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Papéis de Psicanálise . -
v.l, ri.l (abr. 2004) -. - Belo Horizonte : Instituto de Psicanálise
e Saúde Mental de Minas'Gerais, 2004.
V.
Anual
ISSN: 1806-3624

1, Psicanálise - Periódicos 2. Sexualidade - Infância I. : •


Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais '

CDU: 159.964
. ■ CDD: 150. 195

Coordenação Editorial

Márcia Rosa
Cristina Drummond

Secretaria Editorial deste número


Maria Rachel Botrcl
Ornar Duane
Rogério Dantas Pau li no

Conselho Editorial
Antônio Beneti
Sérgio Laia
Elisa zMvarenga
Francisco Paes Barreto
Lázaro Elias Rosa
Lilany Vieira Pacheco

Projeto Gráfico e Editoração


Murilo Godoy

Revisão
Luciana Lobato

Conselho Deliberativo do IPSM-MG


Ana Maria C. L. Figueiró • Presidente
Antônio Teixeira
Cristina Pinelli Nogueira
Heriri Kaufmanncr
Lilany Vieira Pacheco
Sérgio P. R. Campos
Simone Souto

Diretoria do IPSM-MG

Antônio Beneti • Diretor-Geral


Sérgio Laia Diretor de Ensino
Elisa Alvarenga • Diretora de Seção Clínica
Márcia Rosa • Diretora de Publicação
Lázaro Elias Rosa Dirctor-Sccretário-Tcsoureiro

Secretaria do IPSM-MG

Margarct Ferreira Acunã


Vânia Masca renhas Costa

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais


Rua Felipe dos Santos, 588. Lourdcs • CEP: 30180-160
Belo Horizonte • Minas Gerais • Tel: (31) 3275-3873
e-mail: ipsmmg@veloxmail.com.br
www.institutopsicanalise-mg.com.br
COMO O SEXO CHEGA
ÀS CRIANÇAS
sumário'

• Editorial - Palavras aladas .................................. 7


Márcia Rosa

• Apresentação - Como o sexo chega às crianças 9


Cristina Drummond

DOSSIER
COMO O SEXO CHEGA ÀS CRIANÇAS?
• O trauma, a linguagem e o sexo 15
Sandra Maria Espinha Oliveira

• O trauma ao avesso....................................r. ; ............ 21 :


Eric Laurent

6 > X • Ensaio e caso clínico


• Diferença sexual e inconsciente 29
■ Quero ser uma menina - uma aplicação da psicanálise 33
Cristina Drummond

; , ; • Comentário: quero ser uma menina 37


Cristianá Pittella de Mattos

• Duas contribuições ao tema


• O falo e a diferença dos sexos 43
• Elementos para uma investigação sobre a função
das fobias em crianças 49
Suzana Faleiro Barroso

• O outro sexo 53
Inês Seabra de Abreu Rocha

• O poder do perfume Delia 57


Maria de Lourdes Motta Machado

• Como o sexo chega à criança psicótica 61


Samyra Assad

•Devastação 67
Maria Rita de Oliveira Guimarães

• A sexualidade infantil segundo Freud 71


Tereza Facury

Como o sexo chega às crianças? 77


Ana Lydia Santiago [Relatora], Ana Maria Lopes e Lúcia Mello

CLÍNICA
CORPO E SINTOMA
J • Corpo e sintoma : 85
Vicente Palomera

' • Comentário: a pequena sereia ■ 91


Lúcia Mello

• A menina-anjo . 95
Cristiana Pittella de Mattos

• A menina-homem . 99
Ana Lydia Santiago
• A construção de um corpo . 103
Lúcia Mello

• Um acontecimento de corpo . 107


Maria Aparecida Farage Osório

• O menino e o pinto do menino 111


Cristiane Barreto Napoli

ESTUDOS
PÓS-FREUDIANOS
• Um pequeno homem-galo ......................... 119
Sandor Ferenczi

• Um caso de fobia de galinhas 125


Hélène Deutsch
EDIT0RIAL
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PALAVRAS ALADAS
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JLJr Psicanálise e Saúde Mental. Com ela, o Instituto de
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Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais se debruça
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sobre temas escolhidos e apresenta, para um público
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s como de outros Institutos e Escolas filiados ao Campo
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Freudiano e à Associação Mundial de Psicanálise.
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< Interlocutor para temas que nos inquietam, tais como “a
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i‘. escrita em psicanálise”, “a epistemologia do caso clínico”
etc., (A Almanaque encontra-se no seu número nove.
A seguir, o Instituto se insere no horizonte midiático
de nossa época e reserva um espaço na sua homepage para
uma revista virtual, Instituto on-line, dal publicação, cujo
segundo número está previsto para agosto de 2004, lhe
permite a ousadia de ir além dos endereços de sua mala-
direta e se abrir ao desconhecido. Com esse trabalho de
difusão da psicanálise, o Instituto insere as suas produções
no espaço da Cyber Cidade.
Com os Papéis de Psicanálise trata-se de possibilitar a
circulação daquilo que se ensina e se pesquisa nas
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atividades do Instituto, na sua Seção Clínica distribuída nos
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Núcleos de Investigação da Psicose, da conexão Psicanálise

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e Medicina, das Toxicomanias e Alcoolismo e da Psicanálise
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A série Papéis de Psicanálise, que ora se inicia, guarda
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algo de sua situação de origem — atividades de
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apresentação de seminários, discussão de casos clínicos,
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Esperamos que, tal como pombos-correios, elas lhes
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APRESENTAÇÃO

COMO O SEXO CHEGA ÀS CRIANÇAS

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ste primeiro volume de Papéis é um registro de trabalho


E do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em
torno do tema “Como o sexo chega às crianças?”.
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Partimos de algumas perguntas que buscamos sustentar
ao longo do trabalho: O que é a sexuação? O que implica a
assunção subjetiva do sexo para a criança? O que quer dizer
que o gozo fálico está atrelado à castração? Como a criança
acede ao sexo numa época que se caracteriza por recusar todo
signo de negatividade, já que o sexual inclui sempre algo da
ordem da negatividade, do impossível? Quais as respostas que
a criança dá a esse encontro sempre traumático com o sexual?
Nossa pesquisa partiu da leitura dos últimos textos de
Lacan. Na contracapa dos Outros Escritos, Miller escreve que
Lacan resumia seus Escritos com a frase “o inconsciente
decorre do puro lógico, ou seja, do significante”. Essa
coletânea ensina sobre o gozo, que também decorre do
significante, mas que tem uma ligação com o vivo. O gozo se
. #»<< produz por manipulações da linguagem que afetam
o ser vivo que fala.
Buscamos, a partir da leitura desses textos de Lacan,
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abordar a sexuação no que ela pode ser articulada pelo
simbólico, pelo imaginário e pelo real. Tal como a proposta da
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• • •
Nova Rede Cereda, investigamos três caminhos diferentes
pelos quais o sexo chega às crianças: o viés das identificações
<\v! A.e^ unificantes, a solução fálica e o que está para além do falo.

Nosso percurso seguiu pelos textos de Freud, de Lacan
e por sua leitura orientada por Miller. Além disso, tomamos, a
partir do quadro conceituai da relação do inconsciente com o
sexo, casos clínicos que testemunharam essa relação, buscando
: ;: T-f demonstrar o que dela se deduz.
Procuramos os elementos para construir o que Lacan
chama de sexuação áofalasser. Falasser é um termo que
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Lacan utiliza em seus textos dos anos 70, momento de seu
ensino em que ele desenvolve uma nova leitura do
inconsciente, enfatizando, para além da decifração do
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' '.F inconsciente, para além do simbólico da linguagem, o que
nele há de real, ou seja, de gozo. O inconsciente já não é
apenas estrutura de linguagem, mas encontro com o gozo.
Lacan chama de sexuação a maneira como cada sujeito vai
subjetivar seu sexo. Por isso, utiliza o termo sexuação no
Instituto m Psicanáiise f Saúdf Mental de Minas Gerais
Pápeis oe Psicanálise v.l w.l abr. 2004

lugar dc sexualidade, no sentido de que há aí uma localização


do sujeito e uma eleição.
Em Mal-estar na civilização, Freud conclui que o sintoma
não é tanto o resultado de um traumatismo sexual, mas que
há algo de traumático na própria sexualidade. A
sexualidade é algo que não funciona, é o que não dá certo
entre homens e mulheres. Lacan retoma essa tese de Freud
sobre o mal-estar, reformulando-a. Para ele, a causa do
desarranjo sexual para o falasser é a linguagem.
Freud nos deu as referências teóricas para
articularmos o processo de sexuação na criança, revelando
que a anatomia não c suficiente para que um menino se
torne homem. Não há, segundo ele, representação psíquica
da oposição homem/mulher, o que Lacan traduz por: não
há nenhum significante que possa responder ao sujeito
sobre o sexo. Assim, cada sujeito deve fazer uma escolha
forçada para se inscrever do lado homem ou do lado
mulher nos quais os seres falantes, para quem a relação
sexual não existe, se repartem. O ato sexual é insuficiente
para que tanto a mulher como o homem se reconheçam
como sexuados.
É só através da via simbólica, da relação com o falo,
significante próprio para representar a falta que regula a
sexualidade, que o sujeito se porá na via da sexuação.
O falo reparte a sexuação, não enquanto órgão, nem
mesmo enquanto significação fálica, mas enquanto uma
função lógica. A operação central nesse processo c a
castração.
De maneira contingente, o sujeito encontra um drama
que o divide: o gozo provoca na criança um
“esquartejamento pluralizante” que fraciona a unidade de
seu corpo. É a introdução do real no imaginário.
Em A relação de objeto, O Seminário Livro 4, Lacan
nos mostra que há sempre o encontro da criança com o real
do gozo e que ele se dá de dois modos. O primeiro
corresponde àquele que Freud já encontrara nas histéricas:
o sujeito descobre de forma traumática ser objeto de um
desejo de ordem sexual por parte de um outro idealizado
paterno. O outro modo de encontro é descrito por Lacan a
partir do caso Hans, quando este tem suas primeiras
ereções. Esse gozo não é vivido por Hans como auto-erótico,
apesar de se produzir em seu corpo. O órgão pertence ao
exterior do corpo do sujeito e essa ligação entre o órgão e o
corpo não é natural. Assim, a relação do sujeito com seu
corpo não é de posse, mas de exterioridade.
As fantasias sexuais das crianças respondem a esse furo
no sentido que força a pesquisa por meio da demanda
pulsionaJ. A criança tem uma “necessidade urgente de
investigação”, mas só chega à resposta do ter ou não ter.
Assim, as teorias sexuais das crianças testemunham seu
encontro com o real. Real do gozo, real do sexual, e podem
não só desencadear sintomas como produzir uma forte
atividade do pensar, atividade que visa a metabolizar no
simbólico esse encontro com o real. A criança tem que
inventar o que ela não sabe, o que não se diz. Por não saber
o que se passa entre um homem e uma mulher, a criança
inventa ficções a partir do gozo que já conhece.
O sintoma surge como resposta ao que não se pode
apresentar no inconsciente, nesse furo de sentido.
Encontramos, nesse presente registro, textos teóricos,
casos clínicos, assim como seus comentários, casos nos quais
a relação da criança com o sexual não sc encontra regulada
peio Édipo, e nos interessamos pelos efeitos do tratamento
analítico sobre o gozo da criança.
Nossa investigação buscou trazer elementos para uma
leitura do trauma, da relação da criança com os impasses da
sexualidade feminina, e se deteve em casos de fobia e de
psicose, buscando esclarecer as soluções encontradas pela
criança para o tratamento do encontro traumático com o
sexual, soluções que ultrapassam os limites do Édipo.
Acrescentamos ainda algumas traduções de textos que
colaboraram com nosso percurso. São textos de colegas do
Campo Freudiano, assim como textos de pós-freudianos que
foram preciosos para nossa investigação.
E um registro não-todo, mas que traz o sabor e o
entusiasmo que animaram esse espaço de trabalho do
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

Cristina Drnmmond
Coordenadora do Núcleo de Psicanálise
com Criança do IPSM-MG
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TFTI ara Lacan, o homem se reproduz graças a um mal-


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' L AS. s tT seu gozo.(LACAN,1985:163-164) Estamos no capítulo
“Rodinhas de barbante”, de Mais... ainda, O Seminário
Livro 20, no qual Lacan define uma dessas rodinhas como
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1 lAlÀ GA, W sendo “a mais eminente representação do Um, no sentido
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■ em que ela encerra um furo”, para, em seguida, fazer
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intervir a fórmula “eu te peço que recuses o que te ofereço,

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'A’í' porque não é isso”. “Isso”, diz Lacan, é o objeto “a”, que
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I “não é nenhum ser”, que é “aquilo que supõe de vazio um
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pedido”. (LACAN, 1985:170-171.)
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se apresenta para o sujeito numa forma a-sexuada.
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(LACAN,1985:171-172.)
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Segundo J. A. Miller, nesse momento, que ele chama
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de último ensino de Lacan, o acento se desloca do grande
Outro, enquanto o que é universal, .para o objeto pequeno
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• 5 7x^.7.7571'' “a”, ou seja, para o que, do sujeito, é o mais singular.
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ítlXXTI ÍXX Então, é “... o Um que domina...” (MILLER,1985:12.)
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Nesse tempo, Lacan se ocupa do problema do
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I Mdiidsdã pP T.® • « » « Á » autismo do gozo, do domínio do Um do gozo sobre o
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Outro do desejo. Por oposição ao desejo, que é do Outro, o
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gozo se sustenta do Um. “Pode-se sempre sonhar com o
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gozo do Outro — diz Miller — mas o gozo se atém ao
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corpo próprio, ao corpo do Um.” (MILLER,1985:13,)
; -AxG.AAiçjAX E assim que Lacan vai dizer, nesse mesmo capítulo de
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Mais... a.vnda, que “quem fala só tem a ver com a solidão”,
XAX í A no que se refere à relação que, diz ele, ' '
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... só posso definir dizendo, como fiz, que ela não se
í I A iíl pode escrever. Essa solidão, ela, de ruptura do saber,
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não somente ela se pode escrever, mas eia é mesmo o
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LÁdç-M"' ' ... * » * que se escreve por excelência, pois ela é o que, de uma
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• .vAt AG?’A JwMfc L ruptura do ser, deixa traço.(LACAN, 1985:170-171.)
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''Et' Traço, marca da incidência do significante sobre o
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real cio corpo, identificação primordial, denominada por
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Freud como “incorporação canibalística” do pai gozador,
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■-;é A5AAS/A A AaTaxG elemento de base do inconsciente enquanto saber para
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;’zL <:a: l:, ,á c \ A’ , Lacan, esse traço que escreve a solidão do gozo nos seres
. A ílI 1 falantes o faz em uma dupla operação que Lacan simboliza
TTA;e7eeX / : '
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na imagem de uma rodinha de barbante que se enlaça a
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outras, de um “Um” que se enlaça a outros “Uns”.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Trata-se da escritura de “um vazio”, corpo humano é a não-naturalidade e o


o que implica um “não há” que, porém, caráter estrangeiro das pulsões que o
tem a consistência de um “Um”. Assim, a animam.
dupla operação que se efetua na inscrição Do que foi originalmente perdido
dessa marca primordial da linguagem pelo corpo não há representação possível,
sobre o corpo, do simbólico sobre o real mesmo no inconsciente, tratando-se do que
do vivente, é a produção de “um furo” o significante apaga no instante lógico do
nesse real. advento do corpo. Será em termos de mito
De um lado, o significante engendra que Freud falará de uma “satisfaçãò
o gozo, o que faz de sua marca o primitiva”, desde sempre perdida, da qual
significante traumático que produz uma nada se pode saber. Para Freud, o aparelho
irrupção de gozo; de outro, o significante psíquico não faz senão tentar reencontrar
esvazia o gozo do corpo. o que deixou traço a partir dessa primeira
A tese de Lacan é a de que o satisfação, sendo a busca mesma de suas
significante separa o que é do registro do coordenadas de prazer o que, a rigor,
corpo, enquanto organismo, do que é do constitui o objeto como perdido, o prazer
registro do gozo propriamente dito. O erigindo-se, então, como um princípio.
significante introduz no vivente a O conceito de gozo designa o que
dimensão de um gozo que é distinta da do gozar do corpo está para além do que
funcionalidade do corpo. Portanto, essa se pode provar como prazer e inclui essa
identificação primordial, esse traço que, a “primitiva satisfação” que Freud postulou
partir de Freud, Lacan chamou de traço como perdida para dar conta da
unário, introduz o gozo, mas produz indestrutibilidade do desejo. Satisfação
também o apagamento do vivente, ou seja, jamais conhecida, interdita, de cuja
ele introduz o gozo sob a forma, não de interdição retira-se a eficácia de causar o
um mais, mas de uma perda de gozo. desejo. E com ela, enquanto alucinatória e
O traço unário, como traço de gozo persecutória, que se dá o éncontro na
e não em sua função de identificação, o Sp psicose, é ela que retorna como ameaça
comemora uma irrupção de gozo contra a qual o neurótico se defende ou
equivalente à marca de uma primeira como o suplemento de gozo que o perverso
satisfação, à marca do encontro de uma tenta reintroduzir no mundo. Ferida para
experiência de gozo. Ele é o memorial de sempre aberta no corpo falante, “...um, tal
um gozo perdido que introduz a repetição gozo não existe senão onde ele é perdido,
como repetição de um gozo que não é em um impossível interno ao simbólico”.
jamais atingido e que se situa ao nível de (ZENONI,1998:81.) Um impossível
seus efeitos sobre o real do vivente, ou seja, interno ao simbólico é como Lacan
ao nível do que se manifesta pela aparição define o real da psicanálise, o real de
das pulsões parciais. E a mãe que, ao um gozo que passa a “ex-istir”
ensinar a criança a falar, a demandar como retroativamente, fora de sua tradução
se deve, introduz a renúncia ao gozo. No em corpo simbólico, enquanto gozo
desmame, a função da mãe não é somente interdito. (ZENONI,1998:65.)
a de privar, em um dado momento, sua A exclusão do gozo no ser falante,
criança do seio. Sua função é de privação do gozo que o conduziria “naturalmente”
em todos os níveis pulsionais, já que as ao Outro sexo, faz dessa perda o correlato
pulsões se engendram pela demanda. mesmo do que vem em suplência como um
Entre a mãe e a criança, o Outro da gozo privilegiado, coordenado a um
linguagem separa o “auto-erotismo” do significante único: o falo. O falo é o que
corpo do que Freud chamou de perversão do gozo pode ser recuperado pelo
polimorfa da criança. significante, gozo fálico, em função do qual
Só há corpo humano quando “um os sexos se repartem. Ligado estreitamente
organismo vivo incorpora o órgão da à linguagem e à castração, ele simboliza
linguagem”. (ZENONI, 1998:76.) Assim, um gozo “humanizado” , o gozo possível
tomado no simbólico, a especificidade do de um corpo que foi esvaziado de seu gozo
Como o sexo chega às crianças

próprio. Cortado da imagem, de castração: macho e fêmea não podem


simbolizando o lugar do gozo como a ser traduzidos, cada um, por um ser
“parte faltante na imagem desejada55, não simbolicamente equivalente.
especularizável, o falo é o símbolo da A realidade sexual, que a psicanálise
separação corpo-gozo. Lacan faz dele o descobre a partir do inconsciente, implica
a ausência de uma relação pensada como
... pivô estrutural da falta da mãe
instintiva e natural, implica a ausência de
enquanto que ela recebe o sentido
da castração pelo símbolo, terceiro, um saber sexual no real, que constitui o
da paternidade [...] o caráter terceiro encontro com o real do sexo como sempre
do falo se reporta sobre o sujeito traumático. A idéia do traumatismo sexual
desembaraçando-o de ter que ser o
objeto mesmo do gozo do Outro é a idéia de um primeiro encontro com o
materno: castração estrutural, gozo que deixa a marca de um gozo real,
primordial do sujeito, que o separa marca que não provém do Outro, que não
do gozo do corpo, negativiza seu pertence ao Outro, e que é, antes de tudo,
gozo “auto-erótico” e destaca
simbolicamente a zona genital de sua a marca deixada pela travessia de uma
continuidade imaginária com o experiência contingente. Dependente de
corpo.(ZENONI,1998:83.) uma tiquê, trata-se de uma marca que não
é da ordem de uma identificação que
Contudo, embora o falo dê ao gozo coletiviza, mas que, ao contrário, se define
uma localização fora do corpo próprio, como a marca do que faz a singularidade
garantindo a sua regulação e impedindo de cada sujeito. Venha ele das primeiras
que esse corpo seja invadido por um gozo excitações provenientes do próprio corpo
doloroso e letal, para além do princípio ou do encontro com um gozo que vem do
do prazer, a significação do gozo pelo falo Outro, esse primeiro encontro com o
não restitui o gozo como tal. sexual contém uma verdade profunda.
Toda a dialética extremamente Nele, o sujeito se depara, pela primeira
complexa entre o sujeito e o Outro, da qual vez, com um desamparo estrutural, com a
Freud se aproximou com o Complexo de angústia traumática que traduz o encontro
Edipo, não é suficiente para evitar o com um impossível, com uma falta no
traumatismo do encontro com o sexual. Outro: S(A).
Uma angústia fundamental, angústia de O gozo que vem dessa parte do
castração, assedia todo sujeito, localizando- corpo, que não participa da tomada do
se, do lado masculino, como ameaça e, do organismo no significante, gozo “auto-
lado feminino, como nostalgia. A erótico”, é experimentado como fora-do-
constelação edípica pai-mãe-criança-faló corpo, como fora desse corpo tornado
inscreve no inconsciente o par pai-mãe Outro pela operação significante de
como significante da geração sexuada, ou esvaziamento de seu gozo. O gozo é
seja, inscreve os laços de desejo e amor que experimentado como vindo de fora, como
os unem, mas nada revela sobre o gozo que vindo de um corpo fora do corpo
circula entre o par homem-mulher. Sobre imaginário especular, gozo hétero, que
o que se passa no corpo a corpo entre esses apresenta ao sujeito seu próprio corpo
dois, o Outro não diz nada. como o que lhe é mais inacessível e, ao
Aqui, a resposta do Outro é sempre mesmo tempo, faz do Outro um estranho.
traumática, é resposta do real. A A efração, que caracteriza para Freud a
impossibilidade de escrever a relação experiência do trauma, é a de uma
sexual está no cerne do que se escreve experiência de gozo que interrompe a
enquanto não-relação, ou seja, o Um fálico. comunicação possível entre o sujeito e o
Se “há” esse Um. fálico inscrito no Outro, que rompe com o transitivismo da
inconsciente, isso implica um “não. há” dimensão especular. O gozo não circula de
relação sexual. “Não há55 dois no campo um corpo a outro.
do gozo. Para que os dois sexos fossem Trata-se de um encontro com o que
representados, falta um significante no J. A. Miller, em seu Seminário Los signos
Outro [ S(A) ], e é a isso que damos o nome dei goce, chama de companheiro real do
sujeito, por relação ao Outro, que ele vai e estruturante, atingindo, portanto, a
chamar de companheiro simbólico, e ao todos e não apenas àqueles que
eu Imoi), companheiro imaginário. Nesse adoecem. Em Além do princípio do prazer,
nível, em que seu companheiro é seu é também como um furo na superfície
próprio gozo, o “sujeito é funda­ do aparelho psíquico, provocado pela
mentalmente companheiro de sua pulsão, que o trauma é apresentado por
solidão”. (MILLER,1998:418.) Freud. A pulsão, que provém do corpo,
Em sua definição mais forte, o mas que é experimentada como tão
trauma é um encontro que exclui o Outro exterior quanto qualquer excesso de
do simbólico e introduz um energia proveniente de um estímulo
externo, coloca o princípio do prazer
Outro absolutamente heterogêneo,
não especular, e mesmo inassi- fora de ação para que o aparelho
milável, mas determinante na vida psíquico, em sua função primária,
sexual de todo sujeito. (CARRO et transforme esse excesso de “energia
al,2002:35.)
livre” em “energia ligada” e produza,
assim, uma borda a esse furo. A pulsão
Em Os quatro conceitos fundamentais
é, então, caracterizada como o que
da psicanálise, O Seminário Livro 11,
visaria a “restaurar um estado anterior
Lacan faz do inassimilável do trauma o
de coisas”, ou seja, como o que visaria
real que reitera, na repetição, o impasse
ao impossível de uma satisfação total,
próprio à estrutura do sujeito. O
para além do princípio do prazer.
encontro com o sexual é definido como
O trauma maior do ser humano é
um mau encontro, como um encontro
o complexo de castfação, estrutura pela
faltoso, que tende a se repetir a partir
qual todo sujeito se confronta a uma falta
do que ficou de sua representação na
ordem significante inconsciente. Sempre irredutível que marca o sujeito em sua
da ordem da tique, esse encontro deixa o constituição de sujeito. O confronto
traço de uma experiência de gozo que se primeiro com essa falta excede as
reitera no autômaton da cadeia possibilidades iniciais de resposta do
significante inconsciente. sujeito e lhe exige a invenção de uma
Lacan vai escrever esse traumatismo resposta particular como saída desse
sexual como troumatisme, que pode ser complexo. Nesse sentido, nós podemos
traduzido pelo buraco (trou) do simbólico dizer que “o trauma é o nome freudiano
no real. Trata-se do buraco da perda da do não há relação sexual de Lacan”
relação sexual que a linguagem opera no (IGLESIAS, 1996:17.), cujo preço é a
falasser, buraco no qual “virão se inscrever divisão subjetiva.
os objetos fragmentados do gozo”. Ao dar-lhe um caráter compulsivo,
(SOLER,1991-92:101.) De um lado, há Freud devolve ào trauma sua vigência, ou
uma perda de gozo, de outro, o gozo que seja, ele o faz atual, atualizando também a
se recupera não é o mesmo que foi defesa que o mantém excluído.
perdido, tratando-se de um gozo inerente
à marca. Sua consistência lógica é a de um Podemos dizer que o trauma é uma
subjetivação da pulsão de morte,
vazio apropriado para alojar um “mais-de- uma forma de alojamento na
gozar” em sua consistência corporal, ou constituição do sujeito disto que o
seja, para alojar na estrutura da linguagem marca e permanece nele como
separado, produzindo, porém,
um elemento estrangeiro ao significante,
efeitos. O trauma fala de extimidade.
um objeto condensador de gozo. (IGLESIAS,1996:17.)
Para Freud, o trauma deixa de ser
pensado como causa dos sintomas ou Em seu texto “Trauma ao avesso”
como um acontecimento que, apenas em (LAURENT,2002.), Eric Laurent propõe,
um segundo tempo, é transformado em a propósito dessa exclusão interna do real
traumatismo, como no início de sua dó trauma, o recurso à figura topológica
obra, para ser pensado como estrutural do toro, no que esta designa uma
Como o sexo chega às crianças

exterioridade central a partir da qual em seu centro uma não relação”. É porque
pode-se distinguir dois sentidos em que o a relação sexual não cessa de não se
trauma pode ser tomado: escrever, que o trauma se constitui
a) Como “um buraco real interno propriamente como trauma sexual. Aqui,
ao simbólico”, ou seja, como o que o analista está
prefigura o real em “exclusão interna
ao simbólico”; ele próprio no lugar do trauma [...]
“o analista c traumático” [...] tanto
b) Como “um buraco do simbólico como o é a própria linguagem. Ele
no real”, ou seja, a linguagem como real, pode ocupar esse lug^r do insensato,
como “parasita, fora do sentido do pois sua formação o levou a reduzir
o sentido do sintoma a seu núcleo
vivente”.
mais próximo de uma contingência
Esses dois movimentos estão fora de sentido.(LAURENT,2002.)
presentes na psicanálise. Em um primeiro
sentido, nós temos o amor, pelo qual uma Essa segunda via deixa o sujeito
análise tem seu início. Uma análise começa aberto às contingências dos encontros
pelo recurso ao Outro, ao sujeito suposto por vir.
saber, que recobre a hiância do Outro, ou Inconsciente, fantasma, sintoma são
seja, recobre o fato de que o saber não é as vias pelas quais cada um inventa uma
todo. Trata-se do que E. Laurent isola maneira de suprir esse buraco no real, mas
como um tratamento do trauma pelo é no núcleo de gozo do sintoma que se
sentido, que faz passar o real do gozo ao demonstra a
simbólico, ao significante, quer dizer, ao
Um fálico do inconsciente. A “inscrição do maneira pela qual o que pode ser
elaborado do gozo, o objeto a, [...] se
trauma na particularidade inconsciente de aloja como causa no outro sexuado,
um sujeito, fantasma e sintoma, é no parceiro sexuado, no parceiro
curativa”, diz Laurent. sexual. (CARRO et al,2002:38.)
Mas, há essa outra vertente que ele
isola e que intervém, não na relação dos Ou seja, que se demonstra como
significant.es entre si, mas na relação ao o sexo pode advir como Outro. Aí, algo
analista como objeto. Aqui, por não se apresenta como a “hora da verdade”.
poder passar ao significante, o gozo se O ser sexuado, o sexo verdadeiro de um
recupera sob a forma do objeto mais-de- sujeito, é definido pelo seu modo de
gozar: seio, fezes, olhar, voz. E nesse gozo. Sexuação é o termo que Lacan
sentido que Lacan diz que o analista tem opõe à tese freudiana que define o sexo
que ter mamas. Uma análise isola não pela identificação edipiana. O sexo não
somente os significantes mestres do é definido por nenhuma identificação
sujeito, seus ideais, mas também os traços do sujeito, mas pelo gozo que o
que marcam seus objetos, suas escolhas caracteriza e que implica o trauma da
de gozo. Nesse segundo sentido, o que castração.
uma análise pode prometer ao sujeito é A não-relação sexual é uma resposta
um traumatismo, ou seja, a certeza de traumática do Outro que deixa o sujeito
que a perda de gozo é irreparável e que embaraçado com sua vida e com seu sexo
esse Outro, que peio saber foi suposto e estimula a pergunta “O que é isso?” a se
conter o objeto, não existe. O sujeito reproduzir, ou seja, faz falar e, falando,
deve, aí, fazer o luto da satisfação que homens e mulheres se reproduzem.
ele retirava de sua própria análise, o luto
Ora, diz Lacan, o fim do gozo — é o
do objeto que o analista presentificava e que nos ensina tudo que Freud
que, sem saber e em silêncio, ele articula sobre o que ele chama [...]
consumia. Aqui, o movimento vai do pulsões parciais — o fim do gozo é
lateral àquilo a que ele chega, isto é,
simbólico ao encontro de um real que
que nós nos reproduzimos.
uma psicanálise deve assegurar. (LACAN, 1985:163.)
Nessa abordagem, a própria
linguagem é traumática “por comportar
F““q ’ 1 U Instituto de Psicanálise E Saúde Mental De Minas Gerais
! 1 1 Papeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARRO, S. et al. Lhomme aux friandises: trauma et seduction.


In: JOURNÉE D'ÉTUDES DU CEREDA, 25, 2002, Paris.
Comment le sexe vient aux enfants? Document préparatoire.
Paris, jul. 2002.

IGLESIAS, Haydée. "De lo traumático freudiano al goce: el


sintoma y la subjetivación". In: Centro Pequeno Hans. E!
sintoma en los tiempos de subjetivación de! nino, 1996.

LACAN, J. Mais ainda, O seminário, livro 20. Rio de Janeiro:


Zahar, 1985.

LAURENT, Eric. Le trauma à l'envers. Ornicar?digital, Revue


électronique multilingue de psychanalyse, Paris, n.204, 3 maio
2002. Tradução nesse número de Papéis.

MILLER, J. A. Le dernier enseignement de Lacan. La Cause


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.Lossignos dei goce. B. Aires: Paidós, 1998.

SOLER, Colette. La répétition dans 1'expérience analytique,


Paris, Université de Paris VII, cours 1991-92.

ZENONI, Alfredo. Le corps de !'être parfant. 2.ed. Bélgica: De


Boeck & Larcier S.A., 1998.
!

i
Éric Laurent

0 TRAUMA AO AVESSO*

ssas jornadas foram pensadas logo depois do 11 de


E setembro e do traumatismo criado pelo terrível
atentado suicida. Quem teria podido supor que elas
aconteceriam uma semana após um verdadeiro
traumatismo na vida política francesa? O resultado do
primeiro turno das eleições presidenciais francesas, nas
quais um representante da extrema direita venceu o
representante da esquerda do governo, pode, com efeito,
ser incluído nessa categoria de acontecimentos. Primeiro,
porque o acontecimento e seu alcance excedem os
comentários que tentam dar conta deles. Os comentaristas
políticos e as “classes falantes” em geral tentam reduzir o
sem-sentido produzido por essa nomeação, mas o fato
resiste, verdadeiro buraco no discurso político francês.
Qualificar um tal fato de “traumático” pode, agora,
ser feito num sentido clínico e não apenas metafórico. E
que assistimos, nas duas últimas décadas do século XX, a
uma nova extensão da síndrome de stress pós-traumática,
do post-traumatic stress disorder, encontrado nos manuais
estatísticos epidemiológicos, tanto no manual americano
DSM IV quanto no manual europeu CID-10.

