabilidade da
mulher com o privado era natural e inevitável. As principais expoentes foram
Olympe de Gouges, Jeanne Deroin, Hubertine Auelert e Madaleine Pelletier.
Em 1922, por exemplo, nasce a Federação Brasileira pelo Progresso Femi-
nino, cujo objetivo era lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho
sem a autorização do marido.
A segunda onda do feminismo se caracteriza pelo questionamento
dessas relações público-privadas, especialmente com a publicação do livro O
Segundo Sexo (1949) por Simone de Beauvoir. Houve uma ruptura no pensa-
mento que colocava a neutralização do gênero como consequência direta da
diferença sexual e do seu potencial reprodutivo. Sua crítica se baseava que não
se tratava de algo dado, definido pela biologia, natural, mas de arranjos que
são constituídos socialmente. Assim, na construção de um conceito de gê-
nero, elucida que a perspectiva da mulher se define em relação, e em oposição,
ao homem, como um segundo sexo, o outro, em uma sociedade centrada no
masculino (Beauvoir, 1970). Esse movimento se estende pelas décadas de
1960 a 1980, preconizando a valorização do trabalho da mulher, o direito ao
prazer e contra a violência sexual. As principais expoentes são Julia Kristeva,
Helène Cixous e Lucy Irigaray.
Na terceira onda, que teve início na década de 90, discutiu os parâ-
metros estabelecidos nas outras ondas, colocando em discussão a micropolí-
tica. A reinvindicação, então, era em torno daquelas mulheres subalternas (uti-
lizando a expressão de Spivak), as mulheres negras. Os questionamentos até
então trazidos abordavam as questões de uma mulher branca de classe média
americana, enquanto as mulheres negras sequer tinham espaço de fala ou es-
cuta.
Portanto, nota-se que a partir do século XX, com a intensidade dos
debates e manifestações acerca da autodeterminação da sexualidade, diversas

329
Rogério Sganzerla

modificações ocorreram em torno de uma redefinição das políticas públicas


sobre sexualidade e do papel da mulher dentro da sociedade.
No próximo item sobre o Congresso Nacional e no seguinte, sobre
o Supremo Tribunal Federal, serão contextualizados os dados referentes às
pesquisas sobre aborto. A análise se restringirá em torno de dois focos: a di-
nâmica histórica desses projetos e decisões e também sobre os temas aborda-
dos e discutidos nesses órgãos. Após, estes dados serão (re)debatidos a partir
de um ponto de vista prospectivo, sobre o futuro (e riscos) de uma manuten-
ção ou estabilização dessas políticas sexuais (repressivas) dentro do Con-
gresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal do Brasil.

O Congresso Nacional

O Congresso Nacional do Brasil é composto de duas Casas: Câmara


dos Deputados e Senado Federal. Cada uma dessas Casas possui Comissões
Parlamentares, Permanentes ou Temporárias, com funções legislativas e fis-
calizadoras. As Comissões promovem, também, debates e discussões com a
participação da sociedade em geral, sobre todos os temas ou assuntos de seu
interesse. É também no seu âmbito que são apresentados e estudados todos
os dados, antecedentes, circunstâncias e conveniência de um projeto. Nas Co-
missões se possibilita que esses aspectos sofram ampla discussão e haja mais
liberdade para expressão das opiniões e formação do consenso que, emitido
sob a forma de parecer da Comissão, irá orientar o Plenário na apreciação da
matéria. São duas as formas de apreciação: (i) conclusiva, quando os projetos
são apreciados somente pelas Comissões, que têm o poder de aprová-los ou
rejeitá-los, sem ouvir o Plenário; e (ii) realizada pelo Plenário propriamente
dita, quando este é quem dá a palavra final sobre o projeto, após a análise das
comissões. De forma geral, os projetos que afetam direitos constitucionais
mais delicados, como o direito à vida e à liberdade, entre outros, deverão pas-
sar pelo o crivo do Plenário7.
Tendo por objetivo a coleta e a classificação de projetos de lei da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a pesquisa foi realizada por meio
de consulta eletrônica aos sítios de ambas as casas legislativas. A base de dados

7 Texto retirado do site da Câmara dos Deputados, disponível em http://www2.ca-

mara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/o-papel-das-comissoes

330
Qual o futuro da sexualidade no direito?

disponibiliza acesso eletrônico a todos os projetos de lei do período republi-


cano brasileiro, sendo que apenas os projetos posteriores ao ano de 2001 ou
que tiveram algum tipo de tramitação após esse período estão com inteiro
teor disponíveis. Na prática, a abrangência temporal dos dados compreende
a data do primeiro projeto sobre o tema, datado de 30 de setembro de 1949
até a data de 20 de maio de 2014, pois a data limite da pesquisa foi o dia 31
de dezembro de 2014. Compreende-se então todo o período de desenvolvi-
mento de uma legislação genuinamente nacional a respeito do aborto, inclu-
indo na análise os períodos de silêncio legislativo a respeito da temática, pois
são dados importantes para a percepção da evolução da política sexual sobre
o aborto no Brasil. Os termos de busca para as pesquisas foram “aborto” e
“interrupção da gravidez” e os documentos consultados foram os que estri-
tamente se apresentam como projetos de lei, com a exclusão de requerimen-
tos, ofícios e outros tipos. O tratamento nominativo – como professor, dou-
tor, pastor, delegado – dos parlamentares foi desconsiderado, pois poderiam
influir na avaliação dos dados.
Do total, com a exclusão de projetos não relacionados diretamente
com o tema, chegou-se ao número de 129 projetos na Câmara e 9 no Senado.
Foi classificado como projeto contra o aborto qualquer projeto que preten-
desse a restrição de direitos da mulher, valorização do bem jurídico vida (em
detrimento da autonomia da mulher), criminalização do aborto, aumento da
pena, entre diversos outros que tivessem objeto similar. Já os projetos a favor
do aborto foram entendidos como aqueles que tinham a pretensão de valori-
zação da autonomia feminina em detrimento do feto, assim como diversos
outros com objetos similares.
Do total de cento e vinte e nove (129) projetos na Câmara dos De-
putados, setenta e um (71) foram apresentados depois de 2003, cerca de 55%
do total. Por outro lado, é possível notar que até 1989, as apresentações de
projetos sobre o tema correspondem apenas a 17%. Além disso, há uma ten-
dência: tomando como base os anos de eleição para a Câmara dos Deputados
(1994, 1998, 2002, 2006 e 2010), a apresentação de projetos sobre o tema
nesses anos é quase nula e tende a crescer nos três anos seguintes. Vê-se essa
projeção nos anos de 2003, 2005 e 2007.

331
Rogério Sganzerla
Gráfico 01 - Quantidade de projetos por ano na Câmara dos Deputados

Fonte: Elaborado pelo autor

Além disso, todos os projetos encontrados na Câmara dos Deputa-


dos foram divididos em 12 grupos: (i) medicamentos8, (ii) estatuto do nasci-
turo9; (iii) tipificação de novos crimes10; (iv) descriminalização do aborto11; (v)
aumento/agravamento de pena12 (vi) novas hipóteses/revogação do aborto

8 O critério usado para classificação do grupo "medicamentos" foi o projeto abordar qual-

quer o uso de medicamentos que influenciassem no aborto.


9 O critério usado para classificação do grupo "estatuto do nascituro" foi o projeto abordar

o estatuto do nascituro.
10 O critério usado para classificação do grupo "tipificação de novos crimes" foi o projeto

criminalizar nova conduta das atuais previstas na legislação penal.


11 O critério usado para a classificação do grupo "descriminalização do aborto" foi o pro-

jeto abordar a interrupção da gravidez ou a supressão do art. 124 do Código Penal. Também
foi incluído neste tópico o plebiscito sobre o aborto praticado por médico por entender que
o projeto, ao analisar se o aborto praticado por médico deve ou não ser criminalizado, aborda
uma hipótese de descriminalização específica da prática do aborto. Como não seria uma con-
dição específica da mulher especificada no art. 128 do Código Penal, preferiu-se enquadrá-
lo neste grupo.
12 O critério usado para classificação do grupo "aumento/agravamento de pena" foi o pro-

jeto propor uma majoração da pena do crime de aborto ou propor um agravamento no tra-
tamento da conduta.

332
Qual o futuro da sexualidade no direito?

legal (art. 128, CP)13; (vii) disque14; (viii) registro público de gravidez15; (ix)
programas públicos de intervenção/informação/prevenção do aborto16; (x)
manipulação genética17 e (xi) planejamento familiar18 e (xii) temas não relaci-
onados19.
Como se percebe do gráfico abaixo, o grupo "programas de inter-
venção e prevenção do aborto" é o que possui a maior quantidade de projetos
em tramitação, seguidos do grupo de "planejamento familiar". Porém, uma
situação também impressiona: no tocante aos quatro grupos envolvendo o
crime de aborto (iii, iv, v, vi), os que possuem uma razoável quantidade de
projetos em tramitação são aqueles que propõem uma piora na situação atual
sobre o aborto (iii, v).

13 O critério usado para classificação do grupo "novas hipóteses/revogação do aborto le-

gal" foi o projeto abordar o art. 128 do Código Penal no tocante a novas hipóteses de aborto
legal ou propondo a sua revogação.
14 O critério usado para classificação do grupo "disque" foi o projeto propor a criação de

um disque sobre o aborto. No caso, duas foram as hipóteses: disque denúncia e disque in-
formações.
15 O critério usado para classificação do grupo "registro público de gravidez" foi o projeto

propor um registro público de mulheres grávidas como forma de reduzir a prática ilícita do
aborto.
16 O critério usado para classificação do grupo "programas públicos de intervenção/infor-

mação/ prevenção do aborto" foi o projeto abordar uma política pública específica sobre o
aborto, seja para a mulher ou para o nascituro, no tocante as suas causas ou consequências,
abrangendo qualquer tipo de projeto que fizesse alusão à prevenção, informação ou que in-
tervisse sobre o procedimento abortivo.
17 O critério usado no grupo "manipulação genética" foi o projeto abordar especificamente

a manipulação genética.
18 O critério usado no grupo "planejamento familiar" foi o projeto abordar no seu título

ou ementa qualquer referência a ações que tenham como finalidade o planejamento familiar.
19 Não possuem uma relação direta com a questão do aborto. Tal relação direta se traduz

em qualquer matéria que discuta questões, métodos ou processos que abarquem o feto, nas-
cituro, a relação filho e mãe ou similar, contanto que faça referência explícita a qualquer um
dos sujeitos anteriormente descritos, desde que envolva uma situação de antecipação (dolosa
ou culposa) da gravidez.

333
Rogério Sganzerla
Gráfico 02 - Quantidade de projetos em tramitação/arquivados por grupo

Tramitação
100%
6 3
80% 8 9 2 13
60% 6
9 13 19 5
40% 16 15
20% 8 7 9
2 1
0% 2

Fonte: Elaborado pelo autor

Verifica-se que o caráter repressivo é bastante presente nos projetos


de lei, sejam em trâmite, sejam os arquivados. Até os tempos atuais, as discus-
sões possuem um caráter depreciativo, tornando-o assunto desagradável. As
próprias defesas em favor da descriminalização tendem a ser lidas como de-
fesas imorais, atentatórias ao pudor público e aos costumes sadios da socie-
dade. É possível perceber que o aborto é um dos últimos pontos da sexuali-
dade que ainda é lido dentro de uma plataforma de repressão intensa.
Por um lado, 55% dos projetos de lei foram apresentados a partir de
2003, demonstrando que há um debate crescente sobre o aborto. O que antes
sequer era tornado a público e rechaçado aos bastidores como uma questão
imoral e irrelevante, hoje já traz consigo um tema de políticas públicas e au-
tonomia da mulher, saindo da questão pura e simples da criminalização (ou
não) do aborto. Por outro lado, nota-se que os temas referentes a liberalização
e/ou direitos da mulher foram (e estão) arquivados, tendo um número muito
maior de projetos em andamento sobre o caráter repressivo, seja através da
“tipificação de novos crimes” quanto do “aumento/agravamento da pena”.
A conclusão é que nos últimos anos vivencia-se um processo de au-
tonomização da sexualidade, desvinculada tanto das tradições, quanto das de-
mandas da medicina e saúde e de controle demográfico e populacional. A
legislação sexual passa a realizar uma política sexual de garantia de direitos
sexuais e reprodutivos, que permitem o acesso a direitos por intermédio de

334
Qual o futuro da sexualidade no direito?

identidades forjadas sobre formas específicas de desejos e práticas sexuais,


dentro de uma política radical da sexualidade. Desse modo, os dados coleta-
dos no Congresso Nacional verificaram a possibilidade da legislação abortiva
atual se caracterizar também como um instrumento afirmativo da autodeter-
minação sexual das mulheres, bem como um meio de proteção da sua liber-
dade sexual e da sua privacidade, dentro de uma história da política sexual
ocidental. Porém, há ainda um forte caráter repressivo dentro da sua temática
e restrição da autonomia da mulher na sua tomada de decisão.

O Supremo Tribunal Federal

A análise do Supremo Tribunal Federal (STF) foi realizada por meio


de consulta eletrônica ao sítio do tribunal. O termo de busca, assim como no
Congresso Nacional, “aborto” e os documentos consultados foram os que
estritamente se apresentam como acórdãos e decisões monocráticas. Não
houve restrição temporal. Na prática, a abrangência temporal dos dados com-
preende a data do primeiro projeto sobre o tema, datado de 30 de abril de
1951 até a data de 23 de agosto de 2016.
Do total de 78 decisões, não houve qualquer acórdão enquadrado
como não relevante, tendo todos tocado o tema do aborto.
A catalogação das decisões teve como parâmetros as seguintes espe-
cificações: i) data do julgamento; ii) turma/pleno; iii) gênero do(s) pacien-
tes/vítimas; iv) grau de afinidade com a mulher; v) motivo do crime em de-
bate; vi) crime em concurso; vii) resultado naturalístico mulher vítima; viii)
acusação.
Do total de setenta e oito (78) decisões do Supremo Tribunal Federal,
somente vinte e nove (29) foram julgadas depois de 1988, cerca de 37% do
total. Por outro lado, é possível notar que esta data, o Tribunal era muito mais
ativo nessas questões. Porém, isso significa uma menor (ou pior) envolvi-
mento nessas questões e, consequentemente, menos debate sobre o aborto?
Entende-se que não.
Conforme se nota no gráfico abaixo, a partir de 2005 o STF começou
a discutir ações coletivas envolvendo o tema, o que antes era feito através de
ações individuais. Nota-se, assim, que a preocupação, especialmente sobre

335
Rogério Sganzerla

feto anencefálico e reprodução assistida, não se restringiu a uma decisão entre


partes, mas sim aquelas que afetem a autonomia de todas as mulheres.
Sobre isso, interessante notar que os processos instruídos pelo Rela-
tor(a) são liberados para julgamento, por meio de inclusão do feito em pauta
ou apresentação em mesa, nas hipóteses regimentais. Compete ao Presidente
selecionar, dentre os processos liberados, aqueles que serão julgados na ses-
são. Assim, esses julgamentos coletivos foram realizados em 2005, 2008 e
2012, nas presidências dos Ministros Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cesar Pe-
luso. Porém, este último, no julgamento da ADPF 54, sobre interrupção da
gravidez em razão de feto anencefálico, foi totalmente contra, sendo voto
vencido. Logo, apesar de ser um conjunto baixo de julgamentos, nota-se que
é possível dizer que há uma relação entre o Presidente do Tribunal e a sua
relação com a temática do aborto: a Ministra Ellen Gracie foi favorável no
julgamento sob a sua presidência enquanto o Ministro Cesar Peluso foi voto
vencido nos dois julgamentos, em 2008 e 2012. Inclusive nota-se que o Mi-
nistro Ricardo Lewandowski, durante os anos de sua presidência (2014-2016),
fez valer os seus votos nesses dois julgamentos contra o aborto e também as
pesquisas em células tronco, paralisando e não colocando em pauta para jul-
gamento ações sobre a temática.

