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Lacan 1

e o espelho sofiânico
de Boehme
Copyright© by EDITORA CAMPO MATÊMICO DO MESMO AUTOR
Proibida a reproduçao total ou parcial Ensaios
Le bégaiement des maîtres

EDITORAÇÂO ELETRÔNICA (1988), Arcanes, Estrasburgo.


FA - Editoraçao E letrônica Reeditado corn o tftulo
Le bégaiement des maîtres -
Lacan, Benveniste, Lévi­
TRADUÇÂO
Strauss, Arcanes, Estrasburgo,
Procopio A breu
1999.
Les mystères de la trinité,
REYISÂO
Gallimard, Paris, 1990.
Sandra Regina Felgueiras
Folie et démocratie,
Gallimard, Paris, 1996.
Lettres sur la nature hu maine,
Calmann-Lévy, Paris, 1998.

Romances
Les instants décomposés,
Julliard, Paris, 1993.
FICHA CATALOGRÂFICA

D86 1 1
Dufour, Dany-Robert.
Lacan e o espelho sofiânico de B oehme /
Dany-Robert Dufour ; [traduçào de Procopio Abreu].
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. lLUSTRAÇÂO DE CAPA
60 p. ; 20 cm. Gravura em cobre, de Johann
Georg Gichtel, da pagina-titulo
ISBN 85-8571 7-33-5
das Obras Completas de Jakob
Inclui bibliografia. Boehme, editadas em alemào em

l . Lacan, Jacques, 190 1 - 1 98 1 . 2. Psicanalise. !. Titulo. Amsterdà, 1682, in Jakob


Boehme, Von der Gnadenwahl,
CDD- 1 50. 1 95 Philip Reclam Jun. Stuttgart,
1988.
Nela podem ser lidas as
seguintes menç6es:
Gnaden Wahl- Wille- Wohl -
edito r a
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Wehe- Aus einem Saft- Von
guten Kraft- Gehet hin zum
Rua Visconde de Piraja, 547 - Sala 702
Cep 22415-900 - Ipanema - Rio de Janeiro fewer Pfuhl- Kommet her zum
Tel.: (021) 540-7954-Telefax: (021) 239-9492 Gnaden Stuhl- Verstockung-
email: tereza@ism.com.br Bosheit- Vergebung- Bu � e.
Dany-Robert Dufour

Lacan
eo

espelho sofiânico
de

Boehme

Cou<p�
de- F'U!.ad
edito r a
5

Grande Vaidade 1 64 1 Sébastian Stoskopff


7

Gostaria de fazer uma breve incursao no


campo dos estudos lacanianos a fim de expor
uma hipotese que me parece relativamente
nova quanto às fontes do estâdio do espelho.
Ao fazê-lo, sei que toco num ponto-chave da
historia do "lacanismo", jâ que o estâdio do
espelho representa de certa forma o momento
decisivo em que, para dizê-lo sem rodeios,
Lacan se tornou Lacan.
0 estâdio do espelho tem tanto mais o
sabor dos momentos fundadores porquanto
foi o proprio Lacan quem tornou plausîvel a
idéia. Dele falou nos Escritos como o
"primeiro pivô de sua* intervençao na teoria
psicanalîtica" . Além disso, em vârias
oportunidades apresentou o estâdio do
espelho como a "vassourinha" graças à qual .
ele entrara em psicanâlise - notadamente na
sessao de 10 de janeiro de 1968 do seminârio
dedicado a 0 ato psicanafftico. É claro que
nao é indiferente que Lacan evoque essa

* Em francês,{s]on. (NR)
8

época de trinta anos antes numa sessao em


que esta essencialmente em questao a
"determinaçao do começo", do bom uso do
"cruzamento do Rubicao", da interrogaçao do
ponto de apxri, da causa de si spinoziana, do
cogito cartesiano, da equivalência entre as
f6rmulas do começo em Sao Joao "No
começo era o verbo" e do começo gœteano
"No começo era a açao" . . .
Neste caso, é notavel que seja no
momento em que Lacan trabalha a questao do
"começo" que "seu" estâdio do espelho lhe
volte à mente. 0 ato é dado a entender como
ato de fala (num sentido que me parece bem
prôximo do performativo de Austin), isto é,
um dizer que é um fazer e que abre assim
("começo") uma série discursiva. Mas a
atençao dada ao que sucede ao ato nao
resolve entretanto a questao de saber o que é
o prôprio ato. É ai que intervém uma notavel
definiçao que alias encerra a sessao: "o
suj eito do ato [ . . . ] é um sujeito que, no ato,
nao esta" . Podemos reconhecer nesta
distorçao interna do sujeito um esquema que
ja fora utilizado por Lacan para reinterpretar
o suj eito cartesiano à luz do sujeito freudiano
9

do "Wo es war. . . ": nao penso ali onde estou,


nao estou ali onde penso (o sujeito do Cogito
é alias evocado na sessao). Quanta à
"vassourinha", sua acepçao coloca-a no gênera
dos utensilios de limpeza, o que leva aimaginar
que o estadio do espelho foi considerado pelo
proprio Lacan como aquilo por onde foi
iniciada a reorganizaçao da casa Freud.
Esse valor pioneira dado ao epis6dio do
estadio do espelho, sempre reiterado por
Lacan, é fortemente reforçado pela dupla
dramatizaçao que acompanhou esse texto: por
um lado, na pr6pria época do estadio do
espelho, Lacan foi impedido de 1er seu texto
pelo establishment psicanalitico de entao1 ;
pelo outra, esse texto original, até mesmo
originario na medida em que atesta um desejo
de (re)fundaçao ou pelo menos um sério
desejo de fixar data, foi simplesmente
perdido por seu autor depois que, como o
escreveu muito tempo ap6s, ele "esqueceu de

1 "Fiz uma comunicaçiio formai no congresso de Marienbad em 1936, pelo


menos até esse ponto que coïncide exatamente corn o quarto sinal do décima
minuta, quando fui interrompido por Jones, que presidia o congresso na
qualidade de presidente ... ". Ver LACAN, Écrits, Seuil, Paris, 1966. "Propos
sur la causalité psychique", p.184. Tîtulo original da comunicaçiio de Lacan:
"Le stade du miroir. Théorie d'un moment structurant et génétique de la
constitution de la réalité, conçu en relation avec l' expérience et la doctrine
psychanalytique", indice do tftulo em inglês emlnternational Journal of
Psychoanalysis: 'The loocking-glass-phase''.
10

entregar o texto para o resumo do


congresso"2• Por muito pouco, seria assim
possivel dizer que esse texto decisivo nunca
existiu publicamente ja que, em suma, nao foi
lido onde deveria sê-lo e nao foi publicado
coma deveria ter sido: corn efeito, restam
desse texto apenas as vers6es ulteriores de
1 938, de 1 949 e de 1 9663 .
De que maneira essa dupla falta do texto,
nao lido, nao publicado - para dizê-lo à
maneira do "mal visto, mal dito" de Beckett -
pôde contribuir para sua transformaçao em
arquitexto? Essa virada seria incompreensivel
se nao fosse justamente constitutiva da
pr6pria 16gica do ato. Dificil, corn efeito, nao
notar que essa inversao de uma falta em
presença esta no cerne da problematica do ato
tal coma Lacan a desenvolve: da mesma
forma que o suj eito do ato é o sujeito que ali

'Ibid. "De nos antécédents'", p. 67.


'1938: Verbete sobre "la famille"" na Encyclopédiefrançaise (Larousse, Paris,
1938, tomo 8, reeditado sob o tîtulo Les Complexesfamiliaux dans la
formation de l'individu, Navarin, Paris, 1984). 1949: "Le stade du miroir
comme formateur de la fonction du Je, telle qu'elle nous est révélée dans
l'expérience psychanalytique", 16° Congresso International de Psicanâlise,
Zurich (l 7-7-1949) Revuefrançaise de psychanalyse, 4, 1949, 1966: retomada
em Écrits, op. cit. . A que se deve acrescentar os "Propos sur la causalité
psychique" (l 946), cujas oito ultimas paginas retomam, atualizando-os, os
argumentas do texto de 1938.
11

nao esta, o objeto do ato é o objeto que ali


nao esta, o objeto que falta em seu lugar. É
precisamente isso, essa relaçao entre, diria eu,
"o que faz falta" e "o que a falta faz" que se
presta muito bem ao tratamento legendario.
Nao ha tabulas, gestos miticos que nao
procedam desses grandes momentos de
inversao: é a pr6pria magia, o instante em que
nada se toma algo, que ai encontra seu lugar.
Dever-se-ia portanto interrogar os valores
tanto heuristicos quanto miticos ligados a
esse texto na constituiçao da epopéia
lacaniana: o que veio a seguir, a partir desse
texto? Qual série discursiva especificamente
lacaniana assim se abriu? Corno Lacan
encontrou raz6es para continuar (nao sem ter
varias vezes repetido esse inicio,
incoativamente de certa forma, notadamente
corn os textos de 1 938 e de 1 949)? Quais
efeitos de reconhecimento, corn o valor
imaginârio e legendario ligado a esses efeitos,
se apoiaram nesse texto? Qual é a parte da
constituiçao retrospectiva desse ato na
medida em que ele é fundado como tal s6-
depois? Tantas quest6es legitimas às quais
sera preciso de fato um dia se dirigir, mas
12

Velasquez, As Meninas.
que apresentam o risco de projetar-nos no 1656

centra dos estudos lacanianos corn o risco


"A hip6tese de Foucault segundo a
centrfpeto de fechâ-las râpido demais sobre si quai o espelho ao fundo reflete
diretamente o Rei e a Rainha que
estao de frente para a cena (Les
mesmas. Foi o que râpido fizemos, em face Mots et les Choses [As palavras e as
coisas], Paris, Gallimard, 1966, cap.
desses objetos OVNI que deslocam as 1) foi colocada em düvida por
trabalhos recentes, particulannente
perguntas e as respostas, ao nos deixarmos de Campo y Frances ( 1985). É rik
Porge precisa em que ponta esta a
fascinar pela estranha claridade que deles questào, remetendo-a aos
comentarios feitos por Lacan em
emana e ao nos esquecermos de reconstituir di versas sess6es do Seminario de
maio de 1966 (cf. "L'analyste dans
l'histoire et dans la structure du
os deslocamentos que visavam dizer de onde sujet comme Velasquez dans Les
Ménines", in Littoral n° 26, 1989).
eles vêm e onde estavam exatamente antes de Deve-se notar que As Meninas nâo
param de enriquecer-se corn novas
ali se encontrarem. Essa tentaçao de interpretaçoes, pondo sempre,
parece, mais espelhos em jogo (ver,
fechamento do texto sobre si mesmo é tanto por exemplo, a hip6tese de aspecta
bastante lacaniano de Michel
mais forte corn o estddio do espelho Thévoz, corn um jogo especular e
especulativo levado a seu maxima,
no cap. 3 de Le miroir infidèle [O
porquanto existe uma forte homologia entre o espelho i11jie/], Minuit, Paris, 1996).

que nele se enuncia e as circunstâncias da


enunciaçao. 0 espelho afirma corn efeito que
existe um deslocamento formador do sujeito
eu Ue] sô estâ aqui desde que estej a ali - de

r �,
-

modo que a ficçao preside à formaçao do


sujeito. Quanta às circunstâncias em que essa
tese foi formulada, elas jâ foram lembradas: o i
texto nao vem em seu lugar, ele desapareceu
daqui como texto para fundar-se ali como
r-, ' '

f
arquitexto. Corno freqüentemente em Lacan,
podemos identificar uma relaçao decisiva
-···-··--··
-----·-· - :.t
entre o enunciado da tese e as circunstâncias
13
14

de sua enunciaçao - que se lembre por


exemplo das circunstâncias da enunciaçao da
tese sobre a inversao da mensagem onde
Lacan s6 teve que retomar da boca de um
interlocutor suas palavras sobre a inversao da
mensagem, invertendo-a . . .
Nao é preciso muito para que tudo pareça
saido unicamente de um curto-circuito
notâvel entre enunciado e enunciaçao, corn o
risco de fazer desaparecer do campo de visao
o que a tese formulada deve ao resto do
pensamento. Ora, a primeira tarefa ao se
pretender pensar é interrogar a magia daquilo
que parece fundar-se ex nihilo para tentar
. tecer novamente os laços que o clarao do ato
fundador tende inevitavelmente a jogar na
sombra. É por isso que a primeira medida
para reatar esses laços parece-me ser
recolocar a questao no lugar, começando por
interrogar nao o que sucede ao estddio do
espelho, mas o que o precede. Em resumo, o
que encontramos antes do ato de enunciaçao
do espelho?
Escolhi cinco fontes do estddio do
espelho: quatro j â sao mais ou menos
conhecidas, mas a quinta o é muito menos.
15

La Dame à la Licorne, La Vue.


Tapeçaria de Bords de Loire,
Século XVI.

Vou portanto me contentar em lembrar as


quatro primeiras para desenvolver um pouco
mais em detalhe a quinta.
16

0 narcisismo

Corno fonte do estddio do espelho entra


evidentemente o texto de Freud de 1 9 1 4,
"Para introduzir o narcisismo". Sabemos
que é preciso entender por esse titulo nao
uma introduçao a esse conceito, mas a
lncessantemente rninha queixa martir arrasta
tentativa, bem mais radical, de introduzir o Mortais espfritos de meus dois flancos doentes:
E meus suspiros da Alma triste atrai,
narcisismo na psicanalise. A noçao j a Acordando-me sempre corn as serenatas
De seus soluços por demais sujos e insossos:
circulava h a muito tempo n a descriçao clfnica Corno de tudo tendo necessidade,
Tao reduzido na perplexidade,
Ao ai acabar a esperança ainda se vangloria.
(Nacke em 1 899, Abraham em 1908) Porque perturbado por ta! ansiedade,
Vendo meu caso, cornigo me espanto.
e s6 tardiamente foi importada por Freud
para a doutrina psicanalitica, ao passa
que seu aparelho te6rico ja estava bem
constitufdo. É sabido que essa introduçao,
que procede de uma dualizaçao da pulsao
em libido narcfsica e em libido objetal, devia
produzir efeitos a longo prazo consideraveis
(sobre as t6picas, sobre uma segunda
dualizaçao da pulsao corn a hip6tese da Regozijo-me quando tua face se mostra,
Cuja beleza pode os Céus arruinar:
pulsao de morte, sobre a clivagem do Mas quando teu olho corn o meu se encontra,
Sou forçado a minha cabeça inclinar:
sujeito . . . ), a tal ponta que Lacan nao E sobre a terra tenho que me vergar,
Corno quem quer a ela ajuda pedir,
pôde considerar sua pr6pria contribuiçao E contra o perigo seu remédio adquirir,
Tendo comum em ti compaixao.
sem referi-la aos efeitos a longo Pois tu farias n6s dois bem cedo perecer.
Eu pelo olhar, tu pela reflexao.
prazo daquilo que "a psicanalise
admiravelmente designou sob o nome de
17

narcisismo"4 , ainda que corn o risco de


identificar de imediato as "contradiçôes
doutrinais inextricâveis"5 e as "latências da
semântica"6 .
Nesse veio do narcisismo, os trabalhos de
Rank ocupam um lugar importante. Iniciados
em 19 1 1 corn Ein Beitrag zum Narzissismus,
alimentados por estudos publicados em Se é amor, por que entào me mata,
Quem tanto amava e jamais sou be odiar?
Disso nâ.o posso tanto me espantar,
1 9 1 47, eles foram decisivos no trabalho de E ainda que j amais o ofendesse:
Mas safre ainda, sem lamentaç6es quaisquer,
introduçao dessa noçao e seus efeitos sao Que ele me consome, tal como ao fogo a Cera.
E, me matando, a viver ele me deseja,
facilmente situâveis, tanto na hip6tese A fim de que, amando outra, eu nao me desame.
0 que mais é preciso além de me matar,
freudiana da Unheimliche quanto nos Jâ que cedo marre quem demais em vâ.o ama?