A generalização do trauma
O sentido clássico foi especialmente estendido para
além dos limites recebidos até então nos anos 80. A
extensão do termo se justifica por um fenômeno que se
situa na interface entre a descrição científica do mundo e
um fenômeno cultural que a excede.
Na medida em que a ciência avança em sua descrição
de cada uma de nossas determinações objetivas, desde a
programação genética até a programação do meio
ambiente, passando pelo cálculo cada vez mais preciso dos
riscos possíveis, a ciência faz existir uma causalidade
programada. O mundo, mais que um relógio, aparece
como um programa de computador. E a nossa maneira
atual de ler o livro de Deus. Na medida em que apenas essa
causalidade é recebida, surge o escândalo do trauma que, ele
sim, escapa a toda programação. É na medida em que nos
beneficiamos de uma melhor descrição científica do mundo,
que tomam consistência a síndrome de stress pós-traumático,
ligada à irrupção de uma causa não programável, e a
tendência a descrever o mundo a partir do trauma.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Mimas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l u.l abr. 2004

Tudo o que não é programável se Ele tomou partido contra os métodos


torna trauma. Isso chega a ponto de, por utilizados pela psiquiatria alemã da época
exemplo, nas conferências da OMS, para tratar os traumatizados. O
assistirmos a proposições visando a “tratamento” consistia na aplicação de
considerar a própria sexualidade como choques elétricos, completado pela
post-traumatidstress disorder. Nosso corpo sugestão autoritária para forçar os
não foi feito para ser sexuado, como soldados a voltar ao front, com um
mostra o fato de que os homens e as enquadramento muito firme. Os métodos
mulheres se comportam muito pior que franceses e ingleses, distintos, eram mais
os animais. Deduz-se disso um trauma flexíveis.
incontestável ligado ao sexo. Pode-se, A segunda guerra mundial seguiu
então, descrever a sexuação inteira­ a tendência liberal do tratamento dos
mente como uma difícil reação ao neuróticos de guerra, mas foi,
trauma. É um esforço, dentre outros, sobretudo, o pós-guerra do Vietnã que
para absorver a descrição do mudou a concepção do tratamento do
funcionamento do body ou da mind, trauma na psiquiatria. Só em 1979 é que
segundo um único modelo, o da os veteranos são recenseados,
causalidade programada e da irrupção avaliados, inseridos nos programas de
da contingência surpreendente. reabilitação, e que a sociedade
É paradoxal, poderíamos dizer, americana se reconcilia com seus
demandar a um psicanalista para falar das soldados traumatizados. Os psiquiatras
conseqüências do trauma, já que a americanos, grandemente mobilizados
psicanálise freudiana foi fundada em torno desse problema, trazem em
precisamente sobre o abandono da teoria seu favor o conceito de stress e a
do trauma da sedução. Durante dois anos particularidade da reação que ele
de sua vida, entre 1895 e 1897, Freud, engendra. É a importância da
com efeito, pensou poder reduzir a mobilização dos psiquiatras e psicólogos
sexualidade a um trauma. Em seguida, americanos sobre o tema social da
ele abandonou essa teoria e pensou que reinserção que tira o trauma do círculo
era na sexualidade como tal que se estreito da psiquiatria militar, para se
deveria encontrar a causa necessária do tornar uma perspectiva geral de
mal-estar na sexualidade, e não na abordagem de fenômenos clínicos
contingência. ligados às catástrofes individuais ou
Foi 25 anos mais tarde, depois da coletivas da vida social.
Primeira Guerra Mundial, que Freud O segundo fator que leva à
deu um sentido novo aos acidentes extensão da síndrome é a patologia
traumáticos e às patologias deles própria às megalópoles da segunda
decorrentes. Ele faz deles, então, um metade do século XX. As megalópoles
exemplo do fracasso do princípio do agem num duplo registro. Por um lado,
prazer e um dos fundamentos da pulsão elas engendram um espaço social
de morte. A síndrome traumática de marcado por um efeito de irrealidade.
guerra, quer sua definição seja O admirável pensador alemão Walter
psicanalítica ou não, é caracterizada por Benjamin chamava esse efeito de “o
um núcleo constante: durante longos mundo da alegoria”, próprio à grande
períodos e sem nenhum remédio, sonhos cidade, onde o reino da mercadoria, da
repetitivos, qué reproduzem a cena publicidade do signo, mergulha o sujeito
traumática, provocam um despertar num mundo artificial, numa metáfora da
angustiado. Esses sonhos contrastam com vida. Mídia e televisão generalizaram
uma atividade de vigília que pode não esse sentimento de irrealidade, de
ser pertubada. virtualidade. A aldeia global corre
Freud devia conhecer essas sempre o risco de se representar como
síndromes, pois ele foi consultado como uma galeria de lojas de uma megalópole
expert durante a guerra e logo depois dela. virtual.
Como o sexo chega às crianças

Por outro lado, o lugar do artefato àquela que comporta o encontro de um


é o lugar da agressão, da violência urbana, risco importante para a segurança ou para
da agressão sexual, do terrorismo etc. a saúde do sujeito. A lista dos perigos
Foi primeiramente nos Estados mistura catástrofe técnica, acidente
Unidos que os grupos feministas individual ou coletivo, agressão individual
quiseram reconhecer o estupro como um ou atentado, guerra e estupro.
trauma, não mais como um delito do Nós aprendemos, através, de um
direito comum, mas como um crime acompanhamento mais profundo dos
clínico, provocando conseqüências casos, que, contrariamente ao que Freud
subjetivas de longa duração. Eles pensava em 1918, o fato de se ter sido
pediram, portanto, indenizações mais ferido fisicamente não protege de uma
importantes e sanções maiores da parte neurose traumática. 80% dos feridos
dos tribunais. graves em atentados apresentam, e isso
Certas categorias profissionais até muitos anos depois do acontecimento,
também pediram indenizações pelo síndromes de repetição, disfunções
stress que elas sofriam. Por uma espécie fóbicas ou depressivas.
de careta da história, o sindicato dos Aprendemos igualmente que as
condutores de trem alemães pediu crianças podem perfeitamente conhecer
indenizações peio stress produzido pelo disfunções similares àquelas apresentadas
fato de que a Alemanha é o país da pelos adultos. Enfim, nós aprendemos
Europa onde mais se suicida pulando que nisso, assim como em outros
debaixo dos trens (um suicídio a cada fenômenos mórbidos, as mulheres se
cinco minutos). revelam, de longe, mais resistentes que
Eu digo careta da história, pois não os homens.
podemos esquecer, nesse fenômeno, da
importância da reflexão sobre as A energia do trauma
seqüelas dos campos de concentração. Os
psiquiatras que se ocuparam dos Em 1895, Freud, de início, atou o
sobreviventes descobriram, com efeito, núcleo da neurose à síndrome de
a “síndrome de culpabilidade do repetição. Ele mencionava, em sua
sobrevivente”, com fenômenos comparáveis descrição da histeria de angústia, o
àqueles dos traumas de guerra: despertar noturno seguido de uma
ansiedade e depressão, associados a síndrome dc repetição com pesadelos. É
disfunções somáticas variadas. A partir só depois do isolamento do puro instinto
de uma experiência de encontro com a de morte que ele separará os sonhos de
morte que desafia toda razão, fenômenos repetição da histeria, e falará, na
parecidos se produzem. síndrome de repetição traumática, de um
Dois fatores participam para a fracasso da repetição neurótica, de um
extensão da clínica do trauma. Por um fracasso das defesas, de um fracasso do
lado, a experiência psiquiátrica dos escudo para-excitação.
traumas de guerra nos países A questão é saber como reler agora
democráticos, ou seja, nos países que essas metáforas energéticas freudianas.
não abandonam seus cidadãos. Em A questão do trauma constitui, de alguma
relação a isso, as novas definições das maneira, uma pedra dê toque. Ela
missões de “manutenção da paz”, a parece, com efeito, ser, por excelência, o
extensão do papel “humanitário” dos lugar da energia, da quantidade de
exércitos, especialmente os europeus, efração.
acentuam essa experiência. Um filme Em 1926, quando modifica o
como Warriors popularizou o trauma de sentido do “traumatismo de nascimento”
guerra nas operações de manutenção da de seu antigo aluno Otto Rank, Freud
paz. Por outro lado, a consideração da traz de volta as concepções energéticas
patologia civil do trauma estende a que ele havia anteriormente concebido
definição da experiência traumatizante como momentos de angústia diante das
EH
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pâpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

perdas essenciais. Freud distingue a linguagem. O trauma decorre de uma


angústia sentida no nascimento daquilo topologia que não é simplesmente de
que decorre, propriamente dizendo, do interior e de exterior. O trauma, a
traumatismo da perda do objeto alucinação, a experiência de gozo perverso
materno. Freud ousa fazer da perda são fenômenos que podemos dizer que
necessária da mãe o modelo de todos os tocam o real. O neurótico também
outros traumas. É sobre esse fundo que experimenta momentos de angústia que
se deve entender o aforismo que figura lhe dão uma idéia desses fenômenos e o
num texto quase contemporâneo, o texto arrancam de sua tendência a considerar a
sobre “A denegação”, de 1925, em que o vida como um sonho.
objeto não deve ser encontrado, Nesse sentido, a extensão da clínica
mas sempre “reencontrado”, sempre do trauma nas classificações psiquiátricas
encontrado sobre o fundo de uma perda é a consequência lógica da extensão da
primordial. descrição lingüística do mundo, quer seja
Lacan retraduziu o inconsciente nos modelos científicos ou em sua extensão
freudiano e a perda fundamental que lhe mais ou menos justificada nas neuro-
é central nos termos do pensamento do ciências. Mas a questão verdadeira que se
século XX, aquele que pudemos chamar coloca é aquela do lugar lógico do trauma
de século da “virada lingüística”. No nos diferentes modelos que nos são
curso desse século XX, tradições propostos.
filosóficas diferentes, Frege, Russel,
Husserl etc. puseram o acento sobre o Os dois lugares do trauma
drama que faz com que nós não possamos A questão do traumatismo é
mais sair da linguagem, uma vez que justamente uma questão de interior e
estejamos nela. É o que o primeiro exterior, mas as relações dessas dimensões
Wittgenstein enuncia em sua tese são complexas como muitos dos textos de
pessimista segundo a qual a filosofia pode Freud, além daquele sobre a negação,
apenas demonstrar tautologias e que o mostram.
mundo não pode “mostrar-se” senão Lacan, desde 1953, propõe, para
através de outros discursos: a estética, a dar conta disso, inscrever a linguagem
moral, a religião. num espaço particular, o toro.
Lacan mostrou que a tese de Freud
pode ser formulada assim: nós viemos ao Ao querer dar a isso uma
mundo com um parasita que ele chama representação intuitiva, parece que
de inconsciente. No momento mesmo em antes do que à superfície de uma
que aprendemos a falar, fazemos a zona, é à forma tridimensional de um
toro que se deveria recorrer, já que
experiência de alguma coisa que vive de sua exterioridade periférica e sua
forma diferente do vivente, que é a exterioridade central constituem
linguagem e as significações. E nesse uma única região.
mesmo movimento que comunicamos
nossas experiências libidinais e que
fazemos a descoberta dos limites dessa
comunicação — o fato de que a linguagem
é um muro. Se não somos excessivamente
esmagados pelo mal-entendido, então
conseguimos falar. Mas fazemos então a
experiência de que não sairemos mais da
linguagem.
Na borda do sistema da linguagem,
um certo número de fenômenos clínicos
decorre da categoria do real. Esses
fenômenos estão ao mesmo tempo na
borda e no fundo desse sistema da
__________________ Dossier
Como O SEXO CHEGA ÀS CRIANÇAS

Esse modelo apresenta a particu­ Nessa perspectiva, o psicanalista é


laridade de designar um interior que está um doador de sentido. Ele trata se fazendo
também no exterior. Ele interessa de uma espéciè de “herói hermenêutico”
profundamente à concepção do espaço em da comunidade de discursos da qual ele
geral. As reflexões sobre a topologia nos procede. Como psicoterapeuta, ele é
permitem ir em direção à “liberação aquele que reintegra o sujeito nos
progressiva da noção de distância em diferentes discursos dos quais ele foi
geometria” e também de “distância” psíquica banido. Pode ser-lhe necessário, como
em relação a um trauma. O toro é a forma terapeuta, refazer o laço do sujeito com o
mais simples do espaço que inclui um buraco. discurso da lei, da escola. São as diferentes
Num primeiro sentido, portanto, o figuras do discurso do mestre que vêm em
trauma é um buraco no interior do oposição fora de sentido com o sujeito,
simbólico. O simbólico é aqui tomado como depois do impacto inicial. E assim que o
o sistema das Vorstellungen através das quais sujeito pode reconciliar-se com a desordem
o sujeito quer encontrar a presença de um do mundo.
real. O simbólico inclui aí o sintçma em A psicanálise se apoia aí sobre o
sua envoltura formal e também aquilo que inconsciente como um dispositivo que
não chega a fazer sintoma, esse ponto de produz sentido libidinal. Isso supõe
real que permanece exterior a uma desconfiar da inscrição do sujeito nas
represen-tação simbólica, seja ela sintoma grandes categorias anônimas e preservar
ou fantasma inconsciente. Ele permite sua particularidade. Essa abordagem se
figurar o real em “exclusão interna ao afasta, portanto, dos Alcoholics Anonymous.
simbólico”. Ela não desconhece, no entanto, a
importância do laço com o grupo e pode
O sintoma pode aparecer como um lhe dar seu lugar, como, por exemplo, no
enunciado repetitivo sobre o real [...].
O sujeito não pode responder ao real tratamento em grupo dos traumatizados
a não ser fazendo um sintoma. O em tal catástrofe aérea, em tal atentado
sintoma é a resposta do sujeito ao específico, em tal guerra, etc. O
traumático do real. reconhecimento de um trauma particular,
próprio a cada um, é um meio de produzir
Esse ponto de real, impossível de ser reconhecimento e, portanto, sentido. Isso
reabsorvido no simbólico, é a angústia supõe também se manter à distância das
estendida num sentido generalizado no
psicoterapias autoritárias, do conselho
qual ele inclui a angústia traumática. imperativo, da sugestão. Trata-se, enfim',
de não fazer dessa psicanálise aplicada uma
serva da quimioterapia. Ela pode ser
combinada certamente com uma
sustentação medicamentosa durante o
tempo necessário.
Mas o traumatismo do real pode ser
compreendido num outro “sentido”,
O tratamento que se deduz desse aquele que J.-A. Miller desenvolve em seu
modelo é o seguinte: em caso de trauma, comentário do último ensino de Lacan. As
é preciso conseguir dar sentido àquilo que relações do Outro e do sujeito podem ser
não tem. E o tratamento pelo sentido. A também tomadas ao avesso. Há simbólico
psicanálise se inscreve, então, junto com no real, é a estrutura da linguagem, a
outras psicoterapias, numa vontade de não existência da linguagem na qual a criança
limitar o trauma a um fora de sentido é tomada, o banho de linguagem no qual
quantitativo. Ela considera que, no ela cai. Nesse sentido, é a linguagem que é
acidente mais contingente, a restituição da real ou pelo menos a linguagem como
trama do sentido, da inscrição do trauma parasita, fora de sentido do vivente.
na particularidade inconsciente do sujeito, Nós não aprendemos as regras que
fantasma e sintoma, é curativa. compõem para nós o Outro do laço social.
Instituto OE Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
■H
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Nós seguimos as regras- que nós . Nessa abordagem, o analista ocupa


aprendemos com os outros. O sentido das o lugar da perda essencial do objeto. Se^
regras é inventado a partir de um ponto ele pode ajudar um sujeito a reencontrar
primordial, fora do sentido, que é a a palavra depois de um traumatismo, é
“ligação” com o Outro. E um ponto de porque ele consegue estar, ele próprio,
vista mais próximo do segundo no lugar do trauma. Foi nesse sentido
Wittgenstein e de seu argumento de que Lacan disse que “o analista é
constituição de uma “comunidade de traumático”. Ele o é tal como a própria
vidas” constituindo uma pragmática linguagem. Ele pode ocupar esse lugar
primordial. Nessa perspectiva, depois de do insensato, pois sua formação o levou
um trauma, é preciso reinventar um a reduzir o sentido do sintoma a seu
Outro que não existe mais. E preciso núcleo mais próximo de uma
então “causar” um sujeito para que ele contingência fora de sentido. Digamos
reencontre as regras de vida com um que ele não crê mais no sentido.
Outro que foi perdido. Não se reaprende O psicanalista pode então se
a viver com um Outro perdido dessa qualificar como um traumatismo
forma. Inventa-se um caminho novo “suficientemente bom” para que ele
causado pelo traumatismo. E sobretudo “empuxe” a falar. Como ousar enunciar
pela via do insensato do fantasma e do uma tal proposição? Isso é dizer a
sintoma que essa via se traça. E por meio mesma coisa que uma pessoa me confiou
do que excede todo “sentido” possível na aqui mesmo, em Nova York: o dia 11 de
causa libidinal que essa via é possível. setembro teve a conseqüência surpreen­
Podemos figurar o èstatuto da linguagem dente de deslocar os limites do discurso.
no real assim: Pusemo-nos a falar com pessoas com
quem não falávamos e de coisas das
quais não falávamos. Membros de uma
família, que se tinham tornado
estranhos uns para os outros, reataram.
Laços novos foram criados. Nesse
sentido, o analista é um parceiro que
traumatiza o discurso comum para
autorizar o outro discurso do
inconsciente. Não se trata do analista
como “herói hermenêutico”. E,
É uma via na qual a produção de
sobretudo, aquele que sabe que a
sentido se separa dè toda abordagem
linguagem, em seu fundo mais íntimo,
“cognitiva”. Não se aprende mais a viver
permanece fora de sentido. Ele sabe que
depois do trauma do que se aprendem
“a linguagem é um vírus” tal como diz
as regras da linguagem. Inventa-se o
o título de uma canção da performing
Outro da linguagem superando a
artist Laurie Anderson.
angústia da perda da mãe, “causado”
Pela posição que o analista ocupa,
pela mãe. Mais profundamente ainda, à
ele é quem garante o surgimento do
imersão na linguagem é traumática
porque ela comporta, em seu centro, inconsciente que emerge sempre em sua
uma não-relação. A não-relação sexual dimensão de ruptura do sentido
nunca se escreve. Ela resta sempre como estabelecido. Como Outro discurso, ele é
uma regra que falta a ser inventada, mas destinado á uma posição non-sensical. E um
que sempre faz falta. E o que faz com que parceiro anti-hermenêutico, como os
Lacan tenha dito que o traumatismo é, heróis de Rainman ou de Forrest-Gump. Ele
em última instância, o traumatismo é aquele que sabe que a linguagem
sexual. E um sentido muito diferente funciona como a repetição insensata do
daquele que a OMS utiliza para dar conta “run, Forrest, run!” que escande o filme. Ele
da sexualidade. corre com o sujeito contra o sentido.
------------------------------------------------------------------------- U 27 F
Como o sexo checa às crianças | I I

A análise como narração e a análise como doador de sentido ou àquela daquele que
instalação restitui o sentido recalcado.
O analista sabe, assim, que ele opera Com os filósofos da linguagem e
com materiais frágeis. A análise não é um contra as abordagens cognitivas, nós
sabemos que a linguagem faz outra coisa
ajuste da metáfora ou do relato da vida de
cada sujeito. Não é o “relato que conviria” do que codificar uma experiência do
vivente. Ela é um código a mais na
no lugar da história que não existe, uma
vez recuperado o dossier perdido sob o multiplicação dos códigos sensoriais, o
código da visão, da audição, do afeto etc.
recalque. A análise parece muito mais, nessa
perspectiva, com uma instalação precária Mas, diferentemente da abordagem
filosófica da relação intersubjetiva, que
como aquela que se encontra agora em
todos os nossos museus ou quando das pode ter um filósofo americano
grandes cerimônias da comunidade contemporâneo como Donald Davidson, o
psicanalista sabe que não é um “mundo
artística, chamadas de bienais. Eu vi, há
pouco, no Whilney Museum, uma dessas comum” e compartilhado que é a
referência última da linguagem. O que nos
instalações. Tratava-se de uma sala onde o
é comum é, sobretudo, a referência ao
artista, John Leanos, tinha reconstituído
uma espécie de pseudo- exposição traumatismo linguageiro, o que realmente
arqueológica consagrada à cultura de faz obstáculo à constituição de um mundo.
O que é comum a toda relação
Azlleclan. Essa cultura teria sido centrada
não sobre o sacrifício sangrento, como os intersubjetiva é a não-existência da relação
sexual, falha na qual virão se inscrever os
antigos Maias, mas sobre a castração ritual.
objetos fragmentados do gozo.
O título da instalação era Remembering
castration. E o que resta quando a castração Se nós conjugamos esses dois
não quer mais dizer nada de trágico para sentidos do trauma, o trauma é mais um
processo do que um acontecimento. Ele
nossa cultura. Brinca-se então com o
passado de um mundo no qual teria existido acompanha para sempre o sujeito.
É preciso manter juntos os dois
a significação ritual de uma tal operação. A
pontos de vista sobre o direito e o avesso
instalação inteira é uma espécie de operação
frágil sobre o que nos resta de sentido em do trauma, que nós escrevemos.
torno do falo. Mais vale conceber a análise
assim do que como uma metáfora narrativa
cheia de sentido., O analista, nessa segunda
posição, se situa além ou aquém de uma
concepção terapêutica do sentido.
Na primeira posição, a da
reparação do sentido, o analista é mais
evidentemente terapeuta. Mas, na
segunda posição, ele percebe o próprio
E o que faz a originalidade da
sentido como um objeto perigoso. Ele
psicanálise, no conjunto das terapias do
pode produzir “overdoses” que o tornam
trauma por meio da palavra. O recurso
inoperante. É, assim, impossível
generalizado às psicoterapias pós-
interpretar mais as “aranhas” de Louise
traumáticas, próprias à nossa civilização,
Bourgeois do que ela própria o fez. Será nos dá novos deveres e novas
preciso, então, ao analista, medir, para responsabilidades. E a ocasião de fazer
cada sujeito, até onde ele pode escutar a singularidade do discurso
apresentar os dois pólos de sua ação. psicanalítico numa experiência clínica
Isso depende evidentemente dos compartilhada. É tanto mais necessário
“traumatismos” exteriores que o porque sabemos que o mundo, depois de
analisante sofreu. Mas, é preciso, no 11 de setembro de 2001, nos conduzirá,
entanto, que o analista saiba que ele não sem dúvida alguma e para nossa
pode reduzir sua posição àquela de um infelicidade, a intervir depois de um
Instituto »F Psicanálise e Saúde Mektai de Miras Gerais
28 Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

trauma ou outro. Freud nos havia deixado


o século XX no “mal-estar da civilização”,
talvez o século XXI nos leve a falar
sobretudo da “civilização e de seu trauma”?

* Texto de Éric Laurent traduzido a partir do original "Le


trauma à I 'envers", publicado em Ornicar? digita! n.204z de 3
de maio de 2002.

TRADUÇÃO: Cristina Drummond


REVISÃO: Ornar Duane
Cristina Drummond

ENSAIO: DIFERENÇA SEXUAL E INCONSCIENTE

reud nos mostrou que a anatomia não determina


F a sexualidade do sujeito, mas que ela tem
conseqüências. Se há dois sexos anatômicos, no
inconsciente, só há um princípio do sexo que o sujeito
pode ou não recusar: o falo.
O campo psicanalítico da sexualidade c aquele no
qual a linguagem opõe um obstáculo à relação sexual, ao
confrontar os seres humanos com um real específico a que
chamamos de gozo. Assim, a morte, a reprodução, o corpo
têm um valor muito diferente na psicanálise daquele dado
pela biologia. Os impasses do sexo para o falasser derivam
do fato de que, no inconsciente, o sexo só é abordado por
meio da linguagem e não pela união do óvulo com o
espermatozóide.
A relação com a linguagem subverte a natureza e o
instinto programados. Para o falasser, não existe a relação
sexual que a biologia inscreve no animal. Isso significa que
o ato sexual não basta para que os sujeitos se reconheçam
mutuamente nem para que alguém se defina como
sexuado. Isso quer dizer que o ato sexual não permite a
subjetivação do sexo.
Como o sexo chega às crianças? Essa é a pergunta
que orientou nossa pesquisa. Durante o Encontro
Internacional que ocorreu em julho de 2002, Daniel Roy,
que coordenou a jornada de trabalhos do Cereda,
respondeu a essa questão de múltiplas maneiras, dando a
ela várias respostas.
1- O sexo chega às crianças parcialmente nas
diferentes experiências das várias zonas erógenas.
2- O sexo chega às crianças teoricamente, já que elas
podem ter acesso ao sexo no texto e nos significantes que
vêm do Outro.
3- O sexo chega às crianças falicamente, quando elas
dispõem desse significante para organizar simbolicamente
sua experiência.
4- O sexo chega às crianças traumaticamente, porque
ele é sempre hetero, isto é, vem sempre do Outro.
5- O sexo chega às crianças sintomaticamente, já que
o sintoma é, em si, uma tentativa de responder ao que
estru turalmente, falta.
6- O sexo chega às crianças perversamente, pois a
criança vive a sua sexualidade de forma plural sem o
privilégio de uma zona ou de um objeto erógeno.
E, enfim, ele responde que:
7- O sexo chega às crianças por acaso, já que, quando
falamos de real, estamos sempre no registro da contingência
do encontro.
Como nos organizar nessa multiplicidade de enfoques?
I Instituto oe Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais_______

H Pápeis de Psicanálise v.l m.1 abr. 2004

Em nossa pesquisa, dividimos A questão que ele evidencia é a de que


inicialmente a questão em três campos a anatomia não determina o comportamento
definidos, a partir das respostas da criança sexual do sujeito. No entanto, a oposição ter
aos impasses com o sexual. A criança pode ou não ter concernente ao pênis de fato
resolver a questão apoiando-se em uma desempenha um papel determinante para
identificação a um modelo sexual, pode o sujeito na caracterização de seu ser còmo
fazer uma metaforização de seu sexo, homem ou mulher. Assim, há sempre uma
dando-lhe uma significação fálica, ou, dimensão de aparência, de “paresser” na
ainda, pode buscar uma solução que relação entre os sexos.
dispense a significação fálica. 2- U.m segundo tempo é o do
Buscamos orientar nossa resposta discurso sexual, quando o discurso da
inicialmente fazendo um percurso em Freud cultura transmite ao sujeito a interpretação
sobre a questão da sexualidade e suas saídas de seu sexo. O sujeito acolhe a palavra em
para o menino e para a menina. Retomamos seu organismo vivo e c esse acolhimento
com Lacan a organização genital infantil da que faz sua humanidade, ou seja, que faz
libido em torno do falo e sua proposta de dele um falasser. Essa “doença da
avançar na construção de Freud a respeito linguagem” lhe é transmitida pelo outro e
do falo. Lacan retoma a idéia de Freud de isso se faz com as categorias fálicas.
que existe apenas um ordenador significante O sujeito começa então por ser
para os dois sexos e propõe que a divisão dos identificado como sendo de um
sujeitos se dê entre as posições de ser ou ter o determinado sexo, e esse significante que o
falo. Avançamos nessa proposição formulada identifica, um Sl, ao mesmo tempo o deixa
em ‘A significação do falo” para chegarmos à em uma indeterminação, já que, na lógica
sua revisão com as fórmulas da sexuação, significante, um significante representa um
quando o falo passa a ser uma função, e a sujeito para outro significante. É importante
teoria da sexuação na psicanálise passa a lembrar que significação sexual não quer
incluir tanto as saídas do lado feminino como dizer sexuado, e que o sujeito pode tomar
as do lado masculino e as saídas na psicose. um traço do Outro que é sexual, mas que
não fala de sua posição masculina ou
A sexuação do sujeito feminina. Tal como Dora, que toma como
De acordo com o que aprendemos, na identificação a enurese do irmão, sem que
psicanálise, não se pode escrever uma lei esse traço, no entanto, defina sua posição
sexuada como masculina.
universal da relação sexual e nem suas regras,
Temos aqui apenas um termo da série
porque elas não existem. Em seu lugar, cada
que o sujeito deverá completar. É por isso
sujeito inventa uma solução particular, uma
que essa identificação dá lugar a perguntas
espécie de bricolagem ou amarração que
que, na neurose, se dividem em duas
funciona mais ou menos bem, podendo ser
vertentes: a pergunta sobre a existência e a
duradoura ou temporária.
pergunta sobre o sexo. Essas perguntas é que
Cada sujeito deverá subjetivar seu
vão empurrar o processo de subjetivação do
sexo, e Lacan chama esse .processo de
sexo por parte do sujeito, isto é, que vão levá-
sexuação. Esse processo leva em conta as
lo a construir a cadeia significante (S2) que
identificações do sujeito, mas busca como
referência fundamental seus modos de gozo. poderá representá-lo como ser sexuado.
Podemos destacar três tempos desse E um tempo, pois, em que o dado
processo: natural, a anatomia, é tomado na dimensão
1 - Um primeiro tempo, mítico, em que de um imaginário significantizaclo.
a anatomia, que é um real, se impõe ao sujeito. 3- Um terceiro tempo é aquele em
. Quando Lacan discorda da que o sujeito pode ou não estar de acordo
formulação de Freud de que a anatomia é com o sexo que o discurso que o circunda
... o destino, ele não está dizendo que a lhe designou.
anatomia não desempenha um papel no É um momento de eleição que
processo de sexuação do sujeito, mas que implica os modos de gozo do sujeito e sua
ela traz consequências psíquicas para ele e relação com o outro sexo.
isso se dá de maneira particular, para cada Esse tempo é determinado pela
um, e não de uma forma universal. estrutura, mas c também o tempo do acaso,
____________________ Dossier
Como o sexo chega às crianças

dos encontros do sujeito com o desejo e o gozo para interpretar essas primeiras experiências
do Outro. Esses encontros, contingentes, têm para evitar que esse gozo continue
efeitos sobre as identificações do sujeito e sobre puramente real e insuportável e possa ser
a estrutura de seu fantasma. encarnado por ela. Freud já apontara que a
Aqui, retomamos a idéia de que o “atividade do órgão” existe antes mesmo de
processo de sexuação tem um sentido se associar aos complexos de Edipo e de
estrutural e um sentido contingencial. Por castração ou à representação da cena
um lado, a necessidade de pertencer a um primária. Desse trabalho epistêmico, ao qual
sexo não é dada de princípio, mas se elabora o sujeito é compelido, resultam as
pela relação com o falo que é uma elaborações de saber, que são as teorias
conseqüência da intrusão da linguagem. Por sexuais infantis. Essas teorias têm um aspecto
outro, há um processo^de subjetivação do simbólico, inconsciente e imaginário que
que é dado pela estrutura, e aqui temos as busca recobrir o real ao qual se faz referência.
respostas particulares do sujeito, de As teorias sexuais infantis são, por um lado,
assentimento ou não do que vem do Outro. interpretações da criança sobre o gozo de
E por isso, porque o sujeito tem responsa­ seu órgão e, por outro, se elaboram a partir
bilidade sobre sua sexuação, que a psicanálise dè perguntas sobre seus pais. (O que eles
pode ter efeitos sobre ele. Senão, ela não seria querem? O que sou para eles? Como eles
mais do que uma adaptação do sujeito ao gozam?) Na fantasia do coito sádico, por
real. Em uma análise, a criança terá a ocasião exemplo, vemos a criança criar uma cena
de se deparar com suas escolhas e se que busca dar um conteúdo imaginário acr
defrontar com suas próprias condições de real que é a ausência de relação sexual entre
gozo que orientam seu desejo. Há, portanto, os pais. O sujeito interpreta tanto seu gozo
uma possibilidade de uma maior adequação que ele pode situá-lo em seu corpo, ou seja,
entre ambas. encarnando-o assim como o gozo do Outro.
Inicia-se um processo no qual a criança
O encontro com o sexo elabora teorias a partir de seu gozo, e çssas
Nossa pesquisa, então, buscou fantasias passam a agir sobre seu gozo.
referências teóricas e clínicas para tratar Lançamos mão, em nossa pesquisa,
dos impasses do sujeito em seu processo de casos clínicos nos quais o sexo anatômico
de sexuação. causava problemas parao sujeito, casos em
Vimos, com Freud, que o que é que, diante do encontro com o sexual,
percebido pela criança nem sempre pode sempre estrangeiro, quer venha do outro ou
se impor ao inconsciente. Assim, a visão de de seu próprio corpo, o sujeito se via às voltas
que a mulher não é portadora de pênis, a com dificuldades para simbolizar esse real.
comprovação de que todos os homens são O caso Hans é paradigmático para
mortais e até mesmo o resultado de um nós, no que se refere aos impasses da
exame de paternidade podem ser falseados criança para metaforizar o encontro com
pelo inconsciente. Este se apoia em outra o real do sexo enquanto gozo do órgão. O
prova de verdade, uma prova que afeta o sujeito encontra um drama que o divide:
mais íntimo das razões do sujeito. o gozo provoca nele o que Lacan chamou
Vimos ainda que o inconsciente tem de um “esquartejamento pluralizante”, que
uma dificuldade estrutural para responder fraciona a unidade de seu corpo que até
à excitação e às sensações corporais que então se organizara em uma unidade
invadem o sujeito desde a infância. O sexo especular, a partir da identificação com o
chega às crianças como um encontro com falo imaginário (i(a)). E a introdução do
um gozo real que deverá ser interpretado. real no imaginário.
A criança se coloca a trabalho diante desse Em um primeiro tempo, Hans
gozo, buscando interpretá-lo com os interpreta o gozo do órgão com os
recursos de que dispõe. significantes que lhe são disponíveis em seu
As primeiras sensações genitais da mundo. Assim, ele diz que seu pipi pula e
criança são muito perturbadoras porque ela morde como um cavalo. Vemos, no
não pode nem identificá-las nem localizá-l^s. entanto, que esses significantes são sempre
O órgão genital pode inclusive parecer estar insuficientes para dar sentido a esse gozo
fora do corpo. A criança recorre à linguagem que Lacan chama de hetero, isto é,
Instituto pç Psicanálise e Saude Mental de Minas Gerais
Pâpeis de Psicanálise v.l n.1 ahr. 2004

estranho, de fora. É um novo gozo que Como um sujeito poderia construir


surge e vem associar-se ao corpo do sujeito. sua sexuação dispensando a significação
A saída do sujeito é pelo sintoma, que fálica? Que recurso teria o sujeito para
é aqui a expressão da rejeição de um gozo localizar o gozo próprio? Quais as respostas
do qual o sujeito não compreende nada e o do sujeito às situações traumáticas?
qual ele tem a tarefa de encarnar. Vemos Continuamos nossa investigação
que Hans tem muitas dificuldades para sobre o encontro do sujeito com o sexo,
inscrever seu gozo sob o significante fálico. encontro sempre traumático, tomando
O sujeito começa um trabalho forçado e casos clínicos em que o sujeito não dispõe
intenso de elaboração para domar esse gozo da significação fálica. Retomamos a solução
com palavras e ao mesmo tempo cifrá-lo, e da fobia e sua particularidade na
é esse o trabalho que sua fobia nos mostra. construção do Nome-do-Pai e as soluções
O que Lacan nos ensinou a ler no texto na psicose. Buscamos levantar como a
de Freud é que, no momento em que Hans identificação sexual funciona de forma
deixa de acreditar no falo materno, ele perde diferente em ambas as estruturas.
sua identificação com essa posição, mas não Para isso, lançamos mão do ensino de
coloca o pai como agente dessa privação. O Lacan dos anos 70, quando ele nos propõe
sujeito tem uma “carência paterna”, o que é uma lógica da sexuação fundada sobre a
diferente de uma forclusão. Ele convoca como significação fálica e não sobre as
reforço do pai um outro agente castrador, o identificações. Na psicose, vemos que muitos
cavalo, que se torna uma metáfora do pai. desencadeamentos são produzidos a partir
No caso de Hans, a subjetivação de da queda de uma identificação que parecia
sua inscrição do lado homem é uma definir imaginariamente uma posição sexual,
conseqüência do fato de que a eficácia do ainda que frágil, para o sujeito.
Nome-do-Pai depende mais da avó paterna As identificações, na psicose, orientam
do que de seu pai real, resultando daí uma a vida do sujeito e dão sentido a certos órgãos
identificação cóm o ideal do eu materno. e funções do corpo, inclusive sexuais. Assim,
Por isso, Lacan fala que ele será um o sujeito pode representar a diferença dos
cavalheiro diante das mulheres, capaz de sexos por meio de um sistema de pares de
se satisfazer com filhos imaginários. opostos significantes. Tal como no caso que
estudamos, do menino que dividia o
Quando o sujeito não dispõe da universo em dois mundos: um só para
significação fálica homens, outro só para mulheres, a partir
O fato de que o gozo do órgão exija dos quais cie classificava todos os objetos do
uma interpretação por parte do sujeito é mundo. Essa classificação se construiu
algo que se confirma na psicose. Quando dispensando inteiramente o pai como
o sujeito recusa o significante fálico, vê-se operador. Quando essas identificações caem,
obrigado a interpretar seu gozo com o sujeito deve, sem descanso, inventar uma
construções delirantes. Assim, o processo outra solução para essa questão, a fim de não
de sexuação na psicose se dá de forma se ver invadido pelo gozo que não pode, por
completamente diferente do da neurose. estrutura, significantizar.
Muitas vezes, uma identificação ■ Às vezes, assistimos a um empuxo-
imaginária se mantém como suficiente para à-mulher, conceito que Lacan criou a partir
sustentar o sujeito em uma posição sexuada. de Schreber, cujo conteúdo é o de uma
Porém, encontros com o real do sexo para feminização forçada vivida por parte do
o sujeito podem colocar em questão essa sujeito psicótico. Outras vezes, vemos
identificação, que mostra, então, sua face exatamente o contrário, o sujeito se vendo
de insuficiência c de instabilidade. Vemos, transformado em homem.
assim, fenômenos freqüentes, que são a Muitas crianças podem, a partir cio
irrupção de delírios no primeiro acesso ao encontro com um analista, aprender corno
sexual na infância, na puberdade cr nas fazer com seu sintoma. A multiplicidade
primeiras relações sexuais. de soluções encontradas e o trabalho que
. Se, no caso da neurose, o sujeito a psicanálise pode levar o sujeito a fazer
formula perguntas que darão origem às no sentido de assumir sua cota de
teorias sexuais infantis, na psicose, as responsabilidade diante da contingência,
respostas são impostas pelo gozo. tal foi nosso universo de investigação.
Cristina Drummond