Gráfico 03 – Quantidade de julgamentos por ano em razão


do gênero das(os) pacientes nas ações

Fonte: Elaborado pelo autor

336
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Além disso, também é importante notar o gênero das(os) pacientes


das ações julgadas pelo STF. Até o ano de 1988, o número de mulheres em
julgamento através de habeas corpus (HC) ou recurso ordinário em habeas corpus
(RHC) era maior que o de homens. A partir de 2001 só há uma (01) mulher
como paciente desses julgamentos em ações individuais enquanto que há
quinze (15) homens nesta situação. Não houve alteração relevante nos tipos
de acusações (provocado por terceiro sem/com consentimento) ou no tipo
de resultado naturalístico para a mulher vítima do aborto (morte, aborto ou
nascimento). A única informação que se nota e que seja possível ter alguma
influência nesta diminuição é o motivo do crime discutido no acórdão. Há
somente um (01) julgamento sobre “realização de cirurgia abortiva” após esta
data, enquanto que no período anterior a 2001 há trinta e três (33) julgamentos
de um total de cinquenta e nove (59) sobre este tema (56%).
Com relação aos temas/acusações dos julgamentos no STF, o gráfico
abaixo demonstra que grande parte das ações (60%) envolve o “aborto pro-
vocado por terceiro com consentimento da gestante”. Juntando com o tema
“aborto provocado por terceiro sem o consentimento” (24%), o terceiro (e
não a gestante) está julgamento em julgamento em 84% dos casos. Dessa aná-
lise surge algumas conclusões: i) se o “terceiro” é quem demanda mais (espe-
cialmente com consentimento), porque a paciente mulher não consegue che-
gar com sua ação no STF e há somente um (01) caso de “aborto provocado
em si”? ii) se o crime mais comum em julgamento é o de aborto com consen-
timento (60%), não seria esse um argumento a favor da ineficácia da proibição
do aborto?; iii) por outro lado, não seria também um argumento a favor da
eficácia da proibição, pois significaria que aqueles “terceiros” que incentivam
ou induzem de alguma forma o aborto estão sendo punidos? iv) sendo que
desde 2001 os homens estão sendo os principais pacientes das ações autôno-
mas de impugnação, o que esses dados nos dizem a respeito do tema em jul-
gamento no STF?
Adianta-se que essas perguntas não serão objeto de análise neste ar-
tigo em razão da especificidade da matéria. Elas farão parte de um trabalho
posterior que englobará o estudo dos votos na sua forma qualitativa, o que
tornaria demasiado denso se fosse realizado neste momento. Pretende-se,
contudo, analisar de que forma esses temas/acusações se coadunam com as
políticas sexuais restritivas de liberdades civis em nome da moralidade sexual,
comprimindo as fronteiras do comportamento sexual aceitável.

337
Rogério Sganzerla

Gráfico 04 – Quantidade de julgamentos por temas/acusações

Aborto provocado por terceiro


4 3 com consentimento
1 2 Aborto provocado por terceiro
sem consentimento
Aborto provocado em si

19 47 Aborto provocado em si e por


terceiro sem consentimento
Tentativa de aborto sem
consentimento
Ações Coletivas

Fonte: Elaborado pelo autor

A questão que importa e merece ser discutida vem ao encontro com


a repressividade encontrada no STF. De um lado, nota-se que o número de
ações individuais está menor e as ações coletivas e que tratam de direitos das
mulheres estão sendo trazidas e mais debatida na Corte. Por outro lado, vê-
se também que os homens passaram a ser os principais pacientes das ações
individuais que ainda chegam, ou, de outra forma, as mulheres deixaram de
sê-las. Ainda assim, o número de julgamentos acerca do crime de aborto ainda
é o principal foco no STF, tanto nas ações individuais quanto coletivas. Por
mais que se argumente que, diferente dos deputados e senadores, os Ministros
e Ministras tomam decisões naquilo que são demandados pela sociedade atra-
vés das ações, pode-se dizer que eles e elas escolhem aquilo que irão julgar e
no tempo que quiserem, seja como relator(a), seja como presidente. Logo, a
questão pode detrás dos julgamentos ainda é uma questão de escolha.
Isso serve para demonstrar que, sendo uma questão discricionária
sobre os julgamentos, o STF prefere manter sua diretriz em ações que envol-
vem o crime de aborto. Logo, assim como o Congresso Nacional, a caracte-
rística principal está na repressão da sexualidade. Porém, de uma forma posi-
tiva, também se vê no STF um crescimento na defesa afirmativa de uma pauta
coletiva. Porém, vale um questionamento para futuros estudos: apesar dessa
pauta mais coletiva em torno dos direitos sexuais das mulheres (reprodução

338
Qual o futuro da sexualidade no direito?

assistida e interrupção da gravidez de feto anencefálico), o STF está utilizando


argumentações defendendo a autodeterminação, a proteção da liberdade se-
xual e a privacidade delas?

A repressividade institucional para o futuro do aborto

A partir das análises sobre o STF e o Congresso Nacional tem-se as


seguintes conclusões: i) ambos tiveram uma mudança de foco no seu perfil
de decisões após 1988; ii) ambos, a partir dos anos 2000, tiveram uma mu-
dança no número de decisões, tendo o Congresso Nacional proposto mais
projetos de lei enquanto o STF julgado menos ações sobre aborto; iii) ambos
ainda possuem um foco acentuado na repressão do aborto; iv) como respos-
tas e interlocutores para as demandas sociais, o Congresso Nacional se carac-
terizou por reprimir as questões que envolvem uma maior liberalização do
aborto, enquanto o STF se caracterizou por uma maior abertura e permissi-
vidade da autonomia feminina, especialmente a partir dos anos 2000.
Em relação ao período histórico apresentado, chama a atenção a fi-
gura da(o) Presidente. Nesse lapso temporal tem-se a posse do Presidente
Lula em 2003 e da Presidente Dilma em 2011. Com isso, novas ideologias
passaram a ser debatidas, além de programas sociais e assistenciais. De uma
forma geral, os Governos Lula e Dilma focavam mais em torno dos Direitos
Humanos que os governos anteriores.
No Legislativo, juntamente com a posse do Presidente Lula em 2003,
o número de deputados federais eleitos refletiu a Presidência da República.
Apesar do PT nunca ter ficado além do segundo lugar em número de depu-
tados eleitos, nota-se que, com o tempo, esse número diminuiu de forma ge-
ral, demonstrando a pulverização das Bancadas na Câmara dos Deputados.
Isso é justamente o que se nota na dinâmica dos projetos de lei: a partir de
2003 há uma apresentação crescente de novos projetos. Com a maior pre-
sença de deputados federais do PT na Câmara a partir de 2003, a discussão
sobre o aborto se tornou mais frequente.

339
Rogério Sganzerla
Gráfico 05 – Bancada das Eleições em razão dos partidos

91 89 86
84
75 83
78 68
66
70
65 66
54
49
44 54
41
38
43
21

2002 2006 2010 2014


PT PMDB PSDB PFL/DEM PPB/PP

Fonte: Elaborado pelo autor

O reflexo dessa dinâmica também pode ser visto no STF. A partir


de 2003, o Presidente Lula indicou 08 Ministros (Cezar Peluso, Menezes Di-
reito, Ayres Britto, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joa-
quim Barbosa e Dias Toffoli) e a Presidente Dilma indicou 05 Ministros (Ro-
berto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux, Rosa Weber e Teori Zavascki). Os
únicos que se mantém, ainda hoje, indicados pelo Presidente Fernando Hen-
rique são Gilmar Mendes e Nelson Jobim. Logo, dos atuais 11 Ministros da
Corte, 09 são indicações do PT.
Para fins didáticos e de análise sobre o futuro do aborto, serão feitas
duas divisões: individual e coletivo.
Na divisão individual há três tipos de decisões: da(o) Presidente,
da(o) relator(a) ou juiz(a) (seja do processo quanto do projeto de lei) e tam-
bém da(o) autor(a) do projeto ou demandante da causa. Eles contrastam com
as decisões coletivas: do Plenário (STF e Congresso Nacional), grupos (tur-
mas e comissões) e demandantes (ações coletivas).
Na figura da(o) Presidente, tanto no STF quanto na Câmara dos De-
putados (e Senado Federal igualmente) ela(e) é quem possui a atribuição de

340
Qual o futuro da sexualidade no direito?

confecção da pauta de votação. No Congresso, sua principal competência é


definir a pauta de proposições a serem deliberadas pelo Plenário, tendo por
costume fazer uma reunião semanal com o Colégio de Líderes para definir os
assuntos mais importantes para julgamento. Já no STF, cabe selecionar, den-
tre os processos liberados, aqueles que serão julgados na sessão. Portanto, o
papel da/o Presidente, tanto na Câmara/Senado quanto no STF, significa le-
var à decisão coletiva (aprovação ou rejeição) uma escolha realizada individu-
almente (pauta).
Nesse sentido, o/a Presidente só levará ao Plenário pautas que forem
de seu interesse, ainda que pressionada(o) de alguma forma para isso. Per-
cebe-se que a inclusão de ações coletivas no STF a partir de 2005 com a re-
produção assistida e em 2008 com a interrupção de gravidez de feto anence-
fálico vai de encontro com o interesse do Presidente, inclusive com seu silên-
cio. No Congresso, exceto em 1979 com a aprovação de uma lei que alterava
a Lei de Contravenções Penais20, não houve qualquer outra ação levada a dis-
cussão em Plenário até os dias atuais. Todas as discussões foram realizadas
em Comissões.
Nessa linha que há o segundo tipo de figura: relator do processo/pro-
jeto de lei e o juiz da causa. Assim como a(o) Presidente, ele tem o poder de
travar o andamento do projeto/processo ou despachá-lo de forma mais rá-
pida caso necessário.
Mas até que ponto isso influencia a decisão coletiva?
De forma a priori, ao receber o processo, o(a) relator(a) é quem define
quando o processo está liberado para julgamento, seja na Turma (STF) ou
Comissão (CN) seja em Plenário. Na história dos projetos de lei pesquisados,
o relator, em uma Comissão da Câmara dos Deputados, nunca teve seu pare-
cer contrariado pelo coletivo. No STF, dos setenta e oito (78) acórdãos, em
apenas quatro (04) o voto relator foi vencido. Em outros quatro (04) casos,
apesar de não vencido, seu voto foi discordado. Nos demais, houve unanimi-
dade nos julgamentos. Interessante notar que apesar dos quatro (04) acórdãos
nos quais o relator saiu vencido, todos eles são anteriores a 1979. Além disso,
até mesmo nas ações coletivas recentes que o Tribunal Pleno julgou a decisão
final segui os termos do voto do relator. Significa dizer que o STF, assim

20 Lei 6734/1979, alterando o art. 20 da Lei de Contravenções Penais sobre “Anunciar

processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”, retirando a expressão original


ao final “ou evitar gravidez”.

341
Rogério Sganzerla

como a Câmara dos Deputados, possui uma grande reverência pelo voto do
relator sendo que, após 1988, não houve uma única decisão da Turma ou do
Plenário que contrariasse o voto do relator do caso, apesar de haver casos nos
quais ele foi discordado, porém não vencido.
Por fim, a terceira análise se dá sobre a figura do demandante. Até
este momento, a análise se deu sobre aquele que recebe a demanda, o julgador
ou o tomador de decisão. Agora, a investigação se dará sobre aquele que a
propõe. Pergunta-se: até que ponto o autor ou demandante de um pro-
cesso/projeto de lei influência na decisão coletiva do Plenário, grupo ou Co-
missão?
Importante focar a análise sobre a coletivização da demanda. Como
demonstrado, até 2004 não houve ações coletivas julgadas pelo STF. Con-
tudo, isso não impediria que tal demanda tivesse um efeito erga omnes em razão
do seu tema. Poder-se-ia, por exemplo, ter dado repercussão geral a um habeas
corpus que demonstrasse a transcendência da causa em termos de direito em
razão da relevância qualitativa do tema. Hoje em dia, o recurso extraordinário
tem como requisito necessário a existência de repercussão geral para ser co-
nhecido no STF (art. 1.030, I, a, e 1.035, ambos do CPC). Nesses termos, é
preciso que a decisão impugnada contrarie súmula ou jurisprudência domi-
nante do Supremo Tribunal Federal ou tenha reconhecido a inconstituciona-
lidade de tratado ou de lei federal (art. 1035, §3º, CPC). Além disso, também
é possível ter um incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976 e
ss, CPC), sendo esta uma técnica do Tribunal de origem, em uma demanda
individual, a fim de uniformizar a jurisprudência efetiva em processos repeti-
tivos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de di-
reito, com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Levando em conta essas hipóteses, o que se verifica é que, indepen-
dentemente do tipo de ação (individual ou coletiva), a demanda, em sua rele-
vância qualitativa, foi sempre trazida para o caso concreto e não para reper-
cussão geral. Somente em 2005 com as ações coletivas é que as demandas
passaram a tratar de temas que poderiam atingir não só os autores da ação,
mas também outras pessoas que estivessem em iguais condições.
Portanto, antes de seguir com as críticas, faz-se um resumo sobre as
constatações acima descritas: a) a figura individual é bastante presente na
questão do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, especial-
mente nos casos envolvendo aborto, seja pelo Presidente, do Relator/Juiz e

342
Qual o futuro da sexualidade no direito?

do autor/demandante; b) a figura do(a) Presidente, como definidor da pauta


de julgamentos pelo Plenário, demonstra que ele(a) é quem determina o tema
que é relevante para ser debatido; c) a figura do(a) relator(a), como orientador
para a decisão da Turma ou Comissão, demonstrando que ele(a), seja a priori
com a liberação do processo para a definição de pauta pelo(a) Presidente, seja
a posteriori com o seu voto, é figura detém o poder, quer no Congresso Naci-
onal (que nunca teve uma Comissão contrariando um parecer do relator em
caso sobre aborto), quer no Supremo Tribunal Federal (que desde 1988 não
teve um caso de decisão coletiva contrariando um voto do relator em caso
sobre aborto); d) a figura do(a) demandante/autor, como input para os julga-
mentos ou projetos de lei que, após 2003, passaram a ter uma temática cuja
repercussão passou a se tornar mais geral e transcender simplesmente as ques-
tões particulares dos envolvidos diretamente com a questão.
Assim, tendo esse quadro em mente, é importante se perguntar: qual
o futuro do aborto?
Enquanto a figura da(o) Presidente é importante para a definição da
pauta, a figura coletiva no tema do aborto é trabalhada de forma diferente nas
Instituições: enquanto que no STF a definição de pauta veio numa crescente
em prol dos Direitos Humanos a partir de 2003 com discussões de interesses
gerais e pelo Plenário, o Congresso Nacional não teve qualquer debate sobre
o aborto no Plenário. Todas as discussões se restringiram a uma coletividade
limitada nas Comissões.
Essa diferenciação explica muito do contexto recente sobre o aborto
no Brasil. Segundo estudo elaborado recentemente21 pela prof. do Instituto
de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli sobre as
condições políticas de debate sobre direitos sexuais e reprodutivos na legisla-
tura de 2014, há um reacionário crescente na Câmara dos Deputados que ex-
põe riscos conservadores para um futuro próximo.
Segundo a professora, este é o Congresso mais reacionário desde a
ditadura militar. Os partidos de esquerda, historicamente vinculados à agenda
de direitos e com maior permeabilidade à agenda feminista e LGBT, estão
com representação reduzida (vide a diminuição do número de deputados dos
partidos e a proliferação de bancadas). Por sua vez, ampliou-se a presença das
religiões, com triplicação da bancada evangélica desde 2003, pulverizando-se