"mecanismos de inversao, de isolamento e de


reduplicaçao" ligados à "imago do duplo", 0 espelho emblemâtico.
"La Licorne qui se voit"
formulados por Lacan em seu estâdio do "Le Basilic et le Miroir"
"Narcisse"
espelho.
Trechos de "Delie"
de Maurice Scève.
1 544'

' Incessamment mon grief martyre


tire / Mortelz espritz de mes deux
flans malades: / Et mes souspirs de
l' Ame triste attire, / Me resveillantz
tousjours par les aulbades / De leurs
sanglotz trop desgoutément fades: /
Comme de tout ayantz necessité, /
Tant que reduict en la perplexité, / A
y finir l'espoir encor se vante. /
Parquoy troublé de telle anxieté, /
Voyant mon cas, de moy j e
m'espouvante. / Je m'esjouys quand
'LACAN, Écrits, op. cit. "Propos sur la causalité psychique", p. 186. ta face se monstre, / Dont la beaulté
5 Ibid. peult les Cieulx ruyner: / Mais
6 LACAN, Écrits, op. cit.. "Le stade du miroir ( . . . )" , p. 98. quand ton oeil droit au mien se
7 Otto RANK, Don Juan [1921], seguido de Le double [1914], Payot, Paris, rencontre, I Je suis contrainct de ma
1973. Le Double baseia-se essencialmente em fontes litenirias tais como os teste cliner: / Et contre terre il me
mitos dos gêmeos, Di: Jekill e Mr. Hyde, Dorian Gray. .. fault incliner, / Comme qui veulx
18

0 neodarwinismo d'elle ayde requerir, / Et au danger


son remede acquerir, / Ayant
commune en toy compassion. / Car
tu ferois nous deux bien tost perir. I
Moy du regard, toy par reflection. I
Lacan retomou, por sua vez, os trabalhos Si c' est Amour, pourquoy m'occit il
doncques, I Qui tant aymay, & onq
me sceuz hair? / Je ne m'en puis non
do anatomista Bolk (Das Problem der asses esbahir, I Et mesmement que
ne l'offençay oncques: I Mais
Menschwerdung, 1 926 8) sobre a neotenia do souffre encor, sans complainctes
quelconques, / Qu'il me consume,
homem. A neotenia havia sido evocada para ainsi qu'au feu la Cyre. / Et me
tuant, a vivre il me desire, I Affin
certas espécies animais por Darwin9 . Ora, qu' aymant aultruy, je me desayme. I
Qu'est il besoing de plus oultre
B olk a aplica ao proprio homem. A neotonia m' occire, / Veu qu' asses meurt, qui
trop vainement ayme?
corresponde a uma prematuraçao especifica,
isto é, à transformaçao de certos caracteres
normalmente transit6rios da juvenilidade em
caracteres adquiridos e transmissîveis . Desde
o artigo de 1 938, Lacan faz explicitamente da
neotenia do homem um pivô de sua
demonstraçao ("nao se deve hesitar em
considerar o homem como um animal de
nascimento prematuro"). A referência direta a
Bolk aparece alias nos "Propos sur la
causalité psychique" de 1 946.
É evidente nas palavras de Lacan que o
inacabamento orgânico é suprido por uma

'Traduçào francesa de F. Gantheret e G. Lapassade, "Le problème de la genèse


humaine", Revuefrançaise de psychanalyse, março-abril 1961.
""Sabe-se atualmente que alguns animais sào aptos a se reproduzirem numa
idade muito precoce, antes mesmo de terem adquirido seus caracteres adultos
completos; se esta faculdade viesse a ter numa espécie um desenvolvimento
considerâvel, é provâvel que o estado adulto desses animais cedo ou tarde se
perderia". Cf. Ch. DARWIN, L'origine des espèces, cap. 6.
19

experiência decisiva de natureza psiquica no


processo de formaçao do individuo. Essa
experiência, Lacan toma-a às teses, elas
também neodarwinistas, de Wallon (expostas
em Les origines du caractère chez l'enfant,
publicado em 1 934) . Elas fazem da captaçao
espetacular em que a criança se reconhece e
unifica seu eu [moi] no espaça o momento de
uma experiência que comanda o acesso a uma
ordem de coordenaçao mais ampla. A
particularidade dessa experiência vem do fato
de que ela deve tanto ser entendida como o
ultimo ato de maturaçao natural quanta como Brancusi, L'Oiselet, escultura, 1925

o primeiro ato cultural que precipita


decisivamente o sujeito no mundo humano.
Ainda que o nome de Wallon curiosamente
nao sej a citado no artigo de Lacan de 1 938,
embora este tenha sido encomendado pelo
proprio Wallon para a Encyclopédie
française, Lacan mais tarde reconheceu sùa
divida para corn ele 1 0•
A natureza dessa experiência é definida
por Lacan em referência ao que os bi6logos
alemaes dos anos 20 chamam o Umwelt, que

10
Esta sublinhado no verbete de 1948, "L'agressivité en psychanalyse" (cf.
LACAN, Écrits, op. cit.) o carater "notavel" <las contribuiçôes de Wallon.
20

remete ao meio exterior tal como ele é [. ]


..

Sou alguém e estou cagando pra


interiorizado em cada espécie. Os primeiros você", 6 deus,
demônio,
meses da vida devem ser pensados como deixe passar meu corpo de merda,
. tenho um corpo
ruptura das condiç6es de ambiente que e você s6 pode saber o que é a vontade
de ter um.
remete o indivfduo às imagens (imago) do Nem o ser, nem o nada,
alguém,
habitat intra-uterino. Os termos de "ruptura o homem,
um homem
das condiç6es de ambiente" figuram no texto simplesmente
e a paz,
de 1 938 e os de "ruptura do cfrculo do bas tante.
Nào ha nada a saber.
Innenwelt ao Umwelt" no texto de 1 949. Mas Nào ha nada tampouco a aprender.
As concepç6es, as noç6es, os
a natureza da experiência mudou um pouco sentimentos sào miasmas
elevados do corpo no catrepti
entre 1938 e 1 949: o que deriva de uma (catrepti em grego querdizer espelho)
espelho
dimensao imaginaria em 1 938 toma-se o onde o impessoal embrutecido se olha
porque ele nào é um, nem ele,
fundo de uma experiência simb6lica em mas isso,
isso,
1949 - o artigo "L' efficacité symbolique" de tudo o que passa no espelho.
0 que, pois?
Claude Lévi-Strauss publicado alguns meses Mas nada,
nada,
antes, sobre o qual Lacan amplamente se o que ele deseja no espelho
nào podendo desejâ-lo nas coisas
apoiou para formular suas teses sobre a
e em coisas
ordem simb6lica, provavelmente passou por porque as coisas também
onde viver
ali, sendo alias citado. e como viver
e que viver
e que para viver isso se faz,
é preciso fazer seu espaça de objetos
e a terra de seus objetos,
a terra para nela ir morar
corn a terra de seus objetos (seus)
que nào sào encontrados prontos
quando nascemos

A criança nascida, chamada a viver,


a ali estar
quando ali nào estava,
a existir
quando nào existia,
21

A Psicologia da Gestalt padece corn Iodas as suas forças,


corn todos os seus musculos,
corn todos os seus nervos,
corn toda a sua vida,
Esse equîvoco entre o imaginfuio e o simb61ico e ela protesta,
deve-se ao fato de que a imagem possui um sua vida protesta,
seu corpo protesta,
estatuto ambîguo que a faz oscilar da sua vida nela protesta.

multiplicidade de seus elementos (soldando-se pela Um dia, mais tarde,


ela teni que escolher
imagem quebrada de um corpo despedaçado) à sua entre ter nascido
e nâo ter nascido,
apreensao como totalidade. Quanto a este ultimo ali estar
ou ali nâo ter estado,
ponto, Lacan baseia-se fortemente nos trabalhos da ela tera que decidir quanto à terrfvel
Psicologia da Gestalt e cita em particular os cumplicidade
que a une à larva ou ao nada
trabalhos de Elsa Kahler ( 1 926) mostrando que que ela era antes de nascer,
[.]
. .

uma Gestalt ("forma") é capaz de efeitos


normativos sobre o organismo e os de Charlotte Antonin Artaud.
Cahiers du retour à Paris, dez.
Bühler ( 1 927) sobre o transitivismo infantil, o qual 1946 jan. 1 947.
-

assinala a entrada numa forma de inteligência


ligada à sociabilidade.
Lacan jamais abandonara a idéia de uma
intervençao da dimensao social ligada à percepçao
do outro na maturaçao biol6gica do indivîduo e se
baseara constantemente nos trabalhos de zo6logos
e entom6logos 1 1 . Seus alunos o ouvirao assim
evocar corn constância, ao longo de seu serninfuio,
o exemplo dafêmea do pombo que, isolada de seus
congêneres, nao ovula e do grilo peregrino no qual
a apariçao do tipo gregfuio é deterrninada pela
percepçao da forma adulta durante o perîodo larvar.
11
Ver, par exemplo, LACAN, Écrits, "Propos sur la causalité psychique" (op. cit., p.
190), onde Lacan cita os trabalhos de Harrisson ( 1939) e de Chauvin ( 1 9 4 1 ).
22

HISTORIA DO ESPELHO Mas, para quem se mirou num e é impossîvel imaginar uma preciosa
Sabine Melchior-Bonnet espelho de Veneza, nenhuma sem o seu: o da duquesa de La
Imago comparaçào é possîvel: Francisco I, Vallière contém quatorze espelhos e
apaixonado par todas as novidades, supera o da duquesa de Bouillon. A
Um irresistîvel fascînio amante de luxa e de arte italiana, se Grande Mademoiselle no exîlio em
apressa em encomendar a seus Saint-Fargeau manda instalar
Durante todo o século XVI, espelhos ourives espelhos de Veneza. Em pequenos redutos em gabinetes e
de aço e espelhos de vidro sâo 15 32, Allard Plommyer entrega-lhe guarda-roupas onde logo lhe colocam
utilizados em conjunto. Em seus um espelho guarnecido de ouro e espelhos. "Em seus gabinetes
Brasi5es domésticos contendo a pedrarias. No ana seguinte, Jehan encantados, 0 tecido nào mais
decoraçào de uma casa honesta Grain fornece-lhe treze e, em 153 8 , encontra lugar / Todas as paredes dos
[Blasons domestiques contenant la Plommyer e Pouchet entregam-lhe quatro !ados, / estào de espelhos
décoration d'une maison honnête] mais onze. Um ünico desses incrustadas", observa Regnier­
( 1 539), Gilles Corrozet junta numa espelhinhos corn sua moldura Desmarets. 0 inventârio de Fouquet
mesma admiraçâo o "espelho de aço preciosa custa 360 escudos de ouro. compreende uma impressionante
bem claro" e o "espelho de vidro bem A moda esta lançada, a necessidade coleçào de espelhos das mais
escuro''. Auxiliar precioso da luz e da criada, e vai custar à França somas diversas molduras, ouro, prata, prata
beleza, ocupa lugar de destaque na fabulosas, pois a carte nào resistirâ à dourada, marfim, escama de
mobîlia e oferece seu brilho em seduçào das novidades. 0 exemplo tartaruga. Mazarino, que também tem
residências parcarnente iluminadas: vem de cima. Catarina de Médicis, varias, os propôe coma prêmio de
"espelho de boa grandeza", insiste italiana ja familiarizada corn esses uma loteria. 0 gabinete do delfim,
Corrozet. A gravura, que acompanha tesouros, mandou instalar, ap6s a descrito par Félibien, contém "par
a primeira ediçâo, apresenta um morte de Henrique II, um célebre todos os !ados e no teto espelhos corn
espelho do tamanho de uma cabeça "gabinete de espelhos". Sobre a compartimentas e bordas douradas
montado sobre um pé bem alto e lareira, "via-se corn efeito um retrato sobre um fundo de marchetaria de
muito ornamentado, mas nâo se pode do falecido representado em ébano''. No gabinete do marechal de
distinguir de que matéria é feito. perspectiva num espelho" e, nas Lorges, sogro de Saint-Simon, a
Francisco I nào deixa, em 1533 e paredes, "cento e dezenove espelhos paisagem da colina de Montmartre
1534, de encomendar ainda a dois de planas de Veneza estavam embutidos repercute nas paredes corn a ajuda de
seus joalheiros, Guillaume Hotman e nos lambris do dito gabinete". "dois pares de espelhos''. Os
Allard Plommyer, quatro ou cinco No inventario ap6s o falecimento de inventârios do mobiliario da coroa
espelhos de aço de grande dimensào. Marguerite de Valois em 16 1 5 , sào feitos durante o reinado de Luîs XIV
Quase sempre os espelhos dos reis ou encontrados, na Rua de Seine, recenseiam quinhentos e sessenta e
dos prîncipes sào de prata ou de "quatro espelhos de cristal de rocha" très espelhos. As pessoas nào se
ouro, engastados em molduras guarnecidos de ouro, realçados de arruinam apenas pelas espelhos na
preciosas, coma o de Gabrielle lazulita e diamantes, dos quais um s6 parede, mas também pelas espelhos­
d' Estrée, guarnecido de diamantes e vale 1500 libras. A rainha Anne j6ias, avaliados nos inventârios corn
rubis e avaliado em 750 libras em d' Autriche tem seu "quarto de os anéis e os colares, que fazem
1599. 0 espelho de cristal s6 espelho" no Louvre, onde suas damas freqüentemente parte dos mais
lentamente destrona - e apenas na de companhia a penteiam. Loucura suntuosos presentes de casamento, tal
aristocracia - o espelho de metal que pela espelho ! Toda a nobreza o exige. coma o de Isabelle de Saint­
mais ou menas desaparece par Em 1 633, um baile é dada no Hotel Chamond, que o recebe em 1 6 1 0 do
completo dos inventarios no Ultimo de Chevreuse em presença da rainha pai, "cristalino embutido em ouro,
terça do século XVII. Mas par volta e a sala é decorada corn espelhos ornado de oito rosas de rubis", ou
de 1 652, em sua Perspectiva curiosa alternando corn as tapeçarias. Em ainda o dessa rica noiva cuja roupa
[Perspective curieuse] (1638), J.-F. 165 l , quando o arcebispo de Sens descreve o poema: "Os espelhos
Niceron da ainda uma receita para oferece uma festa à duquesa de moldados de vidros de Veneza/O
fabricar espelhos de aço côncavos Longueville, cinqüenta espelhos de leque de rendas, as abas à la Guise/
para fins experimentais. Um século Veneza embelezam a sala, o que nos Tantas correntes de hiâlito (pedra
mais tarde, um comerciante cuteleiro, vale alguns versos gozadores da negra de Gage) e tantos braceletes . . .".
J.-F. Perret, recebe um certificado da Muse historique, assinados par J. Quanta aos espelhos na cintura,
Academia Real de Ciências pois Loret que vê duplicarem-se "as presos a uma corrente, sào a Ultima
"conseguiu dar ao aço um polimento figuras/as caretas e as posturas/os moda: Corneille embeleza corn eles a
tao belo quanta o que da o prateado" risos, as graças, os encantos/os seios, bela Angélique (la Place royale,
e sua invençào é proposta àqueles as màos, os braços/dessa bela cabala/ 1635), Pascal observa "uma linda
que querem aprender a arte de que se festejava nessa sala". A moda donzela toda enfeitada de espelhos e
barbear-se sozinhos (a Pogonotomia). do gabinete dos espelhos causa furor correntes" e La Fontaine vê deles par
23