CASO CLÍNICO: QUERO SER UMA MENINA


UMA APLICAÇÃO DA PSICANÁLISE j
ts
■"■"■l odo o movimento do Campo Freudiano em relação à
■L psicanálise com crianças tem sido o de insistir no fato
de que só existe uma psicanálise, e que a criança, na ??
expressão dos Lefòrt, é um analisante por intei.ro. Isso quer t :
dizer que, se a psicanálise tem uma aplicação na terapêutica
das crianças, é porque, aqui também, tratamos do real e
buscamos dar conta dele de uma maneira lógica. Para o
tratamento das relações da criança com o gozo, orientamo-nos
primeiramente pela “Nota sobre a criança” (LACAN,2003:369-
370.), em que Lacan distingue duas posições da criança: como
sintoma do par familiar ou como objeto do fantasma materno.
Dando continuidade ao ensino de Lacan, Miller
tomou suas diferentes formulações sobre o gozo e construiu
a. partir delas seis paradigmas. Lançando mão desses : t : t: ' : 1:
paradigmas do gozo propostos por Miller
(MILLERQOOO:8'L 105.), Énc Laurent (LAURENT:47-49)j) )
formulou os seis paradigmas da criança, definindo a partir
de cada um deles um lugar do psicanalista e uma resposta
... .. ... .,., que este pode dar à criança no enfrentamento do gozo. p >))
* •♦m
Se Freud nos ensinou que o lugar de uma criança
■'r
para sua mãe é o de falo, Lacan demonstrou que há um
♦♦ ♦ ♦ <
resto que não é metaforizado pelo Nome-do-Pai. Para
iio- Lacan, a resposta de Freud é parcial e é preciso ir além, ho
♦ ♦:
♦ ♦ ........... .. «m
sentido de articular a criança à sexualidade feminina. A
direção do tratamento aponta para a localização do gozo
♦..♦♦< em uma ficção que permita à criança responder ao gozo da

mãe, isto é, da mulher, sem que necessariamente essa


solução seja uma identificação edípica. E é porque essa
ficção pode ser construída no tratamento que podemos
falar da aplicação da psicanálise na clínica com crianças.
Freud nos deu as referências teóricas para articularmos
•' »«t <»♦'♦♦ o processo de sexuação da criança, demonstrando que a
♦ ♦♦♦♦♦♦......... anatomia não é suficiente para que um menino se torne

O
homem. Assim, cada sujeito deve fazer uma escolha forçada
para se inscrever do lado homem ou do lado mulher, nos
-»•<♦♦• • ♦♦♦'r quais os seres falantes, para quem a relação sexual não
♦ ♦♦♦.:♦♦»♦♦♦♦<
. existe sc repartem. É só através da via simbólica, da relação
♦ ♦A
• ♦♦♦♦♦■ ♦♦♦♦^ lógica do menino com o falo, significante próprio para
♦ *.. ♦♦ ♦ ♦»
representar a falta que regula a sexualidade, que o sujeito se
porá na via da sexuação. E na construção dessa lógica que
encontramos muitos sujeitos em um impasse.
“Quero ser uma menina” — O que poderia ser uma
tal demanda por parte de um menino?
l-.Sil-l.-C c-' PsiCAI.ALiSF F S A I. n ■ M ‘ NI A l DF M IN S G F R AI S

I Pápeis oe Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Para esclarecer essa questão, que penso a porta do banheiro e me diz que tinha pensado
não ser própria a uma determinada estrutura, que ali havia um buraco no qual ele poderia
mas apontar para o cerne de uma resposta cair. Temos aqui então colocados pelo sujeito a
para a criança que, às voltas com a subjetivação mãe, o pai, a criança e a falta que aparece no
de seu sexo, encontra problemas para regular registro do falo imaginário, ou ainda como real,
o gozo pela via simbólica, gostaria de discutir já que a articulação com o falo simbólico parece
dois fragmentos de duas análises que tiveram para ele problemática. Ele diz que quer fazer
início a partir dessa demanda. um desenho para mim. E o olhar do analista
Não preciso dizer que se trata de uma que ele busca de início capturar, a partir de
demanda que, certamente, angustia os pais e suá habilidade em desenhar. Primeiro uma
que recebe, por parte deles, uma resposta paisagem que ele sabe fazer muito bem e
pedagógica. A imputação à criança de depois uma pintura. Pinta um vestido longo.
homossexualidade, esboço freqüente de Cai um pingo de tinta fora do vestido e ele me
feminização, por parte dos pais, da família e diz que aquilo “era um buraquinho, mas que
até mesmo da escola, encabeça uma série de não ia nem ligar pra elé”. Mais uma vez aqui
acusações que aludem a um gozo desenfreado. aparece a falta como algo que ele sabe que
existe, mas que mesmo assim... ele encobre.
Ser menina — uma solução imaginária Vai misturando as tintas sobre o desenho e
André tem cinco anos e seus pais se quando pergunto o que era aquilo, me diz que
queixam de seu comportamento bastante ele era um homem que não queria contar nada
efeminado, muitas vezes rebolando, para uma menina curiosa.
“desmunhecando” e falando de forma Um dia canta uma música como se íòsse
enfatuada. Eles se sentem bastante em outra língua: “assombraumanautiesó”, a
incomodados, pois não querem que seu filho que eu pergunto: “o que assombra uma noite
seja discriminado. O pai lhe diz só?” Ele continua cantando e desenha nuvens
constantemente que esse não é um e fumaças saindo de plantas no meio da noite.
comportamento de homem e busca corrigi-lo. A partir de então se mostra bastante silencioso,
André é um menino criativo e tem muitas vezes fazendo mímicas para se
um irmão dois anos mais novo. comunicar. Parece que sobre o que acontece à
Quando o vejo pela primeira vez, ele noite André não quer falar.
me diz que tinha vindo para resolver um Gosta de fazer máscaras, óculos com
problema, mas que nãò queria me contar o os quais ele se fantasia para enganar a mãe.
que era. Diz-me que seu pai estudou no Vai dessa maneira contornando esse objeto
colégio perto de meu consultório. olhar que para ele é privilegiado. Como em
uma mascarada, ele brinca de sér o falo.
Ele estudou, depois ficou adolescente,
depois estudou medicina, casou, saiu Busca se sentar confortavelmente, fazendo
um neném da barriga da mamãe, dois uso de todas as almofadas, quase que como
nenéns e ele foi estudar sobre mamas. em um trono, e me dá ordens. Passa a querer
Fala que tem uma semente na barriga levar sempre seus desenhos para a mãe.
da mãe que cresce e vira neném. Tem um Em uma ocasião, desenha ele
cordão que vai alimentando o bebê até ele mesmo, confortavelmente deitado em cima
crescer e que depois é cortado. Como o bebê de úma montanha, à beira da praia. Estão
sai, sua mãe é que sabe. presentes seus pais, tios, seu irmão e uma
Se André não formula a questão de tia que traz seu filho agarrado nela.
sua posição subjetiva da mesma maneira que Termino a sessão e digo que aquele
seus pais, podemos observar que ele me diz desenho do filho agarrado na mãe iria ficar
que seu pai tem o olhar dirigido não para a comigo. Ele fica transtornado, começa a
mulher, mas para a mãe, e que a questão da chorar e a berrar que aquele desenho era
separação entre a criança e a mãe fica sob a para sua mãe. Dirijo-me à sua mãe e lhe
jurisprudência da mãe. Ele se apresenta digo que tenho certeza de que ela poderia
como um sintoma do casal, sendo que a / ficar sem aquele desenho. Ela responde
questão da assunção subjetiva de seu sexo que sim, mas ele continua enfurecido. A
está articulada à castração materna. tentativa aqui é a de fazer vacilar sua
André me pergunta o que há atrás identificação com o falo, fazendo incidir a
daquela porta. Digo que ele pode olhar. Abre falta sobre a mãe.
____________________ Dossier
Como o sfxo chega às crianças:

Na sessão seguinte, ele quer Um dia, ele chega com um


novamente desenhar e derrama quase um cachorrinho com uma gravata borboleta.
vidro de cola sobre o papel. Vai se lavar e Pergunto logo: um cachorro “só para
depois de sair de meu consultório se homens?” Ele me diz que na loja também
lembra de que deixara seu desenho lá havia uma cachorra mulher com um cabelo
dentro. Digo que aquela cola poderia ficar amarelo de tranças, mas que ela era
ali. Ele sorri e sai tranqüilo. horrorosa. Com esse “ao menos um”, essa
Ao voltar das férias, vem de óculos necessidade de classificação desaparece.
escuros. Pergunta-me se o buraco do Ao mesmo tempo, fala das roupas. Ele
banheiro continuava lá. Entra e volta também desenha um vestido de mulher, só
dizendo que ele estava lá, mas que havia que é um retrato de sua mãe de tomara-que-
sido enfeitado, mostrando-me o ralo. Ao caia. Se o significante indica uma promessa,
sair, esquece seus óculos, sendo essa queda parece não ser uma operação
interpretado pelo próprio inconsciente. possível para esse sujeito. Conta-me das
André continua me pedindo aquele roupas interessantes da mãe, dos sapatos, dos
desenho, mas passa a deixar comigo os brincos, chama-me sempre a atenção para
outros que faz. Pede-me ajuda para fazer suas próprias roupas. Entre as roupas, começa
uma roupa que proteja de mordida de a aparecer um casaco amarelo de engenheiro
morcego. Eu desenho a roupa e ele risca o do avô. Ele vinha falando de um medo que
papel até fazer um buraco. Desenha por tinha à noite, quando ouvia um barulho como
cima uma árvore e aquele buraco é como que um uivo, que ele pensava poder ser de
uma máscara por onde ele, escondido e um ladrão. Pensava em várias estratégias para
protegido da mordida, pode olhar. não ter aquele medo, só ficando mais
pacificado quando começa a pensar que o avô
Ser menina — uma solução real poderia enfrentar esse ladrão.
Distinta é a posição de Bernardo. Esse casaco amarelo surge também
Quando seus pais me procuraram, como uma pequena exceção no universo
queixaram-se de que ele se vestia de de vestimentas femininas. Um dia, diz-me
mulher, se interessava o tempo todo pelos que vai ser o padre no casamento da festa
objetos da mãe e dançava como a Xuxa. A junina. Conta-me que um padre veste uma
mãe tem um irmão homossexual e fica sem roupa que parece um vestido, mas que é
saber se o menino já estaria fazendo uma de homem. Essa roupa, diz ele, é melhor
escolha sexual, ou se ela, por causa de sua do que qualquer vestido. A importância
história, é que estaria distorcendo as coisas. que ele dá ao tema das roupas nas sessões
Ao contrário de André, Bernardo começa a diminuir bastante. Parece que
não tem nenhuma dificuldade em falar de essa roupa poderia conjugar algo do que
seu interesse pelos objetos da mulher, pelos para ele parece impossível de se articular.
quais ele tem um verdadeiro fascínio. Passa Passa a uma posição de quem tem
muito tempo construindo uma história, alguma piada para me contar, algo para
um mito dè dois mundos. Um, “só para me mostrar ou ensinar. Deixo-me ficar
homens”, outro, “só para mulheres”, bem nessa posição. Na escola, assim como no
separados. O mundo “só para homens” era grupo de primos ou amigos, prefere a
repleto de objetos desinteressantes, ao companhia das meninas, mas sempre em
passo que o “só para mulheres” era repleto uma posição de líder. Penso ser isso outra
de brilhos, dourados, sapatos altos, colares, forma de fazer o lugar da exceção.
cosméticos. Trazia objetos para classificar Sobre seu pai, pouco fala. E um
como pertencentes a algum desses dois sujeito que é usuário de drogas e que teve
mundos,, Os que cabiam no mundo dos complicações neurológicas, depois das
homens eram restos — trata-se, pode-se quais não conseguiu mais um trabalho fixo.
dizer, de uma invenção de repartição Bernardo me conta que ele mora com a
sexual. Podemos supor aqui uma avó e que está sempre lhe prometendo
deficiência da metáfora paterna, que é algum presente ou dinheiro.
exatamente a operação que põe em Suas questões giram sempre em torno
conexão o pai e a mãe e uma busca do de sua relação com sua mãe, ele não se
sujeito de inscrever uma separação aí, incluindo nunca em uma situação
onde, para ele, há relação sexual. organizada edipianamente. Se a roupa
Fiíl ►! *NS'IT|JT0 DE PSICANÁL|SE e Saúde Mental oe Minas Gerais_______
PD í r| PÀP£f$ DE PSICANÁLISE V.l N.l ABR. 2004

parece dar um contorno a seu corpo, às No final do ano passado, a mãe chega
vezes, sua dificuldade em lidar com ele bastante assustada, dizendo-me que Bernardo
aparece de forma mais clara. Ao voltar de lhe havia dito que queria fazer uma operação
férias, por exemplo, conta-me que um dia para virar mulher. Aqui podemos pensar que,
havia ficado enjoado, vomitando, que a mãe por faltar a máscara do pai simbólico, surge
ligou para a médica e essa figura do gozo ilimitado que é A mulher.
Bernardo me diz que sua mãe lhe havia dito
— sabe o que eles inventaram agora?
Um remédio que não se toma pela que aquilo era uma bobagem, e que ele ficara
boca, mas pelo bumbum. Mamãe pôs pensando que ela tinha razão, já que ele não
com luvas, é claro. teria mais como fazer xixi. Digo-lhe que
No dia seguinte, ele continuava deveríamos falar mais sobre isso.
passando mal, mas não disse nada para não Em um sonho, ele e os primos estavam
ter que tomar mais daquele remédio — Já brincando de procurar prêmios escondidos
pensou se eles inventarem üm remédio de no jardim. Quando ele levanta um pano
enfiar no pinto?” pensando em encontrar esse objeto precioso,
Relata-me que sua mãe teria que o que ele encontra é uma pantera. Sua
fazer uma operação à laser naquele lugar estratégia é fingir de morto, e, quando a
de ter neném. Ele antes queria ser pantera sai, ele corre para pegar uma
médico, mas depois pensou que eles mênininha no colo e salvá-la da pantera. Entra
mandam os mortos para a faculdade de com as crianças na casa e lá tampam todos os
medicina para os estudantes abrirem. Ele buraquinhos para ela não entrar. Quando
acha isso muito nojento: pensam que não tem mais perigo, saem da
casa, mas a pantera volta e pede a ele que lhe
— Imagina um médico abrindo a
perereca para operar uma mulher. dê tudo de valioso, senão ela iria comer todos.
É horrível ter que ver aquelas coisas, Ele pega umas coisinhas, brinquedos,
olhar lá dentro. dobraduras de papel dourado, salva os colares
Pensou também em ser advogado, da mãe e entrega tudo dizendo que era ouro.
como o pai, mas desistiu dessas duas A pantera lhe pergunta se ele estava querendo
profissões. Prefere mesmo é ser músico, enganá-la. Ele diz que vai procurar outra coisa
que todo mundo gosta e ainda pode e encontra uma varinha mágica com a qual
ganhar muito dinheiro, para comprar transforma a pantera cm um carneiro com
vários objetos para a mãe ou para o pai: dez filhotes, e, em seguida, em formigas, que
presentes, enfeites, um carro. ele mata com inseticida.
Lacan, que insistiu tanto em demarcar Nesse sonho, aparece de forma mais
o momento do desencadeamento na psicose, clara que esses objetos preciosos não são
mostrou-nos como ele é mais difícil de ser de grande valia para regular a boca
precisado em relação às crianças e que a devoradora do Outro. Mesmo assim, é essa
posição psicótica da criança deve ser buscada a sua estratégia, interpor entre ele e o
em sua relação com o fantasma materno. Se Outro objetos para que não seja preciso
não encontramos em Bernardo um desenca- oferecer o real de seu corpo. .
deamento, buscamos referências para Assim, se, para André, o querer ser
determinar sua estrutura. O que falta a esse uma menina se verificou ser uma forma de
sujeito não é o uso das riquezas da língua, se mascarar de falo da mãe, para Bernardo,
mas uma articulação regulada de seu ser de querer ser uma menina é uma resposta ao
gozo com o campo da linguagem. Assim, se gozo transexualista desregulado que o
ele não apresenta fenômenos de imposição, invade. O tratamento, tal como a posição
tais como alucinações, em algumas ocasiões, do analista, de forma diferente, buscaram
alguns fenômenos de borda, marginais em uma nova articulação com o gozo para cada
relação ao conjunto de questões que ele traz, um desses sujeitos.
podem ser observados. Por exemplo, ao
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
chegar à análise, ele disse à mãe que iria
■ í

a uma ginecanalista. Uma vez, ao LACAN, Jacques. "Nota sobre a criança". In: Outros escritos.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003
desenhar um capeta, o fez com uma capa
preta, perguntando-me se eu não sabia MILLER, J-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana,
São Paulo, n.26/27, abril 2000.
que ele chamava capeta porque usava
LAURENT, Éric. "Répondre à I' enfantde demain". In: Archivesde
uma capa preta. Psychana/yse - LesmiHè et une fíctions de /'enfant, aAgalma, Paris.
Cristiana Pittella de Mattos

COMÉNTOiBQUÊRO SER UMA MENINA

A mesma frase: o que ela nos ensina?


mesma frase, proferida por duas crianças distintas.
JrwbiDois meninos e uma mesma frase. A mesma frase,
mesmo que proferida por dois meninos distintos, dois
sujeitos, indica-nos, em uma primeira abordagem, um
mesmo sentido: que, para a psicanálise, o humano se
distancia do animal — não se nasce macho ou fêmea.
Essas duas crianças nos revelam que o sujeito não nasce
homem ou mulher, torna-se. Nesse sentido, “a anatomia não
é suficiente para que um menino se torne homem”.
Essa única frase, proferida por esses dois meninos,
em seu sentido universal, ensina-nos que há
fundamentalmente um desarranjo, algo de traumático,
para todos, na própria sexualidade,, e que se manifesta na
falta de instintos vitais na espécie humana.
Dizer que falta o instinto equivale a dizer que,
diferentemente do animal, em que há uma programação
inata das condutas que asseguram sua sobrevivência, o
humano está condenado a aprender, a inventar.
Essas crianças também nos ensinam que, por sermos
seres desamparados e não sabermos o que fazer,
necessitamos passar pela linguagem, mais precisamente
pela demanda articulada na linguagem e endereçada ao
Outro, para satisfazermos as necessidades vitais; e essas
necessidades são alteradas pelo próprio fato de sermos
seres falantes. Trata-se das vicissitudes do falasser, e a
castração é imposta no momento em que a linguagem cai
sobre o sujeito, não havehdo, portanto, objeto natural.
A demanda do Outro, sua oferta, impõe-se às
necessidades vitais, transformando-as em pulsões. Por
exemplo, as ofertas e imperativos de uma mãe que
alimenta fazem surgir, da necessidade de alimento, a
pulsão oral. Poderíamos tomar as pulsões parciais uma a
uma, não só no nível oral, mas anal, em relação à voz
(Freud falava do sadismo e masoquismo) e também ao
olhar (Freud falava de voyerismo e exibicionismo). No
entanto, o que queremos frisar é que essas pulsões
recortam sobre a superfície do corpo zonas erógenas e
fazem valer suas exigências libidinais bem
independentemente de toda necessidade vital.
Instituto oe Psicanálise e Saúoe Mental de Minas Gerais
38 Pápeis oe Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

É o que Frèud ensina em seus Aqui, não podemos mais nos referir
“Três Ensaios sobre a sexualidade” ao universal da frase — “quero ser uma
(1905), ao ampliar o conceito de menina” —A e B tentam solucionar, cada
sexualidade, partindo desse conceito- um a seu modo, cada um como pode, esse
chave: a pulsão. Tomando as análises dos problema real.
processos perversos e da evolução da Essas crianças demonstram, cada
sexualidade infantil, Freud vai destacar uma a seu turno, o que tentam
o extraordinário polimorfismo das solucionar: trata-se do problema da
manifestações da sexualidade no incidência do significante que produz e
homem. faz barra ao gozo.
Essas crianças ensinam que a
entrada do homem na linguagem — a A solução de A: “quero ser uma menina”
incidência do significante — produz gozo. Essa questão “do que se é” é
E o gozo fraciona o corpo da criança —
formulada, como dissemos, a partir do
são as marcas de gozo, a multiplicidade de
batimento do Outro materno, do lugar do
Sl, isso que Freud chamou do
Outro da linguagem. E, se o sujeito
polimorfismo pulsional.
encontra no Outro o significante do NP,
A criança está à mercê de toda
ele poderá dar um sentido, uma
presença e ausência do Outro iriaterno,
circunscrição ao gozo. Esse sentido é um
que propicia satisfação, insatisfação, frio,
sentido fálico, ou seja, o gozo é coordenado
calor, claro, escuro, canta, silencia, olha e
ao falo enquanto significante.
se vira... deixando, assim, marcas
A criança, portanto, vai identificar
psíquicas. A falha se apresenta, nessa
o desejo da mãe direcionado ao falo: o
presença e ausência, como primeira
desejo da mãe é o falo que se presta a
apreensão do simbólico — que Lacan
localizar e dar uma proporção ao gozo.
nomeou de “esse Outro caprichoso”.
Então, para responder à questão do
O simbólico se constitui a partir da
que ela é, para responder à questão do ser,
experiência dessa presença e ausência que
a linguagem propicia. E essa falta a criança se identifica ao falo, encontrando
assim um lugar no Outro.
fundamental, castração imposta pela
Podemos dizer que a criança diz:
linguagem, que permite ao humano
perguntar-se sobre o que é, perguntar-se “sou isso”, o que o Outro quer. Em um
primeiro momento, a criança se identifica
sobre o sentido de sua existência.
com a imagem, a partir dàs interpretações
E essas duas crianças mostram que
que ela dá ao desejo do Outro, o que já
a questão do sexual é uma questão de
existência. Essa questão, de saber o que lhe permite uma condensação do gozo.
Essa identificação, essa localização
se é, se encontra situada para o sujeito
do gozo pelo falo, só é possível porque,
anteriormente à questão do reconhe­
como tão bem demarcou Cristina a partir
cimento da diferença sexual. Ela é
anterior à simbolização de sua anatomia, da fala de A, o sujeito está articulado às
coordenadas que são próprias à
ao fato de se ter ou não o pênis.
E é porque estamos diante desse
estruturação edípica.
problema real, libidinal, que podemos Temos o pai,
perguntar o que somos. O que sou nessa
que estudou para ser adolescente,
história? Qual o sentido desse gozo? Somos para se casar, para ser pai e...
forçados a responder a essa questão, para continua estudando sobre as mamas,
fazer uma circunscrição e dar uma solução os “mamás”.
à experiência do gozo.
Cristina, enquanto analista, São significantes que orientam o
possibilita, - no tratamento dessas sujeito, e eles advêm do modo como esse
crianças, que esses dois sujeitos possam pai escolheu sua parceira: “a mãe tem o
encontrar uma solução para isso de que saber”. Esse pai ama uma mãe e é nela
elas falam, e que é a nossa questão: o real que ele supõe um saber: um saber sobre
do gozo. como o bebê sai. Temos a crianÇa que,
Como o sexo chega às crianças

diante da iminência de cair no buraco, à conclusão emocionalmente


identifica-se ao falo. significativa de que, afinal de
contas, o pênis pelo menos estivera
Podemos ver a qual problema real
lá, antes, e fora retirado depois.
essa solução de redução, de identificação
imaginária, vem responder. Lacan nos diz
A mostra estar sob a égide da
que esse momento de identificação ao falo,
primazia do falo, ele “... pinta um vestido
que é o primeiro tempo do Edipo, é muito
longo”, nos diz Cristina. Cai um pingo de
importante para o desenvolvimento, cheio
tinta fora do vestido e ele diz à analista que
de potencialidades e enriquecedor para
aquilo era um “buraquinho, mas que não
a criança, o que Cristina ressalta quanto
ia nem ligar para ele”. Cristina ressalta que
a A: “ele é muito criativo, tem habilidades
ele sabe que existe a falta, mas, mesmo
para desenhar, para pintar, para
assim... ele a encobre. Aqui parece-nos não
encenar...”
se tratar de um buraco real, pois ele o
E essa redução da tríade imaginária
encobre com o falo.
que aponta para a clínica dos traços de
perversão na criança, gerando uma A continua misturando as tintas
exuberância imaginária e pulsional. sobre o desenho e quando é perguntado
A identificação ao falo favorece, em sobre o que era aquilo, responde à analista
A, em seu comportamento, a forma que ele era “um homem que não queria
“bastante efeminada, muitas vezes contar nada para uma menina curiosa”.
rebolando, Mesmunhecando’ e falando de A demonstra bem sua posição
forma enfatuada”, levando à imputação à infantil: diante da demanda pulsional, ele
criança de “homossexualidade” por parte tem uma “necessidade urgente de
de seu Outro social. investigação”, testemunhando seu
A exuberância pulsional faz-se encontro com o real: é por não saber o que
marcante no “dar a ver-se”, presentes no é, que ele se coloca na posição de pesquisar,
exibicionismo e no voyerismo. teorizar para responder aos enigmas com
A evocação do discurso da perversão os quais se vê confrontado: de onde vêm
não é sem razão. os bebês? De onde vim? Isso ele nos diz:
Freud, em “A organização genital como o bebê sai, sua mãe é quem sabe. A
infantihuma interpolação na teoria da mãe aparece aqui como toda e A vai
sexualidade” (FREUD, 1976:179-184.), articular sua questão à castração materna,
utiliza, pela' primeira vez, o conceito como Cristina enfatizou.
Verleugnung — desmentido —, e, nessa O fato de a homossexualidade ter
ocasião, o conceito não é utilizado como sido evocada também nos parece poder ser
em suas formulações no “Fetichismo” aqui explicado, pois Lacan localizará a
(FREUD,1974:179-185.), para definir o problemática homossexual como
mecanismo da estrutura perversa, mas é relacionada a um disfuncionamento do
utilizado a propósito da organização sexual segundo tempo do Edipo, em que, pela
na criança. Ele diz: falta do pai, não se realiza a separação
entre a criança e o falo, não havendo a
Sabemos como as crianças reagem dissolução da captação imaginária do falo
às suas primeiras impressões da
ausência de um pênis. Desmentem
como objeto do desejo da mãe.
o fato e acreditam que elas Essa espécie de “homossexualidade”
realmente, ainda assim, vêem um aqui em A se apoia no fato de o sujeito estar
pênis. em uma relação de fechamento com a mãe.
A mãe encontraria no filho a realização
Freud continua: imaginária do falo.
Mesmo que seu pai lhe aponte os
Encobrem a contradição entre a modos de um homem, isso não tem efeitos
observação e a preconcepção
dizendo-se que o pênis ainda é
para fazer vacilar essa identificação ao falo,
pequeno e ficará maior dentro em da qual, segundo Lacan, um dia a criança
pouco, e depois lentamente chegam deverá desfazer-se. Sua dissolução é
Instituto de Psicanálise e Saúde M ental de M inas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

necessária para o advento da virilidade: — trata-se de uma virtualidade imaginária.


um menino só se torna homem pela E disso A parece bem saber e fazer bom
castração. uso; como ressalta Cristina, ele gosta de
E por haver um disfuncionamento fazer máscaras, óculos, com os quais vela
do segundo tempo do Edipo, em que o pai essa zona onde ele pode jogar, dizendó que
operaria como privador, dizendo não, que há um falo escondido aí. Fantasia-se para
essa solução não se desfaz. E quando a enganar a mãe, brincando de ser o falo.
criança é desalojada, para o seu bem, da E como podemos entender esse
posição de falo — na qual ela e sua mãe “quero ser uma menina” em A. Trata-se
poderiam satisfazer-se — que se pode de um voto, um anseio: “quero ser um
estabelecer o terceiro tempo, que é o mais cisne entre os patos...”
fecundo, pois lhe é permitido ter o falo,
diz Miller. (MILLER,1998:50.)
B e sua solução: “Quero ser uma menina”
E importante ressaltar como as
Podemos dizer que B não
intervenções da analista possibilitam a
encontra no Outro o significante do
queda dessa identificação. Se, em um
NP - (Po) que possibilitaria uma
primeiro momento, A fica transtornado
metaforização do DM; para B, o falo não
diante do corte da intervenção da analista
opera como condensador de gozo ((j)o).
(não o deixa dar o desenho para a mãe,
O que faz com que B seja sugado pelo
privando a mãe ao dizer que ela poderia
Outro materno. Ele vai dizer: “Imagina
ficar sem ele), em um segundo, ele se
um médico abrindo a perereca para
tranqüiliza (podia deixar a cola), para, em
operar uma mulher. E horrível ter que
um terceiro momento, o próprio
ver aquelas coisas”. O que faz também
inconsciente interpretá-lo (esquece os
com que esse Outro invada seu corpo:
desenhos, os óculos).
“Já pensou eles inventarem um remédio
A medida que se vai produzindo a
de enfiar no pinto?”
queda dessa identificação, Cristina
Parece-nos que esse é o problema
ressalta, no final do relato do caso, que se
real, para o qual B tenta encontrar uma
verifica, para o sujeito, a função do falo
solução.
enquanto simbólico, tal como uma
Vimos que o falo permite a
máscara, por onde ele pode olhar. Mesmo
simbolização do gozo e a ordenação do
que o falo não esgote a questão do ser —
campo pulsional. Há, portanto, a perda de
que aparece aqui reduzido ao objeto: o
um gozo do ser (castração) e um saldo: o
olhar — esse véu possibilita-lhe olhar a
gozo fálico. E o que permite ao. sujeito a
castração feminina e achar que vai
construção de um corpo libidinal.
encontrar o falo — podendo interrogar o
No entanto, B não tem à sua
corpo da mulher: onde está? Para poder
disposição o significante fálico para se
concluir: não está. E no homem? Também
contar no campo do Outro, o que lhe
não... é em relação à castração que se
desenvolve essa dialética do ser e ter o retiraria o peso do ser, esvaziando seu
corpo de gozo.
falo, lá onde o significante não pode vir
responder. E no vazio dessa falta (béance) Como solução para esse problema,
que a questão do Outro sexo pode surgir, B tenta construir um corpo que faça
para além do “que quer minha mãe”. continente à substância gozante. E ele tenta
Para concluir, A mostra como, ao construí-lo com as vestimentas e todo o
confrontar-se com a falta, com o desejo da universo feminino. Será, ao isolar um traço
mãe, é chamado a responder a essa questão diferencial, na imagem — “o casaco
de ser o falo para a mãe, tentando amarelo do avô, o vestido de padre”, como
preenchê-la, enganando-a. Posiciona-se, na destacou Cristina — ou seja, ao introduzir
realidade, para oferecer a ilusão do falo uma diferença mínima desse universo
materno. Ele se identifica com essa imagem feminino, que esse gozo pode estar
fálica, mas ele nunca é aquilo, é assintótico minimamente contido em um esboço de
Como o sexo chega às crianças

corpo. Vemos o quanto uma questão do Vemos que o empuxo-à-mulher é,


vestuário pode ser uma questão de como Cristina demarcou, um tratamento
existência. Há aquelas só para as mulheres, desse gozo. B tenta arrumar um lugar para
e há aquelas só para os homens: B tenta seu ser, situando o Outro como um espelho
ordenar seu mundo. Ele tenta construir femininb, tal como Cristina relata sobre seu
uma divisão, construir dois mundos: um ávido interesse pelos brincos, sapatos,
só para os homens, outro só para as roupas, a dança da Xuxa, todos esses
mulheres. Parece-nos que, justamente, ele acessórios e artifícios femininos.
tenta fazer existir a “relação sexual”, ajusta No entanto, B parece ser absorvido
proporção entre o homem e a mulher, pois por essa imagem especular, que não dá
B não tem à sua disposição a função fálica conta de regular seu ser, solicitando à mãe
para alojar no impossível da relação sexual. “uma operação para virar mulher”. Na
O falo, como um significante do gozo, impossibilidade de significantizar seu
único significante que representa a pênis, B denuncia não experimentar o
sexualidade no inconsciente. Somente gozo fálico e se fixa sobre um ponto do
quando consegue isolar um traço que seja, impossível, querendo forçar o real a partir
uma exceção, como sublinha Cristina, um da cirurgia. Há um retorno no real da
traço diferencial, único, é que essa questão sobre o sexo, questão impossível
classificação (será que poderíamos chamá- de ser formulada em seu inconsciente. A
la de delirante?) se interrompe. castração simbólica forcluída faz retorno
É por não se inscrever na função com a idéia de um sacrifício real da carne,
fálica que B é invadido pelo gozo do ser, ele, então, pede para modificar realmente
havendo uma experiência infinita de gozo sua anatomia; o que seria um outro erro,
que Lacan nomeará de gozo transexual. pois seu problema, está girando em torno
Esse gozo é semelhante à expressão do gozo e do significante.
empuxo-à-mulher (LACAN,2003:466.), Sua mãe lhe diz que Não, que isso
que significa que o sujeito é empurrado era uma bobagem. Interessa-me ressaltar
em direção à mulher, de uma maneira que esse Não. Ele acata esse Não e entende
não depende de sua vontade. como razoável, revelando o quanto esse
A lógica transexual é evocada, pois órgão (o pênis) não tem valor fálico para
o transexual é aquele que tem uma ele, ao rebaixá-lo ao nível da necessidade:
convicção íntima sobre seu sexo. Ele “servia para fazer xixi”.
afirma a existência de dois erros — o Cristina ressalta a importância de
primeiro, da natureza: o sexo anatômico que B venha a falar sobre isso, pois ele
não corresponde ao seu sexo (que ele poderia dar mais razões — em significantes
precisa consertar), e o segundo, o erro — para o que ele quer solucionar. Por
normal, da norma fálica, ou seja, aquela exemplo, poderíamos evocar, agora, o
que significa a diferença anatômica como “Como seria belo ser a mulher de Deus...”,
tendo um valor fálico: “ele tem um pênis, em Schreber. Poderíamos supor que, ao
mas ele não tem o instrumento fálico”. colocá-lo para falar, ele poderia dar as
Embora haja ausência de delírios nesses razões, delirantes, para o seu “quero ser
casos, essa convicção sobre o sexo está uma menina”, construindo uma certa
calcada em uma certeza delirante, que realidade. “Quero ser uma menina
Lacan considerará como um fenômeno para...”, localizando então um Outro. Essa
elementar na psicose. seria a solução delirante, encontrando um
Em B, não encontramos, explicita­ lugar para seu ser no Outro do significante.
mente, essa certeza que dissemos acima “de “Quero ser uma menina” poderia ter um
ser uma menina”, mas também não estatuto assintótico. — esse mundo
podemos dizer que seja um anseio “de ser feminino lhe dá uma variante narcísica —
o falo”, tal como em A, já que, para B, foi- isso evitaria que B entregasse seu corpo.
lhe impossível aceder a essa posição para Mas não é essa a saída que B escolhe para
seu Outro. tratar seu Outro.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004-

Poderíamos não ter uma produção


delirante — maior sistematização — , mas
o aparecimento de uma certeza (delirante)
sobre seu sexo. Não é o que aparece... não
sendo também essa a via...
No entanto, esse Não o faz calar
sobre seu “quero ser uma menina” — como
uma solução no real do corpo, e parece
ter promovido a continuidade da solução
de dar objetos ao Outro, mesmo que não
seja de “grande valia para regular a boca
devoradora do Outro”, como diz Cristina.
Seu Outro vai ganhando uma certa
consistência, B pode ir-se afastando,
localizando algo da falta. Esses objetos
tentam localizar algo do gozo, esvaziando
algo do gozo do ser; isso impede que B
entregue o real de seu corpo.
Alertada que está pelo desejo do
analista, Cristina conduz o tratamento a
partir da lógica da cura, ela acompanha o
sujeito em suas construções, possibilitando
que B possa inventar uma solução para
esse problema real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. "A organização genital infantil: ma interpolação


na teoria da sexualidade (1923)", E.S.B., Vol. XIX, Imago,
Rio de Janeiro, 1976.
FREUD, S. "0 Fetichismo (1927)", E.S.B., Vol. XXI, Imago,
Rio de Janeiro, 1974.
LACAN, J. "0 Aturdito". In: Outros escritos. Jorge Zahar Editor,
Rio de Janeiro, 2003.
MILLER, J-A. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Jorge
Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.
Suzana Faleiro Barroso

PRIMEIRA CONTRIBUIÇÃO: 0 FALO E A


DIFERENÇA DOS SEXOS

esde que Freud identificou a causa das neuroses


D como de origem sexual, a psicanálise se fez
reconhecer como um método de tratamento que implica
falar de sexo. Mas, ao contrário do que se pode pensar, o
enigma do sexo não se reduziu com a psicanálise. Os
“Três Ensaios sobre a teoria dá sexualidade”,
(FREUD,1976:135-253.), trazem a marca de uma teoria
inacabada, cujo texto, repleto de acréscimos^ enxertos,
notas de rodapé e uma interpolação, deixou aberto o
campo do saber sobre o sexo, desde que interrogou a
inocência sexual da infância, até as questões da
sexualidade feminina. Desde então, a psicanálise é
sempre chamada a pronunciar-se sobre a infância e sua
relação com o sexo.
Sabemos que o encontro com o sexual concerne
diretamente à articulação entre a pulsão e a civilização,
isto é, aos modos de gozo da pulsão inscritos na
civilização. Essa articulação não se dá sem o falo, pois é
através da função fálica que o sexo se inscreve na
civilização. Isso abre um campo de questões, envolvendo a
lei, o desejo e o gozo, que concernem à criança e aos que
dela se encarregam. Hoje assistimos ao endereçamento
dessas questões a outros discursos, como, por exemplo, o
discurso jurídico e o científico, quando os ideais
civilizatórios, aqueles coordenados pela lei do pai, se
revelam ineficazes para ordenar o gozo pulsional. A
responsabilidade do analista para com esse tema
implica, portanto, o tratamento analítico do sintoma da
criança e a resposta particular da psicanálise às
demandas da sociedade.