21 Disponível em: http://redesaude.org.br/comunica/wp-content/uploads/2016/10/Es-

tudo-Flavia-Biroli-29-09-2016_def.pdf

343
Rogério Sganzerla

esta, hoje, em 22 diferentes partidos. Os evangélicos compõem a Bancada


Religiosa junto com católicos dogmáticos, e estes unem forças em torno da
pauta regressiva sobre sexualidade e gênero. Isto sem falar das alianças pro-
duzidas na chamada Bancada BBB - boi, bala e bíblia – com permuta de
apoios entre a agenda anti-direitos sexuais e reprodutivos e a agenda neolibe-
ral, sustentada por representantes do empresariado. Esta aliança segura a ban-
deira moralista em nome dos direitos da família, desprezando direitos indivi-
duais, a agenda dos movimentos sociais e os marcos regulatórios produzidos
pela luta desses movimentos, às vezes apontados como desintegradores dos
alegados “valores e formas de vida legítimos”.
Numa perspectiva futura, tem-se uma nova dualidade: a repressivi-
dade do Executivo e Legislativo contra a permissividade do Supremo Tribu-
nal Federal. Explica-se.
A partir de 12 de setembro de 2016, a Presidência Carmen Lúcia to-
mou posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal, lugar no qual ocu-
pará pelo menos até 2018. Como segunda Presidente feminina da história,
ainda é cedo para se analisar suas ações. Porém, interessante é notar suas pre-
ocupações para a definição da pauta. Um dia após a posse, se reuniu com os
27 Presidentes dos Tribunais Estaduais para definir políticas públicas a partir
da realidade e necessidade dos estados22. Frisou também a preocupação com
temas sociais e defendeu a atuação do tribunal, rejeitando a ideia de que os
Ministros e Ministras estariam substituindo o Congresso23. Logo, há uma
perspectiva de atuações opostas entre Legislativo e Supremo Tribunal Fede-
ral, ao menos em temas sociais.
Diz-se isso, pois, conforme bem explica a prof. Flávia Biroli, as pers-
pectivas do Legislativo atual estão completamente ligadas ao Executivo. As
imediatas medidas e nomeações do vice Michel Temer ao assumir interina-
mente o governo, em maio de 2016, evidenciaram a guinada de paradigma em
direção ao estreitamento de direitos previdenciários e trabalhistas, direitos à
educação e saúde, à informação, à liberdade de expressão, à participação po-
pular. Ao enxugar em 18% os ministérios, chamou para a equipe membros
dos partidos derrotados nas últimas eleições. Neste pacote o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos foi rebaixado para

22 Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,carmen-lucia-assume-stf-

com-pauta-anticorporativista,10000075424
23 http://jota.info/carmen-lucia-prepara-pauta-tematica-para-o-stf

344
Qual o futuro da sexualidade no direito?

uma secretaria do Ministério da Justiça e Cidadania cujo novo ministro, Ale-


xandre de Moraes (PSDB/SP), tem em seu currículo o desempenho na Se-
cretaria de Segurança do governo Alckmin, onde exerceu dura repressão aos
protestos e manifestações públicas em São Paulo. Rompeu-se o diálogo com
os movimentos sociais (e particularmente com os movimentos feministas) e
não há o que se esperar em termos de política de igualdade e direitos huma-
nos, dos direitos específicos de povos indígenas, da população negra e da po-
pulação LGBT. Enquanto isto, em meio ao movimentado cotidiano do gabi-
nete interino, registrou-se a audiência em que Temer recebeu uma delegação
de parlamentares evangélicos.
Biroli continua suas afirmações dizendo que, mais do que antes, a
agenda do aborto está abertamente submetida à pauta conservadora. Na Câ-
mara, Eduardo Cunha resistiu até onde pôde. Ao ser afastado pelo STF, saiu
da cena aberta, mas prosseguiu trabalhando nos bastidores para influenciar a
escolha de seu substituto na presidência da casa. A eleição foi disputada e
definida em segundo turno, com o candidato apoiado por Cunha derrotado
pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com Maia a agenda neoliberal ganha
fôlego, e garante-se um ambiente propício à aprovação do pacote econômico
de Temer. Mas Maia poderá dificultar o poder de agenda dos “fisiologistas e
regressistas” quanto a valores e aos direitos humanos e de minorias, o que
significa perda de prioridade, na agenda parlamentar, para projetos como o
Estatuto da Família ou projetos regressivos com relação à liberdade reprodu-
tiva e questões de gênero. Rodrigo Maia afirmou à imprensa que não pautará
o projeto “Escola sem Partido” (em tramitação no Senado) e tampouco pro-
jetos sobre aborto ou drogas, e que dará ênfase à crise econômica, política e
ética. Entretanto, sabe-se que o parlamentar não está livre de pressões da ban-
cada dogmático religiosa nem tem compromisso com a laicidade do Estado.
Por fim, Biroli vê duas propostas perigosas, ambas de 2015 (uma na
Câmara e outra no Senado) que pretendem inserir o direito à vida desde a
concepção no preâmbulo da Constituição. Afirma que elas podem prosperar
diante das condições regressivas da política. O que está em questão, assim,
são os padrões que as alianças entre o reacionarismo dogmático-religioso e o
projeto neoliberal assumirão a partir de agora.

345
Rogério Sganzerla

Conclusão

A partir das investigações realizadas pode-se dizer que o histórico de


julgamentos e projetos de lei sobre aborto demonstram a seguinte conclusão:
trata-se de um tema importante para as mulheres de forma coletiva, mas que
tem o poder centralizado na figura individual do(a) Presidente (dos Poderes)
e do relator (do processo/projeto de lei), que em sua grande maioria são exer-
cidos pelo sexo masculino (02 de 11 Ministros no STF, 45 de 513 Deputados
na Câmara e 27 de 81 Senadores no Senado).
Como principais entraves pode-se constatar: a) somente com um par-
tido na Presidência da República que tem em sua bandeira a defesa dos direi-
tos sociais, no caso o PT, é que o tema foi mais debatido e discutido na Câ-
mara dos Deputados e no Supremo Tribunal Federal; b) apesar da equanimi-
dade de cadeiras entre homens e mulheres não significar que elas serão a favor
do aborto, o entrave do poder de decisão individual estar na figura do Presi-
dente da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, que em sua
maioria hoje são do sexo masculino, significa dizer que o debate coletivo so-
bre a sexualidade feminina está, principalmente, na mão de um homem; c)
apesar da crescente pauta coletiva no STF, é preocupante que, nos últimos
tempos, a mulher tem se tornado menos presente como demandante dos pe-
didos individuais, significando que o “terceiro” que causou o aborto (com ou
sem consentimento) é quem tem o seu direito garantido pelo acesso à Corte
Suprema; d) grande parte das discussões sobre aborto são tomadas em grupos
(comissões ou turmas), ficando a cargo de maior manipulação política dos
grupos hegemônicos e conservadores no poder, não possibilitando restrin-
gindo ainda mais a discussão do tema; e) quando o poder conservador e re-
pressivo do autor, relator e Presidente estão na mesma pessoa, o sistema tende
a sofrer um forte retrocesso, vide a Presidência de Eduardo Cunha durante
2015 e 2016; f) apesar do STF ser uma possível válvula de escape para a dis-
cussão da sexualidade da mulher sobre o tema do aborto, somente com a
Presidência feminina é que o tema passou a ter mais visibilidade na pauta da
Corte, demonstrando a importância da representação no órgão.
Trazendo novamente a questão título desta pesquisa “Qual o futuro
da sexualidade no Direito?”, pode-se perceber dois cenários distintos. O Su-
premo Tribunal Federal, cujo histórico repressivo tendeu a uma pauta mais

346
Qual o futuro da sexualidade no direito?

coletiva e com perspectivas a permissividade, e o Congresso Nacional, cujo


histórico é amplamente repressivo, mas que nos últimos tempos teve uma
crescente perspectiva de melhora. Contudo, com perda de credibilidade do
PT desde 2014 e a Presidência do Deputado Eduardo Cunha, vigente de 01
de fevereiro de 2015 a 07 de julho de 2016 (renúncia), houve uma ocupação
ideológica da Bancada Religiosa a fim de unir forças em torno de uma pauta
regressiva sobre a sexualidade e o gênero.
De um lado, o histórico repressivo sobre a sexualidade no Supremo
Tribunal Federal tende a ser diluído com a manutenção dos Ministros e Mi-
nistras indicados pelo PT desde 2003 e uma atuação maior em pautas sociais
e de Direitos Humanos. Já o Congresso Nacional tende a manter o caráter
repressivo sobre a sexualidade especialmente com a perda de espaço do PT e
o avanço da Bancada BBB – boi, bala e bíblia. Nesse sentido, o Supremo
Tribunal Federal segue como uma possível válvula de escape para a efetivação
de direitos sexuais e reprodutivos relacionados ao aborto, especialmente nas
políticas públicas e também na defesa de direitos das mulheres.

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350
14
MULHER NEGRA:
IDENTIDADES FORJADAS PELA NEGAÇÃO

Carolina Pires1
Clarissa Cunha Felix2

A
mulher negra, considerando o fenômeno da diáspora afri-
cana3, tem a sua trajetória atravessada cotidianamente por
experiências permeadas pelo racismo e discriminação em
relação a gênero, para além de outros tipos de opressão. Neste artigo busca-
mos refletir sobre as identidades da mulher negra forjadas na sua interação
com uma sociedade que lhes nega direitos e espaços. Alguns leitores podem
se questionar se o feminismo contém o Movimento de Mulheres Negras, se

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito; Bolsista CAPES;

Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).


Membro do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia; Coordenadora do Pro-
jeto de Pesquisa Anastácia Bantu; Membro do Coletivo Justiça Negra Luís Gama; Coorde-
nadora do Grupo Movimento 205
2 Cientista Social e advogada. Estudante do Mestrado do Programa de Pós-Graduação So-

ciologia e Direito (Curso Ciências Jurídicas e Sociais). Bolsista CAPES; pesquisadora das
Temáticas: Prisões, Violência, Segurança Pública e Questões Raciais; Membro do Grupo
SDD; associada ao Grupo Tortura ou Nunca Mais – Bahia.
3 Trata-se por diáspora africana a dispersão, o sequestro, o deslocamento forçado e trânsito

de africanos para diversos territórios durante o período da escravização. Segundo Stuart Hall,
o conceito de diáspora africana “está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclu-
são e depende da construção de um ‘Outro’ e de uma oposição rígida entre o dentro e o
fora” (HALL, 2008, 32).

351
Carolina Pires & Clarissa Felix

não falaríamos da mesma coisa. No entanto, as intelectuais negras contempo-


râneas convergem suas respostas para que construamos referenciais descolo-
niais que respondam as nossas questões sem nos colocar em condições de
subalternidade ou de “objetos de pesquisa”.
É importante ressaltar que este artigo foi escrito por duas intelectuais
e ativistas do Movimento Negro4 no Brasil e em alguns momentos a escrita
será apresentada na primeira pessoa para evidenciar o lugar de fala. Desse
modo, nos inspiramos nas intelectuais e ativistas negras Jurema Werneck,
Nilza Iraci e Simone Cruz para propor uma escrita onde os estereótipos sejam
desconstruídos e a nossa autonomia preservada para falar de questões que
atingem a identidade das mulheres negras. Assim, pretendemos realizar “o
enfrentamento ao racismo, ao sexismo, à opressão de classe, à lesbofobia e a
todas as formas de discriminação, a fim de contribuir para a transformação
das relações de poder existentes no Brasil” (WERNECK; IRACI; CRUZ,
2012, 10)
Para entender os por quês da seletividade do sistema penal, vulnera-
bilidade das mulheres negras, genocídio da juventude negra, criminalização
dos territórios negros, é preciso retornar aos referenciais histórico-sociais,
pois sabemos que a ciência esteve atrelada a interesses de dominação e esta-
mos unidas para colaborar no processo de ruptura. A fim de atingir o debate
sobre as questões raciais, se faz mister reconhecer o processo histórico de
formação das sociedades. Utilizaremos, assim, a sabedoria africana: Sankofa5
(retorne e avance!). Portanto, para compreender qual o futuro da sexualidade
das mulheres negras no Direito, é necessário voltar ao passado para viver E
entender bem o presente e realizar uma construção sólida para o futuro.

4 O Movimento Negro é uma forma de organização e mobilização política da sociedade

civil centrada em uma identidade étnico-racial - negro, afrodescendente, afro-brasileiro - e


com o objetivo de luta contra a discriminação racial dos negros em diferentes instituições e
espaços sociais: escolas, universidades, hospitais, clubes, restaurantes, shoppings centers, ho-
téis, entre outros lugares. O movimento tem como meta a perspectiva da igualdade e da
justiça social entre negros e brancos. Disponível em: http://www.comfor.unifesp.br/wp-
content/docs/COMFOR/biblioteca_virtual/UNIAFRO/mod1/Disc3-Unidade5-
UNIAFRO.pdf
5 Sankofa pode significar tanto a palavra na língua Akan do povo Akan que se traduz ao

português como "volte e pegue" (san - voltar, retornar; ko - ir; fa - olhar, buscar e pegar) ou
os símbolos Adinkras Ashantis de um pássaro com sua cabeça virada para trás pegando um
ovo de suas costas quanto um formato de coração estilizado. É frequentemente associado
ao provérbio: “Se wo were fi na wosankofa a yenkyi," que traduzido ficaria "Não é errado
voltar atrás pelo o que esqueceste" Disponível em:
http://www.adinkra.org/htmls/adinkra/sank.htm

352
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Antes de adentrar as origens históricas do racismo, precisamos fazer


uma breve reflexão sobre o acesso das mulheres negras aos direitos garantidos
universalmente, ou seja, os direitos garantidos a todos os cidadãos e cidadãs.
Se pretendemos responder ao questionamento acerca do futuro da sexuali-
dade no direito, é preciso dimensionar o quanto a categoria sexualidade, en-
quanto fenômeno social e histórico (WEEKS, 2000, 25), se constitui como
impedimento as mulheres negras para alcançar a igualdade de acesso a direi-
tos. Nesse sentido, a sexualidade é assimilada “como uma descrição geral para
a série de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente cons-
truídas e historicamente modeladas que se relacionam com o que Michel Fou-
cault denominou "o corpo e seus prazeres" (ibid).
Considerando que a sexualidade das mulheres negras é historica-
mente construída sob as percepções, atos e omissões de uma sociedade estru-
turalmente racista e machista, percebe-se que, seja na esfera pública ou pri-
vada, suas identidades são negadas a partir de um padrão eurocêntrico que
confronta a sua diferença de forma violenta. Portanto, as mulheres negras são
violentadas tanto quando são hipersexualizadas e reduzidas apenas a objeto
sexual, ou mesmo quando não se encaixam no perfil da mulher heterossexual,
provedora do prazer masculino, como por exemplo, mulheres lésbicas. Neste
último caso, tendem a ser brutalizadas e até mesmo assassinadas por não se
encaixarem no padrão de comportamento que a perspectiva machista espera
delas.
Ao pensar em termos da violência direcionada sobre a vida das mu-
lheres negras e perpetrada pelo Estado, chegamos ao conceito de violência de
gênero, que aparece pela primeira vez em 1995, na publicação do livro “Vio-
lência de Gênero: Poder e Impotência” de Heleieth Saffioti e Sueli Souza de
Almeida. Esse termo amplia a compreensão em torno do conceito de violên-
cia contra a mulher. No início, Saffioti desenvolveu o conceito com o fim de
estender a violência doméstica a familiar, porém, posteriormente, ampliou sua
concepção.