0 hegelianismo toda parte, "nos bolsos dos galantes"


e "nas cinturas das mulheres".
Talvez nem todos sejam de cristal,
mas custam bem caro por causa de
Lacan seguia de modo "assfduo" 12 o sua decoraçâo. 0 fascfnio da
nobreza conquista rapido os
seminario de Kojève sobre Hegel desde 1 934. notaveis da administraçâo e a
burguesia parisiense e os inventarios
Sabe-se por uma nota de Kojève de julho de ap6s falecimento nos informam
sobre sua difusâo. Por exemplo,
1 936 1 3 , isto é, às vésperas da primeira Marguerite Mercier, esposa de um
mordomo de Luis XIV, M.
comunicaçao sobre o espelho que Lacan devia d' Espesse, cuja renda é
relativamente alta. Em 1 654, data do
fazer em Marienbad no congresso da IPA, que casamento, os esposos possuem
1750 libras de renda por trimestre:
Lacan e Kojève tinham combinado escrever nâo possuem residência e alugam
um apartamento. A dona da casa,
juntos um estudo que devia se chamar Hegel et por medida de economia, remenda,
limpa e tinge regularmente seu
Freud: essai d'une confrontration interprétative. enxoval. Em 1655, ao dar à luz uma
menina, o marido lhe oferece "seu
"Esse estudo devia ser dividido em três partes: primeiro espelho corn cord6es e
grampos: custo: 165 libras".
1 ° 'Gênese da consciência de si' . Na maioria dos casos, a presença de
um espelho indica um offcio de
2° 'A origem da loucura' . representaçâo, em contato corn a
corte. Trata-se de faillllias de
3° 'A essência da fami1ia' 14". magistrados, conselheiros do rei,
membros da chancelaria e oficiais
de justiça. A burguesia comerciante
segue o ritmo, mas mais tarde, e se
contenta corn espelhos de pequena
dimensâo - menos de trinta
centfmetros - e de bordas modestas,
em moldura de pereira. J.-P. Camus,
bispo de Bellet e contista moralista,
observa que os ricos olham os
eclipses no céu por meio de um
espelho e os pobres numa bacia de
agua (La Tour des miroirs, 1 631).
Charles Sorel, em sua Histoire
comique de Francion, p6e em cena
um regente de escola, que nunca se
mirou senâo num balde de âgua e
que, apaixonado por uma de suas
alunas, p6e todas as suas economias
na compra de um espelho para
j ulgar o efeito que ele fara! Antes de
1 630, os espelhos ainda sâo raros.
Em duzentos e quarenta e oito
inventârios parisienses ap6s
falecimento escalonados entre 1581
e 1 622, sâo encontrados apenas
" Ver E. ROUDINESCO, Jacques Lacan, Fayard, Paris, 199 3 , p . 1 42. trinta e sete espelhos recenseados,
1 48.
13 Ibid, p. dos quais nove de vidro de Veneza e
148.
14 Ibid, p.
os vinte e oito outras em "bronze",
24

"cabre", "aço", "azul" (vidro


Koj ève redigiu sozinho quinze paginas colorido de azul), que assim se
repartem: dois espelhos na nobreza
sobre a primeira parte, comparando o cogito (para dezoito inventârios), quinze
entre magistrados e conselheiros do
cartesiano corn a consciência de si hegeliana. rei (quarenta inventârios), dois entre
auxiliares de justiça e médicos
Mas nao se pode deixar de pensar que esse (dezesseis inventarios) dez entre
burgueses de Paris (cinqüenta
programa ocupou Lacan durante um longo inventarios), um entre os
companheiros operarios (trinta
inventarios) estiio divididos vinte
perfodo e que sua comunicaçao do mês vezes no quarto principal e somente
cinco vezes na sala comum. Cinco
seguinte sobre o estddio do espelho é lares entre os duzentos e quarenta e
oito possuem dois espelhos. Ao lado
testemunha de uma parte de sua realizaçao, dessa média, notam-se alguns casas
particulares: um conselheiro da carte
embora a seqüência sobre a confrontaçao do do Parlamento tem em sua casa três
espelhos; um escudeiro do rei,
sujeito cartesiano corn o sujeito freudiano soldado da companhia, possui "seis
_ grandes espelhos de Veneza
embutidos em ébano, avaliados em
devesse vir somente bem mais tarde. 7 libras". Os lares de onde o espelho
esta ausente nâo sâo forçosamente
Lembremos que a reflexao de Hegel fala, desprovidos de bens e nâo ignoram
as alegrias da decoraçâo: 60% dos
desde o primeiro capîtulo de A fenomenologia lares estudados comportam vârios
quadros e 16%, tapeçarias. A
do esp{rito, sobre a natureza da proposiçao presença dos espelhos nâo pode
portanto estar ligada ao nîvel de
recursos, mas bem mais ao estilo de
especulativa que se define por si mesma e vida e à atraçâ.o exercida pelo
modelo dos grandes.
sobre as categorias de tempo e de espaça Nos vinte anos seguintes, as
perspectivas se modificam de modo
como "aqui" e "agora", cuj a definiçao bem nftido e o espelho aparece corn
freqüência duas vezes maior:
mistura universalidade e singularidade. Hegel cinqüenta e cinco espelhos
recenseados em cento e sessenta
observa que elas fazem inverter-se entre si inventarios escalonados entre 1 63 8 e
1 648 um espelho para três lares.
-

Doravante, o sucesso deles atinge


um "momento universal" e uma "relaçao todas as classes sociais, biscateiros,
vinagreiros, carreteiros figuram ao
imediata unica" 15. Hegel constata que essa lado do burguês alfaiate, do
passamaneiro e do conselheiro do
interpenetraçao "abole a forma da rei. Em vinte e dois casas, as
farru1ias dispêiem de um patrimônio
proposiçao", o que quer dizer que ela faz superior a 600 libras e, em vinte
dezenas de casas, trata-se de
desaparecer a escansao métrica da diferença inventarios de menas de 500 libras.
Ao lado dos espelhos pendurados na
parede, os inventarios assinalam
espelhinhos de toalete e também
"As citaçôes que se seguem sào extraidas da traduçào de J-P. Lefèvre da "espelhos de vidro quebrado".
Fenomenologia do espfrito de HEGEL, publicada pelas ediçôes Aubier (Paris. 199 1 ). A partir de 1650, o espelho esta
25

ainda mais amplamente difundido, é


entre sujeito e predicado e ele nota que encontrado em dois terços dos
inventârios parisienses. Uma mesma
entramos entao, nao necessariamente num farru1ia possui freqüentemente
varios: um comediante ordinârio do
especulativo estéril como durante muito rei tem seis, mas trata-se talvez de
um instrumenta de trabalho onde
tempo se pensou, mas num "especulativo estuda suas mimicas. Sua ausência
toma-se entao significativa.
efetivo" que deve ser estudado e nao eludido Curiosamente, acontece de familias
de notaveis, burgueses de Paris,
procurador no Parlamento,
como nas filosofias da simples administraçao controlador geral, escudeiro do rei,
mestre alfaiate, nao o possufrem,
da prova: "é preciso", escreve Hegel, "que embora disponham de alto nive! de
renda e que sejam providos, por
esse movimento contrario sej a enunciado; é outro lado, de tapeçarias e talheres
de prata. Muitos parâmetros
preciso que ele nao sej a apenas esse bloqueio intervêm: quase sempre o espelho
toma o lugar do quadro; nao
interna, é preciso que essa volta do conceito ultrapassa cinqüenta centfmetros e é
emoldurado corn madeira de pereira:
"esse precioso milagre, assinala um
em si sej a exposta". 0 que Hegel faz nos très observador parisiense, no final do
século XVII, esta hoje igualmente
primeiros capîtulos da Fenomenologia: nas maos dos grandes e dos
pequenos".
"I. A certeza sensfvel ou o isto e o ponto de
vista fntimo",
"II. A percepçao, ou a coisa e a ilusao",
"III. Força e entendimento, fenômeno e
mundo supra-sensfvel".
Em geral lemos por alto estes capftulos
para mais rapido chegarmos ao quarto,
"IV. A verdade da certeza de si mesmo",
onde esta desenvolvida a dialética resolutiva
do mestre e do escravo e apresentado o
advento da consciência de si. Ora, essa pressa
em concluir, em buscar a safda, é danosa pois
faz passar por cima do mundo do "Um,
dividido em si mesmo" - o termo é de Hegel.
26

Hegel percebeu que entravamos ali num Pablo Picasso


Mulher <liante do espelho, 1932
"mundo invertido" onde - cito - "o outro é o
em si'', onde "o que é adoçado ao gosto ( . . . )
seria amargo", onde "o polo Norte na bussola
real do fenômeno seria o polo Sul no ser
interna" e onde "o idêntico é nao-idêntico a
si e o nao-idêntico, idêntico a si". Nesse
"mundo ao avesso", os "termos sao
desdobrados", de modo que
o "Eu [Je] é a um so tempo
o conteudo da relaçao e o
ato da relaçao".
É precisamente essa
logica do Um-dividido que
esta de novo em j ogo no
estddio do espelho. No
espelho, corn efeito, o
segundo esta no um, o outro
esta em si e é evidentemente
o que da base a estes
poderosos "mecanismos de
inversao, de isolamento, de
reduplicaçao, de anulaçao,
de deslocamento" 16
observados por Lacan.

16
LACAN, Écrits, op. cit., "Le stade du miroir".
27

A teosofia de Jacob Boehme

Todas as referências que acabo de evocar j a


sao mais o u menos conhecidas. Mas ainda nao
foi sublinhada, a meu conhecimento, a
importância decisiva, na elaboraçao do estâdio
do espelho, de um esquema oriundo do
pensamento filos6fico barroco que Lacan nao
podia deixar de conhecer em 1936.
Esse tema tinha sido intraduzido por Koyré
em sua tese, A filosofia de Jacob Boehme,
publicada pelas ediç6es Vrin em 1929. Ora, é
dificil imaginar que Lacan, que mantinha
desde 1934 s6lidas amizades filos6ficas corn
Kojève e Koyré (centra de um nûcleo
filos6fico ein tomo do qual gravitavam, entre
outras, Corbin, B ataille, Queneau .. . ) , pudesse
ignorar os trabalhos de Koyré a quem Kojève
nao parava de se referir. É tanto menos
verassimil porquanto o artigo ja evocado sobre
Hegel e Freud, que Kojève e Lacan deviam
escrever em conjunto, estava destinado à
revis ta Recherches philosophiques, dirigida
por Koyré.
0 que se reteve principalmente da
influência de Koyré sobre Lacan foram suas
28

Retrato de Jacob Boehme por volta de 1 675


29

teses sobre a historia do pensamento


filosofico e cientffico nos séculos XVI e XVII
e notadamente sobre o papel do
neoplatonismo na invençao da nova ordem
galileana, que destituia o homem de qualquer
lugar central no uni verso levava ao abandono
das perspectivas finitas do universo. Mas nao
foi dada importância ao fato de que, para
sustentar esta tese, Koyré tenha tido que
construir uma nova historia das ciências
englobando o que as diferentes concepç6es
religiosas da época autorizavam entao a
conceber ou nao. Foi assim que Koyré
reintegrou na historia do pensamento uma
coorte de mîsticos especulativos, teosofos e
outros sabios como Nicolau de Cusa,
Paracelso, Giordano Bruno, Jacob
Boehme 17 . . . , afastados da teologia oficial
inteiramente dedicada a Deus. Uma ocupaçao
exclusiva por Deus que deixou de certa forma
vago um imenso campo de reflexao de que
esses exploradores se aproveitaram para
observar o Mundo e constituî-lo como um

17 E outros ainda em Mystiques, spirituels, alchimistes du XVIe siècle allemand


(Gallimard, Paris,1971): Caspar Schwenckfeld, Sébastien Franck, Valentin
Weigel.
30

PANTARHEI
1mv·w.pet

Tudo passa.
[ ... ]

Tuda passa. Tuda muda. Ha todavia


o que nao muda e que, portanto, esta
fora do tudo: o logos coma discurso
verdadeiro. Fora do universai na.o­
// c.vr<X
ser, o discurso tem um ser ("Desse
discurso que é sempre", fragmenta
BI); mas o ser de um discurso nao é
o ser de uma coisa: é o ser
verdadeiro. "Tuda acontece segundo
este discurso" ytvoµi:vcov yap
1tCXV'tCOV X<X'tCX 'tOV À.oyov 'tOVÔE,
fragmenta B 1 ) , o que quer dizer que
tudo devém, se produz, se troca,
passa (pEl) conforme o que diz este
discurso. 0 discurso diz a verdade
sempre verdadeira, eterna. Diz ao
sujeito do que muda o que nao
muda e, primeiramente, que tudo
muda: isso nao muda. Faz ver a
razao da universal mudança: a
unidade dos contrarias, lei universal
da natureza, e o que ela implica: a
oscilaçao medida de um contrario ao
outra no respeito à lei de
equivalência (fragmenta B90). 0
objeto do discurso nao é o
movimento como ta!, inominavel,
mas as leis, as regras que definem
uma ordem universal, a ordem do
mundo, esta ordem que é o mundo,
ordem eterna, graças à qua! o
movimento, a fugitividade, a
insubstancialidade sào eternas. Pois
que tudo passa, isso sera sempre

�Jau.cLt��· rgJJOJ. /a_..�. {,q_,;_j-J


verdadeiro.

Heraclito, Fragmentas.
Nota de Marcel Conche, PUF, 1986.

Poema de Jacques Lacan, enviado em agosto de 1929 a Ferdinand Alquié


31

mosaico de hier6glifos a serem decifrados,


como um universo de signos a serem
interpretados, abrindo assim novas vias na
pesquisa de suas regularidades escondidas.
Quando se lê a tese de Koyré sobre Jacob
B oehme, nao pode deixar de vir à mente que
Lacan nao s6 conhecia este trabalho, mas dele
fez sobretudo bom uso para construir a
problemâtica do estâdio do espelho 18 • A razao
disso é simples: o tema do espelho é central
na obra do sapateiro de Garlitz ( 1 575- 1 624) a
quem seus contemporâneos censuravam por
escrever livros ao invés de fazer botas depois
que ele foi por vârias vezes traspassado por
"luzes divinas" entre 1 600 e 1 6 1 2 .
A obra de Boehme é por certo
proliferativa, cheia de retomadas incessantes,

18
Quando eu estava escrevendo este texto, minha suposiçào de um
conhecimento (ao menos indireta, via Koyré) de Boehme par Lacan era
somente te6rica. Ora, a comunicaçào par Mayette Viltard de um poema de
Lacan escrito em agosto de 1929 (ver anexo), no ano mesmo da publicaçâo da
tese de Koyré, parece-me trazer a esta hip6tese uma s6lida prova textuai. Sem
mesmo entrar no comentârio do poema de Lacan (que resta a ser feito), é
possfvel, sem grandes riscos interpretativos, notar que ele contém uma solene
declaraçào de intençâo de um homem que considera um espelho, o espelho das
"Coisas" (deslinatârio do primeiro verso), um espelho lfquido (cf. o "tudo
passa'' de Herâclito) que o poeta empreende atravessar: "Atravesso vossa
âgua", embora o poema receba por tftulo um sintagma bem singular, "Hiatus
irrationalis", para constituir uma espécie de "assinatura": esta expressào mesma
se encontra corn efeito em Koyré, por exemplo, pagina 156 e pâgina 497. 0
poema foi em seguida editado em 1933 na revista de poesia Le phare de
Neuilly, n° 3/4, 37.
p. (retomado no Magazine littéraire, n°121 , 1977,
em p.
1 1 .).
Obrigado, portanto, a Mayette Viltard par esta preciosa îndicaçào.
32

* HIATUS IRRATIONALIS
Choses, que coule en vous la sueur
ou la sève, / Formes, que vous
naissiez de la forge ou du sang, /
Votre torrent n ' est pas plus dense
que mon rêve; / Et, si je ne vous bats
d'un désir incessant, / Je traverse
votre eau, je tombe vers la grève I
Où m' attire le poids de mon démon
pensant. / Seul, il heurte au sol dur
sur quoi l' être s' élève, / Au mal
aveugle et sourd, au dieu privé de
HIATUS IRRATIONALIS sens. I Mais, sitôt que tout verbe a
péri dans ma gorge, / Choses, que
vous naissiez du sang ou de la forge,
Coisas, que corra em v6s o suor ou a seiva,
/ Nature, - je me perds au flux d ' un
Formas, que nasçais da fo rj a ou do sangue, élément: I Celui qui couve en moi, le
même vous soulève, / Formes, que
Vossa torrente nâo é mais densa do que meu sonho; coule en vous la sueur ou la sève, /
E, se nâo vos persigo corn u m desejo incessante, C'est le feu qui me fait votre
immortel amant.