O que foi feito dos “Três ensaios” depois de Freud?


A questão de como o sexo chega às crianças evoca, de
início, os “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”
freudianos. Pretendemos demonstrar como a teoria da
sexualidade acabou sendo desviada pela leitura pós-
freudiana, precisamente a partir da psicanálise com crianças.
De tal maneira que, se perguntássemos aos analistas de
crianças, tais como Melanie Klein e Anna Freud, como o sexo
chega às crianças, provavelmente, obteríamos respostas
bem distintas. ,
Instituto of Psicanálise E Saúde Mental de Minas Gerais
Papeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Para verificarmos essa hipótese, é e os processos biológicos. A questão do falo,


preciso considerar que a teoria freudiana devido às suas implicações com o corpo e
da sexualidade não se encontra toda nos a linguagem, com as leis da natureza e as
“Três Ensaios”. Um importante artigo de leis cia cultura, enfim, com o gozo e o
1923, “A organização genital infantil: uma desejo, constituiu um conceito decisivo na
interpolação na teoria da sexualidade” veio demarcação das fronteiras entre os dois
reparar, segundo o que disse o próprio campos de saber.
Freud, um tipo de negligência particular A noção de primazia do falo,
cometida no campo do desenvolvimento totalmente anti-evolutiva, libertou a
sexual infantil. De acordo com a primeira sexualidade de uma visão psicogenética da
formulação, não se levavam em conta a fase pulsão, prisioneira dos fatores ideais
fálica e seu papel na vida sexual de ambos maturacionais, segundo os quais" o sexo
os sexos, masculino e feminino. chega às crianças com a maturidade
neurológica, hormonal etc. Também a
Essa fase, que já merece ser descrita libertou dos fatores cronológicos,
como genital, apresenta um objeto
sexual e certo grau de convergência determinantes de um desenvolvimento
dos impulsos sexuais sobre esse linear, portanto, situado fora da lógica do
objeto, mas se diferencia da inconsciente, a lógica do a posteriori. E, por
organização final da maturidade fim, a liberou da referência anatômica,
sexual num sentido especial, pois ela
conhece apenas uma espécie de considerada até então como critério de
genital: o masculino. Por esse motivo, diferenciação entre os sexos. A primazia
chamei-a de fase “fálica” da do falo significa a prevalência de uma
organização. Segundo Abraham
(1924), ela tem um protótipo ordem simbólica, que inscreve o gozo
biológico na disposição diferenciada pulsional de um sexo e outro a partir de
do embrião, que é a mesma para uma única instância, a instância fálica, que
ambos os sexos. (FREUD, 1905/: organiza o sexual a partir de dois
1976:205.).
complexos: o de Édipo e o de castração.
Fundamentalmente, o problema da
A noção de fase fálica inserida nos
“Três Ensaios” sob a forma dessa nota de evolução pulsional, abordado na retificação
rodapé permaneceu ali como um ponto
feita na teoria da sexualidade, servia a
teórico de exterioridade ao corpo teórico Freud de horizonte para a inserção
dos ensaios sobre a sexualidade, em uma definitiva do sexual em um campo
posição de exclusão interna ao texto de delimitado por um conflito de dimensão
1905. Verificamos também que, para além simbólica, isto é, o complexo de Édipo.
de uma retificação conceituai, estava em Se lermos “A organização genital
jogo uma consolidação das hipóteses infantil: uma interpolação na teoria da
freudianas sobre a sexualidade, visto que sexualidade” paralelamente a outro texto a
o conceito de falo reafirmava o corte ele correlacionado, “A dissolução do
epistemológico promovido pela descoberta complexo de Édipo”, escrito um ano depois,
freudiana no universo científico no qual vemos o estabelecimento de uma correlação
nasceu a psicanálise, ao articular o sexual entre a fase fálica e o complexo de Édipo e o
ao inconsciente. de castração. O caráter de tipicidade do
Contudo, localizamos nos “Três complexo de Édipo e da fase fálica, caráter
Ensaios” a presença de referências de dois que transcende as contingências históricas
campos epistemológicos distintos, de cada um, foi ressaltado por Freud quando
permeando a elaboração de toda a teoria definiu sua função de transmissão. Trata-se
da sexualidade, a saber, o da psicanálise e o de um fenômeno que implica uma herança
da biologia. Abraham, tanto quanto Freud, e um programa, isto é, o programa regido
buscava formalizar “uma lei concernente ao pela lei do pai, ao qual a criança deverá
desenvolvimento psicossexual do homem” submeter a satisfação de suas pulsões.
(ABRAHAM, 1924:57.), ainda que, para A definição do falo como um símbolo
isso, tenha levado às últimas conseqüências implica o Édipo como a organização
o paralelo entre o desenvolvimento sexual encarregada de transmiti-lo, ao inserir a
Como o sexo cnega às crianças

criança na ordem simbólica. O estatuto determinações biologizantes da


simbólico do falo na realidade do sexualidade, ora sobrepunha a isso o papel
inconsciente foi proposto por Freud, ao decisivo do ambiente, isto é, o papel da
afirmar que: realidade na constituição do circuito da
pulsão sexual.
Fezes, “bebê”, e “pênis” formam,
A teoria das relações de objeto de
assim, uma unidade, um conceito
inconsciente (sit venia verbo1) - a Melanie Klein, inspirada na teoria da libido
saber, o conceito de um “pequeno” de Karl Abraham, trouxe à psicanálise com
que se separa do corpo de alguém. crianças as evidências de um raciocínio
(FREUD, 1918/1976:107.)
psicogenético, que prevaleceu ancorado
em uma concepção naturalista da vida
Além dessa afirmação, localizamos,
sexual. Aí localizamos os maiores impasses
no artigo de 1917, o seguinte parágrafo,
em relação ao conceito de falo. Essa
que nos surpreende, devido à articulação
corrente teórica assumiu declaradamente
nele presente entre o falo e a linguagem:
uma oposição à tese freudiana da primazia
Não pode deixar de ter significado
do falo, substituindo-a pelo “primado da
o fato de que na linguagem simbólica relação de objeto” (LACAN, 31/05/1956/
dos sonhos, bem como na da vida 1988:287). A questão do objeto sexual é
cotidiana, ambos podem ser precisamente a que se colocou como
representados pelo mesmo símbolo;
tanto bebê como pênis são chamados decisiva e como elemento diferencial das
“o pequeno”, [“das kleine”]. É fato duas orientações. No primeiro caso, o falo
sabido que o discurso simbólico está no centro da organização libidinal, o
ignora com freqüência a diferença que significa que há aí uma falta de objeto
de sexo. O “pequeno”, que
originalmente significava o órgão central, em torno da qual se localizam os
sexual masculino, pode, assim, ter objetos pulsionais, sempre parciais. No
adquirido uma aplicação secundária segundo caso, o que está no centro é a
aos genitais femininos. (FREUD,
1917/1976:161.) relação do sujeito com o objeto, além da
perspectiva do encontro do objeto genital
Esse parágrafo permite algumas coroando o desenvolvimento. Trata-se do
conclusões: primeiro, o falo não é o órgão; acesso à genitalidade, isto é, de superar a
depois, o falo é o único símbolo para relação com o objeto parcial, através da
inscrever no inconsciente o que compete relação com o objeto total, que condensa
ao sexual; e, por fim, o fato de que algo os impulsos da pulsão e do amor.
relativo à diferença de sexos permanece Dessa maneira, o movimento
ignorado na dimensão simbólica. Dessa analítico da década de 50, sob a égide da
maneira, temos que, se o órgão fálico conta teoria das relações objetais, levava a crer
na diferenciação dos sexos, é na condição que uma análise teria exatamente a função
de perder sua naturalidade enquanto de assegurar o cumprimento das etapas do
órgão: desenvolvimento, que, porventura, foram
comprometidas pela neurose. Tal
O órgão natural, tornando-se um concepção requer a idéia de que há uma
instrumento, decide a categorização disposição natural da pulsão ao
sexual do sujeito, em termos de falo
e de castração. (MORELJ 996:44.) desenvolvimento, através de uma migração
natural pelas zonas erógenas, salvo
Se perguntássemos então a Freud acidentes patológicos ou desvios
como o sexo chega às crianças, a resposta sintomáticos e defensivos, esses atribuídos
seria que o sexo chega através do Édipo. à interferência de fatores pulsionais de
Contudo, a leitura do sexual junto aos ordem constitucional. Como conseqüência
discípulos e seguidores de Freud nem da evolução, a vitória da genitalidade seria
sempre considerou esses complexos como o fiador maior da relação harmônica entre
estruturantes da vida sexual do sujeito. os sexos, na qual homem e mulher são
Identificamos uma abordagem do sexual naturalmente reconhecidos como tais, pela
que ora valorizava sobremaneira as via do ato sexual. Essa leitura desconhece
Instituto de Psicawáiisf f Saúde Mfntal de Minas Gerais
Pápeís de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

que a pulsão implica, portanto, o lugar do como resposta que é na interação dos
Outro, reduzindo assim a psicanálise a instintos com o meio ambiente, e que cabe
uma psicologia do desenvolvimento, sendo ao ambiente, aos pais, aos educadores,
esse mobilizado pelo jogo de frustrações promover o governo da pulsão.
ou gratificações maternas, que constitui Nem naturalista, nem tampouco
uma espécie de gatilho dos fatores ambientalista, Lacan foi buscar uma
pulsionais constitucionais. Os analistas de concepção estrutural da sexualidade, o qué
crianças acreditaram na chance de permite uma outra leitura dos “Três
verificarem as hipóteses sobre a pretendida Ensaios”.
evolução pulsional na análise de crianças.
Por exemplo, essa prática poderia se O falocentrismo segundo Lacan
prestar a evidenciar muito bem os Para Lacan, o desenvolvimento
progressos da etapa pré-genital à genital, pulsional se ordena na dialética da
a passagem das relações de objeto parcial demanda de amor e da experiência do
às relações com o objeto total, ou quaisquer desejo, nascida na relação da criança com
outros índices da maturação do sujeito, a mãe. Essa dialética se encontra na base
segundo uma perspectiva geneticista do falocentrismo da vida sexual. O
Além da vertente naturalista, outra desenvolvimento pulsional, que está
vertente de leitura dos “Três Ensaios” submetido à dialética da demanda e do
remete aos defensores do papel do desejo no seu âmago, coloca em jogo o
ambiente na vida sexual, os ambientalistas, encontro com o falo. O encontro do desejo
que, tanto quanto os naturalistas, do Outro faz surgir o objeto que falta,
incorreram no mesmo desconhecimento aquele que, em última instância, a criança
da especificidade do fenômeno analítico, demanda à mãe e que, justamente, é o que
embora se tivessem enveredado por outro ela não tem. Podemos ler, com Lacan, a
descaminho. Podemos identificá-los com a primazia do falo no desenvolvimento
posição culturalista, que, apesar de pulsional, isto é, sua interpretação do
reconhecer a importância da relação do falocentrismo freudiano:
homem com a. linguagem, trataram-na
como fenômeno de comunicação social e O falocentrismo produzido por essa
de efeito apenas utilitário. Foram dialética é tudo o que ternos a reter
aqui. Ele é, bem entendido,
incapazes, portanto, de articular o social
inteiramente condicionado pela
ou o cultural com o estrutural, o que intrusão do significante no psiquismo
certamente os teria situado menos do homem e estritamente impossível
distantes de Freud na leitura da questão de deduzir de qualquer harmonia
preestabelecida do dito psiquismo
do sexual. Sob a égide da influência do com a natureza que ele exprime.
papel do ambiente na determinação do (LACAN,1958/1998:561.)
desenvolvimento da sexualidade,
preconizaram a conjunção da psicanálise Destaco, nesse parágrafo citado,
com a educação sexual, ou seja, uma duas passagens: “a intrusão do significante
educação que viesse a atenuar, até mesmo no psiquismo” e a suposta “harmonia
a anular, a dimensão traumática do preestabelecida do psiquismo”. A intrusão
encontro com o sexual.. Trata-se de do significante no psiquismo, com suas leis
privilegiar o Outro enquanto realidade e próprias, submete todo sujeito ao jogo dõ
não como lugar evocado pelo recurso à significante, cujo fundamento é o perpétuo
palavra. A psicanálise com crianças, dessa deslizamento do significado sob o
maneira, se reduziu a uma pedagogia da significante e do significante sobre o
vida sexual, mais do que a uma psicologia significado. O significante é introduzido
do desenvolvimento. Podemos citar Anna pela demanda. O desejo é a
Freud como representante dessa vertente impossibilidade de uma palavra que
de leitura do sexual. Se perguntássemos a estabeleça um acordo, uma adequação
um seguidor de Anna Freud como o sexo entre significante e significado. Então,
chega às crianças, certamente teríamos temos que
a incidência concreta do significante Quando anulamos qualquer outra
na submissão da necessidade à coisa, seja ela imaginária ou real, por
demanda que, recalcando o desejo isso mesmo a elevamos ao grau, à
na posição de desconhecido, dá qualificação de significante. (LACAN,
ao inconsciente sua ordem. 23/04/1958/1999:356.)
(LACAN,1959/1998:717.)
O privilégio do significante falo requer
O caráter intrusivo do significante no que o apreendamos na sua afinidade com o
psiquismo significa, primeiramente, que o significante e com a barra existente entre
que é da ordem do sexual, aprendido significante e significado, o que justifica que
segundo a lógica do significante, vem do Lacan o tenha empregado como um
Outro, e sempre arbitrariamente. algoritmo. Como algoritmo, quer-se dizer
Diferentemente do que pensaram os pós- que o falo é o significante da operação de
freudianos, a castração não pode ser significantização, isto é, ele corre no fundo
deduzida simplesmente do desenvolvimento de qualquer assunção significante, de onde
das fases da libido. Ela implica radicalmente decorre sua afinidade com a barra. A barra
a ação da linguagem sobre a vida. é um dos modos de elevar à dignidade de
Ao contrário dos ideais da significante tudo o que não é significante, o
genitalidade, Freud constatou um paradoxo real. A elevação de um objeto ou de uma
intrínseco à assunção de seu sexo pelo imagem à condição de significante implica
homem, uma vez que a assunção do sujeito que esse objeto ou imagem sejam
a uma posição sexual supõe uma condição dessubstantivados, desimaginarizados, ou
de ameaça e até de privação. Em “O mal- negativizados, na operação metafórica, quer
estar na civilização” (FREUD, 1930.), dizer, implica que o gozo seja castrado. O
encontramos indicações do problema de falo tem, para Lacan, o privilégio de ser o
uma desarmonia essencial e não contingente próprio significante da barra, que só pode
na sexualidade humana. Assim sendo, sem desempenhar seu papel enquanto velado,
eliminar o problema do desenvolvimento da isto é, não disponível no Outro.
sexualidade, ao contrário, reconhecendo-o, Como exemplo do emprego do falo
mas articulando-o com a estrutura de como algoritmo, temos que a geração, a
linguagem do inconsciente, podemos dizer, reprodução, o ser vivente do sujeito, o gozo
com Lacan, que a sexualidade sofre a sexual estão para serem significantizados
incidência sincrônica do falo sobre a e que todas essas coisas reais são elevadas
diacronia do desenvolvimento. Há, por um à função de significante graças ao falo.
lado, no que diz respeito à genitalidade, em Porém, resta algo do real que não se reduz
um dado momento do desenvolvimento ao simbólico com o significante falo.
infantil, um salto que comporta uma No que diz respeito ao nosso tema,
evolução, uma maturação; por outro lado, o falo e a diferença de sexos, interessa-nos
há o Édipo, complexo que promove a pensar a função do falo na significantização
assunção do próprio sexo. Para escrever o do gozo sexual para ambos os sexos, o que
desenvolvimento nessa perspectiva lacaniana viabiliza a subjetivação da posição sexual
da estrutura, encontramos uma fórmula do sujeito. Como conseqüência da intrusão
proposta por Geneviève Morei, em El goce do significante, o gozo deixa de ser aquele
sexual (MOREL,1992-93:18.), que articula o do ser vivente, isto é, aquele que Lacan
desenvolvimento à castração: chamou de gozo puro, prévio, e que se
deixa reduzir ao significante, o que o
desenvovimento transforma em gozo fálico, sexual. Temos,
~(p portanto, uma operação que transforma a
“coisa sexual”, isto é, a falicização do gozo.
Sc as coisas, inclusive as coisas do De uma parte, o falo é um significante que
sexo, se relacionam com a ordem do logos, ordena, no inconsciente, o que é desejável
visto que a linguagem as penetra e as para o sujeito, isto é, o que é possível ser
subverte, o falo é o significante da anulação ordenado segundo as leis da Outra cena;
da coisa: de outra parte, Lacan o contrasta com o
EH Instituto de Psicanálise e
Pápeis de Psicanálise v.l n.1
Saúde Mental
abr. 2004
de Minas Gerais

significante, já que nem tudo da libido é sexual é incompatível com uma estrutura
capturado pelo significante. Nem toda sem fenda, sem falta, sem divisão. Essa é
libido é mortificada pelo significante, o que uma das conseqüências da correlação falo-
está na base da articulação do falo ao gozo, castração, na qual podemos fundamentar,
questão que se apresenta de modo mais com Freud, a tese da divisão entre a
contundente na teoria lacaniana do falo, no realidade sexual dó inconsciente e a pulsão,
início dos anos 60. Nesse momento, podemos que aí só se inscreve parcialmente.
identificar o paradoxo do significante falo, isto
é, sua interface entre significante e gozo. De
uma parte, enquanto -cp, ele negativiza o gozo, NOTA

mortificando-o, isto é, desnaturalizando-o; de 1A tradução dessa expressão é — "com o perdão da palavra".


Entendemos que Freud a empregou para modular sua afirmação
outra parte, enquanto (|), ele o positiva, isto é, de que o falo é um conceito inconsciente, certamente porque
indica o vigor da natureza, isto é, a parte viva não dispunha de uma teoria do significante com a qual pudesse
reconhecer o estatuto do falo.
da libido.

Assim é que o órgão ereto vem a REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


simbolizar o lugar do gozo, não como
ele mesmo, nem tampouco como ABRAHAM, K. Teoria Psicanaiítica da Libido. Rio de Janeiro:
imagem, mas como parte faltante na Imago Ed., 1976.

imagem desejada; por isso é que ele é FREUD, S. "Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905).
igualável ao -1 da significação, In: Strachey Ed. ESB. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976 (Edição
produzida acima, do gozo que. ele standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, V.7).
restitui, pelo coeficiente de seu
enunciado, à função de falta de . História de uma neurose ihfantii.Àvw Strachey Ed.
significante (-1). (LACAN,1960/1998:837.) Rio de Janeiro: Imago, 1976 (Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, V.17).

Com a afirmação dessa especificidade . "As transformações do instinto exemplificadas no


erotismo anal". In: Strachey Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976
dó falo, a de ser um significante excluído do (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas dé
Sigmund Freud, V.17).
significante, Lacan o contrasta com o
significante, articulando-o com a presença real . "A organização genital infantil: uma interpolação
na teoria da sexualidade". In: Strachey Ed. Rio de Janeiro:
do desejo, isto é, o encontro da presença real Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
do desejo nos intervalos do que é encoberto completas de Sigmund Freud, V.19).

pelo significante, no intervalo da cadeia . Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In:
Strachey Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard
significante. A fantasia é a estrutura com a brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, V.10).
qual o sujeito pode manejar a presença real . "Algumas consequências psíquicas da distinção
do desejo, que remete a certa positividade do anatômica". In: Strachey Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
gozo, e que fantasmaticamente o neurótico Sigmund Freud, V.19).
tenta ordenar. . "Sexualidade Feminina". In: Strachey Ed. Rio
Se, então, perguntássemos a Lacan, de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, V.21).
como o sexo chega às crianças, certamente,
. Conferência XXXIII, "Feminilidade". In: Strachey
teríamos como resposta que o sexo chega
Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira
às crianças no encontro com o falo. Isso quer das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, V.22).

dizer que a incidência da função sexual no LACAN, J. As psicoses, O Seminário, livro 3. Rio de Janeiro:
desenvolvimento infantil é essencialmente Jorge Zahar Editor, 1985.

discordante, disruptiva e jamais . "De uma questão preliminar a todo tratamento


possível da psicose". In: Escritos. Rio de Jançiro: Jorge Zahar
harmoniosa, como certamente quereria o Editor, 1998.
narcisismo humano. Tal discordância se . "À memória de Ernest Jones: Sobre sua Teoria do
deve ao fato de que a articulação entre a Simbolismo". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

pulsão genital e o Edipo, articulação que a . As formações do inconsciente, 0 Seminário, livro


5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999/a.
submete à circulação do complexo de
Edipo, isto é, ao que se designa como campo . "Subversão do Sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano". In: Escritos . Rio de Janeiro: Jorge
da cultura, se dá parcialmente. Na verdade, Zahar Editor, 1998.
o primado do falo no desenvolvimento MOREL, Geneviève. "Anatomia Analítica". Opção Lacaniana-
sexual vem mostrar que a genitalidade é Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n.15.

dissoluta, não ajuntada, ou seja, que o _. Ei goce sexuai. Literal, 1992-1993.


Suzana Faleiro Barroso
S EG UM DA CONTRIBUIÇÃO: ELEMENTOS PARA
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A FUNÇÃO DAS
FOBIAS EM CRIANÇAS

interesse da psicanálise pelas fobias surgiu através de


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dois casos clássicos, o do pequeno Hans e o do
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Homem dos Lobos. Entretanto, uma série de outros casos
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de fobia infantil recebeu o comentário de Freud,
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especialmente em Totem e Tabu. Encontramos, nesse artigo,
A' ® t AS . primeiramente, uma história clínica relatada por Karl
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O caso de uma outra criança, um menino de nove anos
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que sofria de uma cinofobia, atendido pelo Dr. M. Wulff,
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infância. E, por fim, o caso do pequeno Arpád, cujo relato
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se deve a Ferenczi. Vamos retornar o caso Arpád, de
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pelo caso atendido por Helene Deutsch. São crianças que
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revelam, cada uma a seu modo, um interesse inusitado
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■■ por galinhas. O estudo comparado desses dois casos indica
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diferentes respostas da criança ao encontro com a
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experiência infantil de gozo, a saber, a resposta fóbica e a
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z ® -is ® si si A-®. SSS s|,s
resposta perversa.
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A A..A-® A®®®S®,A® Para além da clínica, é patente o interesse teórico de
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Freud pelas fobias em diversos momentos de sua obra.
♦--* ■# As®..A ...... .. «8
^-®-®^®z» *A A"® A <
Seu estudo sobre o assunto se desenvolveu, produzindo as
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XA®®a®®< ®®®®A- seguintes articulações: 1) fobia e a sexualidade infantil em
1909; 2) fobia e o pai em 1913; 3) fobia e o binômio falo-
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castração em 1923; 4) fobia e angústia em 1926. Mas foi .
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■ A Á ® AáahAA® s em 1913 que Freud justificou a idéia de tomar as
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embora esse estudo fosse grandemente compensador.
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Essa negligência deve-se, sem dúvida, à dificuldade
A A A A- is A A s|s A s
-T <® • de analisar crianças de tão tenra idade. Assim, não sc
i st . - Ai® A si-si pode dizer que conhecemos o significado geral dessas
s»®»®S A si-A AA® A si

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perturbações, e eu mesmo sou de opinião que estas
A-AA ®sz|zsa-A. A A i
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podem mostrar não ser de natureza uniforme.
. - ■' - ,i si; - Si
A A A A As®-®-s». .. (FREUD,1913/1976:155.).
EH ItJSiiiuTG de Psicanálise e Saúde Mental oe Minas Gerai;
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Destacarei algumas contribuições de profundamente o modo de relações com o


Freud e Lacan, nas quais me vou deter mundo, a fim de admitir o que alguns levam
brevemente, e que considero importantes a vida toda para assumir, isto é, que no campo
para balizar a nossa pesquisa: a fobia como a dos semelhantes, existem os que são privados
neurose da infância por excelência; a fobia e do falo imaginário.
o pai; o elemento fóbico nas suas duas faces,
isto é, a face de significante e a face de objeto. A fobia e o pai
O apelo feito por Freud quanto à
As fobias são as neuroses da infância por investigação das fobias em crianças,
excelência precisamente no momento em que
Essa é uma afirmação extraída do teorizava a questão do pai em Totem e Tabu,
estudo do caso Hans. Freud a formulou logo conhecido como o mito freudiano do pai,
após discutir a localização das fobias na constitui já um índice do envolvimento da
classificação das neuroses, considerando-as, problemática paterna nas fobias. Trata-se
ao que parece, como um sintoma articulado do problema da integração da experiência
em uma estrutura. Ele nos lembrou de que infantil de um gozo desconhecido através
não havia sido atribuída às fobias uma da operação de coordenação do gozo
posição definida. Portanto, elas podiam ser ao semblante fálico. A riqueza dos
encaradas como síndromes, que podem comentários clínicos dos casos aí discutidos
formar parte de várias neuroses e que não nos leva a pensar nos recursos promovidos
precisamos classificá-las como um processo pela lei do pai e seus impasses, diante da
patológico independente. Considerou a experiência infantil da pulsão.
fobia de Hans como uma histeria de No artigo “Os Complexos Familiares”,
angústia e acrescentou: no qual Lacan já nos advertia quanto ao
“declínio social da imago do pai” e suas
As histerias de angústia são os conseqüências no mal-estar da civilização,
distúrbios mais comuns. Mas, antes
encontramos também uma correlação entre
de tudo, são as que aparecem mais
cedo na vida: são as neuroses da a fobia e o pai. Segundo Lacan, a fobia de
infânciajbar excellence. (FREUD, 1909/ animais, observada mais ffeqüentemente na
197(5:123.) criança, constitui a mais simples das
neuroses. E uma forma substitutiva da
Embora, nesse momento, Freud degradação do Edipo, na medida em que o
ainda estivesse bem distante do animal eleito como objeto fóbico sugere,
estabelecimento de sua teoria da angústia, imaginariamente, as representações da mãe
concluiu sua elaboração, definindo a como gestante, do pai como ameaçador e
angústia em relação à castração. do irmão mais novo como intruso. Na fobia,
Encontramos, nos Escritos, a o sujeito reencontra, para sua defesa contra
seguinte definição lacaniana da fobia, que a angústia, a própria forma do ideal do eu
é solidária da teoria de Freud: que reconhecemos no totem e através da qual
as sociedades primitivas asseguraram à
Essa experiência do desejo do Outro, formação sexual do sujeito um conforto
a clínica nos mostra que ela não é
menos frágil. As considerações sobre a
decisiva pelo fato de o sujeito nela
aprender se ele mesmo têm ou não degradação do Edipo na fobia convidam-nos,
um falo real, mas por aprender que portanto, à pesquisa da incidência
a mãe não o tem. E esse o momento do sintoma fóbico em crianças na
da experiência sem o qual nenhuma contemporaneidade, uma vez que uma das
conseqüência sintomática (fobia) ou
estrutural (penisneid) que se refira ao características marcantes de nossa civilização
complexo de castração tem efeito. atual é o declínio social da imago do pai.
(LACAN,1958/1998:701.) Verificamos que tanto em Freud
como em Lacan, a fobia está sempre
Lacan também correlacionou a fobia correlacionada à carência do pai. O fóbieo
aos impasses da neurose infantil, ao afirmar, constrói um pai simbólico temível, já que seu
por ocasião de As relações de objeto, O próprio pai lhe parece não merecer o
Seminário, Livro 4, que a fobia localiza-se respeito. Dessa forma, a fobia exagera a
num processo em que se trata de alterar função simbólica do pai para compensar a
____________________ Dossier
Como o sexo chega ás crianças

carência do pai real. O que especifica o Àrpád parece ter construído sua escolha de
recurso fóbico é que com ele supre-se a objetos, que foi expressa no seguinte
carência do pai com o significante, como, por enunciado endereçado à esposa do vizinho:
exemplo, o significante cavalo e sua função
para o pequeno Hans. A maneira de um vou me casar com você, com sua
totem, o cavalo de Hans e toda a análise do irmã, minhas três primas e com a
seu medo revelaram uma atitude típica do cozinheira; não, com a cozinheira,
não; em vez dela, casarei com minha
complexo de Edipo. Sintomaticamente, ele mãe. (FREUD,1913/1976:158).
deslocou os sentimentos ambivalentes
endereçados ao pai para o animal. Freud Ao contrário do que se passou com
comenta a operação de deslocamento que Hans, o interesse desse garoto pelas galinhas
sustentou o sintoma: não se baseou diretamente no conflito
edípico, não se sustentou através do mesmo
... alguns casos de fobias desse tipo tipo de deslocamento descrito anterior­
dirigidas no sentido de animais
maiores mostraram-se acessíveis à mente, e nem tampouco se valeu do registro
análise e revelaram assim seu do simbólico como resposta à questão do
segredo ao investigador. Era a gozo. Enquanto que o interesse de Hans por
mesma coisa em todos os casos: cavalos se inscreveu em uma formação do
quando as crianças em causa eram
inconsciente, isto é, em um sintoma, para
meninos, o medo, no fundo, estava
relacionado com o pai e havia Àrpád, ali onde deveria estar o sintoma
simplesmente sido deslocado para o fóbico, encontramos uma identificação.
animal. (FREUD,1913/1976:155.) Segundo Freud, o interesse pelo animal
totêmico, nesse caso, ancorou-se nos
Porém, a carência paterna poderá impasses do narcisismo do sujeito, isto é, na
ser suprida com outros recursos, precondição narcisista do complexo de
precisamente com o recurso da imagem, e Edipo. Com Lacan, diríamos, portanto, que
não do significante. Isso vai fazer o que está em jogo é a prevalência do registro
fundamentalmente a diferença entre fobia do imaginário como resposta à questão do
e perversão, como poderemos ver, gozo, o que é característico da perversão. O
comparando os dois casos, o do peqúeno que vemos é a total identificação do menino
Hans e o do pequeno Àrpád. com o animal totêmico.
O pequeno Àrpád, aos dois anos e A cena vivida no galinheiro não teve
meio de idade, tentara, certa vez, urinar no para Àrpád o valor de castração imaginária.
galinheiro, e uma galinha dera uma bicada Conforme afirma Bernard Nominé,
na direção do seu pênis. Quando voltou ao
mesmo lugar, um ano depois, ele préprio o significante fóbico e o fetiche
transformou-se em uma galinha. Seu único designam duas posições distintas do
interesse era o galinheiro e o que lá se sujeito frente à castração: causa de
horror para Hans, já que ilão é
passava, tendo trocado o falar humano por simbolizada, causa de gozo para
cacarejos e cocoricós. Dessa maneira, Àrpád, já que a negou e a converteu
gratificava a sua curiosidade sexual, cujo em uma cena imaginária.
objeto real era a vida familiar humana. (NOMINÉ,1997:65.)
Algumas frases eram significativas de sua
localização subjetiva, tais como “meu pai é As duas faces do elemento fóbico:
galo”, ou “agora sou pequeno, sou um significante e objeto
frango”, ou “quando ficar maior, serei uma O caso relatado por Helene Deutsch,
galinha e quando for maior ainda, serei um comentado por Lacan, na lição de 07/05/
galo”. Em uma ocasião, disse também que 1969 do seminário De um Outro ao outro,
gostaria de comer um pouco de “fricassée nos trouxe vários avanços. Algumas
de mãe”, por analogia com o fricassée de considerações substanciais sobre a teoria
frango. Era muito generoso em ameaçar da fobia foram viabilizadas pela
outras pessoas com a castração, tal como ele reformulação do conceito de falo e pelo
próprio fora por ela ameaçado, por causa aparecimento do conceito de objeto “a”.
das atividades masturbatórias. De acordo Nos anos 60, Lacan fez do falo uma
com a observação da vida no galinheiro, função 0(x) cujo valor se funda na existência
, I Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas GeraJJ_______
I Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