Em publicação mais recente sobre gênero, patriarcado e violência, Saffioti de-


fine “violência de gênero” como uma categoria de violência mais geral, que pode
abranger a violência doméstica e a violência intrafamiliar. Segundo a autora, a vi-
olência de gênero ocorre normalmente no sentido homem contra mulher, mas
pode ser perpetrada, também, por um homem contra outro homem ou por uma
mulher contra outra mulher. (SANTOS; IZUMINO, 2005, 11)

353
Carolina Pires & Clarissa Felix

Embora Saffioti reconheça a amplitude que a palavra gênero com-


porta, a autora não “abandona o paradigma do patriarcado e continua defi-
nindo violência como expressão da dominação masculina” (ibid). Por outro
lado, outras autoras têm estendido essa noção de violência, considerando a
diversidade de gênero, atrelada a outros fatores discriminatórios, como por
exemplo raça/etnia, orientação sexual, dentre outras.

Nesse sentido, é importante que se estude como a construção social tanto da


feminilidade quanto da masculinidade está conectada com o fenômeno da violên-
cia. Além disso, seja em situações de violência conjugal ou de outras formas de
violência contra as mulheres – tais como, violência policial contra prostitutas, vi-
olência contra mulheres negras e violência contra lésbicas –, as práticas de violên-
cia e as respostas dadas pelos agentes do Estado e por diferentes grupos sociais
podem estar relacionadas não apenas a questões de gênero, como também de
classe social, raça/etnia e orientação sexual, entre outras categorias socialmente
construídas. (ibid)

Assim, para entender a atual dinâmica de violência praticada pelo Es-


tado contra mulheres negras, é primordial voltar ao passado e investigar o
processo de discriminação nas relações raciais. Destacaremos, para tal função,
o pensamento do intelectual e pesquisador negro Carlos Moore. O autor da
obra “Racismo e Sociedade” é um etnólogo, nascido em Cuba em 4 de no-
vembro de 1942, radicado na Bahia e referência nos estudos pan-africanistas.
Foi orientando de Cheikh Anta Diop6 e Secretário de Malcolm X. Moore, em
sua publicação Racismo e Sociedade (2012), defende que os primeiros con-
frontos de populações melanodermes e leucodermes7 datam do período Pa-
leolítico Superior8, confrontos motivados por batalhas por recursos.

O fenótipo de uma espécie desenvolve-se ao longo de complexos processos


nos quais as mutações genéticas randômicas favoráveis são fixadas pela seleção

6 Cheik Anta Diop nasceu em 29 de dezembro de 1923, no Senegal e faleceu em 7 de

fevereiro de 1986. Foi físico e etnólogo. Responsável por contribuir nos achados científicos
que revelam a contribuição do Continente Africano na história da humanidade.
7 Melanodermes são os povos de pele negra, oriundos do continente africano. Leucoder-

mes são povos oriundos dos melanodermes, porém, devido a situações climáticas e as con-
sequências de suas alterações, desenvolveram baixo nível de melanina, caracterizada como
pele branca.
8 O Paleolítico Superior é considerado como o período de 300 a 20 mil anos a.C., abran-

gendo o fim do Paleolítico e o início do Neolítico.

354
Qual o futuro da sexualidade no direito?

natural. As taxas elevadíssimas de melanina nos primeiros representantes do gê-


nero homo são um bom exemplo de uma solução evolutiva e adaptativa nas latitu-
des subequatoriais, onde o bombardeio de raios solares e ultravioletas era muito
intenso e muito provavelmente tornou inviável a existência de hominíneos bran-
cos durante um longo período da História da Humanidade. Outro aspecto que
pode ser observado é a morfologia do nariz de pessoas de regiões geoclimatica-
mente distintas. Os humanos arcaicos surgidos em regiões mais aquecidas, como
a África, apresentam nariz com abertura ampla e septo baixo, enquanto algumas
populações africanas que migraram há cerca de 70 mil anos, para povoar uma
região fria como a Europa, “desenvolveram” outra forma anatômica para o órgão,
com as narinas estreitas e septo alto. (MOORE, 2012, 30)

Moore desenvolve sua pesquisa fundamentado na Tese de Cheikh


Anta Diop, cujas teses estão consolidadas prioritariamente nas seguintes
obras: The African Origin of Civilizacion: Myth or Reality (1974), The Cultu-
ral Unity of Black Africa (1989), Civilizacion or Barbarism – Na Authentic
Antropology (1991). Esse achado científico foi documentado pelo físico se-
negalês Diop que realizou pesquisas que revelaram o surgimento dos conflitos
raciais. Para isso, foi preciso realizar estudos de fósseis, dentre outros achados
arqueológicos. Diop foi o primeiro pesquisador a afirmar que a humanidade
surgiu no continente africano com o aparecimento das populações melano-
dermes que se espalharam por todos os continentes que na atualidade conhe-
cemos. Dizemos todos os continentes inclusive no que hoje denominamos
continente americano. E logo descobriram a agricultura e se sedentarizaram.

A teoria diopiana pressupõe que, inicialmente, dois “berços” tenham consti-


tuído as duas linhas básicas de evolução do conjunto da Humanidade a partir do
período que marcou a transição geral para um modo agrícola e sedentário de sus-
tentação. Sabemos que esse fenômeno ocorreu, de maneira geral, na fase final do
Paleolítico superior, entre 10 e 8 mil anos a. C., que corresponde a mudanças
drásticas do clima no mundo inteiro, em virtude do aquecimento do planeta como
consequência da retirada da última glaciação Würm. Essa mudança climática teve
como consequência a libertação das populações euro-asiáticas (proto-europeus,
por um lado, e sino-nipônico-mongóis, por outro) do inóspico habitat gelado em
que foram aprisionadas durante um longo período de talvez 20 mil anos. Segundo
Diop, até segundo milênio a. C., aproximadamente, as sociedades teriam evoluído
separadamente em dois grandes berços civilizatórios (matriciais) que, ulterior-
mente, se ramificaram em “berços civilizatórios derivados”, como resultado dos
encontros migratórios, das conquistas de território, da fusão biológica e dos pro-
cessos de extermínio que esses encontros de povos da Antiguidade produziram
(...) Com isso, uma das grandes contribuições de Diop consistiu na restituição

355
Carolina Pires & Clarissa Felix

dessa complexidade do acontecer histórico, recolocando em seu devido lugar o


protagonista que foi expulso da história – os povos africano-dravidiano-melané-
sicos (“meridionais”): cuja extensão e preeminência planetária teriam sido pre-
ponderantes até o final do segundo milênio a. C. (MOORE, 2012. 124 a 125)

No período paleolítico superior9, houve mutação genética e uma


adaptação ambiental o que favoreceu o aparecimento das populações leuco-
dermes no que hoje denominamos Europa e Ásia. Essas populações oriundas
de regiões inóspitas (frios severos) acostumados a travar combates com gran-
des animais, eram nômades e iniciaram o seu processo de conquistas por no-
vos territórios. Naquele momento, os melanodermes eram sedentários, ou
seja, já estavam fixados nos territórios se confrontaram com essas populações
nômades e guerreiras. Assim, passaram pelo estreito de Bering e também
guerrearam em nossas terras. A partir daí, identificamos o primeiro marco dos
conflitos.

Diop argumenta que, na fase final do Paleolitico, havia-se constituído um


“berço meridional” em regiões de clima ameno, onde teria eclodido a agricultura,
o que é exemplificado pela evolução do Continente Africano. Postulou que as
populações que viveram até o segundo milênio antes de Cristo, em latitudes onde
a natureza e o clima eram clementes desenvolveram estruturas societárias simila-
res. Nesse berço, teriam sido gestadas civilizações baseadas na vida social comu-
nitária e, por conseguinte, dominada pela propriedade coletiva e normalizada por
um regime de tipo matriarcal. Trata-se de estruturas sociais e políticas concêntri-
cas com um forte teor feminino no que diz respeito ao modo de interação entre
os grupos, os indivíduos e entre as instancias sociais. (MOORE, 2012, 119-120)

Sobre as populações melanodermes, Moore as caracteriza como,


“berço meridional”:

(...) Segundo ele, esse berço “é caracterizado pela família matriarcal e a criação
do estado territorial, em contraste com a cidade-Estado ariana [indo-europeia]”
(1989, p. 177). Essas estruturas de sociedade se basearam, essencialmente, na con-
centralidade social horizontal, na policonjugalidade, na matricentralidade e na
propriedade comum do solo. Elas são regidas por complexas redes de interrelação
social subordinadas ao conceito de dever-obrigação como base de conduta indi-
vidual e coletiva. No berço civilizatório “meridional”, a mulher goza de uma po-
sição de destaque na comunidade, sendo ela emancipada da vida doméstica. O

9 Essas discussões foram destacadas nas Obras de Moore e Diop.

356
Qual o futuro da sexualidade no direito?

caráter feminino deste tipo de sociedade, fortemente uterocêntrica, voltada para


a cooperação solidária, teria secretado uma percepção positiva da alteridade, de
maneira a conceber o Outro – seja qual for – como parceiro, não como inimigo.
Assim a xenofilia, o cosmopolitismo e o coletivismo social são expressões espe-
cificas deste berço, tornando-se dados culturais intrínsecos (...) Esse modelo de
organização social centrado na mulher teria produzido valores morais e éticos
fundamentalmente pacíficos, orientados para a manutenção da paz social em so-
ciedades divididas em hierarquias, classes e ordens de diversas naturezas. Segundo
Diop, essa realidade conduziu a “um ideal de paz, de justiça e de bondade, assim
como um otimismo que anula, nas instituições religiosas e metafísicas, qualquer
noção de culpa ou o pecado original” [idem, ibidem]. (...) Teria existido, efetiva-
mente, uma ordem social, política e econômica matricêntrica planetária surgida da
adoção, no Neolítico (....) houve uma anterioridade das estruturas matriarcais no
mundo inteiro e o fenótipo dessas populações responsáveis pelo advento da agro-
produção era radicalmente diferente dos invasores patriarcais que iriam substituí-
los, estar-se-ia confrontando um problema de dupla alteridade conflitante.
(MOORE, 2012, 120-121)

É possível identificar no trecho acima destacado a relação que a so-


ciedade dos melanodermes mantinha seus valores morais e sociais de acordo
com as estruturas matriarcais. As mulheres ocupavam a centralidade da vida
sócio-comunitária, desempenhando um papel fundamental nas decisões do
grupo. Sobre os leucodermes, cuja organização se diferenciava dos melano-
dermes, sua composição social era voltada para a figura masculina. Moore os
define também por berço setentrional:

O universo euro-asiatico, denominado por Diop como “berço setentrional” –


configurado pela Europa mediterrânea, mas englobando também o Oriente Mé-
dio semita -, surgiu como espécie de antinomia evolutiva, suscitada pelas duras
condições de vida nas regiões geladas, nas quais as populações ancestrais dos eu-
ropeu e dos semitas (proto-europeus-semitas) se viram constrangidas a existir du-
rante um longo período de tempo. Nas estepes euro-asiáticas, explicou Diop, a
vida esteve em constantemente em perigo em virtude dos rigores do clima; o solo
gelado impediu a transição para a agricultura e prolongou a dependência na caça;
a temperatura extremamente baixas constrangeram o homem a morar em lugares
fechados e a se vestir abundantemente. Este berço se erigiu, portanto, em torno
de estruturas de competição, de hábitos materialistas, da prática da guerra, da con-
quista, do militarismo, do culto da propriedade privada e da visão xenofóbica.
Estamos diante de sociedades profundamente patricêntricas, falocêntricas e into-
lerantes perante qualquer forma de alteridade, sociedades que menosprezam o
input feminino. (....) A agressividade herdada da visão nômade, endossada pela

357
Carolina Pires & Clarissa Felix

centralidade social dos homens, conduziu, desenfreadamente, ao ideal de guerra,


de violência, de crime e conquista. Essa falta de freios sociais, que teria sido con-
sequência dos impulsos de agressividade suscitados pelas condições reinantes no
berço setentrional, condenou culturalmente essas comunidades à autoimputação
de culpabilidade e à admissão da existência de um pecado original. (MOORE,
2012, 121-122)

Faz-se necessário lembrar que na academia aprendemos que as teo-


rias segregacionistas datam a partir do século XVIII, com Darwin; Francis
Galton (1822-1911), primo de segundo grau de Darwin; O italiano Cesare
Lombroso (1835-1909); O psicólogo e sociólogo Herbert Spencer (1820-
1903) No entanto, ao final do século XIX, alguns evolucionistas buscaram
encontrar fundamentos na natureza, na ciência, a legitimar a dominação ét-
nico raciais através de comportamentos ou sistemas econômicos e sociais
(Gillaume Lecointre). Essas teorias segregacionistas defendem a superiori-
dade de uma “raça” em detrimento a outra, ou seja, hierarquiza as sociedades
em uma pirâmide que parte do estágio de Civilização; intermediário, a barbá-
rie; e; o ponto de partida a Selvageria. Essas teorias fundamentam o antisse-
mitismo, racismo, nazismo e o fascismo.

Um dos maiores problemas que continuam a desafiar as ciências humanas é o


da origem e do desenvolvimento do racismo na História. Tratar deste tema im-
plica, também, elucidar outro problema não menos contencioso: a questão de
“raça”. É nessa ordem de ideias que surge um terceiro e eminente espinhoso pro-
blema: o verdadeiro papel dos povos melanodérmicos na história. Comecemos
por diferenciar as três questões anteriores e enfatizar que elas são interdependen-
tes. Os avanços da ciência nos últimos cinquenta anos do século XX esclarecem
um grande equívoco oriundo do século XIX, que fundamenta o conceito de
“raça” na biologia. Raça não é conceito que possa ser definido seguindo critérios
biológicos. Porém, raça existe: ela é uma construção sociopolítica, o que não é o
caso do racismo, um fenômeno que antecede sua própria definição. Racismo é o
fenômeno eminentemente histórico ligado a conflitos reais ocorridos na história
dos povos. Se efetivamente, como pensamos, o racismo remete à história longín-
qua da interação entre as diferentes populações do globo. (...) A noção de que
povos da raça negra desempenham um papel irrisório na longa e complexa trama
da humanidade foi forjada durante o recente período sombrio da História hu-
mana, constituída pela conquista das Américas e a escravização dos africanos nes-
tas terras... (MOORE, 2012, 31-32)

358
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Desse modo, o espaço acadêmico10 também fora usado para favore-


cer o processo de dominação, ao legitimar teorias de origem europeia e igno-
rar referenciais teóricos negros, estabelecendo estereótipos provenientes de
relações racistas. Por esse motivo acreditamos ser importante dominar essas
ferramentas, contudo, necessitamos ampliar nossas pesquisas em referenciais
descoloniais.
Em um primeiro momento, para compreender as relações raciais
exercidas sobre o corpo e a identidade da mulher negra, trabalharemos com
o conceito de racismo institucional. Este conceito foi pensado com o objetivo
de evidenciar a reprodução do racismo, a seletividade racial, dentro das insti-
tuições públicas e privadas, mostrando os marcadores da diferença entre ne-
gros e brancos. Por conseguinte, demonstra a diferença de tratamento e opor-
tunidades, dentro dos espaços privilegiados, em razão da cor, raça ou etnia.
O termo racismo institucional foi enunciado pela primeira vez no livro “Po-
der Negro”, em 1967, escrito por dois intelectuais e ativistas do Partido dos
Panteras Negras.