Atravesso vossa âgua, precipito-me para a margem


Onde me atrai o peso de meu demônio pensante.
S6, ele se choca contra o solo duro sobre o qual o ser se eleva,
Contra o mal cego e surdo, contra o deus privado de sentido.

Mas, logo que todo verbo pereceu em minha garganta,


Coisas, que nasçais do sangue ou da fo rj a,
Natureza, ...:. perco-me ao fluxo de um elemento:

Aquele que dorrnita em mim, o mesmo vos levanta,


Formas, que corra em v6s o suor ou a seiva,
É o fogo que me faz vosso imortal amante.

H. -P. , agosto de 29.

Jacques LACAN.
Le phare de Neuilly, 1933.
33

ANTOINE FAIVRE
tudo parece apenas fnfimos deslocamentos ACESSO DO ESOTERISMO
OCIDENTAL
seguidos de subitas contradiç6es em meio a II
N rf Gallimard - Paris, 1996
repetiç6es infinitas ; e a tese de Koyré, na
[ . . ] Baader lembra que "substância"
.

medida em que segue passa a passa essa obra ( Wesen) e "imagem" (Bild) quase
sempre sao empregadas
em movimento, nao é um modela de leveza. indiferentemente por Boehme: toda
imagem, vimos neste, é substância
para aquilo de que ela se tomou a
Mas, como confirma o grande especialista do imagem e, ao mesmo tempo, acha-se
submetida ou subordina<la a essa
esoterismo ocidental, Antoine Faivre, num entidade. Bern mais, se é espiritual,
precisa de uma imagem substancial
livra recente 19 , "a imagem e o espelho" para realizar-se, para tomar-se
"efetiva". Inversamente, a imagem
continuam sendo as "duas noç6es-chave" que nao se toma substancial sem esse
espirito que ela reflete.
devem "servir de guia no pensamento volcânico [ . . ] A imagem vê-se conferir um
.

pape! de mediaçao entre produtor e


produto, uma vez que este aceita
e barroco [de B oehme]" - o que a tese de participar ati vamente da troca
criadora. Concepçao muito
Koyré de resta valoriza perfeitamente. Lacan, boehmeana, na verdade. Mas
Baader, ao contrario de seu
em suma, teve apenas que retomar essas formas predecessor, nâo despreza as
explicaçôes esquematicas um pouco
da tradiçao mfstica especulativa e teos6fica da abstratas. No pequeno escrito Para
uma teoria da imagem [Pour une
bandej a que lhe estendia Koyré. théorie de l'image], ele se preocupa
em esquematizar. Seja B (o sol, ou
Deus), que envia seu raio em A (na
E sobre essa bandej a encontramos o agua, ou no homem). Aparece entào
o momento do Desejo: B semeia A
espelho, centra da obra boehmiana. 0 espelho nele projetando seu raio (sua
imagem). "Sensibilidade" em B, A
estâ aliâs duplamente em jogo na obra de projeta entào em B sua pr6pria
semente. Tendo-a recebido, B
Boehme, j â que este ultimo recebeu suas "acaba a imagem" e "forma o
corpo" desta, que remete em A. É
iluminaç6es divinas a respeito do espelho . . . assim que a mulher (B) excita no
homem (A) a semente, que ele
ao contemplar o j ogo da luz refletindo seus
projeta na mulher - e esta semente
toma-se uma criança. 0 mesmo
ocorre no negativo: peca-se
traças na superficie de um vaso de estanho20 . primeiramente na imaginaçào,
depois na vontade, enfim na açào.
Distinguiremos, portanto, três
momentos de forrnaçâo da imagem.
0 primeiro é "espiritual", é o do
19 A. FAIVRE, Accès de [ 'ésotérisme occidenral ll, Gallimard, Biblioteca <las " Geistbild". 0 segundo corresponde
Ciências Humanas, Paris, 1996 (cf. pp. 221 -30, "Sophia et Bildniss selon Jacob à vontade de A, que permite à
Boehme"). imagem elevar-se ao nfvel da
20 A . KOYRÉ, Lo philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, 1979 (fac-sfmile substância: assim, o raio que a agua
da primeira ediçiio de 1929), p. 20. remete ao sol manifesta-se sob a
34

forma das sete cores, que nao sao a


Nao posso neste ponto escapar da aposta simples refraçao de um raio
luminoso mas algo como uma
que consiste em ressaltar os traços que septiforme imagem j â
potencialmente substancial. 0
deveriam permitir apreender melhor as terceiro momento é o do
acabamento da imagem, que graças
possfveis vias de passagem entre Boehme e a B chega ao estatuto de
corporeidade (Leiblichkeit), isto é,
Lacan, via Koyré. de realidade no sentido teos6fico.
Vemos que A permanece sempre
livre para responder ao desejo de B ,
0 ponto de partida de todo o assunto corn o u para permanecer surdo a seu
apelo. 0 silêncio de B é evocado por
que B oehme se defronta é evidentemente a Baader num outro relato: "O
Espfrito nao deve vir perturbar o
deidade. Em outras palavras, aquilo de que processo de crença em açao em
nosso coraçao, da mesma forma que
nao se pode falar muito a nao ser recorrendo à o sol nao deve vir brilhar nas
rafzes". Guardemos sobretudo que
teologia negativa. 0 que de resto nao leva se tomar imagem de Deus nâo
significa reduzir-se a um simples
retrato d'Ele, passivo e sem vida.
muito longe (Boehme fala de uma "clareza Deus sente alegria em participar de
sua imagem simb6lica ( Gleichniss)
infinita", de uma "pura beatitude" e de um - o homem - tomada substância
ativa, nao a nela se refletir de modo
"silêncio infinito" . . ), a nao ser que se
. cat6ptrico sem nada experimentar
ele mesmo. Deus s6 experimenta, s6
desloque do proprio objeto para o discurso sente se a imagem humana se tomou
substância.
suposto assumi-lo: nao se pode falar do
objeto, mas pode-se falar da impossibilidade
de falar dele. 0 que empreende Boehme: a
deidade é pensada como Ungrund, termo
inventado por ele. 0 Ungrund "designa a
ausência total de determinaçao, de causa, de
fundamento, de razao ( Grund) e serfamos
tentados a traduzi-lo por Abismo, se B oehme
nao continuasse a empregar ao mesmo tempo
- e num sentido diferente - o termo Abgrund,
abismo sem fundo. 0 Abgrund, longe de
designar a ausência pura e simples de todo
35

Gravura d e Saturno de Johan Sadeler segundo Maerten de Vos - 1581


36

A FILOSOFIA D E JACOB BOEHME noçâo do Nada divino da rnistica essência [essência significa aqui:
alemà classica: nào mais que a rnistica potência da natureza]; ela é a
por Alexandre Koyré classica, alias, Boehme nào consegue eternidade, uma indeterminaçâo, uma
Paris, 1929, Vrin, 1979, 3' reediçào. ainda distinguir esse Absoluto paz etema e um repouso [ausência de
(trechos da p. 244 à p. 369) "absolutamente absoluto" do Absoluto movimento]".
enquanto fundo e fonte criadora de "Mas ja que o absoluto é assirn um
[ ... ] A tendência à mal)ifestaçào é tudo, nem, para falar a verdade, da infinito sem numero nem fundamento,
absolutamente geral. E por isso que o Divindade, essência comum das très sem começo nem fim, ele é como um
ser puro e absolutamente pessoas divinas, nem mesmo do Pai, espelho: 'ele é tudo e no entanto como
indeterminado e ilimitado deseja uma do Deus em si, do Deus nào revelado um nada; olha a si mesmo e nào
limitaçào para nela se revelar. Corn e desconhecida6. encontra nada senâo um A que é seu
efeito, o ilimitado e o indeterminado [ . . . ] Corn efeito, pensa Boehme (e olho. Ora, AV é o começo (origem)
se revelam e se manifestam no vamos agora, para dar ao leitor um etemo do s,er, principio etemo e fim
limitado e no determinado, seus exemplo do "estilo" de Boehme e para eterno'8. 'E assim que o Absoluto (o
contrârios. Assim, os contrarios se mostrar até que grau de clareza ele ja Ungrund) olha em si e se acha a si
chamam, se op6em, se condicionam e chegou, deixar ele proprio falar e mesmo. A esta embaixo e V esta em
se implicam. Nào se identificam, mas traduzir tanto quanto possfvel o texto cima, 0 é o olho: embora nào seja
em sua oposiçào revelam-se da questào), "toda vontade possui ainda ser, mas tal é a origem do ser.
mutuamente. Um so pode conseguir uma tendência a fazer ou a desejar Nâo é nem o baixo nem o alto, mas
exprimir-se e manifestar-se no outro e algo e nesta açào ou neste desejo a seu espelho em AV é assim uma visào.
pelo outro. 0 indeterminado aspira a vontade se reflete e se contempla". A Ora, ja que [no absoluto] nào hâ
um limite, nào para limitar-se todavia, vontade di vina, vontade e liberdade fundo, esse espelho é um tal olho 0, jâ
mas para revelar-se. Ele se opoe uma etema, "vê-se, pois, ela mesma, de que Deus diz ele mesmo: sou A e 0, o
determinaçào e um limite, para toda eternidade e nela mesma vê o que começo e o fim"'.
revelar-se e revel6-la ao mesmo é: faz para si mesma um espelho no [ ... ] A criaçào e a produçào do mundo
tempo; revelar-se nela e em relaçào a quai se mira" e, como nào pode nele é um Mysterium: como, corn efeito, a
ela. Ai esta o grande mistério do ser, encontrar outra coisa a nào ser si razào poderia compreender que algo
seu Mysterium Magnum: os mesma, toma-se ela mesma objeto de fosse ali onde nada era9? Mas, por
contrârios se implicam e permanecem seu proprio desejo: o desejo é assim a outro lado, esse mistério é nào so um
unidos em sua oposiçào reveladora. "segunda forma". "Ora, o desejo nào fato acontecido outrora, ele se cumpre
[ . . . ] Este termo novo é o famoso tem objeto e so pode desejar-se a si e se renova todos os dias e a todos os
Ungrund', termo que designa a mesmo". Faz para si entào um modelo instantes diante de nos e em nos'°- A
ausência total de determinaçào, de de sua vontade e o engendra nele passagem do um ao outro, o fato de
causa, de fundamento, de razào mesmo, o que produz nele uma que o um se di vide e se desdobra ao
( Grund'), que seriamos tentados a obscuridade, a quai nào é um produto mesmo tempo que permanece um, de
traduzir por Abismo, caso Boehme da vontade, mas do desejo; mas, uma que o um devém outro que si ao
nào continuasse a empregar ao mesmo vez mais, nào ha ainda nada senào o mesmo tempo que permanece si
tempo - e num sentido diferente - o desejo, que é uma fome, "poderia mesmo, é, evidentemente,
termo Abgrund, abismo sem fundo3. corner, nada corn o que poderia ter se Mysterium1 1 : mas vemo-lo cumprir-se
0 Abgrund, longe de designar a saciado, ja que tudo o que esta antes todos os dias diante de nos e vemo-lo
ausência pura e simples de todo do desejo lhe é inacessfvel" [fora do cumprir-se em nos mesmos.
fundamento e de toda determinaçào desejo, antes do desejo, hâ apenas a [ ... ] 0 objetivo desse desenvolvimento
no Absoluto, nào faz senào indicar a liberdade pura da vontade eterna], que era apenas, no pensamento de
falta de fundamento da existência e de "estando fora da Sucht [aspiraçào Boehme, estabelecer uma distinçào
centro de realizaçào nos seres que vital, busca ardente, desejo, fome] e, qualitativa no seio do Um, pois,
perderam seu proprio Grund.4 0 em relaçào ao desejo, é um nada, segundo o principio que ele formula
Abgrund, o abismo, designa assim no embora em si ele seja algo"7. "Mas intimeras vezes, o Um nào pode se
ser seu proprio nada, no quai esta este algo [a liberdade pura] nào é conhecer se nào se desdobrar ou se
sempre prestes a soçobrar, que busca ainda nada de determinado [nào é um nào se dividir em si mesmo"- Vimo-lo
engoli-lo e no quai ele tende a se objeto], nem de apreensfvel, nem, por desdobrar-se sob nossos olhos.
afundar. Ele designa igualmente o conseguinte, de conhecivel". Ele nào é [ . . . ] Definimos o Absoluto divino:
abisme ardente (jeuriger Abgrwui) da ser, jâ que, se o ser ja fosse, a vontade mistério que se revela a si mesmo; e
natureza e do mundo do primeiro indeterminada [a liberdade absoluta] vimos que essa manifestaçào é objeto
principio5• 0 Ungrund de Jacob é o "estaria em algo que nào seria ela de uma vontade: o Um absoluto quer
Absoluto absolutamente [seria determinado por algo ao invés conhecer-se, perceber-se e sentir-se.
indeterminado, o Absoluto livre de de ser o principio absoluto] e deveria Ele é portanto capaz de ver e de olhar;
toda determinaçào. Sua noçào sua existência mesma a esse ser". Por é, por conseguinte, um espelho e um
corresponde corn bastante exatidâo à outro lado, a vontade pura é "sem olho13, pois, diz Boehme, o que ele vê
37