da exceção paterna. Uma vez que esse lugar desaparição do desejo”. A fobia ancora o
da exceção não se encontra assegurado pelo sujeito no campo do desejo, mediante a
pai na fobia, é o sujeito que corre o perigo ameaça de um gozo devastador. A fobia
de ocupá-lo. A fobia, portanto, enquanto debela a angústia que decorre da presença
função simbólica, é definida como um do objeto, quando, precisamente, o sujeito
obstáculo a essa situação. A função simbólica se vê no abismo cavado pelo desvestimento
da fobia advém da função O do significante imaginário do objeto “a”. No exemplo
falo. Trata-se de um significante especial que citado, vemos como tudo transcorreu bem
tem o papel bem de assegurar a com o menino, enquanto ele pôde manter
estabilização de certos estados, como o seu valor narcisista, isto é, seu valor fálico
estado de angústia. O elemento fóbico para a mãe, ao se identificar à galinha
transforma a angústia em medo localizado, querida, a algo do tipo fazer-se a galinha
constituindo um ponto de estagnação, um dos ovos de ouro de sua mãe. Esse engano,
pilotis, como nos diz Lacan, em torno do característico da dialética imaginária da
qual se agarra aquilo que vacila, desde a relação mãe-criança, foi, de repente,
irrupção de uma crise, mediante a rompido, quando seu irmão maior o tomou
experiência infantil do gozo. Se, por um por detrás e o manteve prisioneiro, dizendo-
lado, a fobia constitui um prejuízo ao
lhe: “eu sou o galo, tu és a galinha”. Essa
desenvolvimento da criança, pòr outro, ela
cena constituiu o fator desencadeante e
defende o sujeito de uma angústia
traumático, que promoveu a instalação da
impossível de suportar.
fobia de galinhas.
Então, vejamos o que se passa na
O que é particular desse caso e que
relação do sujeito ao Outro. A castração
é uma questão freqüente nas fobias é o
introduz a passagem do Outro da
problema da discordância fundamental
demanda ao Outro do desejo, quando se
entre a imagem do corpo e o objeto “a”
articulará para o sujeito a questão do seu
sexo. A pulsão sexual é o que introduz um que a imagem reveste. Podemos localizar,
desacordo no diálogo da mãe com o filho. nessa história clínica, a crise que se instalou
Se esta até então se colocava como para o menino, a partir da vacilação da sua
intérprete das demandas, quando emerge identificação imaginária no circuito do
o desejo, ela não responde. Ao encontro desejo materno, com a conseqüente
com a castração materna, com o desejo do presentificação do objeto “a”. O
Outro, respondem os efeitos sintomáticos significante fóbico foi extraído da imagem
do complexo de castração. A narcísica que revestia o objeto. Através
presentificação do desejo sexual, a dele, o sujeito tentava restaurar a disjunção
presença real do falo, coloca para o sujeito entre i e a, na qual a angústia pode afetar
um impossível de suportar em relação ao o corpo. Enquanto objeto, a galinha passou
qual o sintoma neurótico traduz o manejo então a causar a repulsa do sujeito, ali onde
possível do símbolo i>. O significante fálico houve o encontro com o gozo.
funciona enquanto <t>, pois vem no lugar
do significante faltoso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aqui é na vanguarda, bem à frente FR E U D, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Rio
do furo, da hiância realizada no de Janeiro: Imago, Strachey Ed., 1976. (Edição standard brasileira
intervalo onde ameaça a presença das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, V.10).
real, que um único signo impede
________ . Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, .Strachey Ed.,
o sujeito de se aproximar.
1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
(LACAN,1961/1992:256.)
completas de Sigmund Freud, V.13).

LACAN, J. "A significação do falo". In: Escritos. Rio de Janeiro:


Ao considerar a fobia como função
Imago, 1998.
simbólica, surge a questão do seu papel de
_______ . De un Outro ai outro. Ei Seminário. Inédito. (07/05/1969).
colocar em função o objeto “a”. Isso implica
as duas vertentes do elemento fóbico, a de _________ . A transferência. In: O seminário, livro 8, lição 26/
04/1961. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
significante e a de objeto, isto é, a função
NOMINÉ, B. 0 sintoma e a família. In: Conferências
que lhe dá “seu uso de arma em um posto
Beiorizontinas, EBP-MG, (08/10/1997).
avançado fóbico, contra a ameaça de
élrWMI^

Inês Sèabra de Abreu Rocha


0 OUTRO SEXO
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1 ’ ’ T| c acordo com gPhilippeg Lacadée (LACADÉE, 1996:74-81), gg


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meio de um sintoma, uma vez que há um real em jogo para
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o sujeito desde a mais tenra infância. Ressalta as duas
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posições da criança a serem investigadas, a partir da
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(LACAN,2003:369-370.): g g g g g gj • g g g g gg g 44 g g' 4 gg g g g g g g 441
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oferece ou oferece seu sintoma em resposta ao que há de
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sintomático na estrutura familiar;
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• O sintoma da criança: que viria a particularizá-la,
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Lacan também anota que, se o sintoma da criança diz
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respeito à subjetividade da mãe, a criança pode vir como
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Na análise de Lacan do romance familiar freudiano,
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encontramos um sujeito que responde com um sintoma
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àquilo que se articulou como um fantasma sobre a
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Dizer que a mãe é “certíssima” contribuiria para lidar
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com a incerteza da paternidade. Porém, a questão que se
coloca é que, se há uma certeza acerca da maternidade, não
há tanta com relação ao gozo da mãe, ou a seu desejo.
Para Freud, o sujeito vai formular uma questão que
se dirige ao pai, a seu gozo, e outra, que se dirige à
sexualidade da mãe, a seu desejo: trata-se de construir uma
versão gelo romance familiar, g g gg gg gg gg gg g gg gg g g g g g gg gg g gg gg g gg g gg g g gg gg ggg ggg
Em uma versão, Freud refaz o fantasma da prostituição,
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A#® AA4AA«AA que remete à infidelidade da mãe, novamente a seu desejo. O
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sujeito a se ver às voltas com seu próprio desejo.
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No caso de Paty, cinco anos, a mãe a apresenta em dois
tempos: em uma primeira entrevista, chega aos prantos e diz
que estava absolutamente chocada com o que havia
acontecido. Consegue, com dificuldades, contar que o motivo
que a trazia ao tratamento era um acontecimento traumático
— havia encontrado a filha, de cinco anos, fechada em um
armário, quase despida, com seu primo de s'ete anos.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de;Minas Gerais
Pápeis dé Psicanálise v;l n.1 ásr. 2004

A mãe pergunta o que eles estavam Demanda incondicional, demanda


fazendo ali, e ela responde firmemente: sempre de amor.
estavam limpando os bichinhos de pelúcia Em outra cena, a mãe pergunta para
que ganhara de uma tia. a filha o que ela estava fazendo dentro do
A mãe não acredita em sua filha, e armário. A resposta da criança advém de
pede ao menino que lhe conte a verdade. sua interpretação do desejo da mãe:
O menino diz que estavam brincando de limpando a sujeira de bichinhos de pelúcia,
“pegar no corpo” do outro. Ela pergunta como um sujeito distante do encontro com
se aquele toque era no corpo todo, e o a sexualidade, longe do encontro com a
garoto responde que sim. Irada, expulsa- diferença sexual.
o de sua casa e não permite que ele volte a Sabemos que o sujeito não tem como
freqüentá-la. responder a essa interpelação, uma vez que
A criança, com seu ato, precipita a o encontro com o sexual traz um “gozo
angústia da mãe. “— Não acha que é uma estrangeiro”, como nos diz Philippe Lacadée:
manifestação precoce? Que e uma cena
horrorizante?” Indaga-me se isso acontece um Outro no sentido em que ele vem
com outras crianças e eu digo que pode fracionar o nível da unidade do
acontecer. corpo da criança. Esse gozo
Ela lamenta-se por não ter estrangeiro que ocasiona para ele o
encontro com o sexual, nos indica
percebido antes, por não ter podido ver o
que, desde que se trata de sexo, é
que estava acontecendo. Afinal, não podia
sempre questão do Outro sexo,
pensar que isso passasse pela cabeça de
quer dizer, do sexo como
uma garotinha. Pensa que a filha escapou radicalmente outro para o sujeito.
a seu controle, não que se trata de algo (LACADÉE,1996:78.)
que escapa ao controle.
A mãe vem dizer que a sexualidade Continuando:
da filha nasce para ela como uma
decepção. Pergunto-lhe por que tanto O sexo é o que vem fazer corte no
horror, e ela diz que, se isso acontecesse corpo entre o que da organização do
com ela, em sua infância, ela teria organismo é tomado no significante
e o que dele escapa, só fazendo o que
apanhado muito, e o castigo seria terrível.
lhe dá na telha e transpondo o
Para a mãe de Paty, a infância traz a
sujeito. (LACADÉE, 1996:80.)
marca de uma sexualidade proibida,
nomeando esse gozo como “um pecado
Vemos surgir o furo do sentido, algo
sem perdão”.
do gozo que o sujeito não consegue domar
Ela nãó bateu na filha, como fariam
com palavras e que diz da inexistência da
seus pais, porque queria saber mais: queria relação sexual.
ouvir detalhes do que havia acontecido. Nessa mesma sessão, a mãe ainda
Mas não perdoou a filha por realizar sua se queixa, quando se lembra de um fato:
fantasia de subverter a lei paterna. Algo se nem bem havia repreendido a menina,
passa entre o olhar e a falta de palavras colocando-a de castigo, quando, em uma
diante do encontro sempre traumático com festa, ela quis beijar um menino de quem
a sexualidade. dizia ter gostado...
A mãe abdica de ver, não pode Era mesmo verdade que o sexo
constatar a castração da filha, tenta havia chegado na vida de sua filha. “—
encobri-la, assim denunciando seu Minha filha é pervertida?”
próprio desejo que se realiza, que é Quando conheço a menina, ela está
transmitido para a criança como cifra de toda vestida de cor-de-rosa.
um gozo. Nas sessões, gosta de propor jogos,
Falta a palavra que sirva como lei em que inventa as regras e as utiliza a seu
ordenadora do gozo que se passa entre a favor para vencer. Quer propor uma
mãe e a criança. A mãe, diante desse parceria ao analista em que ele não veja
vazio, dirige sua demanda à criança. que ela o engana, assim como fez com sua
Dossier
Como o sexo chega ás crianças

mãe. Se o analista não aceita e pontua sua É a partir dessas experiências de


gozo ligadas às pulsões parciais
repetição, ela encerra o jogo.
que a criança vai tentar
Através desse desmentido, ela responder à forclusão da
revela que a castração se inscreve realidade sexual no inconsciente,
instaurando a dialética do falo: ela não é quer dizer, ao fato de que o
Outro não diz nada, faz silêncio,
o que pensava ser, nem tem o que
sobre o valor de seu gozo, como
acreditava ter. também sobre aquele do par
A função fálica tem uma dupla homem/mulher.
versão: ela tem uma face real, o gozo, e
uma simbólica: a lei, a interdição, a
Querer ter -x
castração.
Quando a mãe a surpreende e a Mary, cinco anos, inicia o
repreende, cai um semblant, o sujeito tem tratamento com a queixa de agressividade
que se haver com a perda de gozo. na escola. Segundo a mãe, ela é caprichosa
Lacan introduz a função fálica pela em seus desejos: briga quando os outros
via de uma função em que o gozo se liga à não fazem o que ela quer ou não dão o
linguagem. que ela pede.
Em outra sessão, propõe uma Mary tem pouca tolerância,
brincadeira: ela é a mãe e vai à loja contudo, à demanda do Outro; primeiro
comprar coisas para sua filha. A analista diz não, para depois dizer sim. Protege-
indaga: o que ela quer ? “—Vamos comprar se da demanda do Outro também sendo
bicos, mamadeiras, o que mais ela quiser...” imperativa em seus pedidos. ,
Sua fala aponta para um sujeito A mãe, em uma entrevista, relata
tencionado frente aos objetos da demanda que Mary é a segunda filha, nasceu quando
oral, mas abre uma brecha para dizer da o filho mais velho completava oito anos.
mãe e de seu desejo. O primeiro a apresentar sintomas e
A mãe pede outra entrevista e, dessa
ser conduzido ao tratamento foi esse irmão
vez, ela traz outra versão da filha. Elas têm
de Mary. Ele ficou inseguro e apresentou
um segredo: Paty chupa o dedo todas as
sintomas diversos com o nascimento de
noites. Uma outra satisfação que escapa à
inscrição na linguagem, pactuada coma Mary, ao que a mãe respondeu com
mãe. Ela não quer que a filha deixe de ser cuidados redobrados. 1
o “seu bebê”. A mãe interpreta: “O filho ficou mais,
“Ela chupa o dedo desde a barriga. apegado à mãe, e a filha, ao pai”.
Vi no ultra-som”, relata a mãe. Nunca a Mary é trazida pelo pai às sessões
proibiu de fazer isso por ter muita pena que se sucedem e chega sempre com um
da filha, que já tentou parar e não sorriso no rosto. Relata suas brigas com os
conseguiu. colegas, por querer que sua vontade
prevaleça.
Percebi que a trato como bebê e Pontuadas essas questões, ela cessa
ela também percebeu... tenho um pouco de brigar com os colegas e
culpa pelo que não dei a ela, que intensifica as relações transferenciais,
ela tenha porventura rne pedido
defendendo-se também de minhas
e do que mais eu não tenha lhe
demandas: “— Hoje eu não falo nada...
dado.
”, “— Hoje eu não quero ficar
No que se refere ao pai, a paciente brincando...”, “— Agora não vou
diz, em uma sessão em que trouxe sua embora...”, “— Você atendeu outra
foto, durante uma brincadeira, que a menina antes de mim?”
venderia baratinho; importava-se mais Pergunto-lhe sobre seu interesse
com a foto da madrinha. Diz que o pai, pela outra menina, em que se vê a
quando está em casa, fica na cama, atualização da realidade do inconsciente.
assistindo à televisão. Quase não Mary chega exibindo roupas novas
conversam. e diz que a madrinha havia-lhe dado.

SMS w
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais_______

t Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

— Ela me dá tudo o que eu peço... sessão. Ela pega o desenho e sai,


— Tudo? enxugando as lágrimas.
— Sim..
— E sua mãe?
O encontro com o sexual é aí
— Ela me dá alguma coisa. abordado pelo viés da fantasia.
— Alguma coisa, digo. Segundo Freud, não é a fantasia 5
— E, outras ela não pode me dar. sádica inicial, mas sua fase masoquista
recalcada, “ser espancado pelo pai”, que
Ela se angustia, nesse momento,
se torna seu verdadeiro sintoma.
diante da castração materna. Em seguida, Os sujeitos submetidos a essa
diz que aquelas coisas eram coisas de fantasia procuram a realização dessa
meninas, as coisas dos meninos eram situação fantasmática, ou seja, eles buscam
diferentes. ser espancados pelo pai.
Ela tenta fazer uma equivalência Quando procuram a realização
fálica, resposta sintomática diante da dessa situação fantasmática, fazem um
inexistência do significante da mulher. sintoma, pois não se trata mais de um gozo
Pergunto-lhe sobre a diferença entre ligado a algo imaginário, mas de uma
meninos e meninas e ela tem outra saída: verdadeira prática de gozo que se coloca
“— Sei que são diferentes porque eu vi”. nesse lugar.
“— O que você viu ?” Ela faz um silêncio. Para Freud, existiriam três maneiras
“—Aconteceu algo com seu irmão?” de reconhecer o porquê da inércia desse
Pergunto-lhe, pois, antes, referia-sxe a sintoma: a primeira se revela pela
uma brincadeira e a uma briga com o irmão. percepção de uma satisfação ligada à
Ela acena negativaménte com a cabeça. fantasia matriz, e a segunda, pelo fato de
“— Então... seu pai?” Pergunto. Ela que essa fantasia funda uma posição muito
confirma e diz: sólida — um objeto maltratado pelo pai
ou pelo substituto paterno. O Edipo pode
— *Eu disse, a ele que não poderia
ficar prolongado em uma posição sexuada
fazer aquilo. '
— O quê? feminina que encontra no parceiro uma
— Minha mãe manda ele me dar eloqüência: as fantasias sádicas masculinas.
banho e ele entra no chuveiro sem A terceira razão para a inércia desse
roupa para me dar banho.
— Você falou para ele que não poderia sintoma seria mais ou menos o inverso da
fazer íssq, você não gosta disso? segunda: esse sintoma seria compatível
—Já falei a ele que eu não gosto. Falo com uma identificação viril, freqüente na
para minha mãe deixar eu tomar
histeria, suportada pela identificação com
banho sozinha e ela não fala nada
para o meu pai. Minha mãe nem liga. o menino espancado. Tal sintoma
— E você ? Pergunto. possibilita, ao mesmo tempo, uma
— Quer que eu faça o quê ? Que eu identificação viril e uma posição feminina
grite assim: oh, ahhhhhhü!
“masoquista” — masoquismo no sentido
da fantasia.
Um grito desesperado ecoa pela
sala. Em seguida, ela pega um papel e tenta
escrever a palavra pai. Faz um desenho em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
volta e diz que quer levar para o pai de FREUD, S. "Uma criança é espancada: uma contribuição ao
presente. Digo-lhe que deixasse ali o estudo da origem das perversões sexuais". Rio de Janeiro:
Imago. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
desenho que havia feito. As letras de sua
completas de Sigmund Freud, v,17),1980.
construção fantasmática, diante do gozo do LACADÉE, P. "Duas referências essenciais de Jacques Lacan
pai e do enigma do desejo da mãe. sobre o sintoma da criança". Opção Lacaniana, São Paulo, n.17,
Ela começa um choro compulsivo nov. 1996.

e alto, a dizer que não quero que ela dê o LACAN, J. Nota sobre a criança.,In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro:'Jorge Zahar, 2003
desenho para o seu pai. Digo-lhe que
posso ver que ela, uma menina de cinco
anos, gosta muito de seu pai. Ela
concorda, pára de chorar, e termino a
Maria de Lourdes Motta Machado

0 PODER DO PERFUME DELLA

á dois anos, Diogo vem sendo atendido no setor de


H psicanálise da Clínica d’ISS. Na época, então com 12
anos, veio encaminhado pela escola, por apresentar
problemas na fala. Hoje, Diogo é um adolescente de quase
15 anos, “está virando homem”, como ele mesmo diz.

Entrevista inicial com a mãe


Adelair, ou Dela, casou-se aos 29 anos, sem estar
apaixonada, simplesmente, porque achava que estava na
hora de casar. Explica-me que não conhece ninguém da
família de seu ex-marido, pelo fato de ela ser paranaense, e
ele, gaúcho: “Paranaense não gosta muito de gaúcho.”
Estava separada há um ano, atualmente há três. Conta que o
ex-marido não a respeitava e não acreditava que ela seria
capaz de se separar, por julgá-la muito infantil. É manicure,
trabalha muito, pagando seu próprio aluguel, mas, com
prazer, pois a casa é boa, limpa e ensolarada. Sobre o Diogo,
diz que ele quer melhorar a fala, que ele é um menino
inteligente. Relata-me que Diogo nasceu com microcefalia.
Foi ao dicionário e verificou que se tratava de um tipo de
“retardo”. Quando Diogo ainda era pequeno, a médica lhe
disse: “Vinte quatro horas vai ser pouco para você se ocupar
do Diogo”. E, ainda: “Tudo depende de você”. Diz que,
quando pequeno, Diogo não ficava bem com ninguém, e
que ninguém podia encostar a mão na cabeça dele. Achã que
é porque ele fez muitas radiografias. A frase que escutou de
uma senhora marcou-a muito: “Você vai ter sempre ele ao
seu lado”. Diogo começou a estudar aos quatro anos, em
uma escola do SESI, e lá lhe disseram que ele teria que ir
para uma escola especial.
Diogo só chama o avô materno de pai; “acho que é
porque ele me vê chamando-o de pai e aprendeu a falar
assim”. Diogo só chama o próprio pai pelo nome, Moisés, e
não se dá muito bem com ele. Muitas vezes, Diogo vem
dormir no quarto dela, e ela lhe diz que ele já é homem.
Lembra-se de que ela também fazia isso com seus pais, mas
sua mãe não gostava que ela dormisse no meio, então, ela
dormia ao lado do pai, que ficava imitando galo para ela.

Primeira entrevista com Diogo


“O que é ?”, olhando para a caixa de brinquedo. “Vá
descobrir o que tem dentro dela”, digo-lhe.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 ab-r. 2004

Assim, Diogo chegou, sem nenhum Moisés. Com um discurso confuso, diz que
estranhamento, como se já nos dormiu lá na casa dele. Pergunto como é
conhecêssemos há muito tempo. lá. “Sujo”. Em uma outra vez, mostra-me
Mexe desordenadamente nas peças seu tênis e diz que ele é de sua mãe. Diz
do quebra-cabeça, perguntando: “Encaixou? que sua mãe é cheirosa. “Como assim?”
Encaixou?” Ao que eu respondo: “Eu que te “Porque eu gosto dela”. Em outra ocasião,
pergunto, encaixou?” A partir de então, mostra-me a meia, dizendo que ganhou de
passa a utilizar a mesma frase: “eu que te aniversário. “Quem te deu a meia?” “Todo
pergunto”, em outras situações. Identifica mundo”. “Quem estava na festa?” “Todo
pedaços de partes do corpo, mas não sabe mundo”. “Como, se eu não estava lá?”
relacionar as partes entre si. Gansa-se e pega “Todo mundo do Palmital”.
um livro, pedindo-me para contar histórias. No início do tratamento, pude
Peço que ele me conte. Vê as figuras, mas só constatar que Diogo realmente apresenta
as identifica como mulher, homem, avô, Não uma grande deficiência na fala. Em muitos
encadeia a história. Diz que não sabe amarrar momentos, é bastante difícil compreendê-lo
sapato. Sua mãe e Rose é que amarram. e repito o que ele diz para certificar-me se o
Desamarra o nó dos seus sapatos e pede que entendi corretamente. Apesar de apresentar
eu amarre. Digo-lhe para ele mesmo certa coerência na fala, ele muda
amarrar, encerrando a sessão. Ele sai da sala bruscamente de assunto. Sempre me chama
e, ostensivamente, põe o pé na cadeira para de tia, e quando pergunto se sou sua tia, ora
sua mãe amarrar. ri, ora diz que sim, ao que respondo que não.
Em outra sessão, Diogo diz que está Segundo sua mãe, Diogo chama todo mundo
virando homem. “Tá deixando de ser de tia, ainda não foi alfabetizado, conhece as
criancinha”, digo-lhé. A mãe tem dito a toda letras, mas tem muita dificuldade de escrevê-
hora que ele está “virando homem.” “O que las. Mesmo no desenho, apresenta um traço
o homem faz que criança não faz?” “Homem bastante infantilizado.
trabalha, tem barba”. Pega minha mão e Diante desse quadro, levanto a dúvida
mostra a barba. Diz que quer ser motorista. diagnóstica: debilidade ou psicose? Ou seja,
Certo dia, Diogo, ao entrar na sala, como nos traz Anny Cordié, estaríamos diante
pede que eu amarre seu tênis, pondo o pé de um bloqueio das operações intelectuais
em minha direção. Digo-lhe que ele mesmo ligado a um interdito de saber ou diante de
amarre. Ele tenta, faz uma primeira laçada, uma impossibilidade radical de integração do
diz que não é assim, desmancha. Digo-lhe saber? E ainda, haveria algo da ordem de uma
que é o primeiro nó. “Não, não é”. Ele fala lesão devido à microcefalia? Diogo, até o
que a mãe dele é quem dá o nó, é difícil. momento, não apresenta nenhum fenômeno
Proponho que ele aprenda a dar o nó. Fala elementar. Mas seu discurso, às vezes,
que não quer. “Por que você não quer”? apresenta fuga de idéias e ele têm uma
“Porque não, tem a escola, tem a Rose”. dificuldade muito grande de se posicionar no
Mostra-me o dedo com mercúrio. Pergunto- tempo e no espaço.
lhe o que era. “Eu comi a unha”. “Por quê?” A mãe me traz a sua dificuldade para
“Pra comer”. “E o que aconteceu com o lidar com algumas atitudes de Diogo: ele, às
dedo?” “Estragou”. Diz que vai tirar o dedo vezéfc, se masturba, e ela lhe diz que ele não
fora, “para crescer outro”, explica-me. Nessa pode fazer assim, no meio da casa, até que
seqüência, ele começa a puxar o forro da com ela pode. Questiono se realmente pode.
poltrona, enrolando-se nele. Pergunto-lhe o Conta que ele só deixa que ela o limpe e que
que estava fazendo e ele me diz: “Estou sem muitas vezes ele fica sujo até ela chegar. Outras
controle”. Convido-o a falar do que estaria vezes, ele a espera para poder evacuar. Até os
tirando-lhe o controle. E continua: “Vou 10 anos de idade, Diogo tinha medo do vaso
rasgar o pano, estragar”. Digo-lhe que aqui sanitário e de dar descarga; hoje, ele ainda
ele não pode estragar e levanto-me para que tem nojo de suas fezes.
ele possa ir embora. Ele se espanta e se Em outra sessão, Diogo conta-me que
acalma. Começa a tirar a camisa e olha para assistiu ao Faustão no domingo, com sua mãe.
o tênis. Lembro-lhe da proposta de que possa “Aonde minha mãe vai eu vou atrás, para
aprender a dar o nó sozinho, afinal, como ficar junto dela, eu gosto dela.” Ele quer ficar
ele mesmo disse, ele estava crescendo. junto de sua mãe, “para não perder o lugar”,
Certa vez, pergunta-me se eu havia diz ele. “Ela cuida de mim, faz meu lanche”.
reparado na bermuda dele. “Quem te deu Chamo a sua atenção para o fato de que é
a bermuda?” “Tanto faz”. “Ah, a pessoa se possível ele mesmo cuidar de suas coisas e
chama tanto faz”? Ele ri e diz que foi o continuar gostando de sua mãe.
Em outro momento, Diogo traz duas “Ela te falou?”, novamente, questiono.
balas Icekiss. Uma, ele me dá, a outra, ele “Ela pensou.”
chupa. Embrulhando a bala, há uma figura “E você sabia o que ela tava
de um menino e de uma menina, eles se pensando?”, sigo indagando.
tocam e desse contato saem faíscas. Diogo “É. Sabia que ela vai dar um beijo
diz que eles estão namorando. “Eu vou dar na minha boca?”
um beijo”. “Em quem ?” “Adivinha?” “Eu “Você está interessado nessa história
não tenho bolinha de cristal”. Ele ri e diz: de beijo?”
“Na Renata”. “Quem é Renata?”
Todos os homens se interessam. Tem
Eu fui ao baile e dancei forró. Meu uma menina que não tira os olhos de
cinto me deu sorte. Sonhei com a mim. Ela tá com ciúme de mim. Nós
Renata... estava dando um beijo nela. gravamos um CD, Sandy e Júnior. Nós
Ela também estava sonhando comigo. cantamos no palco: espero que vocês
gostem. Minha mãe queria que eu fosse
no palco para dançar, mas eu não quis,
“Como é que você sabe?” “Eu sei, eu sou forte. Eu não quis, ia ficar com
porque tava”. vergonha. Eu fui no show, foi uma
Nessa época, Diogo fala algumas vezes surpresa, muita surpresa. Eu fui no
de sua vontade de ser motorista: “É o meu banheiro dos homens. Eu imito a Sandy.
sonho”. Explica-me o que é preciso fazer para Quando escuto, fico pensando na
cuidar do ônibus, deixá-lo arrumado, lavado, Graciela. Sabe o que ela falou? “Eu te
amo”. Ela sorriu, ela gosta de mim, ela
cheirosinho. Ele está ficando mais velho,
fica de olho no meu pão, ela não tira os
mostra-me o braço, depois a perna, um olhos de mim. Só não entendi uma
machucado e também seu “muque”. Fala do coisa. A Graciela tava na aula. A outra
bigode e da barba que estão nascendo. Em tá desesperada porque vou casar com a
outra sessão, diz que ia tirar carteira de Graciela . A outra — Alessandra — mora
identidade. Digo-lhe que nela iriam constar lá no prédio perto de casa, fica me
olhando. A Graciela tá doidinha comigo.
os nomes de sua mãe e de seu pai. Mãe:
Ela tá querendo me beijar, porque ela
“Adelair”, pai: “vô Quintilho”. “Mas ele é seu tá correndo atrás de mim... eu sei que
avô, não é seu pai”. Ele insiste que o avô é seu ela tá querendo... eu trago o lanche para
pai. Faz referência aos ônibus, que cada um ela. Ela tá amando, ela tá querendo
tem seu número. Digo-lhe que a identidade alguma coisa, porque ela tá querendo
pode falar dele, e, então, ele demonstra sua ficar perto de mim. Dei uma caninha
referência às duas pintas que tem na testa —- para ela, de coração. A gente tava
tranquilo se amando no corredor, aí ela
elas mostram que ele é o Diogo.
falou essas palavras: “eu te amo”.
Diogo começa a me dizer que quer
ser cantor e gravar um CD e que está
“Por que ela te falou essas palavras?”
ensaiando os passos de Sandy e Júnior. Além
disso, Diogo começa a falar de seus amores. Por causa do meu pão com salsicha.
Algo da ordem de um delírio parece [.. J Vou ficar com os dentes juntinhos
configurar-se em torno desses temas. Passo (referindo-se ao seu aparelho de
a relatar fragmentos de sessão: dentes). Sabe para quê? Para beijar a
Sandy. Ela gosta de mim, porque ela
Eu tô apaixonado, tão apaixonado que quer me ensinar a dançar. Ela quer
não posso falar, é tão romântico, o ficar pertinho de mim... Eu acordei
coração apaixonado. igual ao Júnior. Eu soma cara do
Sabia que eu estou namorando? A Júnior. Eu sei que eu sou eu, mas sou
gente foi conversando. É bom a cara dele. Eu sou irmão dele, eu sou
namorar, é bom para a saúde. gêmeo, cu tenho a voz dele. A Sandy
Eu parto o lanche para mim e para ela, sabe quem eu sou. Ela sabe quem é o
e aí ela me dá um beijo. Ela me ama. verdadeiro Júnior, sou eu. Aquele lá é
O que vai conversando é segredo só meu... meu amigo. Nós somos gêmeos. O
Ela tá me enganando... tá andando com Júnior me ligou, ele tem meu telefone.
outro menino. Ela tá me traindo. Eu converso com ele no CD ao vivo.
Ela tá com outro rapaz, é da escola, Vou gravar um CD com a Sandy. A
chama Cláudio. Eu vou dar um soco c Sandy está atrás de mim, tô achando
vou preso. Como é que eu vou fazer? que ela tá querendo namorar comigo.
Não tenho dinheiro para pagar, como Tô achando que ela tá pensando que
eu vou arrumar? Quero saber como ela eu sou o Júnior de verdade. Ela
adivinhou meu nome. Como ela sabe sempre me manda um CD, ela me
que eu sou o Diogo, como ela sabia que ama. A outra — Alessandra — ela
eu sou eu? Eu tô diferente. Cortei o apareceu aqui. Não entendi nada...
cabelo. Ela pensou que eu fosse o Júnior. Será que eu tô sonhando... cocei o
EH Instituto de Psicanálise
Pápeis de Psicanálise v.l N.l
e Saúde Mental
abr. 2004
de Minas Gerais

olho e ela sumiu... depois passou organizador de seu discurso. Sobre seu pai
correndo para lá e para cá... fico ele nada quer saber, nem mesmo o registro
confuso... Tô achando que ela tá de seu nome. Assim, como fazer, neste
agarrada em mim. Uma vez ela
apareceu no colégio, eu fiquei tão
momento em que ele se confronta com o real
feliz... eu tava enfeitiçado por ela... ela do sexo? E interessante o fato trazido por
tava toda bonita, toda cheirosa^ eu fui sua mãe, ao dizer que Diogo tem molhado a
atrás dela, eu chamei... Alessandra, cama e que ele insiste em dizer que é xixi...
Alessandra... ela não respondeu. Mas, continuemos:
(Sobre a Graciela): Eu tô sabendo de tudo. Todo mundo tá
atrás de mim, todo mundo tá querendo
Eu tô achando que ela tá sonhando
me tocar porque eu sou cantor e eu já
comigo. Eu tô sonhando com ela, ela
tô grande. Eu vou cantar de verdade.
tá sonhando comigo. Ela me ama, ama
Eu vou lançar um CD. Tô pensando
mesmo, eu sei que ela me ama. Eu sei
nela e ela pensa em mim.
que ela tá querendo alguma coisa. A
Alessandra apareceu na escola — tô “Como é que você sabe?” “Porque eu
achando que ela tá grudada em mim. tô sentindo o perfume dela. Eu faço cócegas
Ela apareceu assim... vupt. As meninas nela e corro. Brinco de bater... um pouquinho.
começaram a agarrar... as fêmeas.
Eu não tava irritado”.
Professora é uma onça, ela avança em
qualquer pessoa. O amor é forte “Com o que você fica irritado?”
demais... eu não sabia. Ela pegou o Com minha mãe e quando chutam a
amor e foi atrás de mim. A Alessandra. minha mochila, quando minha mãe
Ela foi me agarrar. Eu levei meu pão. quer que eu vá para o Palmital, para
Eu não paro de pensar na Graciela... a casa de meu pai. Outro dia ... tava
na hora do recreio ela corre atrás de chorando no banheiro... ele bateu
mim... tá querendo me agarrar, me em mim... peguei um chiclete
encher de beijinhos, eu vou esconder escondido. Eu acho que ele tá de
dela. Eu tô fixado por outra... ela toda olho em mim. Eu deixei minha mãe
cheirosa, muito bonita, ela não pára namorar. Ela vai engravidar, vai
de me procurar. Ela tá desesperada, nascer a Sandy e eu vou ser o Júnior.
ela tem ciúme, ela não deixa eu casar A Alessandra tá a fim de mim.
com a Graciela. Não precisa ficar com
ciúme, eu não vou comer ela toda não, “Como você sabe?“
eu não vou apavorar ela não... eu não Eu sei... chegou na janela. Também
sou tigre, eu não tenho pêlo. [...] Eu tá colada em mim. Ela me acha bonito.
tô com poder da Sandy e Júnior. Eles Ela não me reconheceu... Eu tava
vão sair da Globo. Eu vou ficar no diferente. Eu tava com perfume. [...]
lugar deles. A Sandy foi na minha Eu tô sempre atrás da minha mãe.-Eu
escola. Por causa da cartinha que eu tô colado nela... porque eu quero.
mandei para ela. Eu senti o cheiro do Minha mãe me deu um beijo na boca...
perfume dela. A Alessandra foi na el$ errou (da bochecha para a boca).
minha aula, atrás de mim. Ela tá com Ela é casada.
ciúme. Ela tá fixada por mim porque
eu ando bem cheiroso. “E a mulher de seu pai”.
“Quem te fala que você é cheiroso?” Ela tá solteira agora. Mas tá namorando.
Mas eu quero ela... à noite ela faz o que
“Minha mãe”. eu quero... ela fala para eu tomar banho,
Ao que parece, Diogo permanece no lanchar, primeiro. Eu estou
primeiro momento da alienação, marcado conquistando as garotas.
por significantes que são do registro materno,
“E como você faz para conquistar
o Outro primordial. E impressionante como
as garotas?“
ele faz uso do significante “cheiroso”, como
ele está impregnado pelo odor materno. Sua Com pão. A Graciela fica me batendo...
mãe, certa vez, me havia dito que Diogo estava me dá pão, me dá pão... A gente distrai
um pouquinho, as mulheres distraem
melhorando, que estava tomando banho
a gente, os homens distraem com as
sozinho, se arrumava, passava perfume, ficava mulheres, as mais bonitas. Ela foi me
todo cheiroso. Podemos dizer de uma ver. Nós marcamos um encontro.
alucinação olfativa, em que o objeto sempre Fiquei no portão... ela me disse que
aparece revestido com esse significante, tava com saudade, ia me encher de
“cheiroso”? beijinho. Abri o portão, perguntei: alô,
tem alguém aí... que estranho. Será que
Por outro lado, parece não haver um
eu tô louco... Eu tô distraído. Todo
significante que instaure sua separação do mundo pensa que eu tô louco, minha
campo materno e que lhe sirva como professora fala que eu tô louco.
Samyra Assad

COMO O SEXO CHEGA À CRIANÇA PSICÓTICA*

Para Freud, não se trata de dizer que a. sexualidade é tudo,


mas que, ao descobrirmos o inconsciente, explorá-lo em suas
múltiplas facetas, passaríamos forçosamente por caminhos
onde encontramos representações sexuais.
Célio Garcia

T*1 ara introduzir o nosso trabalho, apontando a


JL insuficiência da língua para dizer o sexo, trarei um
texto de Luís Fernando Veríssimo, em que a criança
interroga o pai sobre o feminino do sexo, ao que ele lhe
responde:

— Não tem, pois o sexo é sempre masculino.