O conceito de Racismo Institucional foi definido pelos ativistas integrantes


do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, para
especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da socie-
dade e nas instituições. Para os autores, “trata-se da falha coletiva de uma organi-
zação em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua
cor, cultura ou origem étnica. (GELEDÉS, 11)

10 A negação dos saberes não-ocidentais nos espaços acadêmicos termina por legitimar o

pensamento eurocêntrico como única fonte do saber. Assim, todo o pensamento africano
ou oriental, por exemplo, é considerado inferior ao padrão acadêmico. Sobre o assunto des-
tacamos um trecho da obra do Professor Ramon Grosfoguel, do Departamento de Estudos
Étnicos da Universidade da Califórnia: “En las universidades occidentalizadas, el conocimi-
ento producido por epistemologías, cosmologías y visiones del mundo «otras» o desde geo-
políticas y corpo-políticas del conocimiento de diferentes regiones del mundo consideradas
como «no-occidentales» con sus diversas dimensiones espacio/temporales se consideran «in-
feriores» en relación con el conocimiento «superior» producido por los hombres occidentales
de cinco países que conforman el canon de pensamiento en las humanidades y las ciencias
sociales. El conocimiento producido a partir de las experiencias histórico-sociales y las con-
cepciones de mundo del Sur global, también conocido como el mundo «no-Occidental» , se
consideran inferiores y son segregadas en forma de «apartheid epistémico» (Rabaka, 2010)
del canon de pensamiento de las disciplinas de la universidad occidentalizada. Más aún, el
conocimiento producido por las mujeres (occidentales y nooccidentales) también es inferio-
rizado y marginado del canon de pensamiento. Las estructuras de conocimiento fundaciona-
les de la universidad occidentalizada son epistémicamente racistas y sexistas al mismo ti-
empo”. (GROSFOGUEL, 2013, 35). Disponível em: http://www.revistatabularasa.org/nu-
mero-19/02grosfoguel.pdf. Acesso em: 09.11.2016

359
Carolina Pires & Clarissa Felix

Fundado por Huey Newton e Bobby Seale, o Partido dos Panteras


Negras para Autodefesa, ou Partido dos Panteras Negras, surgiu como uma
organização nacional para proteger a população negra da violência policial nos
bairros periféricos. Desta maneira, os Panteras Negras monitoravam o com-
portamento da polícia nas comunidades negras para evitar que homens e mu-
lheres negros fossem submetidos a qualquer tipo de tratamento desumano
praticado pelo Estado. A organização tinha por orientação política o nacio-
nalismo negro, o maoísmo, o anticapitalismo, o antifascismo, o anti-imperia-
lismo, o marxismo e o socialismo revolucionário. Nesse contexto, o conceito
de racismo institucional surge na década de 1960, porém se consolida apenas
nos anos 90, conforme afirma a escritora Liana Lewis (2013):

O termo Racismo Institucional surgiu na década de 1960 através do Movi-


mento Negro Norte-americano, mas foi definido apenas na década de 1990 na
Inglaterra, como resposta ao assassinato do jovem negro Stephen Lawrence por
uma gangue branca. O Relatório Macpherson, documento judicial relativo ao
caso, ampliou a questão isolada do assassinato argumentando que não apenas os
policiais que lidaram com o caso operaram de forma discriminatória, mas a pró-
pria instituição policial acionou dispositivos diversos de leniência que findou, no
primeiro momento, com a absolvição de todos os criminosos. No Brasil, o Ra-
cismo Institucional é informado por uma maneira notadamente peculiar de lidar-
mos com a questão racial. A ideia de que, pelo fato de não possuirmos segregações
raciais legitimadas por um aparato jurídico, e as distinções territoriais e simbólicas
não serem nomeadas através de dualismos de cor como ocorre, por exemplo, nos
Estados Unidos, construímos nosso cotidiano de forma harmoniosa no que diz
respeito à questão racial, finda por legitimar o privilégio da população branca,
silenciando parte considerável da população negra e perpetuando uma desigual-
dade que se mantém sempre sob o atributo da diferença social. (2013, 11-12)

Pensar o comportamento das instituições públicas ou privadas é fun-


damental para compreender o acesso da população negra aos direitos funda-
mentais e sociais, garantidos pela Constituição Federal brasileira de 1988.
Dentro de uma sociedade historicamente racializada como a do Brasil, é im-
possível ignorar os resquícios da escravidão e a influência eugenista11 que se

11 O termo eugenia é originado do grego, significando boa origem. O movimento por eu-

genia entendia que a evolução social estaria atrelada à pureza das raças, e, portanto, buscou
a melhoria da raça, dada a situação da miscigenação no Brasil. Os eugenistas acreditavam que
a raça branca era pura e superior e que os povos de outras etnias como indígenas e negros

360
Qual o futuro da sexualidade no direito?

materializou através das políticas higienistas praticadas no início do século


XX e que se perpetua nas gestões administrativas atuais. Desse modo, consi-
derando a superlotação dos presídios e que a maioria de sua população é ne-
gra, o acesso de pessoas negras à justiça, que deveria ser imparcial, resta pre-
judicado diante das concepções racistas absorvidas pelas instituições.

O racismo institucional pode ser percebido como o “fracasso coletivo de uma


organização para prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por
causa de sua cor, cultura ou origem étnica”. Dentre as várias formas de identificá-
lo podemos citar a presença de atitudes e comportamentos racistas, tratamento
estereotipado e atos discriminatórios praticados contra pessoas, ou sujeitos cole-
tivos, com base em suas identidades étnico-raciais. Por outro lado, a ausência da
garantia do cumprimento dos direitos constitucionais, por parte de instituições
sociais, legitima atos e práticas racistas individuais que encontram suporte e abrigo
nas ações dessas instituições, o que concorre, sem dúvidas, para potencializar esse
tipo de racismo presente em várias sociedades, inclusive na brasileira. (PACE;
LIMA, 2011, 01)

Quando se pesquisa sobre as condições de vida do povo negro no


Brasil, os resultados demonstram que existe uma grande desvantagem em
comparação a situação da população branca, no que se refere ao exercício de
direitos. Seja nos campos da educação, saúde, habitação, segurança, mercado
de trabalho, dentre outros, a desigualdade é comprovada nos índices de de-
senvolvimento do país. Isso demonstra que o passado escravocrata deixou
graves consequências e que o racismo que está estruturado permeia as insti-
tuições públicas e privadas.

Reconhecer a existência dessa dimensão da desigualdade que tão profunda-


mente estrutura nossa sociedade e nosso Estado é essencial para enfrentá-la. E
reconhecer que ela se manifesta e se expressa em diferentes níveis, a partir de

eram povos primitivos e por isso, atrasados. Diversos estudos e alguns seminários sobre
eugenia foram realizados no Brasil, principalmente no campo da saúde, tendo médicos e
outros profissionais da área envolvidos. “Para muitos intelectuais brasileiros desse período,
clima e raça eram acionados não apenas para explicar os dilemas raciais e os problemas sani-
tários, mas também para compreender a incapacidade do Brasil em organizar-se como uma
nação moderna. A própria condição de ser brasileiro, de acordo com Renato Ortiz, era in-
terpretada em termos deterministas, tendo em vista que clima e raça transformavam-se em
mecanismos capazes de elucidar tanto a “natureza indolente do brasileiro” e “as manifesta-
ções tíbias e inseguras da elite intelectual”, quanto para explicar “o lirismo quente dos poetas
da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato” (SOUZA, Wanderley. Revista
Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 146-166, jul. | dez 2008, 148)

361
Carolina Pires & Clarissa Felix

diferentes mecanismos, também é fundamental para avançarmos em direção a


uma sociedade mais justa e igualitária. Entendemos que o racismo pode se ex-
pressar no nível pessoal e internalizado, determinando sentimentos e condutas;
no nível interpessoal, produzindo ações e omissões; e também no nível instituci-
onal, resultando na indisponibilidade e no acesso reduzido a serviços e a políticas
de qualidade; no menor acesso à informação; na menor participação e controle
social; e na escassez generalizada de recursos. (GELEDÉS, 9-10)

O conceito de racismo institucional foi acolhido e desenvolvido, pos-


teriormente, pelos intelectuais da Teoria Crítica da Raça – TCR, conhecida
também como Teoria Crítica Racial, movimento intelectual negro norte-ame-
ricano que propõe o mapeamento entre racismo e Direito observando que
este último produz, constrói e constitui o que se entende por raça, não só em
domínios onde raça é explicitamente articulada, mas também onde não é men-
cionada ou desconhecida. Outro objetivo é examinar as justificativas que de-
terminam quando a raça é ou deve ser evidente, não pretendendo apenas en-
tender a relação entre raça, poder e Direito, como também modificá-la.
(HARRIS, 2002, 01).

Originado do Critical Legal Studies, o referencial teórico apresentado


foi construído na década de 70 do século XX, no momento em que advoga-
dos, ativistas e acadêmicos estadunidenses perceberam a necessidade de en-
frentar a estagnação ou retrocesso de algumas conquistas relacionadas ao
exercício dos direitos civis. A Teoria Crítica da Raça funciona como um refe-
rencial teórico alternativo para uma discussão engajada do papel da dogmática
jurídica ou jurisprudência tradicionais no enfrentamento das relações raciais
hierarquizadas, cuja premissa básica se propõe a investigar a realidade usando
a raça como categoria privilegiada de análise. (LYRIO; PIRES, 2015, 61-62)
A Teoria Crítica da Raça se estabelece enquanto um “arcabouço teó-
rico legal que estuda de que maneira as políticas, práticas e leis pretensamente
neutras quanto à raça perpetuam a subordinação racial/étnica” (PARKER;
ROBERTS, 2015, 121). Além disso, a teoria em questão assegura que o ra-
cismo não é uma experiência rara em sociedades racializadas, mas sim cotidi-
ana. Sendo assim, compreende-se que se trata de práticas que foram naturali-
zadas ao longo do tempo, tornando-se comuns e assim imperceptíveis na di-
nâmica social. Os intelectuais da TCR apontam também a seletividade racial

362
Qual o futuro da sexualidade no direito?

no processo de efetivação de direitos, fato este que coloca em xeque a univer-


salidade das leis.
É importante ressaltar que a TCR compreende o conceito de raça a
partir de uma construção social e não sob um viés biológico. Desta maneira,
a referida teoria inova ao questionar o direito sob uma perspectiva racial, re-
futando a meritocracia como critério de avaliação no acesso das minorias ra-
ciais às instituições. Isto porque em qualquer processo de seleção “os critérios
que informaram a definição dos tais critérios objetivos são invisibilizados e
mais uma vez reforçada a crença na universalidade e neutralidade das socie-
dades modernas” (LYRIO; PIRES, 2015, 66).
Em vista disso, a Teoria Crítica da Raça se constitui como um alicerce
teórico metodológico que desafia a ideologia dominante ao questionar a neu-
tralidade quanto à cor e à raça, demonstrando como essa suposta neutralidade
mantém o poder e os privilégios de grupos dominantes (PARKER;
ROBERTS, 2015, 122). Isto posto, faz-se necessário pensar o papel do Di-
reito nessa relação de manutenção dos privilégios dos grupos dominantes e a
partir desta constatação pensar novas formas de combate ao racismo.
Consideradas essas circunstâncias, outro ponto importante a ser
mencionado é o questionamento da TCR sobre o contexto histórico único e
o foco unidisciplinar de atuação e interpretação do Direito. Ignorar o histó-
rico de discriminação racial em sociedades racializadas é manter a situação de
subordinação racial, o que prejudica a pretensa neutralidade acerca do Direito.

A teoria racial crítica oferece um questionamento do direito tradicional. O


direito estadunidense é baseado em precedentes de casos judiciais. Além desse
questionamento, buscam-se outras versões, histórias alternativas. Quando surge
algo numa corte, ou em um dossiê judiciário neste país, o que temos é um simples
“Esta é a história”. O que a teoria racial crítica diz: “Há uma outra história a ser
contada”. Ela baseia-se fortemente na recuperação da história e da memória em
oposição ao tradicional, empírico e estéril “Estes são os fatos”; “Isto foi o que
aconteceu”. A teoria racial crítica também se baseia em uma combinação de dis-
ciplinas, não se limitando ao Direito. Na Educação, por exemplo, outras áreas do
conhecimento, tais como Sociologia, Antropologia e uma variedade de outras dis-
ciplinas são usadas para analisar os fenômenos educacionais desde uma perspec-
tiva crítica. Essas são as premissas básicas da teoria racial crítica. (BILLINGS apud
GANDIN; PEREIRA; HYPOLITO, 2002, 277)

363
Carolina Pires & Clarissa Felix

Essa combinação de estudos entre várias disciplinas aumenta as pos-


sibilidades de uma investigação fidedigna sobre as questões raciais. A história
contada pelos colonizadores foi massificada a ponto de ser absorvida pelo
Direito. Dessa maneira, o confronto crítico trazido por campos de saberes
diversos oxigena a interpretação jurídica e potencializa a criação de normas
que se adequem melhor a realidade histórico-social do povo negro.

A TCR questiona o anistoricismo12 e o foco unidisciplinar da interpretação


predominante da atual lei constitucional (BELL, 2004; DELGADO &
STEFANCIC, 2000b; TSOSIE, 2000). Hoje podemos ver esta tendência no pen-
samento jurídico enraizado numa postura neutra quanto à cor, que ou ignora o
legado histórico de discriminação e medidas corretivas ou inverte a história di-
zendo que para acabar com o racismo basta parar de tomar decisões legais basea-
das em raça no âmbito educacional. A Teoria Crítica da Raça tem laços com outras
críticas filosóficas e de ciências sociais com fundamentação racial, relativas à on-
tologia e à epistemologia do racismo. (PARKER; ROBERTS, 2015, 122)

Os autores da TCR propõem uma metodologia diferenciada na me-


dida em que a vivência de pessoas de cor, ou seja, não brancas, é fundamental
para entender os mecanismos de subordinação racial. Portanto, as narrativas
e experiências dessas pessoas se constituem como um recurso essencial para
desenvolver pesquisas na área. Assim, a centralidade do conhecimento expe-
rimental se torna o ponto de partida para elaborar pesquisas sobre raça e etnia.
Dentre os intelectuais que pensam uma metodologia crítica da raça, destaca-
se aqui a perspectiva dos autores Solórzano e Yosso (2002) que identificam
cinco princípios para desenvolver pesquisas usando como referencial teórico
a TCR:

1. Centrar a pesquisa na raça e em sua intersecção com outras formas de su-


bordinação (p. ex., gênero, classe social, etc.)
2. Usar a raça na pesquisa para questionar as normas científicas predominantes
de objetividade e neutralidade;
3. Vincular a pesquisa com preocupações de justiça social e a possível práxis
com esforços em andamento em comunidades;
4. Situar o conhecimento experiencial no centro do estudo e vinculá-lo a ou-
tros pontos de vista de pesquisa crítica e interpretativos sobre raça e racismo;

12 Anistoricismo é a privação ou omissão de participação da história.

364
Qual o futuro da sexualidade no direito?

5. Reconhecer a importância dos pontos de vista transdisciplinares baseados


em outras áreas (p. ex., estudos étnicos, de mulheres, afro-americanos, chica-
nos/latinos, história, sociologia) para melhorar a compreensão dos efeitos do ra-
cismo e outras formas de discriminação nas pessoas de cor (PARKER;
ROBERTS, 2015, 122).