é um olho e nâo se pode imaginar


fundamento e de toda determinaçao no uma visao sem colocar um olho. 0
Um absoluto é portanto um olho que
Absoluto, nao faz senao indicar a falta de quer olhar e que deseja ver, pois, corn
efeito, o que é um olho que nâo vê
fundamento da existência e de centra de nada? "Tanta quanta nada", tanto
quanta um espelho que nâo reflete
realizaçao nos seres que perderam seu prôprio nada; uma simples possibilidade de
reflexao e de visao; nem um pouco
uma visao real. 0 Um é um olho que
Grund [ . . ] . 0 Ungrund de Jacob Boehme é o
.
quer ver. Mas que poderia ele ver ali
onde nao ha nada? Nada,
Absoluto absolutamente indeterminado, o evidentemente, a nâo ser si mesmo14•
É pois ele mesmo que ele olha e ele
Absoluto livre de toda determinaçao. Sua mesmo que ele vê e, sendo assim si
mesmo sujeito e objeto da visâo,
noçao corresponde corn bastante exatidao à pode-se bem dizer que ele se
desdobra refletindo-se em si mesmo.
Ele é assim seu proprio espelho no
noçao do Nada divino da mistica alema qua! ele se reflete em si mesmo. Ele é
assim seu proprio espelho no qua! se
classica" 2 1 tal coma existia desde Mestre reflete e se olha; um olho ou um
espelho côncavo coma o interior de
Eckhart. uma esfera, diz Boehme; um olho
que é visto e que vê ao mesmo
0 resultado é uma teoria do "espelho tempo. Ora, que vê ele? No fundo,
nao vê nada e no entanto ele se vê.
Notemos de passagem que, sem nos
sofiânico22 : é saindb desse indizivel Ungrund darmos conta disso, demos mais um
passa adiante: a noçâo de visao
que Deus se concebe coma suj eito. Deus sô permitiu dar ao Um uma estrutura
interior, uma estrutura nâo mais
pode corn efeito conhecer-se a si mesmo binâria, mas ja temâria. 0 olho, corn
efeito, nao é a mesma coisa que a
visâo.
opondo�se a Si-Mesmo. Deus se exprime [ ... ] Dissemos acima que Deus, tal
coma o analisamos até agui, se
assim no homem, criado à sua imagem, e isso conhece, mas ainda so se conhece de
uma maneira bem imperfeita; ele tem
num movimento j amais acabado, infinito, de consciência de si, mas somente na
medida em que é um, nao na medida
revelaçao a Si-mesmo. 0 meio desse em que é tripla: ele se conhece em
sua unidade, nâo em sua
multiplicidade, ja que a diversidade
engendramcnto onde se passa do Um, interna estava colocada por nos
apenas para permitir à unidade
indizivel e invis!vel, ao mûltiplo visivel do apreender-se, virando-se para si ,
mesma, e conhecer-se como tal. E
mundo nao é outra senao o espelho, este olho preciso, para que Deus se conheça
em sua multiplicidade, em sua
· da Sabedoria divina, que contém as imagens estrutura interior, que ele se reflita
uma vez mais, que projete uma
imagem de si mesmo num "espelho"
de todos os seres individuais. que nao seja mais ele mesmo, que
seja de certa forma exterior a ele. A
trindade exige imperiosamente um
21
Ibid, p. 28 1 . quarto termo. A evoluçao imanente
22 A. FAIVRE, Accès de l 'ésotérisme occidental II, op. cit., p. 221. nâo pode se efetuar sem o concurso
38

d e uma emanaçâo, de uma expressâo Ela é dentro de si mesma uma luta; ela para si mesmo e se enche de si
ad extra. se op6e a si mesma, se vence e se mesmo, atraindo-se e roendo-se a si
[ ... ] Este espelho, este quarto termo domina, se op6e a seu meio e dele se mesmo. Assim, ele se toma "gordo e
que Deus se op6e para nele poder se separa. Ela é uma força que se op6e cheio", delimita-se e joga em si
refletir e nele se ver, para tomar assim uma outra força; sua existência é uma mesmo uma sombra, que o toma
plena consciência de si mesmo e, vitoria perpétua sobre o Nada, sobre a opaco, obscuro e tenebroso. Toda essa
posteriormente, poder realizar-se, traz Morte, sobre o Abgrund que busca operaçâo - inclusive a apariçào das
em Boehme os nomes mui venen\veis engoli-la e destruf-la. crevas - parece ela mesma bastante
de Sofia, Sabedoria divina, Virgem [ . . . ] Nâo é a vida que, ao engendrar-se obscura em Boehme. Por isso ela
eterna, Gloria e Esplendor de Deus. a si mesma, engendra a matéria de que sempre embaraçou os historiadores;
Existem no pensamento de Boehme ela precisa? E nâo cumpre ela este como, corn efeito, o vazio ao se
poucas idéias que tenham outro milagre, o grande milagre da aspirar pode se preencher, como a
desempenhado um pape! maior; transfiguraçâo, ja que ao incorporar a fome, "devorando-se", pode saciar-se?
existem poucas concepç6es que si a matéria ela a consome e a Boehme nâo explica isso em nenhum
tenham exercido uma infl uência mais transmuta em espirito? Assim, lugar, mas parece de fato que estamos
poderosa sobre a posteridade. Nâo portanto, a Natureza na doutrina de lidando aqui corn uma simples
existem absolutamente que sejam Boehme nào é outra coisa senao a abstraçào, corn um esquema tao
mais proteiformes. A sabedoria eterna vida e os aspectos paradoxais e pouco real quanto o era o esquema da
de Boehme é um olho e, ao mesmo contraditorios desta natureza se vontade limitando-se ela mesma pelo
tempo, o espelho no quai Deus se explicam, no fundo, pelo carater querer.
reflete: o mundo das idéias divinas, a paradoxal e contradit6rio da vida, que [ ... ] 0 desejo, dissemos, volta-se para
imagem etema do mundo; a revelaçâo ao mesmo tempo "separa" e "une", si mesmo e busca-se a si mesmo. Mas,
etema de Deus; a habitaçâo, o corpo e "destroi" e "engendra", op6e-se a si na verdade, ele nâo se encontra. Ele se
as vestes da Divindade. Ela é cada mesma e luta contra si mesma, persegue etemamente, fecha-se em si,
uma dessas coisas e todas a um so turbilhào etemo do Sim e do Niio, mas nâo pode "apreender-se". Ele é
tempo. Ela é - e é o que funda a vitoria etema sobre a morte que no um olho cheio de trevas, opaco e
unidade da concepçâo - o Objectwn, entanto ela traz em si, rio escoando no impenetravel para si mesmo. Ele se
o Gegenwwfeterno de Deus no quai e abismo do nada que o atrai e que ele persegue, mas foge de si também, pois
pelo quai este se reflete, se exprime e abre, ele mesmo, diante de si. "nâo lhe agrada nem um pouco, diz
se revela. Ela segue, por assim dizer, a [ . . . ] 0 desejo absoluto é um desejo no Boehme, ser assim roido, puxado e
evoluçâo imanenie de Deus, estado puro, é uma indigência ou uma comprimido". Ora, essa perseguiçào
transformando-se corn cada etapa deficiência, uma fome eterna, tao eterna, que é uma fuga eterna, é
atingida por esta evoluçâo; ela toma eterna quanto o proprio Absoluto (o circular: ela forma um turbilhào, uma
possfvel a Deus uma evoluçâo e, ao Ungrund) e quanto a vontade de que "roda" que faz o vazio dentro de si
mesmo tempo, um intermediario entre ele é eternamente o contrarium mesma.
Deus e a natureza. indispensavel. 0 desejo é uma [ ... ] Todas essas imagens encontradas
[ . . . ] Deus se concebe assim como um aspiraçào do vazio, do Abgrund em Boehme derivam, vemos bem, de
sujeito e se op6e a si mesmo, e em infinito. Ele é ele mesmo este uma unica e mesma realidade, mas
idéia, a idéia de algo que nâo seria ele, Abgrund, abismo sem fundo que todo elas desnorteiam por sua
de algo de que ele poderia distinguir­ ser traz em si e no quai ele se multiplicidade. Ora, Boehme lhes
se, de algo que possuiria um ser abismaria, se por um esforço acrescenta ainda as imagens tiradas da
particular. constante, nào o superasse. Ele é a alquimia. Segundo sua teoria - que é
[ ... ] Vamos dedicar a esta noçâo uma morte eterna, o verme roedor, a alias a teoria comum da alquimia de
seçâo inteira. Limitemo-nos a dizer angustia �tema que é a fonte e o fundo sua época - o fogo (a flama) engendra
aqui que a funçâo essencial da da vida. E esta, na doutrina de um espirito que por sua vez engendra
natureza divina é pennitir a Deus Boehme, sua verdadeira essência. e nutre o fogo, ou, mais exatamente
encontrar-se efetivamente e realizar-se Ora, um desejo é, necessariamente, ainda, o fogo engendra a luz, que
enquanto vida. Vida orgânica na desejo de algo; o vazio aspira ao pleno engendra o espfrito, o quai nutre o
medida em que se distingue e se op6e que poderia preenchê-lo; a fome busca fogo, e tudo forma o corpo do fogo
à vida pura do espirito: eis para um alimento. 0 desejo busca portanto que é a flama. Se levarmos em conta
Boehme o fundo e a fonte mesma da algo para atrai-lo para si e engoli-lo tudo isso, podemos nos fazer uma
realidade. A vida, grande magico que em si. Ele busca eternamente em tomo fraca idéia da grande variedade de
cria e engendra algo ali onde nada era; de si um ser qualquer, mas nâo acha sentidos que os mesmos termos
que, desenvolvendo-se, revela-se a si nada, ja que nao ha nada ainda que ele podem receber em Boehme, do
mesma engendrando seu proprio possa ejlcontrar, visto que nada é numero de aspectos nos quais podem
corpo e seu pr6p1io espirito, eis o ainda. E o ser que lhe falta e é por isso apresentar-se as oposiçoes entre
principium verdadeiro de tudo. A vida que ele o procura. "corpo" e "espirito", "espirito" e
realiza-se ela mesma: ela é causa sui. Nâo encontrando nada, ele se volta "natureza".
39

[ ... ] É preciso, pois, para que um


Esse desdobramento do Um em multiplo é corpo seja possfvel - e até para que a
primeira força de contraçiio possa
sustentado pelo desej o : " ' toda vontade' , existir -, que uma outra força se
oponha à sua açiio. Para agir, ela
escreve B oehme em Psychologia Vera, precisa de uma resistência que s6 lhe
pode ser fornecida por uma força
traduzido e citado por Koyré, 'possui uma contraria. Podemos portanto dizer
que ela pr6pria cria essa resistência e
que ela da vida à segunda força ou
tendência a fazer ou a desej ar algo e nesta qualidade que a ela se opora. Alias,
esta segunda força sera, tanto quanto
açao ou neste desej o a vontade se reflete e se a primeira, incapaz de subsistir
sozinha sem aniquilar-se; ela devera,
contempla' . A vontade divina 'vê-se pois ela portanto, por sua vez, opor-se a
primeira e engendra-la exatamente
mesma de toda eternidade e nela mesma vê o como é dela engendrada. Os opostos,
os termos contrârios se chamam, se
engendram e se implicam
que é; faz para si mesma um espelho no qual mutuamente como os polos de um
imii. A tese s6 é tese na medida em
se mira' e, como nao pode nele encontrar que se op6e à antftese e esta ultima
implica a tese; niio é nem mesmo
outra coisa a nao ser si mesma, toma-se ela apenas para ser tese ou antitese que
elas se implicam: elas ja precisam
uma da outra para ser, simplesmente.
mesma objeto de seu proprio desej o [ . . . ]: 'o A alma - o homem para ser mais
exato - "imagina" "em Deus",
desej o nao tem objeto e s6 pode desej ar-se a "imagina" "no Cristo", o que quer
dizer em Boehme que ele proprio "se
si mesmo [ . . . ] . É assim que o Absoluto (o reconstroi" segundo a imagem
(Vorbild) do Cristo que ele forma em
Ungrund) olha em si e se acha a si mesmo"'23• si; potência plastica e magica,
l'imaginatio "molda" o homem na
"forma" irnaginada por ele. Ela o
Em outras palavras, em B oehme, o Um s6 transforma nessa imagem que ela o
faz imitar; o introduz no Cristo do
pode apresentar-se dividido, como indica quai ela o faz participar, e essa
transformaçiio niio é outra coisa
Koyré: "O um s6 pode chegar a se exprimir e seniio a encarnaçiio do Cristo do
homem que se toma, num sentido
a se manifestar no outra e pelo outra. 0 direto e positivo, imagem,
encarnaçiio e expressiio de Deus.
Poderiamos dizer: imaginando "no"
indeterminado aspira a um limite, nao para Cristo, o fiel o imita e, imitando-o,
ele proprio realiza a imagem de
limitar-se todavia, mas para revelar-se. Ele se Deus.
[ ... ] "Ora, devemos falar tarnbém da
opoe l}ma determinaçao e um limite, para opacidade (das trevas): ela é em si
mesma (em sua essência) uma
revelar-se e revela-la ao mesmo tempo; limitaçiio e, como niio ha nada que
ela limite, ela propria se limita, e se
revelar-se nela e em relaçao a ela24".
fecha sobre si mesma (se fecha si
mesma) e se engendra si mesma. Ela
é seu proprio inimigo, pois faz sua
Quaal sem fundo nem numero; e niio
23 A . KOYRÉ, La philosophie d e Jacob Boehme, op. cit., p .
287-2 88. ha nada que !ha dê como sua forma
" Ibid, p. 24 5 . propria. Isto tem seu fundamento no
40