— Só tem sexo masculino? — diz o menino.
— É. Quer dizer, não — responde o pai. Existem dois
sexos, masculino e feminino.
A criança, na sua insistência, pergunta:
— E como c o feminino de sexo?
— Não tem feminino. Sexo c sempre masculino.
— Não deveria ser sexa? — argumenta.
— Não, porque sexo é sempre masculino.
— O sexo da mulher é masculino? — retruca.
— E. Não. — diz o pai hesitante. O sexo da mulher é
feminino.
— E como c o feminino?
— Sexo mesmo. Igual ao do homem.
— O sexo da mulher é igual ao do homem?...
O pai se cansa e diz ao menino para ir brincar,
comentando: ele só pensa em gramática.
(VERRÍSSIMO,1987.)

Na tentativa de sustentar a investigação sobre o lugar


do sujeito no encontro com o sexo, mais espccificamente, a
criança, buscaremos, através do comentário desse caso
clínico, uma orientação quanto àquilo que poderia dizer da
resposta de uma estrutura psicótica em relação ao que de
real o sexo implica, ou seja, a castração, implicando a
relação do sujeito com a linguagem.
Instituto de Psicanálise e Saúce Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

O significante na neurose e na psicose estrutura, diferentemente do recalque.


Algo da realidade psíquica é radicalmente
O significante Nome-do-Pai é
suposto na neurose e na psicose. Na
abolido, não inscrito em tempo hábil para
que a condição de uma representação se
neurose, “para dar conta do que apareceria
estabeleça. Isso nos permite dizer que, na
no retorno do recalcado”; na psicose,
psicose, vemos significante em toda parte,
sua ausência é suposta para dar conta mas que não representam o sujeito, eles
do desastre imaginário que é o “representam mais exatamente o Outro”.
desencadeamento do delírio. (SOLER,1991:122.)
(SOLER,1991:120.)
No caso em questão, vemos como
uma metonímia se estabelece, a partir de
Sabemos que há um desdobramento
uma convocação da mãe para uma divisão
na neurose, em se tratando da lei do
sexual, a saber, “o ser homem”, para a qual
significante e da lei do Pai — a lei do Pai
o sujeito não dá conta, por não ter a
regula a lei do significante, na medida em
mediação fálica. A resposta da estrutura
que uma organização em cadeia se faz a
do sujeito, portanto, implicará,
partir de um significante privilegiado, o
metonimicamente, em tomar pedaços de
qual não se apresenta, a não ser de maneira
imagem, tais como o muque, a barba
contingente, pelo falo, que também é um
nascendo, o ser motorista, o ser cantor,
significante sem par. Esse significante
sem, no entanto, unificar uma imagem que
paterno, na neurose, ao ser recalcado, traz
poderia aludir a uma identidade. O sexo
a condição de representação do sujeito
chega, nesse caso, com a convocação da
para outro significante, em que podemos
mãe, e o sujeito não se confronta com uma
ver o desfiladeiro de uma significação, a
divisão sexual; a linguagem será tomada
partir daquilo que não se apresenta. Dizer
como instrumento para tentar uma
de uma significação fálica seria o mesmo
identidade precária, a partir do duplo,
de conceber a presença do simbólico nessa
exclusivamente em um eixo imaginário. A
operação que implicaria em separar o
pesquisa da identidade para esse sujeito
significante do gozo que antecede ao
desembocará no início de uma construção
sujeito no mundo da linguagem.
delirante.
Assim, dizemos que o Nome-do-Pai,
O significante também pode chegar
ou esse significante privilegiado, regularia
ao psicótico como vozes, desde o exterior,
o gozo, e a resposta da estrutura neurótica,
indicando-nos que não há a incidência de
então, grosso modo, estaria do lado do
uma operação simbólica, e o externo é
sintoma, ou seja, do retorno do recalcado.
tomado em sua radicalidade de gozb. O
Por outro lado, na psicose, dizemos
Nome-do-Pai se apresenta no real, no
que há a invasão de gozo. Por quê? Torna-
campo exterior ao sujeito, e isso, de certo
se psicótico “aquele que viveu uma
inscrição simbólica não acertada do modo, justifica o fato de uma função
significante” (Dl CIACCIA,1987:75.), mais paterna, quando evocada, desencadear em
além dos elementos imaginários que um delírio, isto é, “de onde somente o
configuram uma ocasião. A resposta que a buraco de sua forclusão poderia lhe
estrutura psicótica traz indica que não há responder no simbólico”. (SOLANO-
uma operação que separe o gozo do corpo, SUAREZ,2002:67.) Podemos, então, dizer
não havendo, então, uma significação que a resposta da estrutura psicótica estará
fálica. Não há uma inscrição do sujeito na do lado do objeto. Do objeto de gozo do
função fálica. Outro.
Assim, o significante não tem caráter Isso posto, restá-nos apostar naquilo
de representabilidade do sujeito, pois o que se refere ao tratamento possível da
que funda essa estrutura é exatamente a psicose, a saber, a localização do gozo
negação sobre o próprio significante que devastador, na medida em que um mínimo
ordenaria o gozo em uma cadeia simbólica, de simbólico seria introduzido nos
representativa. E da forclusão que se trata, encontros com o analista, quando aí um
enquanto mecanismo que constitui essa endereçamento promoveria uma
Como o sexo chega ãs crianças

determinada distância, ainda que precária, homem que ela escolheu para ser pai do
entre o sujeito e o Outro. Ou seja, um apelo seu filho, ou seja, casou-se, ainda que não
ao simbólico, um apelo à separação entre apaixonada, por estar na hora de casar...
o corpo e o objeto que não foi extraído do Tornou-se, assim, uma mãe toda, em que
campo do Outro, ou, como nos diz Di a parte mulher ficou esquecida, ou, até
Ciaccia, uma tentativa de mesmo, anulada.
Outro' aspecto relevante que
efetuar essa divisão que o separe da podemos citar seria aquele que se refere à
posição de objeto do fantasma do própria subjetividade da mãe, que faz de
outro (materno) e aquilo que o faça
existir através da representação
seu filho um objeto do seu fantasma, ou,
significante. Na criança psicótica o até mesmo, uma extensão do seu corpo,
A corpos é o campo no qual se quando vemos que todo o cuidado
manifestam os fenômenos psicóticos, higiênico em relação a ele, até hoje, com
mas é também o campo no qual atua
toda intervenção destinada a idade de 15 anos, depende dela. Ou ainda,
desprender esse corpo do gozo. (DI o que ela quis dizer ao falar que seu filho
CIACCIA,1987:79.) já é homem, quando este vai dormir em
seu quarto? E mais, o que significaria ela
Como Diogo demonstra essa invasão dizer que ele poderia se masturbar na
de gozo, ilustrando-nos como o sexo chega condição de ser em sua presença?
à criança psicótica, já que entendemos por Certamente, essas questões apontariam
sexual uma operação do sujeito com a para a natureza da relação da criança
linguagem? Pela via da linguagem é que um psicótica com a mãe, nessa dimensão
delírio poderá conotar como o sexual estrutural que nos diz de uma ausência da
adquire um contorno nessa construção, na metáfora paterna, na medida em que há o
medida em que uma dupla é aí constituída, impedimento de um pai ou uma inscrição
com chances de se depurar e reduzir o delírio que metaforize o desejo da mãe, para que
em uma formulação final estabilizadora. a exclusividade do seu olhar sobre a criança
O que sobrevém, no caso, não seria seja, no mínimo, barrada. Um par bizarro
o aparecimento do sexual e sim uma se forma entre a criança e a mãe.
coisificação, uma divisão no concreto. Sua Porém, algo da função paterna é
atividade de masturbação resulta, evocada nos atendimentos. Como? Quais
incontestavelmente, num xixi; o amar os efeitos que ocorreram? E o que
implicará em fornecer um pão com passaremos a observar em seguida, a partir
salsicha, o gostar estará ligado a um cuidar. das entrevistas com a criança.
O lugar do Outro e as relações de troca
operar-se-ão no registro do real. “Estou sem controle”
Algo estranho se apresenta quando
“Vinte e quatro horas vai ser pouco para Diogo se apropria da fala do Outro para
você se ocupar do í)iogo” se referir a si próprio. Ele repete,
Esse é o prenúncio deflagrado pelo incessantemente, a frase da analista: “eu
médico, ao constatar uma microcefalia em que te pergunto”. A pergunta, impossível
Diogo; exatamente aquilo que se sucederá de ser formulada pelo sujeito ao se dirigir
na vida da relação entre a mãe e a criança, ao Outro, por não estar separado deste, é
e não sabemos ao certo se isso veio de substituída por uma metonímia
encontro ao lugar da criança no fantasma automática, não encadeando uma
materno, ou seja, a criança realizando o história. Os significantes passam a ser
objeto no fantasma da mãe, tal como nas emitidos sem nenhuma representação, o
“Duas notas sobre a criança” que Lacan chama de enxame de
(LACAN,1998:5-6.), que Lacan endereça a significantes (SI, SI, SI...).
Jenny Aubry, para dizer daquilo que Negando-se a aceitar esse lugar do
configura estruturalmente a psicose. Outro para o sujeito, a analista acentua o
O fato é que essa mãe não encontrou que ele mesmo poderia fazer, como, por
o significante do seu desejo no corpo do exemplo, amarrar os sapatos, o que,
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Pãpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

inclusive, é o que a mãe faz, atendimento, durante o qual pudemos


imperativamente, sem muitas delongas. perceber questões concernentes à certeza
Assim, é a mãe quem dá o nó... Ele convoca do sujeito, bem como à relação dual
o Outro no lugar da mãe: “amarre os meus imaginária que mantém com o
sapatos”. E a primeira questão que ele semelhante, o seu sonho de ser motorista
dirige à analista. Mas, como ele poderia e a mostra dos detalhes que lhe
amarrar os seus próprios sapatos e confirmam ser homem (braço, perna,
dispensar, assim, o Outro? A analista é muque, bigode e barba nascendo), uma
solicitada novamente, no sentido de que outra alusão, em relação à iminência de
lhe amarre os sapatos. Ao propor que ele ' uma função paterna, nos é trazida no
mesmo aprenda a dar o nó, uma recusa momento em que o sujeito fala em tirar
nesse sentido insiste, por parte de Diogo; sua carteira de identidade, na qual
entendemos que isso implicaria em uma deveriam constar os nomes do pai e da
posição desejante, que presumisse uma mãe. Em substituição à figura do pai
separação do campo do sujeito e do campo surge o avô, e, por que não dizer, o
clp Outro. próprio pai da mãe, o qual Diogo insiste
A partir dessa insistência do sujeito em dizer que é seu pai. Porém, a sua
em colocar a analista no lugar da mãe e identidade se percebe no corpo: suas
da recusa dela em fazê-lo objeto de gozo duas pintas na testa. Há recusa de uma
para o Outro ao qual ele sé dirige, eis identidade via filiação, recorrendo-se,
que irrompe um episódio importante: assim, ao real do corpo, para dizê-la: suas
Diogo mostra seu dedo com mercúrio, duas pintas na testa. Podemos perceber
de tanto comer suas unhas. Ò que nisso, tal como no dedo que “estragou”,
aconteceu? “Estragou”, diz ele, e que vai uma certa coisificação daquilo que lhe
tirar o dedo fora, para crescer outro, concerne.
assim como crescem as unhas, o cabelo, A partir daqui, essa questão não
se podemos dizer assim. Porém, a deixou de suscitar uma compensação
analista lhe pergunta se realmente quanto à ausência do Nome-do-Pai nessa
crescerá outro dedo, o que aponta para estrutura, localizando-se no esboço de
uma falta radical, ou seja, o dedo não um delírio. Depois 'de um ano de
crescer. Estaria assim colocada a atendimento, Diogo, finalmente,
iminência de uma função paterna, na apresenta um fenômeno elementar: o
medida em que algo da ordem da início de uma construção delirante, na
castração é trazido à tona? Pois bem, medida em que se gravam (amarram) os
percebemos que o efeito disso foi a passos da dupla de cantores Sandy e
apresentação do buraco de sua forclusão Júnior, para ser cantor como eles. Algo
respondendo-lhe no simbólico: dessa construção se coloca em torno dos
transcorreu o seu ato de se enrolar no seus amores, que, nessa etapa do
forro da poltrona, dizendo que está “sem tratamento, ganham terreno para serem
controle”, “vou rasgar o pano, estragar”. enunciados. Com a construção delirante,
Essa foi a resposta que a estrutura ele continuará pesquisando sua
apresentou, para a qual a analista traz identidade.
um enunciado apaziguador: “você não Na verdade, é aí que se endereça
pode estragar”. A partir disso, Diogo tira para a analista uma outra questão, qual
a camisa, apresentando o corpo para o seja, aquela que se refere ao “virar
Outro, ou seja, o campo ao qual é homem”, depois de lhe fornecer o lugar
destinada a intervenção para desprender do Outro. Porém, o sujeito não pode
esse corpo do gozo. Quando a analista questionar metaforicamente isso — ele
lhe interdita o horror, ou seja, “estragar”, recorre à metonímia, que inclui os pedaços
ela o impede do puro horror diante da de imagem (barba, muque, motorista,
falta radical. cantor, o beijo na boca), e, também, ao
Mas a resposta dessa estrutura não duplo, para se sustentar em uma
se restringiu a isso. Depois de um ano de identificação imaginária.
JJ
' • ’ 5í
____________________Dossier K
Como o sexo chega às crianças P

O amor e o gozo verdadeiro que caracteriza o amor de


transferência, teríamos um Outro
“Ela me ama” — em torno desse
julgado gozar. E o que nosso colega
enunciado, Diogo tece um contexto
curioso: • ) •' AFiúNUNF i. Henri Kaufmanner nos apresenta,
complementando o seguinte:
Ela pensou que eu fosse o Júnior.
Se o analista se instalar no lugar
Sabia que ela vai dar um beijo na
daquele que sabe e que, portanto,
minha boca? Todos os homens se
goza, competindo com o
interessam por essa história de beijo...
fenômeno elementar, o que advém
c a erotomania mortífera.
De um lado, vemos uma dupla: (KAUFMANNER, 1999:116.)
Graciela e Alessandra. Ambas o amam,
ficam olhando-o, querendo o seu pão com Daí o fato de o analista dever ocupar
salsicha, querendo beijá-lo. Por outro lado, o lugar do silêncio testemunha.
o caráter do duplo se apresenta no sentido Um outro momento que considero
de ele ser o Júnior: ele ficará com os dentes ser crucial nesse tratamento possível diz
juntinhos para beijar a Sandy, pois ela respeito ao seguinte episódio, relatado
também o ama, além disso, ele acordou por Diogo:
igual ao Júnior, ele é a cara do Júnior, o
irmão do Júnior, o gêmeo, tendo então a A outra — a Alessandra — apareceu
aqui. Não entendi nada... será que
sua voz. O verdadeiro Júnior é ele, eu tô sonhando... cocei o olho e ela
segundo a sua certeza delirante — ele sumiu... depois passou correndo
conversa com o cantor no CD ao vivo e vai para lá e pra cá... fiquei sem saber...
gravar um outro com a Sandy. eu fico confuso, acho que ela está
agarrada em mim. [...] Uma vez ela
De toda maneira, podemos aqui apareceu no colégio, bonita,
apontar algo que se refira ao fenômeno da cheirosa, fui atrás dela, eu chamei...
erotomania. Freud, a partir do caso- Alessandra, Alessandra... ninguém
respondeu.
Schreber, nos diz:

É possível a muitos casos de Momento crucial por indicar em que


erotomania dar a impressão de que ponto uma possível perplexidade
poderiam ser satisfatoriamente angustiante do sujeito poderia levá-lo a
explicados como satisfações
uma demanda de significação no
heterossexuais exageradas ou
deformadas, se nossa atenção não tratamento, antecedendo a uma certa
fosse atraída pela circunstância de localização do gozo, a partir de um vazio
que essas afeições começam, indecidível, a ser sustentado pela análise
invariavelmente, não por qualquer
percepção interna de amor, mas por
do analista.
uma percepção externa de ser Eis que Diogo marca um encontro
amado.(FREUD, 1911/1969:89.) com Graciela, dizendo-nos:

É isso o que Diogo nos demonstra. Fiquei no portão... fiquei escutando,


Da estrutura da posição erotomaníaca, ela me disse que estava com saudade,
ia me encher de beijinho. Abri o portão
destacaríamos não só uma relação com o e perguntei: alô, tem alguém aí... que
Outro que toma o sujeito como alvo (“elas estranho. Será que estou louco...
estão atrás de mim; elas querem alguma
coisa de mim”), como também, a certeza. De novo, é nesse confronto com
(SOLER, 1991:153.) Mas, o que é esse amor esse “alguém aí” que fala nele que
erotomaníaco? Lacan nos diz de um amor poderemos ter a chance de que um
morto, mortificante, que malogra; tratamento aconteça, a ponto de se
portanto, estaria mais para uma mania de localizar esse gozo no Outro através de
gozo que, propriamente, para uma mania um delírio, gozo que, até então, estaria
de amor. (SOLER, 1991:154.) Ao invés de deslocalizado em uma perplexidade.
um Outro como Sujeito Suposto Saber, tal Porém, uma das últimas notícias
como vemos na neurose, um amor que tive de Diogo é que, em relação à
Instituto de Psicanálise £ Saúde Mental oe Minas Gerais_______
Pâpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

sua medicação (Meleril), sua mãe lhe SOLER, C. Artigos Clínicos. Salvador, Fator, 1991.

disse que seria boa para ele ficar com a SOLANO-SUAREZ, E. A clínica dos nós, texto traduzido,
publicado no Correio n. 41, dez/2002, Revista da Escola
voz bonita- para cantar. E, assim, Diogo Brasileira de Psicanálise.
toma, ainda que irregularmente, os VERÍSSIMO, L. F. Verificar, a mãe do Freud. São Paulo: L&PM,
remédios, na tentativa de ser cantor. Será 1987. Recorte extraído da apresentação do livro Psicanálise a
educação: sexualidade por 7dx\\a Ferreira, organizado por Eliene
que sua solução será cantar a voz do Nery, Belo Horizonte, Mazza, 2000.
Outro, ou seja, ser o Júnior amado pela
Sandy? Ser cantor implicaria em uma
suplência em relação ao Pai que faltou
para amarrar o nó entre os registros
imaginário, simbólico e real? Estaria essa
solução na vertente de um projeto
artístico, para o qual o analista, em sua
orientação de gozo, poderia dirigir um
incentivo?
Parece que o incentivo, nesse caso,
à identificação com o cantor Júnior,
poderia trazer um outro recurso diferente
do empuxo-à-mulher, que, de uma forma
incipiente, é trazido na tentativa de se
“imitar a Sandy” no banheiro dos homens,
ou, até mesmo, talvez, no “perfume”...
Deslocar o objeto voz, no sentido de o
sujeito adotar a voz do Júnior, talvez possa
formar uma solução.
Se entendemos por solução, na
psicose, uma nova forma de amarração,
talvez poderíamos conceber que uma
demanda de significação na psicose pode
ser a de uma nova amarração — não mais
dos sapatos, mas aquela que implicaria em
uma suplência do Nome-do-Pai. Disso
extraímos nossa aposta.

*Tema de investigação da Clínica d'ISS, conforme lançado pelo


Núcleo de Pesquisas em Psicanálise com Crianças - Como o
sexo chega à criança - do Instituto de Psicanálise e Saúde
Mental de Minas Gerais, com o qual se mantém um convênio de
estágio supervisionado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GARCIA, C. "Psicanálise à educação: sexualidade". In: NERY,


Eliene. (Org.) Sexualidade. Belo Horizonte: Mazza, 2000.

Dl Cl AC Cl A, A. Nota sobre e! nino y !a psicosisen Lacan, Revista


El Analyticon, n. 3, Correio Paradiso, Espanha, 1987.

FREUD, S. "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico


de um caso de paranóia"(1911). Rio de Janeiro: Imago Ed., 1969
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, V.l2).

KAUFMANNER, H. "Transferência na psicose". Revista


Curinga, n.13, Belo Horizonte. Publicação da Escola Brasileira
de Psicanálise - Seção Minas Gerais, set.1999.

LACAN, J. "Duas Notas sobre a Criança". Revista Opção


Lacaniana, n.21, São Paulo, abri 1/1998.
Maria Rita de Oliveira Guimarães

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traduz como “estrago” ou “devastação”. Em francês, ravage
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apresenta, entre outros, o significado de “desgosto
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profundo” ou ainda “dano”, “prejuízo”, até mesmo o de
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repentmamente. (BOUSSEYROUX, 1999:129.) Nosso “ < '
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devastação: “catástrofe”. (FREUD, 1931:275.) “A transição i
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para o objeto paterno é realizada com o auxílio das
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catástrofe”, nos diz Freud. Se, em Lacan, lemos ravage e
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estabelecidos entre uma menina e sua mãe e àquilo que,
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- dessa ligação, a psicanálise estabeleceu como parte da
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subjetividade feminina. Para Freud, a “compreensão
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1 interna dessa fase primitiva” “foi uma surpresa”, e a
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metáfora que usa é suficiente para dar conta do elemento
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descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana
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por detrás da civilização grega”. (FREUD., 1931:260.)
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Freud. Há uma pré-história à qual não se tem acesso pela
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residuais” — pré-história indecifrável, portanto, mas já
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outra. Nessa travessia, da pré-história à história edipiana,
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que foi, para o sujeito feminino, sua ligação com a mãe.
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Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me
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parecia tão difícil de apreender nas análises — tão
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esmaecido pelo tempo c tão obscuro e quase impossível de
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revivificar — que era como se houvesse sucumbido a um
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recalque especialmente inexorável. (FREUD,1931:261.)
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gelais
Pápeis de Psicanálise v.,1 n.1 abr. 2004 .

Uma falha, e uma falha de onde da ausência (Lacan).de um significante


parte uma demanda. para a nomeação da mulher, A (A barrado),
Para a psicanálise de Lacan, a isto é, pelo lado do gozo feminino, onde a<
noção de feminino relaciona-se à idéia mulher é ausente dela mesma, como
de existência, porém, no sentido de sua sujeito. A questão é pensar como tal fato
não-universalidade. Como ele mesmo se processa, já que se sabe que a mulher só
postula, só a identidade sexual masculina pode ser abordada pelos limites que
pode instituir essa legalidade dos sexos, mantém com a questão fálica, isto é, com
que funda a universalidade da diferença, os limites da castração, o que a consagra,
exigida pela lógica fálica. Ou seja, tudo segundo as fórmulas da sexuação, a se
que se refere ao masculino aí encontra o colocar do lado masculino. Para a mulher,
marco da universalidade, enquanto o que uma das figuras da castração apresenta-se
diz respeito ao feminino aí só encontra como mãe. Desse ponto de divisão e
inscrição como não-todo. Dizendo muito localização, como mãe, uma mulher
rapidamente, isso quer dizer que a, poderá ser abordada, mas se percebe que
mulher é pensada como não-toda inscrita a menina só poderá ter acesso à mãe, não
na ordem da representação, o que a à mulher. E, mesmo assim, como filha.
coloca em relação privilegiada com o Quando realçamos o aspecto de que,
real. Lacan tratou essas questões enquanto mãe, o ser feminino encontra seu
enfocando-as desde o ponto de vista do lugar, isso indica duas perspectivas que nos
sujeito do gozo. Entende-se que há interessam.
distinção entre o gozo masculino e o Primeiramente, a mãe ocupa o lugar
feminino. Para a mulher, haveria uma do Outro da demanda, não demanda de
versão de gozo que aponta para um sem- qualquer coisa, mas demanda impossível,
limite, para o infinito, visto que não há incondicionada, cuja tradução é demanda
uma exceção que a constitui como de amor. Outro nome para essa demanda
categoria, uma expressão genérica que poderá ser demanda intransitiva, e, seja
a designe. De acordo com essa premissa, como for, a Mãe é a propiciadora da
a mulher apenas contaria com a primeira decepção à menina. A decepção
contingência que a localiza, ou não, como vai indicar algo de uma falha, o que é o
sujeito feminino. mesmo que dizer: porque existe a falha
Proponho examinar o que seja a ocorre a decepção. Penso poder assimilar
devastação como acontecimento da aqui o que acima apresentamos como
relação mãe/filha, como uma dificuldade resistência. Em oposição à decepção, uma
estrutural própria à inexistência da das soluções pela qual se pode ápresentar
essência do feminino. O que isso quer a “resistência”, no “tratado da
dizer? feminilidade”, é a esperança, tal como
entendo o termo, derivado do verbo
A subsistência demandada à mulher? A mãe? “esperar”, esperança que se poderá
apresentar sob variados recursos. Um dos
O mãe,
recursos bem poderá ser o Penisneid. Creio
me explica, me ensina, me diz não ser exagerado evocar, a partir dessa
o que é feminina? falha reconhecida, o “ainda”, “encore”, do
não é no cabelo, no dengo ou no Seminário XX de Lacan, “nome próprio da
olhar,
é ser menina por todo lugar, falha de onde parte a demanda de amor”.
ô mãe, então me ilumina, (LACAN,1972/1973:12.)
me diz como é que termina, A outra perspectiva da qual não se
termina na hora de recomeçar,
deve distanciar é o fato de que a mãe
dobra uma esquina no mesmo lugar,
e esse mistério estará sempre lá, “educa” o corpo de sua criança, no
feminina e menina no mesmo lugar. encaminhamento à cultura, ou seja, à
humanização, o que vai reverter — se há
Assim proposto, privilegia-se a “competência” da mãe na abertura para o
devastação como acontecimento, ao lado desejo — o “incondicional” da demanda
_________________________________________________________________ Dossier I
Como o sexo chega ás crianças I

de amor a algumas condições do amor, isto mulher, deixa disponível o significante


é, à palavra e à linguagem. mãe, faz pensar que a mãe é uma mulher
Portanto, na distância compreendi­ para o pai, isto é, entra em relação sexual
da entre os termos assinalados — ausência com um homem, o que lhe permite, por
e falta — ou seja, da castração a seu mais ser mulher para esse homem, não ser
aquém e, também, ao mais além, toda mãe em relação à sua criança. A
tentaremos pensar a devastação. mãe, como tal, estaria em condições de
fazer algo de inscrição do incondicional
Nesse título de elucubração da demanda de amor que lhe é
freudiana do complexo dc Édipo,
que faz da mulher peixe na água, por endereçada pela filha, permitindo à sua
ser a castração nela a situação criança uma localização na função da
inicial (“Freud dixit”), contrasta palavra e da lei da linguagem. Nessa
dolorosamente com o fato da
situação, abre-se o campo significante
devastação que é na mulher — para
a maioria delas — a relação com sua para o surgimento do sintoma como
mãe, da qual ela parece realmcnte função de limite (equivalente à função do
esperar como mulher mais pai). A castração materna estaria não
subsistência que de seu pai — o que
não acontece com ele sendo apenas relacionada à falta de pênis, mas,
segundo, nessa devastação. marcada por sua orientação a um homem.
(LACAN,1992:174.) Isso faz limite. Limite a quê? Ao gozo
sem limites que pode ser outra resposta
Vamos recuperar os termos da que a menina vá obter de sua mãe, no lugar
citação lacaniana que nos orienta e indagar: da subsistência esperada. Ou seja, ao invés
que subsistência “espera” uma menina da da subsistência, a devastação.
mãe enquanto “mulher”? Será necessário Jacques-Alain Miller definiu a
repetir o que Já foi afirmado acima, porém, devastação como a outra face do amor, ou
a partir das palavras de Lacan, em Mais... seja, trata-se de um gozo que se substitui à
ainda, O Seminário, livro 20, em que afirma resposta do amor. No texto citado, ele
que existe, para os seres que assumem o afirma que
estatuto de mulher, um “campo ignorado”.
O “campo ignorado” é a parte “não”-fálica o incondicional da demanda de
do gozo feminino, que se apresenta ao amor, em seu caráter potencialmente
sujeito como um vazio, como um campo infinito, retorna ao falasser feminino,
precisamente sob a forma da
deserto de pontos de referências para um devastação.(MILLER,1988.)
sujeito dizer-se mulher.
• Aí está o que se pede a ela, como Creio que essa citação nos permite
mulher: a subsistência. A palavra seguir afirmando que tal fato sucede
subsistência tem, para nós, entre outros, quando a mãe não pode fazer a inscrição
o sentido de “conjunto do que é do incondicional da demanda, limitando-
necessário para sustentar a vida”,
a, na medida em que pode localizar um
“permanência”, significação que se
gozo de objeto, via a dialética do amor. Em
mantém ao remeter a palavra à sua
outras palavras, há que se apresentar, pela
etimologia na língua francesa: “ce qui
via da mãe, algo do “brilho fálico” para o
reste, qui dure, résiste a\ (MAHJOUB-
evitamento da catástrofe para a menina,
TROBAS, 1993:79.) Uma subsistência
mesmo que, no horizonte, o cenário geral
para o “ser mulher” pode apresentar-se
seja aquilo que descrevem as palavras de
em palavras que o digam, ou que digam
Jacques -Alain Miller:
algo sobre o gozo feminino. Aí, uma
menina encontrará o campo deserto, ...uma mulher tem sempre um
devastado e devastador, do real. A tese ponto de devastação, que não há
de Lacan de que a mulher só existe quoad relação com a lei que possa poupá-la
matrem, afirmação que, como insistimos, disso, no mesmo sentido em que
Lacan dizia que a verdadeira mulher
indica que, se não há significante tem sempre algo de perdida.
disponível para se dizer o que é uma (MILLER,1988:129.)
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
I
Papeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Devastação x sintoma filhos que não chegam, ou chegam mortos,


ou chegam em demasia, ou na hora errada,
À página 16 do livro O
chegam, por vezes, cedo ou tarde demais,
Deslumbramento, de Marguerite Duras, há
enfim, toda ordem multifacetada de
uma frase — mais que uma frase — uma
“acidentes” que, nesse campo, sucedem
pergunta, que tomo por ilustração do que
com mais freqüência que nossa atenção
seja a devastação. Cito:
anota são formas de inscrições sintomáticas
A prostração de Lol, dizem, foi
do sujeito feminino de inscrever, como
marcada então por sinais de barreira, no grego da civilização do desejo,
sofrimento. Mas o que dizer de um o que foi devastação na era mino-
sofrimento sem motivo? miceniana.