A TCR propõe um diálogo, dentro da sua metodologia, com outras


áreas do saber, o que, por conseguinte, torna a análise acerca da questão racial
mais rica, na medida em que os pressupostos da criação e atuação das leis e
seus impactos sobre as comunidades étnicas/raciais são observados dentro
de um contexto histórico que evidencia as discriminações praticadas ao longo
do tempo e, portanto, naturalizadas pela sociedade.
Desta maneira, a noção de racismo institucional torna-se uma preo-
cupação para os intelectuais da TCR, de modo que se dedicam a elaborar no-
vos conceitos que possam evidenciar as práticas racistas cotidianas e naturali-
zadas. É nesta seara que são pensados os conceitos de colorblindness e perspective
matters:

Tais questões suscitaram questionamentos epistemológicos que constituíram


temas centrais para a subsequente articulação da Teoria Crítica da Raça, por exem-
plo, a importância da perspectiva do narrador – “perspective matters” – e a in-
fluência da “cegueira da cor” – “color blindness” – na organização e estruturação
de instituições ditas racialmente neutras. Quanto mais evidente tornava-se a exis-
tência de uma hierarquia racial institucionalizada, mais nítida ficava a importância
de uma nova perspectiva dentro dos estudos críticos. Nesse contexto ganharam
destaque os trabalhos de Derrick Bell, Alan Freeman e Richard Delgado. A prin-
cipal premissa da Teoria Crítica da Raça é a ideia de que o racismo não é um
comportamento considerado anormal, mas uma experiência diária na sociedade
estadunidense. Algo que reflete igualmente a realidade brasileira. Trata-se de um
comportamento tão culturalmente enraizado, que as práticas discriminatórias su-
tis do dia a dia não são percebidas. (LYRIO; PIRES, 2015, 65)

A cegueira da cor, pontuada pelas autoras no trecho acima destacado,


é um dos elementos principais para a perpetuação do racismo institucional.
Ignorar o fator racial em sociedades historicamente racializadas contribui para
a continuação das desigualdades raciais, que mantém a população negra em
situação desvantajosa, e, por conseguinte, perpetua os privilégios dos grupos
dominantes.

365
Carolina Pires & Clarissa Felix

Já o conceito perspective matters revela a importância dos relatos de


quem está submetido a subordinação racial. A perspectiva do narrador im-
porta, uma vez que somente quem está sob a opressão pode apontar com
propriedade os detalhes do processo de subjugação que humilham e impedem
o acesso das pessoas de cor a exercerem sua cidadania plena e conquistar os
direitos garantidos pelas Cartas Magnas dos países e pelos tratados internaci-
onais de direitos humanos. Além disso, potencializa o protagonismo das víti-
mas na luta contra o racismo pois elas passam a falar por si mesmas, sem
haver um interlocutor branco para representá-las.

A grande contribuição está em agrupar em um mesmo modelo de investigação


todas essas dimensões, na medida em que as cinco vistas isoladamente não tradu-
zem novidade. A proposta de fomentar técnicas investigativas sobre esse prisma
orienta-se pela tentativa de promover o diagnóstico presente da ideologia que sus-
tenta o racismo, nomeando as lesões racistas e empoderando suas vítimas, que
passam a falar por elas mesmas. Serão as suas experiências as fontes privilegiadas
de uma forma de produzir conhecimento que até então impediu que elas ecoas-
sem - por exigências de suposta neutralidade, objetividade e universalidade. Se as
estatísticas não mostram a real situação social dos negros, porque a exigência de
uma postura estatal color blind impedia que produção de dados fosse orientada por
cortes de cor ou raça, gênero, orientação sexual, filiação religiosa, etc., e se as
investigações até então dotadas de cientificidade estavam pautadas no ideal carte-
siano ou não atribuíam ao critério raça um locus privilegiado de análise, só a expe-
riência pode demonstrar e denunciar as marcas cotidianas do enfrentamento ao
racismo e suas principais implicações. (LYRIO; PIRES, 2015, 73)

Existe um outro importante conceito trabalhado pela TCR para a in-


vestigação sobre a manutenção do racismo: a branquitude. Esta concepção se
relaciona diretamente com o conjunto de privilégios que permite o acesso das
pessoas brancas às melhores condições e oportunidades do mercado de tra-
balho, educação, saúde, moradia, assistência social e previdenciária, dentre
outros.

A branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivos, isto


é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do pre-
conceito racial, discriminação racial “injusta” e racismo. Uma pesquisadora proe-
minente desse tema Ruth Frankenberg define a branquitude como um lugar es-
trutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, uma posição de
poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se

366
Qual o futuro da sexualidade no direito?

atribui a si mesmo. (...) Em suma, a branquitude procura se resguardar numa pre-


tensa ideia de invisibilidade, ao agir assim, ser branco é considerado como padrão
normativo único. O branco enquanto indivíduo ou grupo concebido como único
padrão sinônimo de ser humano “ideal” é indubitavelmente uma das característi-
cas marcantes da branquitude em nossa sociedade e em outras (CARDOSO,
2010, 611).

A elaboração do conceito de branquitude torna-se fundamental para


entender as relações raciais no Brasil e a dinâmica dos privilégios que pessoas
brancas tem no interior da sociedade brasileira. O posicionamento da TCR
em criticar a suposta neutralidade e objetividade das instituições conecta-se
especificamente com a continuidade das práticas racistas que colaboram para
a perpetuação de tais privilégios. Por isso, é indispensável considerar as de-
núncias, relatos e perspectivas das vítimas do racismo.

É assumida a impossibilidade de uma investigação neutra e objetiva e ainda o


fato de que nenhuma fonte, recorte ou abordagem demonstra diagnósticos des-
contextualizados sobre a realidade. A complexidade e a riqueza dos testemunhos
são capazes de evidenciar as estruturas materiais e simbólicas pelas quais as hie-
rarquias raciais são sustentadas, tanto através das que reforçam estereótipos ne-
gativos sobre negros quanto das que transformam a branquitude em categoria de
privilégio – demonstradas pelo sistema de oportunidades e benefícios conferidos
sobre algumas pessoas, pelo simples fato de serem brancas, como exemplifica a
figura da ‘boa aparência’, difundido filtro para acesso e ascensão no mercado de
trabalho. (CARDOSO, 2010, 611)

Consideradas estas premissas, resta evidente que o tratamento dire-


cionado às mulheres negras pela polícia, seja em situação de encarceramento
ou mesmo nas abordagens exercidas nas ruas ou favelas, é identificado como
uma prática racista, de caráter violento, na medida em que os seus corpos são
brutalizados e desumanizados. É necessário aqui trazer os dados do Levanta-
mento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres, de
junho de 2014, do Ministério da Justiça, cujos gráficos demonstram que a
maior parte da população feminina encarcerada é composta por mulheres ne-
gras: “Em relação à raça, cor ou etnia, destaca-se a proporção de mulheres
negras presas (67%) – duas em cada três presas são negras. Na população
brasileira em geral a proporção de negros é de 51%, segundo dados do IBGE
(2014, 24).

367
Carolina Pires & Clarissa Felix
Figura 01 – Gráfico do Infopen sobre mulheres encarceradas segundo o quesito
raça/cor/etnia

Fonte: Infopen, Departamento Penitenciário Nacional, junho de 2014. Levantamento


de Dados realizado pelo FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA.

De acordo com o gráfico acima, percebe-se que em relação a outras


etnias, a mulher negra segue em um processo de encarceramento em massa,
compondo maioria da população carcerária feminina no Brasil. No gráfico
abaixo, estão listados os dados por Estado e apenas Paraná, Rio Grande do
Sul e Santa Catarina, não possuem maioria de mulheres negras na composição
da população feminina em situação de cárcere. Destaca-se ainda o Estado de
São Paulo, cujos números não foram identificados pela pesquisa. Portanto, a
ausência dessa informação é preocupante, na medida em que instituições li-
gadas a garantia de direitos humanos reconhece o Estado em questão como
um dos mais violentos e encarceradores do país.

368
Qual o futuro da sexualidade no direito?
Figura 02 – Gráfico do Infopen sobre mulheres encarceradas segundo o
quesito raça/cor/etnia, de acordo com os Estados brasileiros.

Fonte: Infopen, Departamento Penitenciário Nacional, junho de 2014. Levantamento


de Dados realizado pelo FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA.

Para tentar compreender essa dinâmica entre gênero e raça, empre-


garemos o conceito de interseccionalidade, a fim de retirar tal relação do
campo da invisibilidade. Considerando a discriminação baseada em gênero,
raça, classe e outros marcadores sociais da diferença, a interseccionalidade
pretende compreender como um sujeito ou grupo social pode se tornar mais
vulnerável, à medida que distintos tipos de opressão interagem entre si apro-
fundando o processo de subordinação. Portanto, a interseccionalidade é um
conceito que surge no centro dos debates feministas norte-americanos entre
as décadas de 1960 e 1970, originando-se da “reflexão sociológica acerca da
relação entre as diversas formas de discriminação ou desvantagens estruturais,
como raça, gênero ou classe social” (HOFFMANN, 2008, 105).
As feministas afro-americanas perceberam que o feminismo univer-
sal não era capaz de abarcar suas demandas, pois a situação de privilégio das
mulheres brancas as invisibilizava, principalmente em termos de raça, classe e
sexualidade. Desse modo, durante a década de 1980, inspiradas em autoras

369
Carolina Pires & Clarissa Felix

afro-americanas como Angela Davis, Deborah King e Toni Morrison, as in-


telectuais e ativistas negras Kimberlé Crenshaw, Patricia Hill Collins, Hazel
Cardy, Patricia Williams, bell hooks, dentre outras, iniciaram uma escrita que
denunciou a invisibilidade das mulheres negras diante das relações de poder,
apontando as limitações do feminismo branco e evidenciando as intersecções
das opressões que acontecem de maneira simultânea e não hierarquizada.
Durante a década de 1990, a jurista afro-americana Kimberlé Crens-
haw batiza essa intersecção dos diversos tipos de subordinação com o nome
de interseccionalidade. Assim, a principal autora de artigos e pesquisa sobre o
assunto, afirma que as leis e as políticas públicas nem sempre conseguem
abarcar as categorias de opressão, principalmente quando elas perpassam en-
tre si, de modo que a teoria da interseccionalidade tem o desafio de abordar
as diferenças dentro das diferenças (CRENSHAW, 2006, 9).
Muitas vezes, a discriminação de gênero resta implícita diante de uma
situação de discriminação racial e vice-versa, e, então, a vítima tem o seu di-
reito violado, não sendo alcançada pelas legislações de proteção dos direitos
humanos. Quando a discriminação não se encaixa no modelo-padrão definido
pelas leis protetivas de gênero ou de raça, tende a ser compreendida como
extremamente diversa das experiências formais e desta maneira, não é assimi-
lada como uma violação aos direitos humanos (CRENSHAW, 2002, 172).
Segundo Crenshaw, “a interseccionalidade sugere que nem sempre lidamos
com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos”
(CRENSHAW, 2006, 9). Portanto, “é preciso identificar melhor o que acon-
tece quando várias formas de discriminação se combinam e afetam as vidas
de determinadas pessoas” (CRENSHAW, 2002, 173).
A autora defende que as mulheres, já sujeitas à discriminação de gê-
nero, podem também sofrer outros tipos de opressão de acordo com os “fa-
tores relacionados às suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça,
cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual” (CRENSHAW, 2002,
173), o que, portanto, estabelecem vulnerabilidades específicas para determi-
nados grupos de mulheres. É imprescindível perceber as categorias de invisi-
bilidade intersecional, sugeridas por Crenshaw, para entender de que forma
as mulheres se tornam fragilizadas diante da intersecção. A autora trabalha
com as categorias de discriminação de gênero e raça, mostrando que a inter-
seccionalidade entre essas estruturas muitas vezes não é identificada, princi-

370
Qual o futuro da sexualidade no direito?

palmente nos contextos onde as questões econômicas e socioculturais for-


mam, silenciosamente, um arcabouço desvantajoso, colocando determinadas
mulheres em situações de vulnerabilidade.

A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em


contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o
pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam
sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto
de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo
(estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que somente o aspecto mais
imediato da discriminação é percebido, enquanto a estrutura que coloca as mu-
lheres na posição de receber tal subordinação permanece obscurecida. Como re-
sultado, a discriminação em questão poderia ser vista simplesmente como sexista
(se existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma
estrutura de gênero como pano de fundo). Para apreender a discriminação como
um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da
estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contri-
buem para a produção da subordinação (CRENSHAW, 2002, 176).

Por sua vez, Avtar Brah13 descreve o conceito de interseccionalidade


como um indicador dos efeitos complexos, irredutíveis, diversos e variáveis
que decorrem quando múltiplos eixos de diferenciação – econômicos, políti-
cos, culturais, psíquicos, subjetivos e empíricos se cruzam em contextos his-
tóricos específicos, o que por sua vez, não permite que essas diferentes di-
mensões da vida social sejam separadas, de forma discreta (BRAH;
PHOENIX, 2004, 76), invisibilizando assim o indivíduo. Em seu artigo Ain’t
I a Woman? Revisiting Interseccionality, Brah identifica que a classe social, por
exemplo, com suas interseções de gênero, é simultaneamente subjetiva, estru-
tural sobre o posicionamento social e as práticas cotidianas (BRAH;
PHOENIX, 2004, 80). Portanto, ao considerar as interseções de “raça” e gê-
nero com a classe social, o quadro se torna mais complexo e dinâmico
(BRAH; PHOENIX, 2004, 80), o que dificulta a identificação da profundi-
dade da vulnerabilidade.
Uma questão a ser analisada de forma meticulosa é que as redes de
interligação dos diversos tipos de subordinação tendem a criar, em situações
históricas específicas, hierarquias de acesso diferenciado a uma variedade de

13Aposentou-se recentemente como Professora de Sociologia em Birkbeck – Universidade

de Londres, especialista em questões de identidade étnicas, de raça e de gênero.

371
Carolina Pires & Clarissa Felix

recursos - econômicos, políticos e culturais (YUVAL-DAVIS, 2006, 199).


Esta compreensão acerca da interseccionalidade das estruturas de opressão
abre o campo de visão para compreender a situação das mulheres encarcera-
das. Apesar do efeito discriminatório ser totalmente devastador em suas vidas,
essas mulheres são invisíveis aos olhos do Estado e, portanto, vulneráveis à
sua ação arbitrária.
Ao pensar a formação da identidade da mulher negra a partir da ne-
gação, ou seja, não-branca, não-homem, é preciso pensar como essa identi-
dade se torna fragmentada pelo outro que nos observa desta maneira. Assim,
a Escola dos Estudos Culturais afirma as pessoas no contexto histórico trans-
continental, tal como vivemos hodiernamente, possuindo inúmeras identida-
des, pois

as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é deslocadas ou fra-


gmentadas. (...) Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas no final do século XX. Isto é fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade (HALL, 2001,
8-9).

A identidade tornou-se uma “celebração móvel”, etérea (trans)for-


mada cotidianamente diante da interação social a qual estamos expostos. Po-
demos representar identidades inúmeras e até por vezes contraditórias.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fanta-


sia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade, desconcer-
tante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2001, 13)

Em sua obra “Manifesto Ciborgue” (1985), Donna Haraway defende


que as identidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas. Resultante
de um reconhecimento arduamente conquistado e decorrente das relações de
gênero, raça e classe, no qual não há “unidade essencial”. E que não há um
“ser mulher” naturalmente dado. Ele é sócio historicamente construído por
meio de discursos científicos sexuais e por outras práticas questionáveis.
Haraway denuncia ainda a fragmentação entre as feministas e possí-
veis dominações que as mulheres exercem umas sobre as outras. Ou seja, não
há critério essencialista que permita identificar quem é a “mulher de cor”, essa

372
Qual o futuro da sexualidade no direito?

é formada na apropriação da negação. Significa estar no degrau mais baixo de


uma hierarquia de identidades negativas, excluídas até mesmo daquelas cate-
gorias que reivindicam. E vai além, defendendo a existência de um “mar de
diferenças”. Portanto, as identidades são construídas de forma autoconsci-
ente. Não é natural e sim política (baseada na coalizão consciente, afinidade e
parentesco político). Resultante do “Poder da Consciência de Oposição”: um
corpo forjado pelas marcas historicamente demarcadas.
Considerando essas reflexões, nos debruçaremos sobre três casos
brasileiros que envolveram violência policial, violência de gênero e racismo,
atingindo de maneira devastadora a vida de três mulheres negras: Cláudia Fer-
reira da Silva, Luana dos Reis e Verônica Bolina. Os casos acima mencionados
foram escolhidos devido a brutalização, por parte da polícia, dos corpos de
mulheres negras proporcionada pela invisibilidade fomentada pela intersecção
das discriminações que lhes acometem. Assim, os castigos corporais ora exe-
cutados durante a escravidão são perpetuados até hoje sob a chancela do Es-
tado genocida.