primeira desejo". eu [moi] superficial e exterior da vida l . 0 termo Ungrund (formado como
"E assim nasce no sofrimento amargo exterior, nâo o eu [moi] prafundo e Unding) nâo é, prapriamente falando,
a grande angustia, embora nâo haja verdadeirq que é nossa propria uma criaçâo verbal de Boehme; a
nada que sofra, mas é assim em si essência. E preciso fazer um retomo palavra jâ existia antes dele (cf.
mesmo e é sua propria vida; se nâo sobre si mesmo, é preciso reencontrar Grimm, Wtirterbuch, etc. s. v.), mas
fosse assim, o brilho da Majestade nâo e revivificar seu proprio centra , nâo tinha o sentido que Boehme lhe
seria tampouco; pois o um é a causa prafundo, seu eu [moi] espiritual. E deu. Ungrund quer dizer
do outra". preciso que o homem se retire em si primitivamente ausência de razâo,
"E é por isso que Deus é o que existe mesmo, que ele cesse de viver essa pseudo-razâo, pseudoprova; o proprio
de mais secreto e também o que é vida exterior, fragmentâria, que volte Boehme emprega-o às vezes neste
mais manifesta em Mysterium para dentro de si mesmo e sesse de ser sentido ao falar dos Ungriinde que os
Magnum. E o abismo também é um ele mesmo um fragmenta. E preciso "doutores" e os teologos trazem para
segredo, mas é tâo manifesta como a que ele apague a luzinha fragmentâria suas afirmaç6es gratuitas e falsas. 0
opacidade (as trevas) e a Quaal é e despedaçante da razâo exterior, que sentido especial que Boehme da a este
impenetravel até que a vontade nela <livide a unidade viva do espfrito termo é, corn toda evidência, derivado
mergulhe; é entâo que ela é sentida e numa multiplicidade sucessiva de <leste primeiro, mas Boehme amplia-o
percebida; é quando a vontade perde a momentos isolados, pois sâo a razâo, consideravelmente e lhe atribui um
luz [que ela estâ consciente da fragmento da inteligência, e seu valor ontologico. 0 Ungrund é o que
obscuridade na quai esta mergulhada], proprio eu [moi] exterior, fragmenta nâo é nada, nem mesmo fundamento,
e é este o fundamento da fé de seu eu [moi] verdadeiro que o , causa ou razâo de algo que seja. 0
verdadeira". "Assim, hâ um abismo impedem de se ver e de se conhecer. E Ungrund é também [algol que nâo
que se chamafundamento porque é preciso que ele se recrie e renasça para tem nem causa, nem fundamento,
uma condensaçâo das trevas na , que a luz espiritual, que é nem razâo. Sendo assim diferente de
Quaal, como uma causa da vida . . . E habitualmente obscurecida pela razâo tudo e separado de tudo, o Ungrund é
também um desejo e o desejo é uma natural, o faça assistir "em espfrito" a o absoluto (ab-solutum) em seu
busca que nâo pode entretanto nada seu proprio nascimento no nascimento sentido mais forte. Traduzimos
encontrar senâo um espelho e uma nele da razâo e do eu [moi] exterior. portanto o Ungrund por Absoluto.
similitude da Quaal obscura e terrivel Ele verâ entâo desenrolar-se nele e 2. Grund, em Boehme assim como em
[ espelho] onde nâo ha nada; pois é revelar-se a seu prop,rio pensamento o Schelling, designa a um so tempo a
uma figura do raio furioso ... e da mistério de seu ser. E assim que razâo de algo e sua causa; seu
potência terrfvel de Deus, segundo o veremos elevar-se à consciência e à fundamento ideal e seu fundamento
quai ele chama para si um fogo inteligência o fundo misterioso de real. Boehme poderâ portanto dizer
devorante e um Deus colérico e que o Ungrund encontra seu Grund
nosso ser e de nossa vida; e, ja que a
ciumento". na divindade luminosa, pois é ali que
luz espiritual que se acendera de novo
"Esse espelho é também sem jaz sua "razâo de ser": o Grund do
em nos nâo é outra coisa senâo a
fundamento, sem começo nem fim, e germe do ser é o ser. Por outra lado, o
encarnaçâo espiritual, o nascimento
tem mesmo assim um começo e um Ungrund que nâo é ser tem seu
fim etemos". de Deus na alma, chegaremos assim à Grund, fundamento causal e real de
"Assim, hâ no abismo absoluto um participaçâo na vida divina que se seu ser (de seu ser enquanto Deus,
espelho em que a Quaal vê a si expressarâ e se revelara em nos. enquanto ser acabado, jâ que o germe
mesma, e é igualmente uma figura e Entenderemos entâo em nos mesmos a é idêntico ao ser de que ele é o germe)
uma imagem da Quaal que estâ <liante grande lei do ser: todo ser aspira, corn na natureza ou na "colera" ardente do
da Quaal. Ela nada faz e nada efeito, à consciência e ao Centrum Naturae.
engendra, mas é uma Virgem da conhecimento de si. Todo ser é, em 3. Schelling (cf. Untersuchungen über
Quaal, na quai a colera do raio se vê sua essência, desejo de manifestaçâo e das Wesen der menschlichen Freiheit,
na infinidade e manifesta etemamente de revelaçâo e o proprio ser nâo passa Werke, BD. VII, p. 406 e seguintes,
suas maravilhas pelo espfrito amargo de uma manifestaçao ad extra de sua Stuttgart, 1 860) confundiu Ungrund
das essências que tem sua vida no propria essência. 0 mistério estâ no (o Absoluto absolutamente absoluto),
raio". fundo de todo ser, mas o ser do Urgrund (o Absoluto enquanto
[ ... ] Corn efeito, que sejamos mistério mistério é sua manifestaçâo; o fundamento e causa ultima das coisas)
para nos mesmos, que nâo possamos mistério permanece mistério, mas e Abgrund (abismo ardente e sem
compreender nem nosso proprio necessariamente, por si mesmo, ele fundo) e falsificou assim sua propria
nascimento à vida nem o nascimento busca revelar-se. A vida é mistério, compreensâo de Boehme assim como
da razâo em n6s, isso é apenas natural mas é j ustamente um mistério que se a dos historiadores que vieram apos
demais. A razâo natural, dirfamos · realiza ao se manifestar. A vida do ele. Apos e segundo ele todas as
hoje, é uma visâo apontada para a mundo é a manifestaçâo de sua pessoas falam do dunkler Ungrund, o
natureza e nâo para ela mesma. A essência e as Jeis do ser sâo as Jeis de que é um non-sens. 0 Ungrund nâo é
consciência natural nos da apenas o sua auto-revelaçâo. nem clara, nem obscura, mas, se fosse
41

0 espelho divino contém portanto a algo, seria clareza e nao trevas. A


confusao entre Ungrund e Abgrund
foi favorecida também por
totalidade das imagens . Estas imagens Schopenhauer.
4. Grund aqui nos dois sentidos do
possuem uma virtude realizante. B oehme termo.
5. 0 Abgrund designa assim o
emprega o termo Bildniss, no sentido de infemo interior que todo ser traz em si.
6. Em Mestre Eckhart, o Pai, fonte e
"imagem-reflexo" que significa igualmente origem da Trindade, distingue-se
muito mal da divindade. Cf. H.
"corpo" e "forma"25 . Delacroix, Essai sur le mysticisme
spéculatif en Allemagne au X!Vè
siècle, Paris, 1900, p. 177 e
Assim, a perfeiçao se acaba na seguintes.
7. Psychologia Vera, qu.I, 14.
visibilidade, pelo engendramento recfproco 8. Cf. Ibid., 1 5 : "es ist Alles und
<loch auch ais ein Nichts; es besihet
da imagem e de seu modelo num ciclo em sich selbst und findet doch nichts ais
ein A, das ist ein Auge. AV das ist
que a imagem se renova sem cessar ao passo der ewige Urkund das etwas sey dan
es ist der ewige Anfang und das
que "o modelo permanece, pois ele é oriundo ·ewige Ende". As ediçôes de Gichtel,
de Glusing e de Ueberfeld, impressas
em caracteres g6ticos, dao �s letras A
do Eterno, cuj a criatura saiu para tornar-se o e V em caracteres latinos. E evidente
que nenhum deles entendeu a alusao:
ser" (Psychologia Vera)26. É preciso AV substitui AU, e U é a um s6
tempo a unica vogal das palavras
evidentemente que um intenso desejo queira a Ungrund e Urkung e a ultima vogal
do alfabeto. Ora, o AEIOU sempre
realizaçao dessa imagem da divindade, sem o desempenhou um grande pape! nao
apenas nas especulaçôes misticas (cf.
que ela permanece escondida em si mesma ou Dornseiff, Das Alphabet in Mystik
und Magie, Leipzig, 1925) e
se acha relegada no império infernal ou no cabalfsticas, mas ainda no proprio
Boehme, e lhe serve para explicar o
sentido dos nomes divinos na lfngua
mundo animal27. Para que a imagem apareça, natural. Cf. Tabula Principiorum, II,
16.
é preciso que sej a precipitada, caso contrârio 9. Cf. De Signatura Rerum, VI, 8 .
1 0 . Cf. Mysterium Magnum, Xi, 9 ,
se perde. Deve-se notar que esta aceleraçao 26; Clavis, 96.
1 1 . Cf. ja De Trip/ici Vita, cap. XIII,
3 1 , e Sex Puncta Theosophica,
prefücio.
12. Theoscopia, I, 10.
25 Ver as indicaçôes de A. FAIVRE a este respeito. Accès de l'ésotérisme 1 3 . Este "olho" aparece igualmente
occidental Il, op. cit., p. 22 3 . no Mysterium Magnum. Cf. cap. 1,
26 Compreendemos que H. CORBIN, um dos membres do circulo filos6fico que 7 e 8.
gravitava ao redor de Kojève e de Koyré, tenha podido encontrar, em Boehme e 14. Sex Puncta Theosophica, I, 8 . A
a partir do ensinamento de Koyré sobre os misticos especulativos, a matéria assimilaçao da vontade a um olho
necessâria para fundar o conceito de "imagina!" que remete ao engendramento explica-se corn relativa facilidade: ja
recfproco da imagem e de seu modela. vimos acima que, para Boehme, o
27 Ver sobre este ponto A. FAIVRE, Accès de l 'ésotérisme occidental Il, op. espirito e a visao sao conceitos que
cit., p. 229. se implicarn.
42

FIGURA 1
Perspectiva acelerada:
La Scène de Troili, 1972
43

JURGIS BALTRUSAITIS
da realizaçao pelo desejo esta em perfeito
ANAMORFOSES OU
acordo corn o que o século XVI descobriu e T HAUMATURGUS OPTICUS
As perspectivas depravadas. II.
experimentou quanto às perspectivas
A junçâo entre as artes e a ciência
aceleradas (ou reduzidas) evidenciadas por ocorre na Italia na primeira metade
do século XV (Ghiberti, Alberti) e
Baltrusaitis: mediante a potência, "extens6es provoca uma admiravel floraçâo:
Piero della Francesca ( 1 469),
Leonardo ( 1 492), Jean Pélerin,
sem fim podem ser evocadas num espaço chamado Viator ( 1 505), Dürer
( 1525), Vignole ( 1 530- 1 540), Serlio
reduzido" 28 . ( 1 545), Barbara ( 1 559), Cousin
( 1560) aplicam metodicamente as
Essa criaçao realizante esta impregnada teorias matematicas e elaboram
procedimentos que dao soluçôes para
de Magia Divina. "A criaçao e a produçao do todas as formas. Todas as obras que
lhes sucedem exploram o fundo do
Renascimento. A perspectiva restitui­
mundo é um Mysterium; como, corn efeito, a se coma uma racionalizaçâo da vista
e coma uma realidade objetiva, mas
razao poderia compreender que algo estivesse conservando ao mesmo tempo seu
lado falso. 0 desenvolvimento de sua
ali onde nada era? Mas, por outro lado, este técnica da meios novas a todos os
artiffcios. Extensôes sem fim podem
rnistério é nao s6 um fato acontecido outrora, ser evocadas num espaça reduzido.
As distâncias podem ser encurtadas.
A passe dos procedimentos de
ele se cumpre e se renova todos os dias e a representaçôes exatas conduz à
"Grande Ilusiio" multiplicadora dos
todos os instantes diante de n6s e em n6s. mundos facticios que habitou a
mente dos homens de todos os
A passagem do um ao outro, o fato de que o tempos, cuja diversidade e potência
F. Clerici deixou entrever numa
um se divide e se desdobra ao mesmo tempo coletânea sabia.
Uma vasta abside é simulada por
que permanece um, de que o um devém outro Bramante em Saint-Satyre de Milâo
( 1 482-1486), num espaça que tem
apenas 1 ,20m de profundidade. Os
que si ao mesmo tempo que permanece si encurtamentos precipitados da
cornija, dos caixotôes e das pilastras
mesmo é, evidentemente, Mysterium: mas de estuque e de barra cozido dâo a
impressao completa de uma peça
vemo-lo cumprir-se todos os dias diante de abobadada, mas, se quisermos
penetrar nela, chocamo-nos contra
n6s e vemo-lo cumprir-se em n6s mesmos uma parede. A igreja inteira é
abalada por esse trompe-l 'œil e tudo
[ . . . ]. É este o grande rnistério do ser, seu é colocado em duvida. A historia da
cena teatral é dominada no século
XVI pela problema desse
Mysterium Magnum: os contrarios se afastamento imaginârio. A impressâo
pode ser obtida nâo s6 pela
encurtamento apressado dos limites
28 J. B ALTRUSAITIS, Anamorphoses ou Thaumaturgus opticus - Les laterais, mas também pela elevaçao
1 9 84, 1 996 .
perspectives dépravées II. Flammarion, Paris, do horizonte. 0 mundo onde a
44

- .! -:"". •-
realidade e a ficçao acabam por se mais abrupto. Trata-se af,
confundir constitui-se provavelmente, de uma fantasia,
progressivamente. jogando corn o paradoxo, mas ela
Na interpretaçao de Serlio ( 1 545), reflete a concepçào fantasmag6rica de
retomada por Barbara ( 1 559), cenas uma ordem arquitetural.
tragicas, cômicas e satfricas de 0 procedimento contrario, encurtando
Vitruve, ha ainda justaposiçao do a perspectiva, ao fazer os objetos
espaça verdadeiro - antecena plana - parecerem mais pr6ximos do que
e do espaça ilus6rio - cena posterior estào pelo crescimento dos elementos
inclinada - corn os dois !ados afastados, é ensinado metodicamente
oblfquos acelerando a perspectiva, nos tratados de perspectiva. Dürer
onde os atores nao penetram. A ( 1 525) o explica para as colunas e
fronteira se atenua no teatro Olfmpico para as letras (fig. 2), Serlio ( 1 545),
de Vicence (Palladio e Scamozzi, sobre o aparelho de alvenaria. Nào se
1 5 80- 1 5 85) corn os tentaculos do trata, coma em Vitruve, do reforço de
ceniirio permanente, em declive, certos pontas. As dirnensôes de uma
formando sete bastidores de madeira mesma parte duplicam-se,
revestida de estuque desembocando decuplicam-se no topo. As bases de
na ' 'frons scenae" . Todos os detalhes uma parede aumentam à medida que
de arquitetura se encurtam coma na sobem. Os omamentos se alongam. As
abside de Mi!ao, acentuando o efeito espirais <las colunas torsas alongam
de fuga. 0 espaça ilus6rio e o espaça seu passo de cinco vezes na terceira
verdadeiro nela se comunicam volta. Embaixo, tudo aparece no
diretamente. Eles nao tardam a se entanto igualado, as dimensôes
fusionar, pela extensao sobre a estando fixadas pelo mesmo ângulo. 0
antecena, primeiramente das paredes raio visual nào é o condutor passivo
oblfquas (teatro de Sabbioneta por de uma sensaçào produzida por um
Scamozzi, 1 588- 1 5 89), depois do objeto. Ele o cria novamente ao
declive. No tratado de perspectiva de projetar na realidade suas formas
Sirigatti ( 1 596), a cena inteira é alteradas.
inclinada. Os atores nao se acham Um monumento antigo, o templo de
mais na realidade. Eles evoluem no Priena, dedicado por Alexandre a FIGURA 2
domfnio da ilusao. As cenas de Athenas Palia (335), ja tinha uma Perspectiva reduzida:
Furttenbach (c. 1 625), de Sabbatini inscriçào gravada corn letras Retificaçôes 6ticas
( 1 637) e de Troili ( 1 672) (fig. 1 ) aumentadas nas linhas superiores, em para uma coluna reta.
adotam o mesmo principio de conformidade corn o ângulo Dürer, 1 525
perspectivas aceleradas em toma da euclidiano, mas o sistema ali nào
representaçao viva. Conviria
deteriora profundamente as
pesquisar se disposiçôes semelhantes
proporçôes, ele as anula nos desenhos
nao intervêm também nos jardins e até
do século XVI, onde a potência de
nas composiçôes de arquitetura sobre
um terreno irregular. 0 teatro e a vida projeçào é concentrada, para a clareza
da demonstraçào, pelo deslizamento
sào constantemente entremeados
nessa época e alguns arranjos dos do ponta de vista em direçào a seu
ediffcios inspiram-se diretamente das objeto. Quanta mais pr6ximo ele esta,
formas teatrais. A colunata da Villa mais é baixo, mais os raios vao
Spada de Roma (c. 1638), construfda obliquamente, mais se prolongam as
por Francesco Borromini, produz o gradaçôes que eles delimitam sobre a
efeito de um longo tünel corn 8 metros elevaçào vertical. 0 resultado sào
apenas, aproximadamente, por uma medidas fantasticas. Restitufdo em
contraçào violenta das dimensôes: na seu rigor, o procedimento antigo
entrada 5,80m de altura por 3,50m de destr6i uma ordem da Antiguidade. 0
largura, na safda 2,45m por l m, sem desenho do aparelho é reproduzido
nada mudar no desenho dos por Polienus ( 1 628).
elementos. A perspectiva acelerada de [ ... ] As mesmas dilataçôes modelam o
uma rua da cena Olfmpica de Vicence crânio aleg6rico no quadro dos
é introduzida no ceniirio de habitaçào Embaixadores de Holbein, executado
sob um aspecta mais condensado e em Londres em 1 533.
45

implicam e permanecem unidos em sua ALEXANDRE KOYRÉ

oposiçao reveladora"29 . A FILOSOFIA DE JACOB


BOE HME

Existem na obra de Boehme muitos outros [ ] 0 Marcurius ou Mercurius


...