Esse “motivo”, no original francês,


se escreve como sujet. A pergunta, então, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
se amplia, com dupla significação: “Qu’est
BOUSSEYROUX/Nicole. "De Faffliction au ravage: Lol V.
est-ce à dire qu’une souffrance sans sujet?” Stein". In: La Cause Freudienne, Paris, n.40.
(MAHJOUB-TROBAS,1993:82.) FREUD, S. "A sexualidade feminina" (1931). Rio de Janeiro:
A devastação não deixa lugar para Imago, 1977. (Çdição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freudz vol.2l).
o sujeito: o que se devasta arrasa, dá lugar
à sujeição, isto é, permite a realização do LACAN, J. Mais... ainda, 0 Seminário, Livro 20. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
ser como sujeição ao querer do Outro,
LACAN, J. UÉtourdit. SHicet, Paris, n.4, p.174, 1992.
querer tomado como ponto indizível onde
________ . UÉtourdit. (1972). SHicet, Paris, n.4, p.5-52, 1973.
estaria a demanda impossível. Como
distinguir, por exemplo, as manifestações MAHJOUB-TROBAS, Lilia. Une douleur sans symptôme. La
Cause Freudiennet Paris, n.24.
clínicas da devastação daquelas do
MILLER, J-A. 0 osso de uma análise. Escoia Brasileira de
sintoma? Sabemos que, para os dois sexos, Psicanálise! Bahia, número especial de agente, 1988.
a questão do sintoma se prende aos nós
significantes, cujo desatamento, em um
processo de análise, levará ao gozo de
sentido, ao sentido sexual, tal como fez
Freud com a histérica.
Trata-se de um ponto-limite e
podemos lembrar que, desde a posição
histérica, há sujeito, sujeito que se
posiciona em relação ao gozo do Outro,
Aseja rivalizando com a Outra mulher, seja
em posição de fazer desejar, de se fazer
desejar, de provocar a falta no Outro,
sempre apoiado na exigência de amor pela
qual busca os traços identificatórios ao ser
feminino, os semblantes fálicos da
feminilidade. Na devastação, a mascarada
se faz ausente, pois já se é, como ser
realizado.
Creio, a partir de tais considerações,
possível supor que, na clínica, teríamos que
verificar, caso a caso, o que foram os laços
libidinais de urna, menina a sua mãe, e as
eventuais situações em que se pode colher
seus efeitos. Estou propensa a pensar que
as manifestações vinculadas às dificuldades
relativas à maternidade; toda sorte de
episódios, de dificuldades em relação aos
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A SEXUALIDADE INFANTIL SEGUNDO FREUD


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adquiridas no decorrer da vida.
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Com relação aos desvios relativos ao objeto sexual,
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outro homem e não uma mulher e mulheres cujo objeto
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ft sexual é outra mulher e não um homem”. (FREUD, 1905/
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1972:136.) Ele a explica a partir dc uma disposição
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bissexual, recorrendo ao hermafroditismo orgânico e à
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f *f Freud chega à conclusão da influência da pulsão
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sexual nos neuróticos cuja disposição para as perversões é
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Instituto de Psicanálise e Saúde M ental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

O grau de perversão permitido por unificada e é inicialmente sem objeto, ou


cada pessoa está na dependência da maior seja, é auto-erótica. Por auto-erótico,
ou menor resistência oferecida pelas podemos entender o caráter contingente
“forças psíquicas”, sobretudo a vergonha do objeto da pulsão sexual, o que vai
e a repugnância, que vão ser responsáveis distingui-la do instinto, para o qual haveria
pela transformação desses impulsos em um caminho pré-formado em direção a um
sintomas neuróticos, de modo que objeto.
podemos considerar a neurose como o Durante uma primeira fase, o
negativo das perversões. erotismo oral, cujo objetivo sexual consiste
Freud lamenta que a existência da na incorporação do objeto, ocupa a maior
pulsão sexual na infância tenha sido negada parte do quadro, figurando como
e atribui essa negação a uma amnésia infantil protótipo de um processo de identificação;
semelhante àquela dos neuróticos cuja a segunda fase é caracterizada pela
essência consiste em afastar as impressões predominância do sadismo e do erotismo
da consciência. “Pode-se dizer que sem anal, aí já se desenvolvendo a oposição
amnésia infantil não haveria amnésia entre duas correntes, uma ativa e outra
histérica”. (FREUD, 1905/1972:180.) passiva. Somente na terceira fase é que as
Com relação aos desvios relativos ao zonas genitais contribuem para a
objetivo sexual, são consideradas perver­ determinação da vida sexual, e, nas
sões as atividades sexuais que se estendem crianças, essa última fase só é desenvolvida
além das regiões do corpo que se destinam até uma primazia do pênis.
à união sexual, destacando-se aqui o Freud se diz obrigado a reconhecer,
fetichismo, que seria patológico quando o como uma das descobertas mais
fetiche toma o lugar do objetivo normal surpreendentes, que essa primeira
ou quando se transforma no único objeto eflorescência da vida sexual já dá origem à
sexual. Encontramos ainda as fixações dos escolha de um objeto, com toda riqueza de
objetivos sexuais preliminares, onde Freud atividades mentais que tal processo envolve.
inclui o voyerismo, o sadismo e o Com relação às alterações
masoquismo. provocadas na vida sexual infantil pela
Afirma que as Crianças vêm ao chegada da puberdade, Freud seleciona
mundo com “germes” da atividade sexual duas delas como decisivas: a subordinação
e que gozam de satisfação sexual quando de todas as outras fontes de excitação
começam a alimentar-se. Contudo, essa sexual à primazia das zonas genitais e o
atividade não se desenvolve paripassu com processo de escolha de um objeto. O que
suas funções. Passa por um curto período eram, antes atos sexuais autônomos
de eflorescência (de 2 a 5 anos) e entra no acompanhados de prazer e excitação
chamado período de latência. Durante o tornam-se atos preparatórios para o novo
período de latência, é que se constroem as objetivo sexual, a descarga dos produtos
forças psíquicas, como a repugnância, os sexuais. Freud já aponta aqui uma
sentimentos de vergonha e as exigências- diferenciação entre a sexualidade
morais. Nesse momento, a produção da feminina e a masculina, afirmando que,
excitação sexual não é interrompida, e
Freud considera que o período de latência para se transformar em mulher, é
constitui uma interrupção no desen­ necessário mais um estágio de
repressão, que elimina uma parte da
volvimento e que masculinidade infantil e prepara a
mulher para a alteração de sua zona
esta parece ser uma das condições genital principal. (FREUD,1905/
necessárias da aptidão dos homens 1972:242.)
para desenvolver uma civilização
superior, mas também de sua
tendência para a neurose. Durante o período de transição
(FREUD,1905/1972:241.) da puberdade, os processos de
desenvolvimento somático e psíquico
A excitação sexual na criança surge continuam lado a lado até a irrupção de
a partir de várias forças. A satisfação um impulso erótico mental que leva à
decorre da excitação das zonas erógenas. enervação dos órgãos genitais, provocando
As excitações advindas de várias fontes não a unidade da função erótica que é
se combinam, a pulsão sexual não é necessária à normalidade.
Como o sexo chega às crianças |

Freud nos fala que são três as Hoje não mais me satisfaria com a
vicissitudes da pulsão sexual: se a relação afirmação de que, no primeiro
período da infância, a primazia dos
entre todas as disposições diferentes órgãos genitais só foi efetuada muito
persistir e fortalecer-se na maturidade, o incompletamente ou não o foi de
resultado será uma vida sexual perversa; modo algum. A aproximação da vida
o resultado pode ser diferente, se alguns sexual da criança à do adulto vai
dos componentes que tenham força muito além e não se limita
excessiva na disposição forem submetidos unicamente ao surgimento da
escolha de um objeto. (FREUD, 1905/
ao processo de recalque. A terceira
1972:180.)
alternativa é possibilitada pelo processo de
sublimação, que permite que excitações de
determinadas fontes da sexualidade A característica principal dessa
encontrem uma saída e uso em outros organização genital infantil consiste no fato
campos. de, para ambos os sexos, entrar em
consideração apenas um órgão genital, o
A disposição sexual perversa
masculino. O que está presente é unia
multiforme da infância pode assim primazia do falo.
' ser considerada a fonte de várias de O menino percebe a distinção entre
nossas virtudes, na medida em que, homens e mulheres, mas, no início, não
através da formação reativa, vincula essa diferença aos seus genitais.
estimula o desenvolvimento delas.
Presume que todos bs seres humanos e
(FREUD,1905/1972:246.)
animais possuem um órgão como o seu e
essa parte do corpo, excitável e tão rica em
Entre os fatores que exercem sensações, se torna uma fonte de pesquisas.
influência sobre o desenvolvimento sexual, No transcorrer dessas pesquisas, a criança
encontramos: a precocidade que se chega à descoberta de que o pênis não é
manifesta na interrupção, encurtamento comum a todas as pessoas:
ou terminação do período infantil de
latência; fatores temporais relativos à Uma visão acidental dos órgãos
seqüência e à duração; a susceptibilidade genitais de uma irmãzinha
das primeiras impressões; e a fixação. proporciona a ocasião para essa
Não poderíamos deixar de falar do descoberta. (FREUD, 1905/1972:181.)
conceito de libido desenvolvido por Freud
nos “Três ensaios”. A criança reage às suas primeiras
impressões da ausência do pênis rejeitando
Definimos o conceito de libido como o fato e acreditando que ainda assim o vê.
uma força quantitativamente A contradição entre sua observação e sua
variável que poderia servir de concepção é encoberta com a idéia de que
m e d i d a d o processo e das
transformações que ocorrem no
o pênis ainda é pequeno, mas vai crescer,
campo da excitação sexual. chegando depois à conclusão de que ele
(FREUD, 1905/1972:223.) esteve lá e foi retirado. A falta de um pênis
é vista agora como resultado da castração.
Ele atribui a ela um caráter Nesse momento, a criança se defronta com
qualitativo, distinguindo a libido do ego a tarefa de chegar a um acordo sobre a
da libido do objeto. Afirma ser a libido de castração com relação a si própria.
natureza masculina. O uso do termo Contudo, ela não efetua pronta­
masculino se refere aqui ao caráter ativo mente uma generalização de que as
atribuído à pulsão. mulheres não têm pênis. Apenas pessoas
desprezíveis do sexo feminino perdem seus
Sobre a organização genital infantil genitais como uma punição. Mulheres a
quem ela respeita, como sua mãe, retêm o
No texto “Sobre a organização pênis por longo tempo.
genital infantil: uma interpolação na teoria Só quando a criança retorna à
da sexualidade”, Freud refaz / seu questão da origem e nascimento dos bebês
pensamento quanto à descrição da e conclui que apenas as mulheres podem
diferença entre a vida sexual da criança e dar-lhes nascimento é que a mãe perde seu
do adulto: pênis.Teorias são construídas para explicar
a troca do pênis por um bebê. Em tudo
Pápeis oe Psicanálise y.l n.1 abr. 2004

isso os órgãos genitais femininos jamais O menino não consegue imaginar uma
parecem ser descobertos, razão pela qual pessoa desprovida desse órgão, do qual
a criança elabora a teoria de que o bebê obtém prazer. Se o intimidam com a
nasce através do ânus. ameaça de cortar-lhe o pênis, o efeito dessa
No estádio da organização pré- “ameaça, de castração” é proporcional ao
genital sádico-anal, não existe ainda valor atribuído ao órgão. Já as meninas
masculino e feminino, e sim a antítese desenvolvem um vivo interesse por essa
entre ativo e passivo. No estádio seguinte, parte do corpo masculino, seguido pela
existe a masculinidade, mas não a inveja.
feminilidade. A antítese é entre possuir um Como a explicação de que o bebê se
órgão genital masculino e ser castrado. E forma dentro do corpo da mãe não é
somente na puberdade que a polaridade suficiente para a pergunta sobre a origem
sexual coincide com masculino e feminino. dos bebês, parece lógico que o pai tenha
alguma coisa a ver com isso. O pênis
Sobre as teorias sexuais das crianças , desempenha algum papel nesses
misteriosos acontecimentos, mas a teoria
Freud, no texto “Sobre as teorias
de que a mãe possui um pênis torna-se um
sexuais das crianças”, diz do seu espanto
obstáculo a que a criança descubra a
quanto ao fato de a criança não tomar a
existência da vagina. O malogro de seus
existência dos dois sexos como ponto de
esforços intelectuais a leva a rejeitá-los e
partida de suas pesquisas sobre os
esquecê-los.
problemas sexuais. A ignorância da vagina também permite
O desejo da criança por esse tipo de à criança acreditar na segunda de suas teorias
conhecimento surge, quando ela é sexuais: “O bebê precisa ser expelido
surpreendida pela chegada de um novo como excremento, numa evacuação.”
bebê ou mesmo observando outras (FREUD,1905/1972:222.) Mais tarde, as
famílias. A perda experimentada ou explicações encontradas são de que o bebê sai
temida dos carinhos dos pais e o pelo umbigo ou pelo corte na barriga.
pressentimento de que terá que dividir A terceira das teorias sexuais surge
seus bens com o recém-chegado despertam quando a criança testemunha uma relação
suas moções e aguçam sua capacidade de sexual entre os pais, adotando uma
pensamento. A criança começa a refletir e “concepção sádica do coito.” (FREUD, 1905/
pergunta: “de onde vêm os bebês?, cuja 1972:223.) Ela o encara como um ato imposto
forma original certamente era: “de onde violentamente pelo participante mais forte ao
veio esse bebê intrometido?” Ela então mais fraco. Com essa nova teoria, ainda não
dirige essa pergunta aos pais ou a quem é possível à criança obter o elo que faltava
cuida dela. Se estes dão respostas evasivas, para solucionar o problema dos bebês. -
a criança começa a desconfiar dos adultos A questão da natureza e do conteúdo
e a suspeitar que eles escondem algo do estado do casamento relacionada com o
proibido. Com isso, ela experimenta o seu problema insolúvel da origem dos bebês
primeiro conflito psíquico que logo pode também atrai a atenção da criança. Ela
transformar-se em uma dissociação responderá, de diversas formas, a essa
psíquica entre o conjunto das concepções questão, entretanto, todas elas têm em
consideradas boas, mas que cessam a comum o fato de que a criança vê no
reflexão, e o outro conjunto, resultado do casamento uma promessa de prazer e
trabalho de investigação da criança, acredita que esse prazer esteja relacionado
considerado como o conjunto das opiniões com uma ausência de pudor. A explicação
recalcadas e inconscientes. Forma-se assim encontrada por Freud com maior
o complexo nuclear de uma neurose. freqüência foi que “os casados urinam um
A primeira teoria deriva do em frente do outro”. (FREUD, 1905/
desenvolvimento das diferenças entre os 1972:225.) Para ele, as teorias infantis a
sexos., Consiste em atribuir a todos, respeito do casamento têm grande
inclusive às mulheres, a posse de um pênis. significação na sintomatologia das neuroses.
Dossier
Como o sexo chega ás crianças

Por volta dos 10, 11 anos, as crianças Os efeitos do complexo de castração


começam a ouvir falar de assuntos sexuais. na mulher são diferentes. Ela reconhece o
Elas descobrem a existência da vagina e fato de sua castração e com ele a
sua finalidade, porém, as revelações que superioridade do homem, e se rebela
trocam entre si ainda são mescladas com contra esse, estado de coisas. Pode então
resíduos das teorias sexuais infantis e quase tomar três caminhos: assustada pela
nunca são suficientes para resolver o comparação com os meninos, cresce
■ problema básico. Agora, é o insatisfeita com seu clitóris, abandona sua
desconhecimento do sêmen ó obstáculo atividade fálica e sua sexualidade cm geral;
para a compreensão de todo o processo. aferra-se à sua masculinidade ameaçada,
O modo pelo qual as crianças desenvolvendo uma atitude desafiadora;
reagem à informação é também atingirá a atitude feminina final, em que
significativo. Em algumas, a repressão toma o pai como objeto, encontrando o
sexual está tão presente que permanecem caminho para a forma feminina do
aparentemente ignorantes até que o complexo de Édipo. O complexo de Edipo
conhecimento originado na primeira nas meninas é criado pela influência da
infância vem à luz. castração e não dissolvido. A fase de ligação
exclusiva à mãe, fase pré-edipiana, tem,
Sobre a sexualidade feminina nas mulheres, uma importância muito
maior do que nos homens. Observa-se que
Sabemos que o complexo de Edipo
muitas mulheres que escolheram o mando
se caracteriza pela ligação da criança com
conforme o modelo do pai repetem em sua
o genitor do sexo oposto, enquanto que
vida conjugal seu mau relacionamento com
seu relacionamento com o genitor do
a mãe. Freud explica isso como “um caso
mesmo sexo é predominantemente hostil.
óbvio de regressão”, o relacionamento dela
No caso do menino, seu primeiro
com a mãe foi o original e á ligação com o
objeto amoroso é a mãe e continua sendo.
pai foi construída sobre ele. No casamento,
Com a menina, é diferente. Segundo
o relacionamento original emerge do
Freud, ela tem duas tarefas: abandonar o
recalque.
que constitui sua principal zona genital —
o clitóris — em favor de outra nova, a Temos a impressão de que seus
vagina; e trocar seu objeto original, a mãe, anos de maturidade são ocupados
pelo pai. por uma luta com seus maridos,
assim como sua juventude se
Freud observou em mulheres que dissipou numa luta com suas mães.
tinham uma forte ligação com o pai dois (FREUD,1905/1972:2(55.)
fatos que o impressionaram muito: quando
a ligação da mulher com o pai era Freud faz referencia, a toda uma
particularmente intensa houve uma gama de motivos para a menina^se afastar
ligação anterior igualmente intensa e da mãe: a censura devida ao lato de a mãe
apaixonada com a mãe; em diversos casos não lhe ter dado um pênis; não a ter
essa ligação permaneceu durante “a parte amamentado o suficiente; nunca ter
mais longa do período da eflorescência atendido às suas expectativas de amor; ter
sexual”. (FREUD,1931/1972:260) despertado sua atividade sexual e depois
No menino, é a descoberta da proibido, através da interdição da
possibilidade de castração que impõe a masturbação.
transformação de seu complexo de Edipo. Pelo fato de esses motivos parecerem
Após o agente paterno ter sido insuficientes para justificar a hostilidade
internalizado e ter-se tornado um final da menina em relação à mãe, Freud
superego, a tarefa seguinte consiste em se aborda então o sentimento de ambivalência
desligar da figura da mãe. É o interesse e afirma que, “nas primeiras fases da vida
narcísico do menino em preservar o seu erótica, a ambivalência é evidentemente a
pênis que é transformado em uma regra.” (FREUD,1931/1972:270) Conclui
restrição de sua sexualidade infantil. que a intensa ligação da menina com a mãe
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeís DF Psicanálise v.In.Iabr. 2004

é ambivalente e é por isso que ela se afasta


da mãe.
Freud pergunta o que a menina
exige da mãe e qual a natureza de seus
objetivos sexuais durante essa época de
ligação exclusiva à mãe. As primeiras
experiências sexuais que uma criança tem
em relação à mãe são de caráter passivo.
Uma parte da libido aferra-se a essas
experiências, desfrutando das satisfações,
outra parte esforça-se por transformá-la
em atividade.
O afastamento da mãe constitui um
passo extremamente importante no curso
do desenvolvimento de uma menina. E
mais do que uma simples mudança de
objeto, pois devem ser observados também
um abaixamento dos impulsos sexuais
ativos e uma ascensão dos passivos. As
tendências ativas são as mais afetadas pela
frustração, sendo que as tendências
passivas não escapam ao desapontamento.
A transição para o objeto paterno é
realizada com o auxílio das tendências
passivas, na medida em que escaparam à
catástrofe. O caminho para a feminilidade
está aberto agora para a menina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade"(1905).


Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Edição standard brasileira das
obras completas, V.7).

. "Sobre as teorias sexuais das crianças" (1908).


Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Edição standard brasileira das
obras completas, V.9).

. "A organização genital infantil: uma interpolação


na teoria da sexualidade" (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1972.
(Edição standard brasileira das obras completas, V.19).

. "Sexualidade feminina" (1931). Rio de Janeiro:


Imago, 1972. (Edição standard brasileira das obras completas,
V.21).
Ana Lydia Santiago [Redatora], Ana Maria Lopes e Lúcia Mello

COMO 0 SEXO CHEGA ÀS CRIANÇAS?

iante da questão proposta para a Jornada do Cereda


D -— “Como o sexo chega às crianças?” —, a primeira
interrogação que ocorre é a razão da escolha do termo
“sexo”, em detrimento de “sexualidade”, que, como se
sabe, foi utilizado por Freud para tratar da predisposição
perversa polimorfa da criança e da presença do sexual na
vida dos homens, desde a infância. Por outro lado, pensar
como o sexo chega às crianças permitiu um distanciamento
em relação à tendência, manifesta no curso dos estudos de
casos realizados no NPPcri, em assimilar o que a criança
expressa em relação à sua maneira de identificar o que é
ser homem e o que é ser mulher, ou em relação à sua
investigação sobre a origem da vida, associada ao sexual.
Ficou evidente que essa tendência em objetivar o saber do
inconsciente a partir do conhecimento do perverso
polimorfo decorre de uma perspectiva evolucionista, que
se pode encontrar em alguns artigos de Freud sobre a
sexualidade infantil.
A definição do inconsciente lacaniano, como aquele
que se refere “à la béance par oú la névrose se raccord à un
réel”, confronta o analista com a dificuldade em tentar
localizar a emergência do sexo apenas na ordem dos
significantes do Outro. É certo que, na comparação
imaginária dos corpos, a criança encontra vários
significantes para diferenciar o ser feminino do ser
masculino, mas é dessa comparação imaginária que também
surge, como esclarece Freud, a descoberta da castração do
outro. O encontro da criança com o real da castração é algo
que ela não pode dizer. E esse é o real qüe concerne ao sexo
e que só pode ser apreendido, a posteriori, por um trabalho
de dedução, que será feito na experiência analítica.
Um acontecimento relatado por Arthur, no curso de
uma entrevista de apresentação de pacientes, ilustra o
efeito de a posteriori sobre uma experiência infantil de
encontro com o real. Arthur estava com cinco anos de
idade, quando iniciou uma saga de tratamentos devido ao
sintoma de mutismo total adquirido. Supôs-se, nessa

H . f, /t : ocasião, que se tratava de mutismo do tipo timogenético (J.
s ' > Ç gi
Waterink e R. Vedder), ou seja, aquele que se instala após
um forte choque afetivo.
Os familiares, contudo, não cortar a baguete e protestou, dizendo: “Eu
conseguiram identificar o fato que poderia não quero pão cortado”. Em seguida,
ter causado impacto sobre o menino. aceitou um outro pedaço de pão que estava
Alguns anos mais tarde, dúrante essa na cesta, bem menor em tamanho, que,
entrevista, quando seu sintoma de porém, não tinha sido cortado pelo pai
mutismo já havia cedido, Arthur revelou- diante de seus olhos. Isso comprova que o
nos que parar de falar, aos cinco anos, foi problema da criança não tinha a ver com
uma decisão sua, em protesto contra um o tamanho do pedaço de pão, ou seja, com
comportamento de seu pai. Que a quantidade de alimento que saciaria sua
comportamento? Ele não soube precisar ao fome, mas com alguma coisa que se
certo: uma mentira ou horrores que o pai manifestava intolerável, enlaçado ao ato de
teria dito à sua mãe, em um dos dias em cortar ou ao significante “cortado”.
que chegou alcoolizado em casa. Por outro Percebe-se, nesse exemplo, que, embora o
lado, voltar a falar, dois anos mais tarde, sexo esteja presente na fala da criança, há
foi algo que a ele se impôs a partir da um hiato entre a contingência dos fatos
irrupção de uma palavra, diante de uma vividos, observados ou apenas elucubrados
cena de horror. Ele estava colhendo frutas pela criança — acontecimentos referentes
no pomar da fazenda dos avós, em às questões da sexualidade infantil — e as
companhia de um tio. De repente, este conseqüências que o sujeito elabora para
tirou um facão da bainha e cortou uma além desses fatos que apenas poderão ser
goiaba ao meio. Arthur ficou construídos em uma experiência analítica.
impressionado com o tamanho do facão,
mas se lembrava, sobretudo, do horror que Como o sexo chega às crianças na
lhe causara ver alguns vermes brancos neurose: o caso Daniel
mexendo-se no núcleo da fruta. Nesse Daniel* é um menino de 11 anos, que
momento, pronunciou: “goiafafa”. Esse tinha sido encaminhado para tratamento
lalangue — que aglutina parte do terapêutico, em função de dificuldades
significante que designa a fruta (goiaba) e escolares na leitura, na escrita e na realização
parte do que designa o enorme objeto de operações matemáticas. Ele quase nunca
cortante (facão) — invadiu brutalmente o se comunicava com os colegas, o que também
silêncio de Arthur e reabriu-lhe a cadeia inquietava seus professores. Entretanto, o
discursiva. Pode-se dizer que, em face desse que determinou o início do tratamento foi
fato contingente, o menino foi levado a uma conduta adotada por ele que seus
elaborar uma palavra sobre a cena. Assim, familiares, sobretudo, a avó, consideraram
“goiafafa” seria a palavra traumática que bastante estranha: Daniel estava entrando na
estava muda, a palavra que, ao mesmo casa de vizinhos, para procurar lingerie
tempo, nomeou um acontecimento feminina em armários, banheiros, cestos de
traumático, abriu acesso à fala e inscreveu roupa suja e máquinas de lavar roupa e, em
a maneira particular de relação desse seguida, rasgava-as com violência.
sujeito com a língua. Descoberto, ao ser questionado soBre o que
Um outro exemplo, o de uma fizera, deu gargalhadas e explicou que
menina de três anos de idade, pode revelar, pretendia incriminar colegas da escola que
de forma mais evidente, que esse encontro o incomodavam. Esclareceu, ainda, ter
com a castração do outro produz, na escolhido roupas de baixo femininas, porque
criança, não apenas um vazio mas também são as mais caras de uma pessoa, as que
um suplemento de sentido, indicador de cobrem a parte mais íntima do corpo.
que o sexo chega às crianças por meio do Em uma das primeiras sessões do
significante. Essa menininha estava tràtamento, Daniel elucidou sua posição
tomando o café da manhã na companhia subjetiva, a partir da descrição de um
de seus pais, quando começou a chorar desenho:
inconsoladamente. Como de costume, o
pai preparava-lhe um pedaço de pão. Eu fiz um menino, que se chama
Nesse dia, porém, ela não suportou vê-lo Felipe. Tem quase 12 anos, é filho
Dossier
Como o sexo chega às crianças

único e mora com sua mãe chamada impacto. Ela passou, então, a exibir o pênis
Maria. O pai dele morreu com uma do filho, como uma curiosidade, a todos que
bala na cabeça, quando ele tinha
nove anos. Ele achava que o pai era visitavam sua casa. Daniel não escondia sua
um homem trabalhador, honesto e satisfação durante essas sessões de exibição.
alguém que ajudava a família. O pai Ele também não escondia sua prática
morreu assassinado por um bandido
masturbatória, cuja freqüência, desde essa
que quis roubá-lo. O menino ficou
traumatizado, pensando o tempo época, aumentava a cada dia. Essa exibição,
todo no pái. A mãe ficou chorando e em um primeiro momento, posta em cena
nunca mais teve outro namorado. pela própria mãe, foi, em seguida,
Vivia só com o filho, que também não
tinha namorada, porque a mãe não fortemente reprimida por ela mesma, que
deixava. passou a considerar tanto a exibição quanto
a masturbação inadequadas.
De fato, na vida real, Daniel era No curso do tratamento, as sessões
muito apegado à mãe, era o filho preferido, que se seguem àquela em que Daniel
era tão amado quanto o fora seu próprio comentou seu desenho, contando a história
pai. Sua mãe foi casada uma primeira vez, do menino Felipe, vão ser caracterizadas
teve três filhos e ficou viúva. Algum tempo pelo relato de episódios nos quais ele reage
depois, teve Daniel, fruto de um com muita violência às provocações dos
relacionamento temporário com um colegas. Em cada um desses relatos, havia
homem casado. O pai de Daniel foi o único sempre um menino detido por uma
amor da vida dessa mulher, qué desejou gangue e espancado violentamente por
muito viver com ele, porém, ele preferira Daniel, com correntes, pedras ou skates. E
a esposa. Quando Daniel estava com um preciso levar-se em conta, nessa fantasia,
ano de idade, sua mãe envolveu-se com a identificação de Daniel ao agressor, para
um outro homem, de quem se separou se alcançar o desdobramento da figura do
logo após ter dado à luz um quinto filho. pai, que já se faz presente na história do
Desde o nascimento desse irmão caçula, menino Felipe: o pai ideal — honesto e
Daniel não manteve nenhum contato com trabalhador — aparece de início, mas, por
o pai. Ao contrário desse homem, Daniel não ceder ao bandido algo que lhe era
permaneceu ao lado da mãe e respondeu valioso, ele vai encontrar a morte de forma
a seu amor diferenciado, tornando-se um bárbara. Nessa construção, Daniel situa o
filho muito carinhoso e, também, ponto, na cadeia de sua história, em que
extremamente ciumento — chegou ao algo se interrompe. A morte do pai do
ponto de impedir, de forma agressiva, que menino, quando ele tinha nove anos,
sua mãe mantivesse qualquer assinala o momento em que o sujeito se vê
relacionamento com outro homem. só, em face da mãe amada, uma mulher
Para a mãe, Daniel era muito extremamente interessada no órgão sexual
semelhante ao pai, tanto fisicamente do filho:
quanto em relação ao caráter, tímido e
tranqüilo. Por outro lado, considerava que, O menino ficou traumatizado,
pensando o tempo todo no pai. A
se o filho não conversava na escola e vivia
mãe ficou chorando e nunca mais
voltado para o sexo, era porque, nas suas teve outro namorado.
palavras: “Quando eu era pequena, era
muito calada, mas gostava muito de sexo. O que parece ser um acontecimento
Meu pai era muito mulherengo”. traumático, que marca a incidência da
O interesse dessa mulher por sexo vai língua sobre o corpo de Daniel, é o
localizar-se, precisamente, no órgão sexual exibicionismo do pênis. A exibição
do filho. Até os sete anos de idade, chamava- introduz o real do gozo da mãe sobre o
lhe a atenção o pequeno tamanho do pênis órgão do filho, e este responde com o
de Daniel. A partir dessa data, o crescimento fetiche. O roubo das lingeries, dois anos
inesperado e surpreendente desse órgão, mais tarde, é o signo de que se tornou
que atingiu, a seu ver, a proporção do pênis necessário, para esse sujeito, construir um
de um homem adulto, causou-lhe forte mais-além do véu, ou seja, uma relação

■aasaMii
Instituto ot Psicanálise e Saúdl Mental de Minas Girais
Pápfis de Psicanáiisf v.l N.l abr. 2004

ilusória essencial para sua relação de casal. Os pais conheceram-se em uma


objeto. Rasgar as roupas de baixo situação bem específica: eram vizinhos de
femininas equivale, para ele, a rasgar “o parede; ó futuro pai de Clemente ficou
que há de mais caro”, “a parte mais íntima doente e, então, por insistência da própria
que a pessoa tem”. Seu sintoma manifesta mãe, a futura mãe de Clemente passou a
incessantemente sua própria ambigüidade; cuidar do vizinho, que era só no mundo.
ele exprime, por seu acting-oid, algo que o Para facilitar essa tarefa, conjugaram-se as
sujeito não alcançou no plano simbólico. casas, abrindo-se uma porta na parede.
Após seu restabelecimento, a porta
Como o sexo chega às crianças na psicose: permaneceu aberta e eles se instalaram
Ò caso Clemente como casal. A vida marital caracterizou-se,
desde o início, por brigas constantes c
Em “De uma questão preliminar a
agressões físicas. Mesmo assim, tiveram
todo tratamento possível da psicose”,
dois filhos. Alguns anos mais tarde,
Lacan afirma que a questão da existência
aconteceu de a casa onde moravam ser
se coloca para o sujeito psicótico não sob a
desapropriada. A mãe de Clemente, então,
feição da angústia que ela suscita no nível
comprou uma casa nova com a verba da
do eu, mas como uma pergunta articulada
indenização e mudou-se para lá, apenas
— “Que sou eu nisso?” —, concernente, por
com os filhos. A partir dessa época,
um lado, ao seu sexo e à sua contingência
Clemente foi para a rua. Sumia por vários
no ser, isto é, a ser ele homem ou mulher,
dias e, depois, reaparecia. No princípio, a
e, por outro, ao fato de que poderia não sê- mãe saía à sua procura; contudo, com o
lo, os dois conjugando seu mistério e passar do tempo, deixou isso de lado. Ela
enlaçando-o aos símbolos da procriação e achava Clemente muito parecido com o
da morte. (LACAN, 1966:549.) Na psicose, pai, seu antigo companheiro e, como não
o enigma da existência propõe-se visando gostava do jeito deste, preferiu deixar o
a uma construção. O caso de Clemente** é filho desaparecer. Dessa forma, Clemente
demonstrativo da construção de uma encontrou-se, liteialmente, sozinho no
ficção, que tem inicio, justamente, com a mundo, tal como fora dito a respeito de
questão formulada sobre a origem — Que seu pai.
sou eu nisso? —, e culmina não em uma Menino de rua, foi retido várias
fantasia, diante do impossível de inscrever vezes por algum ato infracional. Nessas
o real do sexo, mas em uma garantia sobre ocasiões, não revelava seu nome nem
a existência do sujeito, ou seja, sobre sua endereço. Costumava indicar, como
própria origem. Nesse caso em particular, origem, alguma cidade do interior e,
a ficção, enquanto produção de uma assim, era encaminhado para lá. Passou
tessitura para possibilitar ao sujeito dar por várias instituições e fugiu de todas.
conta do lugar em que é apreendido no No curso dessa trajetória, guardou,
Outro, constitui-se a partir do que é cuidadosamente, os documentos que
próprio às instituições de assistência ao atestavam sua passagem por esses lugares,
menor. documentos que, como revelou, davam
Clemente é um adolescente prova de sua existência. Guardava-os em
incorporado a um Programa de Liberdade uma pasta e nunca perdeu um .deles
Assistida, por determinação do Juizado da sequer.
Infância e da Adolescência, devido a Seu tratamento teve início apenas
ocorrências reincidentes de pequenos quando estava com 16 anos. Ele foi
furtos e uso de tóxicos. Ele é identificado mordido por um escorpião em um dos
como mentiroso e encrenqueiro. O que sobrados onde costumava abrigar-se e
mais surpreende é sua longa trajetória na hospitalizado por vários dias. Como de
r u a, o n d e s o b r e v i v e, e n g a n a n d o a s costume, fugiu do hospital; porém, dessa
instâncias públicas, desde os oito anos de vez, talvez por ter sobrevivido a uma
idade. Ele saiu de casa logo que seu pai ameaça de morte, procurou uma Casa de
deixou o lar, por ocasião da separação do Passagem e começou, pouco a pouco, a
_____ ______________ Dossier
Como o sexo chega às crianças

contar sua história, o que o reenviou à Cf. LACAN, J. "D'une question preliminaire à tout traitement
possible de la psychose". In: Écrits. Paris: Seuil, 1966.
casa de sua mãe. Mais uma vez, fugiu de (Traduzido para o português com o título "De uma questão
lá, sem, contudo, abandonar o preliminar a todo tratamento possível da psicose''. Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998).
tratamento, estabelecido como medida
LAURENT, Éric. "Responder al nino dei manana". Carretei,
socioeducativa. Procurou o pai, que já Madrid, n.4, oct. 2001.
tinha constituído outra família, mas este
MILLER, J-A. "Os seis paradigmas do gozo". Opção Lacaniana,
o acolheu, com a condição de que ele se São Paulo, n.26/27, abr. 2000.
comportasse como homem. Do pai,
ganhou uma segunda pasta, que substitui
a primeira. Nesta, como já mencionado,
ele arquivou, cronologicamente,
documentos dos diversos lugares por
onde passara. Surpreendentemente, o
documento que encerrava essa série era
sua certidão de nascimento. “Eis minha
história”, dizia, “um dia, vou contá-la ou
escrever um livro. Se eu morrer, já tenho
uma história”. Na pasta nova, guardou
uma dentadura velha do pai. Explicitou:
“Eis uma lembrança de como meu pai é
mulherengo. Ele perdeu os dentes em
uma briga por causa de mulher”. Nessa
pasta, guardou, também, um bipe e um
telefone celular, para poder ligar-se ao
pai, via Embratel, Telemar e Telemig
Celular...
De posse dessa segunda pasta,
Clemente realizou alguns trabalhos e
mostrou-se animado para estudar. Receia
não dar conta de parar de usar drogas ou
de fazer pequenas bobagens, mas
continua a esforçar-se. Pode-se considerar,
a respeito desse caso, que os seis anos
passados na rua tiveram a função de
fornecer significantes para o sujeito dar
forma à sua existência. A pasta de
documentos constitui sua ficção, pois
foram as instituições, por onde Clemente
passou, nesse espaço de tempo, que
humanizaram minimamente sua condição
no mundo.