Análise dos Casos

Essa sessão de nosso artigo representa a operacionalidade do sistema


seletivo que se chama Segurança Pública. BATISTA (2012) defende que a
palavra segurança é suspeita e perigosa:

A palavra suspeita, e provavelmente perigosa, é segurança. Sabemos, pelos


muito sobrenomes que ostentou, (...) segurança pública, segurança nacional, se-
gurança jurídica, segurança cidadã, segurança biológica, medidas de segurança, se-
gurança humana etc. (...) apontam para sua maleabilidade, para um caráter dúctil
que historicamente a habilitou a tantas parcerias, algumas descaradamente opres-
sivas e violentas (alguém já se esqueceu da segurança nacional?) outras apenas
fraudulentas e enganosas (como segurança jurídica) e algumas escandalosamente
contraditórias (talvez nenhum dispositivo penal tenha alcançado níveis de insegu-
rança tão incontroláveis e arbitrário quanto as chamadas medidas de ... segurança.
(...) “A segurança (süreté) consiste na proteção concedida pela sociedade a cada
um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas
propriedades ... com a Constituição brasileira de 1988, segundo a qual a segurança
pública “é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio” (art.144) (BATISTA, 2012, 4-5)

373
Carolina Pires & Clarissa Felix

Escreveremos sobre a dor, castigo, o suplício até a morte direciona-


dos prioritariamente a uma determinada parcela da sociedade. Estudar a Se-
gurança Pública é também caminhar entre o fio e a navalha, é sangrar, é com-
partilhar o sofrimento cotidiano do povo negro.

A segurança é o supremo conceito social da sociedade civil, o conceito de


polícia, segundo o qual toda a sociedade existe apenas para garantir a cada um de
seus membros a conservação da pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade
(...) Pelo conceito de segurança a sociedade não se eleva acima de seu egoísmo. A
segurança é, antes, o asseguramento deste egoísmo. (BATISTA, 2012, 5)

Assim, a ideia sobre o conceito de segurança pública se dá de maneira


errônea, pois, segundo Barata, ela é falsa ou perversa por ocultar seus reais
objetivos e pelo seu caráter seletivo. Batista completa sua análise:

Uma construção constitucional falsa ou perversa. Falsa porque, se significasse


a garantia de todos os direitos de todos os cidadãos, seria melhor enunciada como
segurança dos direitos ao invés de um vazio direito à segurança; perversa porque
nas sociedades de classes a garantia dos direitos de certas pessoas geralmente se
empreende às custas de severas violações a direitos de outras. (BATISTA, 2012,
6)

A Segurança Pública resguarda interesses escusos. O objetivo central


de tal categoria é resguardar o patrimônio e não o direito à vida, observação
que pode ser comprovada ao pesquisarmos o perfil da tipificação penal dos
encarcerados pelo Sistema Prisional Brasileiro. Esse sistema no Brasil tem
origens nas práticas escravistas do Brasil colônia. A condução coercitiva de
corpos negros amarrados com cordas ou algemados em filas indianas podem
parecer visões passadas da “caça” dos capitães do mato aos negros “fujões”.
O que falar do “emprego correcional dos açoites” e vilipêndio vilipendio aos
corpos negros? É sobre isso que vamos retratar e problematizar. Segundo o
professor Nilo Batista14, quem ignora o legado escravista é incapaz de produ-
zir uma política criminal emancipatória para o Rio de Janeiro. Ousamos com-
pletá-lo, e inferir que não só ao Rio de Janeiro como todo o Brasil, quiçá a

14 Sobre El filo de La navaja, Intervenção na mesa redonda Inseguridad y Politica, do Congresso

Internacional de Ciência Política realizado em San Juan, Argentina, de 24 a 27 de agosto de


2010.

374
Qual o futuro da sexualidade no direito?

todos os países que tiveram o sangue negro lavado pelo passado colonial, por
todos os países em que hoje habitam populações negras forçadas a se deslo-
carem na Diáspora Africana.
Destacamos três casos que foram noticiados pela mídia de forma dis-
creta, mas que mobilizou movimentos sociais. Poderíamos problematizar ou-
tros casos, como o do Amarildo, o dançarino DG do Bonde da Madrugada,
ou mesmo nos Estados Unidos, onde vários negros também são alvejados
cotidianamente pelo Estado: Michael Brown, Christian Taylor, dentre ou-
tros15. No entanto, optamos por destacar a violência policial imposta às mu-
lheres negras, também invisibilizadas e vulnerabilizadas pela ação do Estado,
como uma maneira de denunciar que esta prática não vitimiza apenas os ho-
mens negros.
Escolhemos três casos que foram divulgados pela mídia e denuncia-
dos amplamente pelos movimentos sociais. Coletamos material midiático, si-
tes de jornais, Cartas de Familiares e Movimentos Sociais divulgados pela rede
mundial de computadores. Ao selecionarmos o material para colocar no ar-
tigo sentimos uma profunda tristeza ao relembrar a brutalidade exercida sobre
os corpos das mulheres negras, porque somos elas também. Hesitamos por
um momento no que se refere a representação das fotografias, contudo deci-
dimos colocar as fotos das situações violentas, não como uma forma de expor
mais uma vez o corpo negro. Mas, sim com o objetivo de que ninguém jamais
esqueça da selvageria e brutalidade executadas pelo Estado contra os nossos

15 As informações sobre os casos aqui citados foram colocadas de acordo com os sites de

jornalismo noticiaram. Caso Amarildo e Souza: o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza


foi torturado e assassinado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora em julho de 2013,
na Favela da Rocinha, Zona Sul do Rio. Seu corpo foi ocultado para não deixar vestígios e
nunca apareceu. Dentre os 25 policiais envolvidos, apenas 12 foram condenados; Caso DG:
O dançarino do Bonde da Madrugada (grupo de funk) Douglas Rafael da Silva Pereira, o
DG, que fazia parte do elenco do Programa “Esquenta” da Rede Globo de Televisão, foi
assassinado durante uma ação de policiais da Unidade de Polícia Pacificador do Pavão-Pa-
vãozinho, em abril de 2014. Maria de Fátima da Silva, mãe do dançarino, afirma que o filho
foi torturado até a morte. No entanto, o inquérito policial foi concluído mostrando que o
DG foi alvejado durante um tiroteio e teria sido confundido com traficantes da favela. O
policial que atirou no dançarino foi indiciado e responde por homicídio; Caso Christian Tay-
lor (USA): O jogador universitário de futebol americano da Angelo State University, Chris-
tian Taylor, 19 anos, foi morto a tiros por um policial dentro de uma concessionária de carro
por se negar a deitar no chão para revista; Caso Michael Brown: o jovem de 18 anos, foi
baleado por um policial na cidade de Ferguson, em Saint Louis, Estado do Missouri. Foi
interpelado pela polícia e mesmo, segundo testemunhas, levantando as mãos, foi alvejado
com seis tiros.

375
Carolina Pires & Clarissa Felix

corpos. Assim, optamos por fotografias que tivessem um ângulo menos inva-
sivo, a fim de não expor desnecessariamente as mulheres que tiveram suas
vidas ceifadas, atingidas de maneira humilhante e desumana.

Caso Claudia da Silva Ferreira

Ao analisar as diversas matérias publicadas em sites de jornalismo e


em redes sociais anteriormente citadas, foi caracterizada a seguinte situação
fática, na manhã do dia 16 de março de 2014, no Morro do Congonha, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro, houve uma ação policial que ceifou a vida
de uma mulher negra, mãe de quatro filhos, era responsável pela subsistência
e guarda de quatro sobrinhos; 38 anos, trabalhadora, conhecida localmente
como Cacau. Claudia teve a vida ceifada por arma de fogo. Alvejada pelas
costas e no pescoço. Vizinhos e amigos da vítima tentaram conduzi-la para o
socorro e evitar que ela fosse levada pelos seus algozes (Estado-PMs). Eles
denunciaram que houve duplo homicídio, pois além da Claudia, um jovem
fora também executado e em ambos os casos a PM “plantou” provas, ou seja,
ao lado de seus corpos foi colocado armas e drogas. A população denunciou
à mídia, aos movimentos sociais que fora forjado um confronto; e, com o
objetivo de justificar aquelas duas mortes foi injustamente colocados drogas
e armas com vistas de ligar as vítimas ao mundo das drogas e legalizar ou
melhor naturalizar o duplo homicídio.

Imagem 1 – Claudia Ferreira da Silva16

16 Fonte: http://fernandafav.jusbrasil.com.br/noticias/120463316/familia-de-mulher-

morta-em-acao-da-pm-recebe-pensao-a-partir-de-junho, 2014.

376
Qual o futuro da sexualidade no direito?

Claudia tinha sob sua posse, na verdade, um pacote de café e a quan-


tia de seis reais que compraria alimento para a refeição matinal de seus filhos.
Sua vida fora ceifada e, por outro lado, houve a tentativa pelos policiais de
ceifar também sua honra ao lhe imputar quatro armas e justificar assim a sua
morte. Aqueles prepostos do Estado deram tiros para o alto para ameaçar a
comunidade.
Claudia foi jogada no camburão que não estava totalmente fechado.
Durante o percurso, na Estrada Intendente Magalhães, o corpo de Claudia
preso por um pedaço de sua roupa foi arrastado no asfalto por mais de 250
metros. Transeuntes e outros motoristas apelaram para que a viatura parasse,
mas o apelo foi em vão. A cena de uma mulher negra sendo arrastada pelas
ruas da cidade pode chocar alguns, mas não impediu aquele suplício público.

Figura 03 – Claudia Ferreira da Silva arrastada pela zona Norte do Rio de Janeiro17

Uma testemunha registrou essa cena brutal, o que favoreceu a iden-


tificação dos policiais envolvidos que por pressão dos movimentos sociais
foram presos. Mas, como representam o ideal do aparelho ideológico do Es-
tado, que é a instituição Polícia Militar, os soldados foram rapidamente soltos
a pedido de outra instituição estatal, o Ministério Público. Este fato caracte-
riza o cenário: os prepostos do Estado não agem em nome próprio, agem em
nome do Estado e são protegidos por ele.

17 Fonte: http://extra.globo.com/casos-de-policia/viatura-da-pm-arrasta-mulher-por-rua-

da-zona-norte-do-rio-veja-video-11896179.html, 2014.

377
Carolina Pires & Clarissa Felix

Com a identificação dos autores do homicídio da Claudia foram le-


vantados os processos criminais aos quais esses respondem. O subtenente
Serrano responde pelo menos por 63 mortes18; o outro subtenente Archango,
responde em 6. E mesmo assim continuam as atividades ostensivas e não
foram e nem serão excluídos de suas patentes, pois representam o mote do
sistema seletivo.
Claudia Ferreira da Silva foi representada pela mídia tradicional como
“mulher arrastada”, sem nome ou sobrenome. Diferente do caso João Hélio,
no qual o menino arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro durante um assalto
tinha nome e sobrenome. Claudia Ferreira era mulher negra, mãe, pobre e
periférica. João Hélio era uma criança branca, de classe média e a sua morte
estampou matérias de diferentes jornais impressos, televisivos ou on-line du-
rantes muitos dias. Essa diferença de tratamento e atenção ao caso foi perce-
bida pelo movimento negro e especificamente pelo movimento de Mulheres
Negras que mobilizou uma campanha nas redes sociais e algumas manifesta-
ções para dar visibilidade ao caso e pedir por justiça.

Caso Luana Barbosa dos Reis Santos

No dia 08 de abril, Luana foi brutamente violentada pelo Estado


(PMs) no momento que conduzia de motocicleta seu filho, um jovem negro,
a escola. Ao parar para cumprimentar um amigo que estava em um bar loca-
lizado na rua onde residia - atitude que foi considerada como suspeita, foi
abordada por policiais que exigiram a revista. Luana, por ser mulher e conhe-
cer seus direitos, questionou a revista pessoal por policiais masculinos. Resis-
tiu à revista por um homem. Resistiu ser violada em sua intimidade e lutou
pelo reconhecimento de seu direito. Exigiu, portanto, a presença de uma po-
licial feminina e foi espancada pelos policiais. Seu filho correu para a casa
onde residia a família, acompanhado de alguns vizinhos, enquanto outros ten-
taram impedir a violência, mas os policiais desferiram tiros para o alto para
afugentar as pessoas e impedir o socorro.
Ao fim da agressão, os policiais invadiram a residência da Luana para
investigar se havia qualquer vestígio de conexão com a vida do crime. Não

18 Disponível em: <http://amagis.jusbrasil.com.br/noticias/114232230/policiais-presos-

por-arrastar-mulher-sao-alvo-de-62-acoes>

378
Qual o futuro da sexualidade no direito?

encontraram nenhum indício e ainda assim colocaram Luana na viatura para


realizar o registro da ocorrência. Os familiares seguiram a viatura e o chegar
a delegacia, um deles ajudou a vítima a assinar o documento, pois Luana já
não tinha condições de ler ou escrever. Esse mesmo rapaz colocou-a em seus
ombros e a conduziu para o hospital.
Luana era mãe, 34 anos e foi covardemente espancada, na rua de sua
comunidade em Ribeirão Preto, e veio a óbito em decorrência dessas agres-
sões (poli traumatismo causado por agente contundente, traumatismo crânio-
encefálico, isquemia cerebral provocada por “dissecção de artéria vertebral à
esquerda secundaria a espancamento”) e os policiais não responderam pelas
agressões pela mesma razão do caso da Claudia Ferreira. Os policiais resguar-
dam interesses estatais.
Imagem 3: Luana dos Reis19

A irmã da Luana definiu as motivações da violência do caso: mãe,


negra, pobre e lésbica. Nesse grito de socorro ela quis denunciar a existência
dos filtros sociais que selecionam e vitimizam determinada parcela no intuito
de favorecer o controle social e defender os “homens de bem” – homens
detentores de bens patrimoniais.
Mais uma vez, a violência impetrada sobre o corpo e a vida da mulher
negra não foi noticiado de maneira destacada pela mídia tradicional. O caso
da Luana foi citado em poucos veículos televisivos de forma rápida, todavia,

19 Fonte: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/morta-apos-ser-
espancada-por-policiais-peticao-pede-justica-para-luana-barbosa-dos-reis/, 2016.

379
Carolina Pires & Clarissa Felix

ganhou repercussão nas redes sociais graças à mobilização de mulheres ne-


gras, em sua maioria lésbicas, que não permitiram o silenciamento tornar a
morte da Luana dos Reis invisível.

Caso Verônica Bolina

No dia 10 de abril, Veronica Bolina (Charleston Alves Francisco),


negra, 25 anos, travesti, foi presa após supostas discussão e tentativa de ho-
micídio a uma vizinha, caracterizada apenas como idosa de 73 anos. Veronica
denunciou que fora “pulverizada” pela polícia depois de ser forçada a tirar as
roupas e ter a cabeça raspada quando foi presa e ainda colocada numa cela
com diversos homens. Apareceu com o rosto desfigurado e lesões por todo
corpo. Ela foi espancada e violada sexualmente. Os policiais publicizaram áu-
dios nos quais a Veronica negava as explícitas sessões de torturas. Na verdade,
esses áudios podem revelar pela defesa a continuidade dessas agressões para
forçá-la a negar a violência outrora imposta.