(prata-viva dos alquimistas)' é ao


aspectos que Koyré examina minuciosamente: mesmo tempo princfpio de
movimento, de fluidez, às vezes de
um fundo de termos alquîmicos (éter, prima vida, de fala e �empre de
metalicidade. E esta ultima
mate ria, uma roda paracelsiana de sete propriedade que forma o vfnculo no
pensamento de Boehme: é em metal
que se fabricam os instrumentos que
elementos . . . ) ; um princîpio vitalista onde a soam. 0 som, por outro lado, é a
potência expressiva e manifestativa
vida se realiza ela mesma como causa sui; por excelência, que encama a fala,
potência mâgica e das mais
um princîpio de inversao entre luz (Fiat) que criadoras2. Talvez haja ainda uma
razâo para opor Salliter e Marcurius.
se devora ela mesma e se toma trevas; uma No salliter existe sa!, virtude do
corpo, o que solidifica, o que coagula
teoria do Verbo-potência expresso por forças, e faz a matéria propriamente dita. Era
natural opor-lhe o mercurio,
princfpio (em Paracelso) de vida e de
Quaal, intermediarias entre Deus e o mundo movimento. 0 pape! desse Marcurius
é alias muito claro: serve para
real; a suposiçao de uma "lîngua da preencher de sons, de voz, de
harmonias e de musicas 0 parafso
natureza", pré-babélica, adâmica que consiste celeste. As qualidades (espfritos­
fluidos) chocam-se uma contra a
no valor expressivo dos sons que compôem a outra e esse atrito produz, graças ao
Marcurius (nâo esqueçamos, de
fala (o que Lacan nomeia significantes), modo algum, que as qualidades estao
misturadas, sâo ineinander), uma
variedade de sons da quai cada uma
lîngua de que queremos bem crer que exprime uma qualidade determinada
e todos estes sons juntos formam
Boehme tenha recebido a revelaçao tanto suas uma harmonia celeste que exprime a
alegria eterna da vida di vina. Bela
invençôes lingüîsticas derivam da forja harmonia de que os melhores artistas
na terra, tocando os melhores
sonora; uma teoria da Natureza como desejo instrumentos, nâo podem nem se
aproximar.
(Begehren) realizado, notadamente em açao Ha algo de tocante, no fundo, nessa
concepçâo, sucedâneo longfnqüo da
harmonia das esferas, de uma vida
no espelho (se o desej o nao for forte o divina que se exprime em musica e
entoa por toda eternidade um coral
suficiente, os seres perdem seu prôprio triunfante ao quai se misturam e que
acompanham, como vamos ver, as
Grund, seu centro de realizaçao se desfaz, melodias celestes dos coros
angélicos. Corn efeito, Deus criou os
eles se perdem no Abgrund, contexto de anjos a fim de que executassem sua
musica na potência divina,
louvassem (o Senhor), cantassem e
jubilassem e aumentassem assim a
29 A. KOYRÉ, J,,a philosophie de Jacob Boehme, op. cit., p. 3 1 2 e seguintes. alegria celeste.
46

1 0 mercurio dos alquimistas é um também o diabo, um e outro existem unidade divina absoluta e a
ser perturbador do quai s6 uma coisa no que lhes diz respeito. Deus é a unificaçào de todos os opostos em
é certa, é que ele nada tem em essência absoluta. Mas que essência Deus.
comum corn o mercurio vulgar. Na absoluta é que nào tenha nela toda [ . . . ] 1 3 1 4- 1 3 1 5
concepçào alquimica do mercurio realidade e em particular o mal? H a somente u m principio para operar
perpetua-se a tradiçào helenistica do Boehme visa por um lado conduzir a essa distinçào que faz corn que o um
deus Mercurio Hermes Thot,
= = alma do homem à vida, produzir esteja no outro como um nada e
personificaçào da fala e do nessa alma mesma a vida divina, esteja, no entanto; mas, de acordo
pensamento. intuir o conflito e a luta na pr6pria corn a propriedade daquilo em qu,e
2 Isto permite ligar o Mercurius ao alma e dela fazer o objeto de seus ele esta, ele nào esta manifesto1 • E
Verbo e estabelecer um vinculo entre trabalhos e de seus esforços: ele visa este ponto que é central em todo o
a alquimia e a teologia do Verbo. assim descobrir, precisamente a esforço de Boehme e na questào da
respeito desse conteudo, como é unidade de termos absolutamente
preciso conceber o mal no bem, ou o diferentes. 0 principio do conceito
mal a partir de Deus - uma questào esta inteiramente vivo em Boehme,
G. W. HEGEL do tempo presente. Mas como nào exceto que ele nào pode exprimi-lo
LIÇÔES SOBRE A HISTÔRIA possui o conceito, Boehme na forma do pensamento. Mas este
DA FILOSOFIA representa-se isso como um combate um (Einige) é, diz ele, diferenciado
terrivel, doloroso; tem-se um pela Quai; o que quer dizer que a
Torno 6. A filosofia moderna. sentimento de luta. Esta é umaforma Quai é precisamente a negatividade
(de Bacon ao "Século das Luzes") barbara de apresentaçào e de consciente de si, sentida. Tudo
traduçào e anotaçôes expressào - um combate de seu ser depende deste ponto: pensar o
de Pierre Garniron - Vrin 1 985. espiritual, de sua consciência corn a negativo como simples, embora ele
Ungua; e o sujeito desse combate é a seja ao mesmo tempo um oposto. A
[ ... ] 1 304 idéia mais profunda, que faz ver Quai é portanto esse dilaceramento
Jacob Boehme é o primeiro fil6sofo coma se unificam os apostas mais interior; mas ela é o simples. Da
alemào; o conteudo de seu filosofar é absolutos. (A fig ura à quai ele palavra Quai Boehme faz derivar
autenticamente alemào. 0 que toma recorre de modo mais imediato é o Quellen (surdir, jorrar), é um bom
Boehme tào notavel é o fato de pôr o Cristo e a Trindade: vêm em seguida jogo de palavras; a Quai, essa
principio protestante, ja mencionado, as formas qufmicas do mercurio, do negatividade, passa na vida, na
o mundo intelectual, em sua pr6pria salliter, do enxofre, do acre, do atividade: e é assim que Boehme
alma e de intuir, de saber e de ·sentir acido, etc.). Vemos nele a luta em associa essa palavra corn Qualitiit
em sua consciência de si o que estava vista de levar esses opostos à unidade (qualidade), de que ele faz Quallitiit2.
outrora além. Por um lado, a idéia e de liga-los -, mas nào para a razào A absoluta identidade das diferenças
geral de Boehme se mostra profunda pensante; existe ai um esforço esta portanto inteiramente presente
e s6lida; mas do outro, a despeito de prodigioso, selvagem e grosseiro da nele. Assim, Boehme nào representa
sua necessidade de determinaçào e de interioridade para recolher num Deus como a unidade vazia, mas
distinçào no desenvolvimento de suas unico todo o que se acha tào afastado como essa unidade dividindo-se ela
intuiçôes divinas do universo, a pelo aspecto e pela forma. Pela força mesma que é a dos opostos.
despeito da luta a que se entrega a de seu espirito, ele reune os dois [ . . . ] 1 3 3 1 -3 3
este respeito, ele nào chega à clareza opostos e os destr6i, assim fazendo E m Deus "todos o s espiritos triunfam
e à ordem. toda esta significaçào - este aspecto como um unico espfrito" e um
[ . . ] 1 306- 1 307
. de realidade que ambos têm. Mas, ao espirito suaviza e preza sempre o
0 objeto do cristianismo é a verdade, mesmo tempo, como ele apreende outro; nào é senào alegria e delicias.
o espirito, como vimos; a verdade esse movimento, essa essência do Em Deus as diferenças estào unidas.
esta para a fé enquanto verdade espfrito nele mesmo, logo, na Um espirito nâo fica ao lado do
imediata. A fé a possui, mas sem ter interioridade, a determinaçào dos outro, como as estrelas no céu. [ ... ] -
dela a consciência, o saber, sem sabê­ momentos se aproxima ainda mais da cada um é assim si mesmo
la como sua consciência de si; e forma da consciência de si, do que é · "totalidade" em Deus. "Um engendra
como o pensar, o conceito sào sem figura, do conceito. Para o outro" em si mesmo e "por si
essenciais na consciência de si - a resumir isto, Boehme lutou para mesmo"; é este o raio da vida
unidade dos opostos em Bruno -, é conceber, para entender em Deus o jorrando de todas as qualidades.
esta unidade que falta antes de tudo à negativo, o mal, o diabo. Boehme procurava portanto, ja que
fé. Seus momentos se dissociam em [ . . .] 1 3 1 0 Deus esta em tudo, apreender o mal
figuras particulares, em particular os A idéia fondamental d e Boehme no bem, o diabo em Deus; e este
momentos mais elevados: o bem e o consiste no esforço para manter todas combate é o carater geral de seus
mal, ou Deus e o diabo, Deus é, e as coisas numa unidade absoluta - a escritos e o tormento (Quai) de seu
47

espfrito. [ ... ] Da mesma forma que o


forças antagônicas que absorve todo desej o que vinha em primeira era a
efervescência e a germinaçao de
sem que qualquer existência possa s e fundar) ; todas as forças e qualidades, o que
vem em segundo é a escalada ao dia.
um principio trinitario que procede de uma Um conceito capital, que aparece
em Boehme sob todas as espécies de
consciência de si do desdobramento ( o configuraç6es e de formas, é o
segundo principio, a Fala, o
Separator, a Quai, a revelaçao, isto
engendramento do Filho-Luz pelo Pai se é, de um modo geral, a egoidade, a
fonte de toda separaçao, da vontade
realiza no Ternarius Sanctus, o Espfrito­ e do ser-em-si que esta nas forças
das coisas naturais e que é trazido
Santo) . . . ao repouso na medida em que a luz
nele fica mais clara. [ . . ] Deus
.

Entre estes temas, alguns dos mais enquanto essência absoluta simples
nao é Deus absolutamente; nele nao
ha nada a ser conhecido. 0 que
importantes - notadamente os da imagem­ conhecemos é algo diferente - mas
este outra esta contido em Deus
forma, do desdobramento, do desejo, da mesmo, enquanto intuiçao e
conhecimento de Deus. Quanta ao
inversao - encontram-se no estâdio do segundo, Boehme diz que uma
separaçao deve ter se praduzido
espelho de Lacan. Durante muito tempo se nesse temperamentum. Ele diz
precisamente: Corn efeito, nenhuma
acreditou que estes temas vinham de Hegel. coisa pode revelar-se a si mesma
sem contrariedade; pois se ela nada
tem que lhe resiste, sem cessar ela
0 que nao é falso, desde que se saiba que o avança para fora e nao retorna em si
mesma. Mas se ela nao retorna em si
proprio Hegel os recebera de Boehme. B asta mesma, coma naquilo de que
originalmente saiu, entao ela nada
1er nas Liçoes sobre a historia da filosofia de sabe de seu estado-primitivo
( Urstand). Ele emprega Urstand
Hegel o capftulo bem elogioso sobre B oehme para substância; e é uma pena que
nao possamos mais empregar este
("o primeiro fil6sofo alemao") para termo assim como numerasos outras
termos pertinentes. "Sem a
contrariedade, a vida nao teria
compreender que nao é nada senao o tema nenhuma sensibilidade nem querer
nem eficacia, ela nao teria nem
boehmiano do desdobramento que é entendimento nem ciência. - Se o
Deus escondido, que é um ser e uma
encontrado, levado a novas conseqüências, vontade uns, por sua vontade nao
tivesse saîdo de si mesmo, da
nos três primeiros capftulos de A ciência eterna no seio do
Temperamentum para dirigir-se à
fenomenologia do espfrito. Em outras separatividade da vontade e nao
tivesse intraduzido esta
separatividade numa
palavras, o que Lacan encontra em Hegel via compreensividade (lnfasslichkeit3)"
(identidade) "para consti tuir uma
Koyré e Kojève sao, essencialmente, vida natural e criatural e a fim de
que esta mesma separatividade nao
esquemas boehmianos. estivesse em conflito na vida, como
48

a vontade d e Deus, que é somente da luz, pois o raio engendra a luz abandono e exprapriaçao", em
um, poderia lhe ser manifesta? Corno dele mesmo e ele é o pai do furar; "O caminho para ir a Cristo".
poderia haver um conhecimento de si pois o furar mora no raio enquanto 2. Von den drei Prinzipien Gdttlichen
mesmo numa vontade una?4". Corno semente no pai. E o mesmo raio Wesens.
se vê, Boehme esta infinitamente engendra também o tom ou som; o 3. Termo criado por Boehme.
acima da vazia abstraçao do Ser raio é de uma maneira geral o agente 4. Von gdttlicher Beschaulichkeit.
supremo, etc. gerador absoluto. 0 raio esta ainda Teoscopia. Da contemplaçao divina;
[ . . . ] 1340 ligado à dor; a luz é o princîpio de este livra é considerado coma sendo
"De uma ta! revelaçao das forças, na boa inteligência (das sich do ultimo ano de Boehme: 1624.
quai a vontade do um etemo se Verstiindigende). A geraçao divina é "Pois uma coisa que lem apenas uma
contempla, decorre a inteligência o surgimento do raio, da vida de vontade nao tem separatividade. Se
(Verstand) e a ciência do Ichts, ja que todas as qualidades. Tudo isso é ela nao sente uma contravontade que
a vontade eterna intui-se no lchts" tirado da Aurora. cause nela o impulsa do movimento,
(lchts é um jogo de palavras sobre Nas Questiones theosophicœ, ela nao se mexe; pois uma coisa nada
Nichts (nada), pois ele é Boehme emprega em particular para sabe a mais senao um. E .embora seja
precisamente o negativo; mas é ao o Separator, para esta oposiçao, boa em si mesma, nao conhece nem o
mesmo tempo o contrario de Nichts e também a forma do Sim e do Nao. mal nem o bem pois nada ha nela que
o !ch (eu) [moi] da consciência de si Ele diz: "O leitor deve saber que a tome sensîvel".
esta contido nele). 0 Pilho, o algo é todas as coisas consistem no Sim e 5 . Von gdttlicher Beschaulichkeit.
assim Eu [Moi], consciência, no Nao, sejam elas divinas, 0 proprio Hegel comenta o jogo de
consciência de si; o neutra abstrato é diabolicas, terrestres ou tudo o que palavras boehmiano sobre !ch (eu)
Deus, o recolhimento de si mesmo no quiserem. 0 um, enquanto o Sim, Ue moi], e Nichts (nada) [néant,
ponto do ser-para-si é Deus. 0 outra é somente força e vida e é a verdade rien]. Este paragrafo acaba (ap6s
é entao a imagem de Deus. Esta de Deus, ou o proprio Deus. Este Ichts) assim: "e, na sabedoria de
imagem (Ebenbildniss) é o "grande seria em si mesmo desconhecîvel alegria, da-se o ser de uma
mistério, Mysterium magnum, e nao haveria nele alegria ou similitude, de uma imagem".
enquanto criador de todos os seres e exultaçao, nem sensibilidade - vida - 6. Prasseguindo sua interpretaçao do
criaturas''; pois ele é o Separator (do sem o Nao. "No começo era a Pala" de Sao Joao,
todo) "na emanaçao da vontade que 0 Nao é o ob-jeto (Gegenwurj) do Boehme mostra que "assim coma o
toma separadora a vontade do um Sim ou da verdade (essa negatividade ser mental Gemüht do homem no
eterno - a separatividade na vontade é o princîpio de todo saber, de todo entendimento se dirige para um ob­
de onde forças e prapriedades tiram compreender), a fim de que a jeto de uma semelhança corn a ajuda
sua origem (urstiinden)5. Este verdade seja manifesta e que seja dos sentidos ... , o ser mental Gemüht
Separator é institufdo administrador algo onde haj a um contrarium no etemo dirigiu-se pela Pala para na
(Amtmann) da natureza, pelo quai a quai o amor etemo seja atuante, separatividade Schiedlichkeit e esta
vontade etema govema todas as sensîvel, querente - e que seja para na aprapriatividade Annehmlichkeit
coisas, as faz, as forma e as molda"6. amar. E nao podemos no entanto coma em sua pr6pria inveja Lust e
[ . . . ] 1 349-55 dizer que o Sim esta separado do desejo Begierde . . . ); que a
0 ser-para-si, a percepçao-de-si, Nao, que sao duas coisas justapostas: sensibilidade Empfin dlichkeit da
Boehme o chama contraçao num eles nao sao, ao contrario, senao uma vontade pr6pria tem por fundamento
unico ponto. Isso é acridade, unica coisa, mas se separam eles o desejo, pois a vontade do Um
causticidade, penetraçao, furar; a este mesmos em dois princîpios eterno é insensfvel; e que esta se faz
dominio pertence a colera de Deus. (Anfiinge) e formam dois centras sensîvel exteriorizando-se em
Aî esta o conteudo do mal; Boehme onde cada um opera e quer em si prapriedades, e, por conseguinte, em
apreende aqui o outra de Deus em mesmo. multiplicidade infinita" ("pois cada
Deus mesmo. "Esta fonte pode ser prapriedade tem seu proprio
iluminada pela grande agitaçao, o 1. Von Wahrer Gelassenheit, 1673. sèparator"). "Mas", continua
grande levantamento. Pela contraçao 0 tftulo latino equivalente dado a Boehme, "a emanaçao prassegue . . .
é formado o ser ( Wesen) criatural, de este escrito é: De Aequanimitate, "Da até a espécie fgnea, na quai o U m
modo que um corpus celeste é igualdade da alma", a quai é corn etemo toma-se majestoso, toma-se
formado" apreensîvel. Mas se ela - a efeito a calma verdadeira, estavel, uma luz: é por af também que a força
acridade - "é iluminada pelo "die Wahrer Gelassenheit" etema se toma desejante e atuante, e
levantamento (o que so podem fazer resultando da renuncia à vontade que ela é a origem da vida sensfvel,
as criaturas que sao praduzidas do pr6pria e do abandono à vontade de ja que na Pala das forças em
salitter), é uma ardente veia-fonte da Deus, daî o tftulo dado a este texto emanaçao uma vida sensfvel eterna
cotera de Deus" que é formada. É por sua primeira traduçao francesa: tem sua origem. Pois se a vida nao
aqui o raio que jorra. "O raio é a mae "Da verdadeira equanimidade, dito o ti vesse sensibilidade, ela nao teria
49

Talvez sej a tempo de se dar conta de que nem querer nem açâo; mas o
tormento Peinen toma-a atuante e
querente; e a luz de um ta!
esse acesso a Boehme, bem longe de ter sido abrasamento pelo fogo toma-a
alegre, poi� ela é um balsamo para o
apenas indireto, foi amplamente facilitado tormento. E dessa açâo etema da
sensibilidade . . . que se origina no
pelo imponente trabalho de Koyré sobre mundo visivel corn todo seu
exército . . . , pois a etemidade de tal
Boehme. Mas continuamos nao sabendo açâo levando ao fogo, à luz e às
trevas dirigiu-se, corn o mundo
muito sobre essa relaçao; tomarei como visîvel, para um ob-jeto Gegenwurf
e instituiu o Separator de todas as
testemunho dessa ignorância o tratamento da forças da essência emanada pela
cobiça administrador da natureza . . . "
(reencontramos entâo o fim do
unica referência a Jacob Boehme que é paragrafo citado no texto hegeliano
acima).
encontrada nos Escritos (cf. "La direction de Observaremos o pape! fondamental
da noçâo de desejo, de cobiça,
la cure", 1 958, p. 5 93) . No indice, esta nesses textos de Boehme, noçâo que
nâo encontramos nas citaç6es e
referência se encontra sob a forma fantasista comentarios hegelianos acima.

de "Boehme, K." (Karl Boehm?) enquanto


que Lacan fazia claramente referência a Jacob
B oehme ( citado em companhia de Jung a
respeito da teoria da signatura rerum) .
Que eu saiba, nunca se respondeu à
questao de saber como "um" texto tao
resumido quanto o estâdio do espelho
(nenhuma de suas diversas apresentaç6es
excedeu uma dezena de pâginas) podia
exatamente continuar a se sustentar uma vez
que nao passa de uma montagem de teses
muito heterogêneas onde o materialismo
neodarwinista se entende muito bem corn a
filosofia idealista alema enquanto que as
teorias freudianas do narcisismo convivem
corn as da Psicologia da Gestalt.
50

Minha hip6tese, para começar a responder Hans Holbein le Jeune,


Os Embaixadores, 1 533
a esta questiio, é que é preciso levar em conta
o que o espelho lacaniano deve ao espelho
sofiânico de Jacob B oehme. Minha suposiçao
é que, se o espelho lacaniano foi tao novo e
continua a sê-lo, é porque reintroduziu em
pleno século XX um esquema de pensamento
"irracional", "magico", barroco, um hiatus
irrationalis oriundo do misticismo
especulativo e teos6fico. Para esse esquema
de pensamento, o mundo percebido/
construido pelo homem é um vasto teatro de
espelhos enquanto que o espelho funciona,
em si, como o teatro de uma estranha
operaçao, que faz surgir o infinitamente
grande no pequeno e, logo, também o
pe,queno no grande e que converte o infinito
em finito ao preço de uma aceleraçao, de uma
precipitaçao cujo principio esta igualmente
muito presente na elaboraçao lacaniana30 .
Todo o século XVI ocupou-se desses jogos
que finalmente deslocaram o espelho,

•111
Este principio de precipitaçao é par exemplo muito audivel, pelas termos
mesmos, nesta passagem central do estadio do espelho: "O estadio do espelho
é um drama cujo impulso interna se precipita da insuficiência à antecipaçâo"
(sublinhado par mim). É este mesmo principio que encontramos mais tarde, da
"asserçào subjetiva antecipante'' (em outras palavras, "um ato") ao objeto
precipitado (ou reduzido) do quadro de Holbein, Os Embaixadores, esse crânio
da vanitas, comentado par Lacan na sessào do seminario de 2 6 de fevereiro de
1964.
51
52

interface da divindade e do homerri, de um


termo ao outro, do misticismo especulativo
barroco de um Cusa no final do século XV ao
espaço das vaidades e da finitude humanas no
inîcio do século XVII em que um Nicole
podia dizer que "um capitao olhando a si
mesmo vê um fantasma a cavalo que
comanda seus soldados" .
Esse movimento foi retomado por Koyré e
Lacan.
Esse esquema, afirmando a parte da ficçao
na constituiçao da realidade, foi transportado
corn muita dificuldade para um novo
ambiente de pensamento (por Koyré) e
deslocado (por Lacan) da deidade para o
proprio sujeito.
É essa a verdadeira audacia do espelho : ter
tomado uma forma antiga de pensamento
como sendo mais moderna que as formas
modernas da racionalidade e ter dado a esse
pensamento do Um-dividido um lugar de
destaque, ao lado dos pensamentos da
binaridade e da trindade que surgirao ao
longo da elaboraçao lacaniana3 1 •

Remeto o leitor interessado pela 16gica desta forma do Um-dividido (que


·11

nomeio. de minha parte, "unârio") aos dois livras que publiquei sobre esta
questiio: D-R. Dufour, Le Bégaie111e111 des 111aî1res ( 19 88 ), reeditado par
Arcanes, Estrasburgo. 1999 e Folie et Démocratie, essai s11r laforme unaire,
Gallimard, Paris, 199 6 .
53

Sébastien Stoskopff
Os cinco Sentidos, ou o Verao, 1 63 3
54

Posfücio à Ediçao Brasileira universitarios, no melhor sentido


do termo, como fariamos para
Poderiamos temer - e alguns estabelecer séries e conjuntos
bons espîritos nao deixaram de epistemologicos coerentes, isto é,
fazê-lo - que um trabalho sobre as crfticos, os quais dificilmente
fontes do estadio do espelho vemos como a psicanalise poderia
reengrenasse a psicanalise, o vivo dispensar, a nao ser que virasse
e o decisivo da psicanalise, em mitologia e religiao?
direçao à classica historia das Mas ha sem dûvida uma outra
idéias corn suas lancinantes buscas razao para esse trabalho, que talvez
de filiaç6es, influências e fontes . nao tenha sido bem percebida
Subscrevo essa observaçao pelas poucas observaç6es crfticas,
apenas corn a reserva de que nao é bem previsîveis enfim, que lhe
certo que esse tipo de trabalho foram feitas. Que este posfücio me
mereça sempre o oprobrio. Afinal, sej a, pois, a oportunidade de
trabalhos dessa natureza sempre explicar melhor meus objetivos.
interessaram muito Lacan - basta Nao é tanto o restabelecimento de
pensar, entre mil outros exemplos filiaç6es na historia das idéias que
possîveis, nos esforços de Koyré este pequeno livro buscava, ainda
para reintegrar à historia do que o estranho impasse sobre essa
pensamento muitos pensadores passagem Boehme-Koyré-Lacan,
mîsticos especulativos, por muito mesmo existindo tantas exegeses
tempo considerados marginais, que do pensamento de Lacan, pudesse
simplesmente abriram a via para a ser interrogado : teria havido algo a
invençao do sujeito da ciência. nao saber nesse estranho encontro?
Sem trabalhos classicos e Nao é impossîvel que o contato,
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mesmo indireto, de Lacan corn o Amorim, cujo trabalho consiste


misticismo especulativo tenha tido num deslocamento muito fecundo
um resqufcio jungiano que nao era das teorias da anâlise literaria de
bom divulgar a todos, mas deixo a Bakhtin aos textos de pesquisa em
outros o cuidado de elucidar estes ciências humanas, "todo
pontos que meu trabalho se poupa enunciado, saiba ele ou nao, queira
de abordar, mas que deverao de ele ou nao, responde a outros
qualquer forma um dia set enunciados anteriores. 0 objeto de
trabalhados. Mas se nao é, pois, que falamos jâ foi falado antes. A
nem a um puro trabalho palavra corn a qual falamos j â foi
universitario sobre as fontes, nem a utilizada antes. E, segundo
uma pesquisa de opiniao sobre B akhtin, trazem sempre sua
alguns impasses nos estudos mem6ria. A pluralidade de
lacanianos que visa este pequeno contextos de enunciaçao habita
trabalho, entao o que ele quer? assim cada texto e suas vozes sedio
A resposta poderâ surpreender: tanto mais audiveis quanto a
este trabalho procede de uma tese mem6ria discursiva o permitir" 1 .
sobre Lacan que eu poderia Nesta medida, que é a da
enunciar da seguinte maneira: hip6tese polifônica ou dial6gica,
Lacan é um lugar onde falam nao surpreende muito que o texto
mûltiplas vozes - inclusive vozes de Lacan sobre o espelho sej a
que ele niio sabia necessariamente habitado por outros textos e que
que falavam nele. Acontece que
sao os trabalhos de uma brasileira
1 Marilia Amorim, Dialogisme et altérité en sciences
que conheço bem que me abriram h umaines, L'Harmatttan, Paris, 1996, p. 97. Ver também 0
pesquisador e seu Outra: Bakhtin nas Ciências Humanas (a
a via desta hip6tese. Para Marilia ser publicado ).
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seu texto sobre o espelho traga em concretos de que faz parte. [ . . . ]


si outros textos sobre o espelho. Todo membro de uma coletividade
Para falar a verdade, o contrario é falante encontra nao palavras
que seria espantoso. 0 texto de neutras ' lingüisticas' , livres das
Lacan arrisca tanto mais arrastar apreciaçôes e das orientaç6es de
outros textos porquanto o espelho outrem, mas palavras habitadas por
é um objeto cultural pesado, que vozes outras. Recebe-as pela voz
nao cessamos de encontrar em de outrem, cheias da voz de
muitas culturas no centro das outrem. Toda palavra por seu
especulaç6es artisticas, filos6ficas proprio contexto provém de um
ou religiosas. De modo que nem é outro contexto, ja marcado pela
necessario que Lacan soubesse que interpretaçao de outrem. Seu
seu texto falava corn palavras j a pensamento encontra apenas
investidas para trazer delas a palavras ja ocupadas2" .
marca. Pois é a natureza do Corno indica, por outro lado,
discurso, do discurso usual de todo Marilia Amorim, "Isso nao quer
locutor, trazer consigo sua pr6pria dizer que se estej a apenas
mem6ria discursiva. "A vida da repetindo. Mas o trabalho criativo
palavra, indica B akhtin, é sua consiste exatamente na luta corn as
passagem de um locutor a outro, de outras enunciaçôes para nelas
um contexto a outro, de uma introduzir sua pr6pria voz.
coletividade social, de uma Simplesmente, a criaçao e a voz do
geraçao a outra. E a palavra nao autor nao ressoariam fora desse
esquece nunca seu trajeto, nao fundo onde outras vozes se ouvem.
pode livrar-se por completo da
1 Bakhtin, La poétique de Dostoïevski, citado por Marilia
ascendência dos contextos Amorim, op. cit..
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Além disso, ainda que fosse uma vozes da cultura e m geral, depois
repetiçao, também seria nova: um as grandes vozes deste século
novo contexto de enunciaçao agora terrninando, se encontraram
constitui um novo contexto para produzir afastamentos, efeitos
dial6gico, o que sempre produz um de sentido, resultados inesperados .
novo sentido"3 . E m resumo, nao posso 1er Lacan
Se Lacan se presta sem me dizer que Lacan era um
especialmente a esse tipo de lugar, uma espécie de "casa vazia",
analise, é porque durante todo 0 para retomar uma das metaforas
seu ensino, ele eminentemente preferidas dos estruturalistas, onde
deixou falar outras vozes nele. Que todas as vozes de pensamento em
tenha sabido, entre essas outras açao podiam vir falar - filosofia,
vozes, encontrar a sua pr6pria é literatura, poética, lingüfstica,
inegavel, mas s6 o pôde por ser teologia, matematicas, topologia . . .
primeiro um lugar onde a tradiçao Tendo chegado a este ponto,
letrada podia vir falar. parece-me possivel conjeturar que
Para rnim, o imenso interesse se o sujeito do ato fundador do
de Lacan nao reside, pois, nem um espelho e do lacanismo, Lacan ( o
pouco, no estabelecimento de um nome proprio), é um sujeito que,
texto monol6gico que jamais no ato, nao esta, é muito
existiu como tal e numa repetiçao provavelmente porque muitos
liturgica desse texto, mas no fato outros nele estao; entre os quais
de que Lacan é um desses lugares Boehme.
excepcionais onde as grandes Ainda às voltas corn estas
questôes, eu explicava ha pouco a
3Mari lia Amorim, Dialogisme et altérité en sciences
humaines, op. cit.. um amigo lacaniano que, quando
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leio Lacan, nele ouço, mesmo nao


nomeados, muitas vozes e autores
diferentes e esse amigo me diz
entao: "Sim, o proprio Lacan
talvez nem sempre soubesse, mas
eles estao ali assim mesmo" .
Depois nos calamos, tempo de
perceber o que a homofonia
proclamava: "eles sao Lacan
mesmo*".

• Jogo d e palavras baseado e m homofonia: ils sont là quand


même ("eles estâo ali assim mesmo") e ils sont Lacan même
("eles sào Lacan mesmo")_ (NR)

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