Imagem 4: Verônica Bolina20

A polícia obrigou Verônica a confessar que ela começou as agressões


aos colegas de cela e carcereiro e negou que foi submetida a tortura. Assim, a

20 Fonte: http://www.advocate.com/politics/transgender/2015/05/01/brazilian-trans-

woman-brutalized-police-proves-we-are-all-veronica, 2015.

380
Qual o futuro da sexualidade no direito?

violação de direitos materializada por meio da selvageria praticada contra Ve-


ronica, como é possível ver na imagem acima, não se aplicou somente ao seu
corpo, mas também sobre a sua dignidade e humanidade. Desfigurada, alge-
mada e seminua no pátio da delegacia, a vítima teve suas imagens expostas e
veiculadas nas redes sociais.

Imagem 5: Verônica Bolina exposta no pátio da unidade prisional21

Segundo o núcleo especializado de combate à discriminação da De-


fensoria Pública, há indícios de tortura e maus tratos, abuso de autoridade,
exposição indevida de imagens, coação e outros excessos correlatos. Desse
modo, o Centro de Cidadania Lesbicas, Gays, Bissessuais e Transexuais
(LGBT)22 denunciou as sessões de torturas e lançou a campanha #Somos-
TodasVeronica nas redes sociais para dar visibilidade ao caso, exigindo res-
peito às travestis e a efetivação dos seus direitos.
A atuação do movimento LGBT no caso em questão foi fundamental
para mobilizar defensores de direitos humanos, conseguindo inclusive a atu-
ação da Secretaria Estadual de Direitos Humanos de São Paulo que passou a

21Fonte: https://plus.google.com/+BrasilPost/posts/M2YUkHrLHg9, 2015.


22 Os Centros de Cidadania LGBT – fazem parte das ações do Programa de Metas da
Gestão 2013/2016 da Prefeitura de São Paulo, previsto na Meta 61: desenvolver ações per-
manentes de combate à homofobia e respeito à diversidade sexual. Os Centros são iniciativas
da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, por meio da Coordenação de
Políticas para LGBT, realizada em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presi-
dência da República. Informações disponíveis em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/ci-
dade/secretarias/direitos_humanos/lgbt/cch/index.php?p=150960

381
Carolina Pires & Clarissa Felix

acompanhar o desenvolvimento da ocorrência e até mesmo da mídia interna-


cional que veiculou em seus canais a lgbtfobia praticada contra Verônica.

Considerações finais

Esses três casos revelam como a sexualidade das mulheres negras não
é assegurada pelo Estado Democrático de Direito. Independentemente de sua
orientação sexual, corpos de mulheres negras são violados pelo Estado, que
as agride e ceifa suas vidas. Vidas essas que não são consideradas pelas insti-
tuições racistas e sexistas como importantes. Desta maneira, o racismo insti-
tucional opera por omissão quando negligencia cuidados específicos para
manter a dignidade de pessoas negras nas políticas de segurança pública e por
ação quando agride, humilha e mata aquelas que não se encaixam no padrão
eugenista imposto à sociedade.
É importante ressaltar que as políticas de segurança pública não são
suficientes para proteger determinados grupos, considerados como minorias,
pois a intersecção de opressões torna-os invisíveis, gerando sua vulnerabili-
dade perante a ação do Estado. Por este motivo, o suplício direcionado ao
corpo das mulheres negras é garantido pelo racismo institucional que histori-
camente ignora sua humanidade e viola sua dignidade. A seletividade do sis-
tema penal, legitimada pelos operadores do Direito (policiais, promotores de
justiça, procuradores, juízes, desembargadores, etc), nega o acesso às garantias
de direitos expressas na Constituição Federal.
E é nesse contexto que a Teoria Crítica da Raça e da Interseccionali-
dade colocam os critérios de raça e gênero como uma lente que revela a es-
trutura racista e sexista no qual o direito está engendrado. Questioná-lo a par-
tir dessas concepções é fundamental para que se atinja os princípios nortea-
dores do sistema jurídico que afirma se pautar em igualdade, não discrimina-
ção e dignidade.
Destarte, ainda que existam legislações que busquem contemplar as
diferenças e efetivar direitos através de políticas públicas, como por exemplo,
o Estatuto da Igualdade Racial, Lei Maria da Penha e o Plano Nacional de
Políticas para Mulheres, em um litígio judicial que envolva opressões de gê-
nero e raça, grupos considerados pelas classes dominantes como minoritários

382
Qual o futuro da sexualidade no direito?

ainda lidam com o conservadorismo do Poder Judiciário e do Ministério Pú-


blico, travestidos de neutralidade e universalidade.
Assim, considerando as diversidades de gênero, raça, sexualidade,
classe, territorialidade, dentre outras, é preciso que as políticas de segurança
pública sejam revisitadas e produzam uma nova concepção que provoque o
sistema jurídico, seja intelectual ou prático, a refletir sobre suas funções e con-
cepções sobre justiça. Desta forma, ousamos aqui afirmar que o futuro de um
Direito comprometido a efetivar garantias de modo igualitário no âmbito so-
cial, depende de tal reflexão para que o rol de destinatários seja ampliado,
contemplando as realidades histórico-sociais, tanto no que se refere a preser-
vação da vida das mulheres negras e seu acesso aos direitos, como dos diver-
sos grupos étnicos e de diversidade sexual.
Destarte, almejamos que o processo de luta das mulheres negras e
demais movimentos sociais junto à intelectualidade consciente do seu papel
na Academia consiga, de fato, atingir as instituições públicas e privadas, reali-
zando as mudanças necessárias para proporcionar o exercício pleno da cida-
dania dentro do Estado Democrático de Direito.

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MAA&url=http%3A%2F%2Fwww.sbhc.org.br%2Farquivo%2Fdown-
load%3FID_ARQUIVO%3D74&usg=AFQjCNFE3jxV31x2h8x0M_e-
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pub.com/content/13/3/193. Acesso em: 20.03.2013

385
386
Qual o futuro da sexualidade no direito?

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Eder Fernandes Monica


Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Flumi-
nense. Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito da UFF. Coordenador do grupo de pes-
quisa Sexualidade, Direito e Democracia.

Ana Paula Antunes Martins


Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília. Possui gradu-
ação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande (2002) e mestrado
em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Atuou
como Consultora da ONU Mulheres e da Secretaria de Políticas para as Mu-
lheres do Governo Federal, como pesquisadora no Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas (Ipea) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tem
experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Direito, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: acesso à justiça, gênero, violência
contra as mulheres, direitos humanos, políticas públicas, profissões jurídicas e
metodologia da pesquisa.

Adriana Ribeiro Rice Geisler


Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (2009), com estágio de doutoramento (sanduíche) no Centro de Estu-
dos Sociais (CES) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra /
PT. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1996), graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (2001), e mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004). Atua como professora e pes-
quisadora da Fundação Oswaldo Cruz, onde ainda exerce a coordenação do
Programa de Pós-Graduação Lato Senso do Instituto Nacional de Infectolo-
gia/ Fiocruz. É também professora adjunta da Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro; e pesquisadora colaboradora da Universidade Estácio
de Sá. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Estado
e do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito e Sexuali-
dade; Direito Penal e Criminologia Crítica. Direito e Saúde; Modernidade e
Racionalidades Médicas; Ciência e Direito na transição paradigmática; Ética e
construção da subjetividade.

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Carla Appollinario de Castro
Doutora e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD/UFF). Graduada em Direito. Atualmente, é professora Adjunta do
Departamento de Direito do Polo Universitário de Volta Redonda, professora
permanente do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito e pesqui-
sadora da Universidade Federal Fluminense. Tem interesse em Direito e So-
ciologia, com ênfase nas áreas do direito penal e processual penal, direito do
trabalho, direito processual do trabalho e da sociologia do trabalho e dos mo-
vimentos sociais, sindicais e populares.

Gustavo Agnaldo Lacerda


É advogado. Mestrando em Sociologia e Direito pela Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Civil pela Uni-
versidade Internacional de Curitiba (UNINTER) desde 2012. Graduado em
Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida
Neves (IPTAN) desde 2010. Tem experiência na área de Direito Constitucio-
nal, Direitos Humanos e Novos Direitos. É também Técnico Assistente em
Administração da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), lotado na
Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PROEX), no Setor de
Apoio a Ações Culturais Institucionais (SAACI).

Mariana Paganote Dornellas


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. Bacharela em Direito pela Universidade
Federal Fluminense.

Thiago Coacci
Doutorando e Mestre em Ciência Política pela UFMG. Advogado. Ba-
charel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
MINAS). É pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher
(NEPEM/UFMG) e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero
(CIFG/UFMG). Atualmente integra Comissão da Diversidade Sexual da
OAB Minas Gerais, da qual foi membro fundador e ocupa o cargo de Vice-
presidente. É acadêmico-militante do Grupo Universitário em Defesa da Di-
versidade Sexual (GUDDS!), tendo atuado como Coordenador Geral do

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Qual o futuro da sexualidade no direito?

grupo para o ano de 2010. Seus temas de interesse são: Direitos Humanos dos
Grupos Minoritários, Movimentos Sociais Contemporâneos, Gênero e Sexu-
alidade, Teorias Queer e Feminista, Acesso à Justiça e Judicialização da Polí-
tica.

Laís Godoi Lopes


Bacharela, mestre e doutoranda em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Integrante do Grupo de pesquisa Persona e colaboradora do
Grupo Sexualidade, Direito e Democracia

David Emmanuel da Silva Souza


Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense. Graduado em Direito pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte (2014.2). Experiência acadêmica
de monitoria nas disciplinas História do Direito e Antropologia e Introdução
à Ciência do Direito I, Pesquisa e Extensão no Programa de Educação Popu-
lar em Direitos Humanos Lições de Cidadania - Núcleo Rural, realizando tra-
balho de educação popular com mulheres e crianças em assentamentos da
reforma agrária.

Natália Caroline Soares de Oliveira


Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense. Possui graduação em Direito -
Faculdades Integradas Vianna Junior (2013). Tem experiência na área de Di-
reito, com ênfase em Teoria do Direito e Filosofia do Direito, atuando prin-
cipalmente no seguinte tema: Reconhecimento, Redistribuição e Desconstru-
ção do Gênero.

Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha


Mediadora, artista e advogada, doutoranda em Ciências Sociais e Jurí-
dicas no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universi-
dade Federal Fluminense, pesquisadora do Grupo de pesquisa em criminolo-
gia (GPCRIM - UEFS/UNEB) e no Grupo de Pesquisa em Sexualidade, Di-
reito e Democracia (SDD-UFF), mestre em criminologia pela Faculdade de
Direito e Criminologia da Université Catholique de Louvain (2014), bacharela
em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (2011) e bacharela Interdis-

389
ciplinar em Artes com foco em Políticas e Gestão da Cultura pela Universi-
dade Federal da Bahia (2011), mediadora pela formação especializada e inter-
disciplinar à mediação local, escolar e penal pela Université Catholique de
Louvain, Université Saint-Louis e Université de Namur, Bélgica. Interesse em
aprimorar conhecimentos no âmbito sócio-político-cultural, enfatizando as
interrelações entre a sociedade, o indivíduo e as instituições. Realiza estudos
na interface do direito, criminologia, artes, psicanálise e marcadores sociais de
raça, classe, gênero.

Gabriel Cerqueira Leite Martire


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
pela Universidade Federal Fluminense - PPGSD/UFF e cursando a especia-
lização em ensino da arte pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV
& Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Possui especialização
em direito imobiliário pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e especi-
alização em direitos humanos, gênero e sexualidade pelo Centro Latino-Ame-
ricano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM & Instituto de Medicina
Social - IMS & UERJ; graduação em direito pelo Centro Universitário La Salle
- UNILASALLE/RJ; e, graduação em licenciatura em artes pela Escola de
Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro - EBA/UFRJ. Atual-
mente é professor em artes, com habilitação em direito pela Secretaria de Edu-
cação do Estado do Rio de Janeiro. Também é artista plástico.

Ariíni Guimarães Bomfim


Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Feira de
Santana. Especialização em Ciências Criminais pela Universidade Federal da
Bahia. Advogada atuante em diversas áreas. Já foi membro da Comissão de
Diversidade Sexual da seccional de Feira de Santana da OAB/BA. Participou
do Grupo de Pesquisa em Criminologia na Universidade Estadual de Feira de
Santana. Atualmente mestranda do Programa de pós-graduação em sociologia
e direito da Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Pes-
quisa em Sexualidade, Democracia e Direito também da UFF.

Beatriz Hiromi da Silva Akutzu


Atuou como conciliadora no XXIII Juizado Especial Cível do Rio de
Janeiro (2010/2011). Participou do programa de mobilidade no curso de Di-

390
Qual o futuro da sexualidade no direito?

reito da Universidade de Coimbra (2011). Pós-graduada em Direito da Comu-


nicação pela Universidade de Coimbra (2012) e bacharel em Direito pela Uni-
versidade Federal Fluminense (2014). Desde dezembro de 2013, estuda temas
sobre conflitos de gênero e violência doméstica. Atualmente, é mestranda do
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense.

Roberta Olivato Canheo


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (2014). Especialização em Direito Constitucional aplicado na Institui-
ção Damásio Educacional. Mestranda em Sociologia e Direito pelo
PPGSD/UFF.

Rogério Barros Sganzerla


Advogado. Pesquisador da FGV Direito Rio (CJUS). Doutorando em
Sociologia e Direito pela UFF. Mestre em Direito pela UNIRIO. Bacharel em
Direito pela FGV Direito Rio. Licenciando em Filosofia pela UNIRIO. Já
participou de pesquisas na FGV Direito Rio, UNIRIO e IBMEC, com habi-
lidades na pesquisa empírica e análise crítica do Direito através da análise de
dados quantitativos e qualitativos. Além disso, possui experiência docência,
com passagens pela UNIRIO, FGV Direito Rio, UFRJ, IBMEC e Curso
IURIS. Na área do Direito já teve passagem pela Secretaria Estadual de Direi-
tos Humanos, Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Acadepol (PB). Como área de interesse
estão os temas de Direitos Humanos, Processo Penal, Criminologia Crítica,
Filosofia do Direito, Teoria do Direito e Teoria da Justiça.

Carolina Câmara Pires dos Santos


Mestranda na Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio de Janeiro (2013). Atualmente é colaboradora da Coordenadoria
Especial de Promoção das Políticas de Igualdade Racial e educadora social
voluntária no Grupo Movimento 205. Tem experiência na área de Direito,
especificamente nos seguintes temas: discriminação racial e de gênero, direito
à moradia, implementação da Lei 10.639/2003, ensino superior e ações afir-
mativas e mulheres negras.

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Clarissa Cunha Felix
Cientista Social e Advogada. Possui graduação em Ciências Sociais,
pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (Universidade Federal da Bahia -
2003); graduação em Direito, pelo Centro Universitário Jorge Amado -
UNIJORGE (2013); e, Especialização em Gestão Governamental pela Uni-
versidade do Estado da Bahia - UNEB (2004). Aprovada na Seleção de Mes-
trado em Sociologia e Direito, pela Faculdade de Direito da UFF (Universi-
dade Federal Fluminense), para o semestre 2016,1. Participou do quadro téc-
nico da Comissão Estadual da Verdade (CEV-BA). Está associada ao Grupo
Tortura Nunca Mais (GTNM-BA). Concentra sua atuação profissional e po-
lítica na luta em prol dos Direitos Humanos, no combate às desigualdades
étnico raciais, análise do Sistema Penal. Atuação em comunidades em situação
de vulnerabilização social. Atualmente concentra estudos na área de crimino-
logia, Direitos Humanos, Sociais, Raciais e Culturais.

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O LIVRO

Formato: 16 x 23 cm
Tipologia:
1ª edição 2017
394 páginas

Capa: David Emmanuel da Silva Souza


Diagramação e normatização: Eder Fernandes Monica
Revisão: Gabriel Guarino e Natália Oliveira

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