NOTAS

* Tratamento conduzido por Maria Cristina Mousse Safar, aluna


doNPPcri, do IPSM-MG.

’* Tratamento conduzido por Kátia Zacché, aluna do NPPcri,


do IPSM-MG. • ~ .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, Jacques. "Nota sobre a criança". In: Outros Escritos.


Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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CORPO E SINTOMA
Vicente Palomera

CORPO E SINTOMA

sse trabalho me conduz a ligar a questão da finalidade


S da análise com aquela da finalidade da neurose, A
neurose tem uma finalidade, um alvo, que se define em
termos de benefício sintomático. Nessa perspectiva, a
finalidade da psicanálise consistiria cm levar em conta o
gozo do corpo que obscurece o sintoma, quer dizer, levar
em consideração a parte pulsional do sintoma.
Se nós partimos do sintoma, a questão central é saber
qual é a diferença entre o sintoma na entrada da análise e o
sintoma que resta ao final dela. Com efeito, se a entrada em
análise se faz sempre pelo sintoma, enquanto ele é uma
significação emanada do Outro pela via do fantasma, a saída
se faz também pelo sintoma — que Lacan escreve sinthoma.
Como Jacques-Alain Miller o mostrou, em seu curso A
Orientação Lacaniana, Lacan nos convida a levar em conta o
sintoma do fim da análise como algo que iria alem do
inconsciente, assinalando que “o que se inscreve neste lugar
é o mesmo que ele chamou de falasser onde a função do
inconsciente se completa com o corpo”(MlLLER,1999.).Isso
que a psicanálise põe em jogo é, portanto, uma corporização
da dialética do sujeito e do Outro e esta implica uma prática
que leve em conta o corpo como substância gozante.
Ao final desse mesmo curso, J.-A. Miller assinala:

Pelo fato de ter um corpo o homem também tem


sintomas com os quais não pode se identificar. E
mesmo a falta dc identificação na qual nos
encontramos, relativa a isto que se apresenta como
uma disfunção, que faz salientar o relevo do sintoma.
Não se pode se identificar, salvo recorrendo a uma
psicanálise, da qual uma das saídas é se identificar ao
sintoma que resta. Isto supõe que, para ter sintomas, é
necessário ter um corpo, não é necessário ser um
corpo, e que para se identificar ao sintoma é
necessário ter um psicanalista.

ii < Finalmente, ele conclui: ii - < -) i i) • < j ))• - ) )) -

o sintoma no estado natural, o sintoma que não é


desnaturado por uma análise, é exatamente aquilo
que manifesta que não se saberia identificar o homem
com seu corpo.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Mimas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

A esse respeito é necessário lembrar psicanalista, de sua posição, reproduz


que Lacan se interrogou, em seu a neurose, e que o pai traumático,
ele a produz inocentemente.
seminário intitulado O Saber do Psicanalista
(LACAN,1972.)
sobre isto que do sintoma “maltrata
(tutoée)” o corpo:
E nessa perspectiva que eu gostaria
agora de destacar algo que eu não
isso que fala, o que quer que seja,
isso é o que goza de si como corpo, percebi no momento mesmo do passe.
o que goza de um corpo por ele Estudarei em seguida um fragmento de
vivido, como já anunciei do caso que mostra bem como a substância
“aturável (tuable)”, quer dizer como gozante do corpo é sempre o que
tuteável (tutoyablé), de um corpo que opacifica o sintoma.
ele trata por tu e de um corpo a
quem ele “maltrata” dizendo “mata-
Pôr fim à repetição
te pato” na mesma linha.
(LACAN,1972.) O que mais me aliviou e, ao
mesmo tempo, surpreendeu, no início
Nessas linhas, Lacan faz alusão ao de minha análise, foram algumas
fato de que o corpo da pulsão, incluído intervenções do analista a propósito da
no discurso — sujeito, portanto, à série de gripes e rinites-que eu tinha.
materialidade do significante — está do Tratava-se de indicações que
lado da morte (tuable). E, pois, um corpo concerniam ao discurso médico,
mortificado. Mas, na mesma linha, Lacan especialmente ao uso da vacina como
assinala que há um Outro corpo, medida preventiva. Otites e rinites
tuteável, um corpo que se tem e que não tinham sido sintomas muito repetidos
se reduzirá à materialidade do em minha infância.
significante. Ele indica também que é um A entrada em análise foi
corpo que se entrega ao gozo do Um, sem franqueada quando eu me encontrei sem
jamais encontrar seu ser. palavras após ter começado o relato, que
Como intervém a psicanálise nesse eu sempre tinha escutado, da criança que
gozo que é tomado pelo Um? A questão se encontrou à beira da morte por causa
de saber o que é a psicanálise, Lacan de uma provável cianose, que ocorreu
responde: nos dias que se seguiram a seu
nascimento. Sobre esse ponto, o discurso
é a localização disto que se dos pais era breve, mas suficientemente
compreende de obscurecido, disso confuso. O relato materno insistia
que se obscurece na compreensão, unicamente sobre a cor “violeta” (morado)
por causa de um significante que da criança que morria.
marcou um ponto do corpo. A A análise consistirá em uma
psicanálise é o que reproduz uma
reprodução desse significante e do que
produção da neurose. Em relação a
isto todo mundo está de acordo [...]
foram suas eflorescências. Como
Esta neurose que se atribui, não sem assinala Lacan, “fazer um modelo da
razão, à ação dos pais, é atingida neurose é de algum modo a operação
somente na medida em que a ação dos do discurso analítico”. Por que esse
pais se articula justamente com a modelo? Porque ele suprime a parte do
posição do psicanalista. E na medida gozo.
em que converge sobre um
significante que emerge, que a O gozo exige efetivamente o
neurose vai se ordenar segundo o privilégio: não há duas maneiras de
discurso cujos efeitos produziram o como fazer para cada um. Toda
sujeito. Todo pai traumático está, em' reduplicação o mata. Ele não
suma, na mesma posição que o sobrevive senão se a repetição for
psicanalista. A diferença é que o inútil nisso, quer dizer, sempre o
; ■

___________ Clínica
J1 Corpo e sintoma

mesmo. É a introdução do modelo que aquele para o qual convergia a


que consuma esta repetição inútil. neurose, reproduzida na análise.
Uma repetição consumada o dissolve
Reproduzir esse significante era chegar
pelo fato de que é uma repetição
a se confrontar com a estranheza radical
s i m p I i fi c ad a. (LACA N, 1972.)
nesse (re)encontro que constitui a
experiência analítica, em que o
No curso da análise, eu evocarei
significante se desdobra, mostrando-se
freqüentemente uma imagem acústica,
irredutível a ele mesmo.
sem sentido, cuja emergência me
Lacan mostrará que é através desse
perturbava a razão. Tratava-se do nome
Sl, o significante da transferência, que se
de um peixe estranho de cor violeta
produzem as “eflorescências” do sujeito
(morado) chamado em zoologia de
suposto saber. Pela transferência se produz
Angelrina Squatina. Não me é difícil hoje
uma duplicação da cadeia. O que é o mais
extrair dessa imagem acústica do peixe
extraordinário é que Lacan simplificou
o elemento que insistia: (do
essa “duplicação”, introduzindo-a num
grego nnos, nariz) e seu enlaçamento
algoritmo que é aquele da transferencia:
com o corpo. Essa imagem constituía
uma tela com relação à descoberta da
castração. Assentado no chão com uma
irmãzinha, olhando um álbum de
Sl ...-ASq
zoologia, nós repetíamos numerosas
Sl,S2,S3...Sn
vezes, gargalhando, o nome desse
estranho animal. Esse momento
coincidia com o início da aprendizagem
da leitura. Essa forma sonora da língua, Esse algoritmo implica que há, de
fora do sentido e unida à imagem visual, um lado, a cadeia significante, que ele
resumia defmitivamente a imagem do representa como um vetor de significantes
supereu. (Sl —> Sq ), e, de outro lado, a duplicação,
Quando Lacan tomou o quadro Os o efeito que nós chamamos sujeito suposto
Embaixadores como paradigma, foi para saber (SsS): s(Sl,S2,...Sn).
mostrar que, no iíiterior desse quadro, Essa duplicação constitui o próprio
há uma imagem que denuncia a núcleo do algoritmo da transferência. É
representação do resto dele como essa duplicação significante que Lacan
vanitas. Nesse quadro, vê-se uma introduz igualmente em seu célebre
imagem que, à primeira vista, não grafo, quando ele inscreve nele dois
representa nada e que se apresenta níveis.
como tal. Mas, para ver essa imagem, é Tratando-se do algoritmo da
necessário um deslocamento do transferência, o importante não é tanto a
espectador. Quando nós nos deslocamos, diferença de conteúdo que haveria entre
quando não somos mais seduzidos pela seus dois níveis, mas a introdução de um
imagem dos embaixadores, percebemos índice, s( ), que é puro efeito de
então o que' não podíamos ver significação. Os efeitos de significação na
anteriormente. No campo disso que é análise não são senão efeitos de pura
imaginário e espetacular, nós ressonância desse intervalo marcado entre
percebemos um certo tipo de imagem parênteses.
que nos confronta com aquilo que é o O que é decisivo é que a
real da própria finitude. A anamorfose significação de saber, que permite essa
está presente no interior do campo da ressonância, chega, ao fim da análise, a
representação, mas justamente para tomar um valor de real: ela se torna —
denunciá-la. como o desenvolveu diversas vezes J.-A.
Este significante, Angelrina, Miller — referência (Bedeutung), resposta
extraído no final da análise, é o mesmo do real. E isso, logo que o sujeito viu seu
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pàpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

sintoma completado. Extraído dos restos a acordavam. Chamando dessa maneira a


do sentido, isolado de seu próprio modo atenção de sua mãe sobre a zona genital,
de gozo, o sintoma não pode mais, então, ela provocou a inquietude da mesma. Não
sustentar-se na falta de ser do sintoma compreendendo que a sua feminilidade
inicial. estava em jogo nesse conflito, ela fazia de
Tudo isso permite compreender por seus pais marionetes angustiadas,
que a finalidade da análise supõe a enquanto os médicos estavam ocupados
obtenção de um ponto final quanto à em procurar uma causa orgânica. Ela
hesitação que é aquela da neurose. Com exprimiu seus sentimentos dizendo “eu
efeito, o neurótico é aquele que não quer tenho o ventre que mexe”, ou ainda, “meu
crer nesse momento crucial de sua infância ventre faz tic-tac”. Justamente no momento
quando se revelou qué o Outro falta: A desse encontro traumático, um
acontecimento prodigioso da natureza
Do sentido ao silêncio da pulsâo ocorreu em sua região, um tremor de terra
de forte intensidade.
O caso clínico que nos interessa é o Os pais a levaram ao médico. Eles
de uma mulher que atendo há dois anos, a tornaram mais doente. Mas disso, do
e que adoeceu há muito tempo. Logo que que, sobretudo, ela se lembra, quando
veio me ver, seus sintomas, na garganta e das explorações que o médico fazia em
na faringe, são a fonte de um grande mal- sua garganta, é da atenção com a qual
estar. Eles eram tão riTãis incômodos ela colocava delicadamente sua língua,
porque a voz é um instrumento essencial para evitar que a espátula desinfetada do
em sua profissão. médico a tocasse. Ela obtém assim toda
Entre outras coisas, ela evocará a uma mestria sobre esse tipo de
seguinte lembrança: na idade de quatro auscultação. O médico, então, explorava
anos, logo que entra no quarto de sua sua garganta. Pode-se supor,
mãe, que acabara de dar à luz seu naturalmente, que para essa jovem, a
irmãozinho, ela a encontra — é o efeito patologia da faringe tenha um papel
de um parto prolongado — com a boca prevalente. Uma de minhas intervenções
intumescida. A criança pergunta à sua sobre o deslocamento de “cima para
mãe: “o que é que você tem na boca, baixo” foi suficiente para que seu corpo
sangue?” Sua mãe lhe dirá simplesmente: não cedesse mais tanto ao jogo das
“a cegonha veio, e houve uma luta de representações.
bicadas para que ela soltasse o bebê”. Ela evocou, então, o dia em que ela
Nem mais, nem menos! se dirigiu à sua mãe para lhe perguntar:
Tais palavras são, entretanto, “você também, você tem a pequena
insuficientes para explicar a razão pela coisa?” Sua mãe respondeu que não. A
qual aquela mulher sofre de uma essa resposta negativa, ela reagiu
faringolaringite crônica que lhe causa violentamente — “mas sim,você tem a
muita inquietação em sua profissão. Ela diz pequena coisa!...” A discussão com a mãe
igualmente sofrer daquilo que a medicina duraria mais ainda se ela não tivesse
chama atualmente de “fibromialgia”. passado para outra coisa.
Evidentemente, com a explicação da mãe, A partir desse momento, ela
a filha tinha muito com o que construir começou a elaborar uma ficção centrada
sua teoria sexual. nas sereias, as quais ela se põe a
Efetivamente, essa mulher teve, desenhar com uma verdadeira
desde a idade de seis anos, sensações obstinação, o encontro com a falta do
vaginais. Ela era despertada do sono por pênis da mãe sendo propício ao fato de
espasmos uterinos. Ela ignorava o sentido que a anatomia se ponha a significar.
erótico destes, como ignorava o sentido dos Mas, se essa lembrança ficou gravada
gemidos de sua mãe no quarto vizinho, que nela, não foi tanto pelo fato de seu
interesse pela anatomia feminina, nela era a sua virtuosidade em desenhá-las.
mesma, nem por causa da percepção do Logo que ela fez 13 anos, seu irmão, um
corpo materno, mas porque, nesse dia, certificou-se de que ela não
momento, lhe foi revelada a verdadeira desenhava mais sereias. Ele diz a todo
natureza do falo. mundo: “ela finalmente lhes colocou as
Ela se põe, então, a desenhar patas!” As sereias, portanto, tinham
freneticamente sereias, na idade de oito deixado de possuir uma cauda, mas,
anos precisamente, após ter visto na então, ela começou a adoecer.
televisão a imagem de uma bela atriz de Agora, em sua análise, ela sabe
cinema deitada em uma banheira e que lhe é necessário tirar as
exibindo uma bela cauda de sereia (A atriz conseqüências do saber que
se chama Velasco - Vela-o-asco). Ela se representam o sintoma. Face à falta de
lembrou que, antes desse seriado de significante do Outro para responder às
televisão, tinha tido um sonho no qual suas questões sobre a existência e sobre
aparecia uma sereia que voava, com uma o sexo, ela teve, então, que recorrer a
grande cauda de peixe. um número ilimitado de significantes
para metabolizar o encontro com o gozo
Seus pais estão no quarto nupcial, experimentado em seus espasmos. Esse
de cor vermelha; ela está ao lado, caso nos mostra como um sujeito pode
u num berço dourado. Há, no ser pego nas redes do significante, não
quarto, uma sereia que flutua no
somente no nível do sentido, mas ainda
ar e que sai pela janela, é como se
nesse nível em que o significante produz
eu estivesse na torre de um castelo z
medieval. um gozo do corpo afetado pelo
significante.
Esse sonho, tal como um conto de Relembremos aquilo que Lacan
fadas, é proveniente do relato de 0 sublinha em “A ciência e a verdade”: a
romance do conde de Olinos, que sua mãe revelação do falo não é nada mais do
lhe contara. E ele apresenta uma “que este ponto de falta que ele indica
ilustração extraordinária desse “véu no sujeito”. “Este ponto é um nó”, diz
transparente” do qual fala Lacan, quando ele. E acrescenta:
evoca a forma que toma a presença do falo
nos contos para as crianças, assim como Este index é também aquele que
nos mostra o caminho por onde
no inconsciente. Nesse romance, trata-se
queremos ir este ano, isto é, por
de um trovador que canta para uma
ali onde vocês mesmos recuam de
princesa, que se encontra num castelo ser, nesta falta, suscitados como
com sua mãe. A princesa pergunta a quem psicanalistas. (LACAN, 1998:892.)
pertence essa bela voz. Seu pai ordena a
morte do trovador; sua mãe lhe. diz que Esse ponto onde somos suscitados é
não havia trovador, mas que aquela voz aquele onde se trata de extrair o sintoma
era de uma sereia. dos restos do sentido, e de fazer advir o
É mais precisamente a partir de dizer que faça acontecimento para o corpo
então que ela começará a desenhar as silencioso da pulsão.
sereias em série. Ela as desenhará de
todas os tipos: sereias-engenheiras,
se rei as-médicas, sereias-dançarinas * Texto de Vicente Palomera traduzido a partir do original
flamencas, sereias-bombeiras, enfim, "Corps et symptôme", publicado em Réinventer la Psychanalyse
sereias de todas as profissões, o que não - La cause freudiennen.SO, fevereiro de 2002, p.80-85.
é sem ligação com a sua dificuldade de
escolher uma orientação profissional.
Muitos de seus colegas de classe TRADUÇÃO: Rogério Dantas Paulino
guardaram as suas sereias, tão grande REVISÃO: Cristina Drummond
Fjq | jj.1 Instituto dê Psicanálise e Saúoe Mental oe Minas Gerais
IZYJ r| papeis bc Psicanálise v.l u . 1 AfiR. 2004

NOTAS

NT - "tutoie", no original.

NT - ^tuabld', no original, que vem de "tuer", matar, matável,


portanto.

NT - tutoyable, no original.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MILLER, J.-A. A Orientação Lacaniana. Curso do Departamento


de Psicanálise de Paris VIII, 27 de janeiro de 1999, inédito.

LACAN, J. O saber do psicanalista. Seminário pronunciado em


Ste- Anne, lição de 4 de maio de 1972, inédito, tradução de Luiz
S. D. Forbes.

. "A ciência e a verdade". In: Escritos. Rio de Janeiro:


J.Z.E.,1998.
Lúcia Mello

COHT JT-R IO: A PEQUENA SEPEK

omo é do conhecimento de vocês, o XIIQ Encontro


■ Internacional do Campo Freudiano, realizado em 20
e 21 de Julho de 2002, em Paris, teve como tema “A clínica
da sexuação”, que foi objeto de conversações em salas
simultâneas, organizadas a partir dos diversos eixos de
pesquisa do Campo Freudiano.
No que concerne especificamente à Jornada na Nova
Rede Cereda, a conversação girou em torno de três
pontos principais:
1. Os destinos anatômicos e subjetivação do sexo.
2. O falo, em três perspectivas diferentes: a relação
do sujeito ao falo, as invenções fora do falo, e o ser ou não
ser o falo da mãe.
3. A construção da fantasia.;
O comentário a seguir toma como referencia o
trabalho de Vicente Palomera intitulado: “O quadro da
sexuação: o caso da pequena sereid”, apresentado na mesa
que discutiu o tema: “As controvérsias da relação ao falo”.
Optei por abordar esse caso levando em consideração os
novos aportes surgidos no curso dessa Conversação, que
se desenvolveram dentro do quadro mais amplo das
elaborações do Encontro.
Questões diversas motivaram meu interesse sobre
esse trabalho. (PALOMERA,2002:80-85.) Em primeiro
lugar, o caso permite abordar uma temática que venho
estudando no momento: trata-se do corpo e do sintoma
em suas três dimensões — real, simbólico e imaginário —,
que implicam variações do gozo articuladas à palavra e à
pulsão. Chama atenção também o fato de Vicente
Palomera introduzir o caso dessa paciente em um texto de
transmissão de sua experiência do passe, que se encontra
traduzido nesses Papéis, enlaçando duas experiências em
torno de uma mesma questão. Pode-se, até mesmo,
perguntar se seria, de fato, uma mesma questão. Outro
aspecto interessante e que, pessoalmente, já encontrei na
clínica, em mais de uma ocasião: a análise de uma mulher
circunscrever e partir de um sintoma infantil, cujo retorno
ou repetição faz apelo, não apenas ao sentido, mas ao
trabalho que atravessará uma satisfação pulsional
manifesta num corpo e afetada pelo significante.
,!.;s:i7uto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
PÁPÉfS DE PSiCANÂLISE V. 1 N, 1 : A 8 R; 2 0 0 4

O caso “A pequena sereia”: trata-se, sereias — engenheiras, médicas,


como já havia mencionado, de uma mulher mineradoras, bombeiras. Esses desenhos
de 35 anos que apresenta uma laringite têm início após assistir pela TV a cena de
crônica, com antecedentes de rinite uma atriz, cujo sobrenome era Velasco,
alérgica e asma brônquica. Todos esses saindo da banheira com uma cauda de
sintomas surgem desde os seis anos de sereia. As associações conduzem, tanto ao
idade, retornam aos 13 anos e persistem sobrenome da atriz, que se desdobra em
até a idade adulta. Dos seis aos 13 anos ela “Vela-asco” quanto aos diálogos com a
fará compulsivamente desenhos de sereias mãe: o primeiro quando pergunta se a
de todos os tipos. Quando os desenhos mãe tinha uma pequena cauda, e o
cessam, os sintomas retornam com maior segundo, em um sonho, no qual havia
intensidade. Ela queixa-se de uma série de uma princesa e um trovador, e a mãe diz:
doenças, geralmente situadas no aparelho “é a voz da sereia, não do trovador”,
respiratório, e os diversos tratamentos numa cena na qual a voz como objeto
médicos não surtem nenhum efeito. A pulsional se apresenta. No sonho, havia
análise conduz a momentos pontuais das uma sereia voadora, com um grande
questões infantis, aos sonhos e fantasias que rabo de peixe. Seus país estão em um
visavam interrogar ou dar sentido ao sexo, leito nupcial, vermelho. Ela está ao lado
ao excesso de gozo ou aos enigmas propostos em um berço dourado. Há nesse quarto
pelo encontro com a diferença sexual, ou uma sereia que flutua no ar, e depois sai
momentos nos quais o corpo despertava para pela janela. Essa cena ocorre em uma
o sexo, mas esse despertar tinha como pequena torre.de um castelo medieval e
contraponto o não-saber do sujeito. reproduz um conto de fadas de um
Palomera recapitula essa análise em romance espanhol que havia sido narrado
quatro tempos, situando os sintomas entre por sua mãe. O sonho, diz Palomera,
a castração e a pulsão. apresenta uma ilustração do véu
I - A paciente evoca o aparecimento transparente, a presença do falo sob o véu,
desses sintomas depois dos quatro anos, descrita por Lacan, em “A direção dá
após o parto de sua mãe, quando do tratamento e os princípios de seu poder”,
nascimento de seu primeiro irmão, numa (LACÀN,1998:614.), efreqüente nos contos
cena em que viu sua mãe deitada, tendo a infantis e no inconsciente.
boca coberta de sangue e feridas. Diante III - Quando os desenhos das sereias
de sua pergunta, a mãe responde que lutou cessam, os sintomas corporais têm início
com a cegonha que desferiu golpes, até assumirem seu caráter de cronicidade
bicadas, e queria tomar-lhe o bebê. Na na idade ádulta.
mesma época, a paciente danifica, produz No artigo de Palomera, p.30-34, que
manchas de tinta em um vestido de compõe os documentos preparatórios da
casamento. A lembrança dessa cena evoca conversação do Cereda, o conceito de
ainda o olhar de cumplicidade de seu pai. traumatismo é abordado em quatro
II - Os sintomas surgidos à idade de situações diferentes. Esse conceito é
seis anos, época da primeira consulta importante, pois, nesse caso, apresenta
médica, ao mesmo tempo em que surgiam uma vertente do sintoma localizada além
sensações vaginais, espasmos uterinos, da formação do inconsciente:
acompanhados das frases: “eu tenho um - Ao trabalhar a pergunta: porque
ventre que mexe, ...que faz tic-tac”. Ela o existem teorias sexuais infantis?, evoca a
imaginava de cor laranja ou como um tese da falha do inconsciente com relação
animalzinho, ou uma tênia. Ignorava o à linguagem, posto que, no simbólico, os
sentido erótico dessas sensações, assim significantes não podem inscrever o gozo.
como ignorava o sentido dos ruídos e Dessa falha, o sujeito propõe questões
gemidos de sua mãe, vindos do quarto de sobre a existência. “...O primeiro
seus pais. Dessa, idade até a adolescência, encontro da criança com o gozo é, em
por volta de 13 anos, ela desenhará geral, traumático”, seja pela ereção, ou
freneticamente vários tipos de sereias, pela descoberta da diferença sexual.
Clínica
— Corpo e sintoma

- Quando o autor diz: “a análise pôde É fundamental que se diferenciem


reconstruir os antecedentes traumáticos...” a expressão do gozo e a suplência à relação
da consulta médica dessa analisante, sexual, contidas na voz da sereia, mas
ocorrida aos seis anos. O debate ocorrido também naquilo que Palomera nomeia “as
sobre o caso esclarece que esses efeitos características prevalecentes na série das
traumáticos situaram-se tanto com relação sereias”, c que leio como a repetição do
ao sentido quanto no gozo do corpo. traço: “a inércia, a estabilidade, a
- O comentário que faz diante do imobilidade e seu peso”, destinado a
relato das sensações vaginais da paciente: sustentar o desejo.
“...O traumatismo foi então o encontro Além das considerações anteriores,
com um gozo.que excedia seu saber”. acrescento que essa análise guarda
- Na adolescência da paciente, quando similaridade com as histéricas freudianas
interroga a mãe sobre as fotos femininas de (FREUD,1977.) tanto pela natureza dos
calendário, admiradas pelo pai, c diz da deslocamentos, tal como o demonstram os
“irrupção brutal da mulher”, através do espasmos uterinos, o útero “que faz tic-tac”,
surgimento dos seios, que ela procurava resultando no sintoma de faringite crônica,
comprimir ou esconder, o autor evoca e progressivamente atenuado, diminuído
comenta o “traumatismo da puberdade”. pela intervenção do analista, quanto na
No debate que se seguiu, Palomera cena na qual a paciente interroga o desejo
ressalta que este não é um caso de uma do pai pelas mulheres de calendário e
criança, mas da análise do infantil no encontra tanto o abalo do pai ideal, quanto
sujeito. Esse infantil denuncia um excesso a inconsistência do lado mulher. Ela escuta
de gozo, tal como o diz Lacan, ao demarcar de seu pai uma resposta similar ao “Ela
não é nada para mim” enunciada pelo
o efeito da falha do significante como
Senhor K no diálogo com Dora. A
“Irou... matisme”. Esse excesso de gozo que
não podia representar-se tomava tanto o importância da análise da “Pequena sereia”
que a diferencia das histéricas freudianas
corpo da mãe quanto a castração cio Outro
reside na possibilidade de um trabalho
materno como motivo de produção
mais além do significante, no campo da
sintomática e questão a ser trabalhada pelo
pulsão, do excesso de gozo, pois, como a
sujeito. Esse trabalho só tem lugar “a
paciente o demonstra, debatia-se entre
posteriori”, nas cenas que ela consentiu em
duas existências, no espaço de disjunção
evocar e construir. Portanto, a castração
entre o gozo e o Outro: por um lado, há o
materna apresentava, ainda, impasses para
gozo, mas fora do alcance da palavra, por
o sujeito, implicando o trabalho com as
outro, não há relação sexual. A palavra
identificações, que, nesse caso, sugeria resta sempre insuficiente para dizer o
identificação ao pai, decorador e sexual, o desejo, o mistério daquilo que
desenhista, e recusa, da feminilidade, faz o encontro do homem com uma
presente em vários elementos nas teorias mulher. Ela pergunta sempre, mas as
sexuais infantis, nas quais a identificação respostas que retornam, ou estão aquém
visava a sustentar a imagem do pai ideal. de um corpo que se manifesta, um corpo
Havia nessa mulher uma cronicidade pulsional, ou operam uma queda de
denunciada por sintomas corporais, posições anteriormente estabelecidas, no
expressão desse traumatismo. encontro da falta de garantia.
Há um momento no qual a tela da Essa análise demonstra o tempo
fantasia é arrebentada, revelando a voz lógico do inconsciente, além da cronologia,
como órgão em seu valor imaginário e através de um gozo que não se pode dizer,
fálico, a voz da sereia.. mas servindo-se do saber suposto.
Considero também importante,
Enquanto permanece sem voz (a aquilo que foi ressaltado no trabalho: “Das
faringite), a paciente mostra que
ocupa a posição feminina por
identificações sexuais à posição sexuada -
intermédio do sintoma, sintoma que A incidência do desejo do analista”, p.25,
indica a interdição edipiana. do documento citado. Os apresentadores,
Adela Fryd e Gustavo Stiglitz, formulam
uma pergunta instigante que, no debate,
foi articulada ao caso da “ Pequena sereia”:

O tratamento desse resto de gozo,


para-além do que é cedido ao campo
do Outro, é solidário da
transferência analítica. Como isso se
passa para o sujeito? “Deixo essa
pergunta como questão a ser
considerada e trabalhada como
ressonância do XII Encontro
Internacional do Campo Freudiano,
pois tangencia o que Lacan ensina
sobre a direção do tratamento.

Nesse artigo, após esclarecer a


transferência, extraída de seus
descaminhos históricos, Lacan adverte que
“é preciso tomar o desejo ao pé da letra” e
isso implica lidar com o falo através de duas
questões, com uma descoberta e uma
impossibilidade,. Considero,ainda, que a
falta de significante no campo do Outro
traduz essa descoberta e impossibilidade,
o que produz conseqüências, efeitos, que
intervêm diferentemente na direção de
uma análise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

F R E U D, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905).


Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standard Brasileira das
obras completas de Sigmund Freud, v.7).

LACAN, J. "A direção do tratamento e os princípios de seu


poder" (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

PALO.M ERA,V. "Corps et symptôme". In: La Cause Freudienne,


revue de psychanaiyse, n.5Ò, 2002, cuja tradução se encontra
neste número de Papéis.

. "L' écran de la sexuation: le cas petite sirene".


In: XII Rencontre Internationaie du Champ Freudien -■
Conversation du CEREDA. Document préparatoíre.
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Cristiana Pittella de Mattos


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Magnólia fazia tratamento psicológico e
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ginecologista “por causa de umas dores em baixo”. Relatava
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Magnólia que pudessem significar algo do que ela falava
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sem cessar; assim, ela é encaminhada pela médica ao
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embora acompanhe Magnólia desde então, a encaminha ao
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Adolescência), considerando que poderíamos construir
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complexidade e urgência da situação. Ela passa a ser então
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i® B ■®s«s-s® sí-Sss stt» sS também acompanhada pelos técnicos do Cria (psicólogo e
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psiquiatra) e a freqüentar uma oficina de cerâmica.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Na ocasião de sua chegada ao Cria, Em seu tratamento, muitas vezes, a


Magnólia, embora não soubesse delimitar palavra tem conseguido evitar tais atos,
sua idade, contava com 14 anos. sendo o próprio ato de falar um modo que
Ela tem vivências de estranheza Magnólia encontra para construir um
corporal em que diz sentir algo no corpo que Outro. Ela então fala sem parar,
a invade e que ela não consegue nomear. metonimicamente, o que requer por outro
Nessas vivências, o gozo (Outro) está no lado um manejo, pois, muitas vezes, a
corpo. Não consegue nomear alguns órgãos própria “falação” pode também levar a tais
de seu corpo, não sabendo suas funções. atos. A palavra, sua falação, testemunha
Tem dificuldade de olhar-se no que ela mesma é um lugar de gozo do
espelho, não se reconhece, às vezes, agride- Outro, veiculando não um falasser, mas
se, quando se vê, outras vezes, conversa Magnólia enquanto objeto. Muitas vezes,
com sua imagem. Não se sente humana, ela vai tentar subjetivar essa invasão que
acha os humanos esquisitos e estranhos. “não sabe bem o que é” como “algo ruim”,
Tem pavor de tomar banho, precisando da “algo que a ataca e que a faz atacar-se”.
ajuda de sua mãe.
Embora conseguisse ler e escrever, A concepção de Magnólia: não-desejo
muitas vezes, não entende o que está
Magnólia nasce prematuramente,
escrito, assim como não entende o que as
com seis meses. Fica internada, na
pessoas lhe dizem, havendo uma
progressiva perda de significação. ocasião, durante 40 dias, devido a uma
Nesses momentos em que sente seu meningite, o que lhe acarretou uma
corpo invadido, seja por aquilo que não seqüela na marcha. Aos dois anos, ela
consegue nomear, seja por sua imagem, ainda engatinhava, não conseguia ficar
seja o olhar ou uma recriminação do de pé. Foi adquirir a marcha e a fala
outro, assim como quando perde o entre os quatro e cinco anos. Tinha
sentido falado ou escrito, ela perde o constantemente bronquite asmática e
controle, agride-se violentamente, atualmente tem 40% da visão de um só
podendo também agredir o outro. olho.
Não se pode deixar de sublinhar que A mãe de Magnólia, quando ela
esses atos já são por parte de Magnólia uma contava com um ano, casa-se, e seu marido,
tentativa de tratamento, ou seja, de a quem Magnólia se refere como padrasto,
localização, condensação e extração do gozo é quem procurará tratamentos específicos
em um corpo que se encontra fragmentado. para que ela se desenvolva. O casal terá um
Ao bater-se, Magnólia parece tentar filho cerca de seis anos mais novo que ela.
produzir uma diferença — presença/ A mãe saía para trabalhar na padaria
ausência — um mínimo de delimitação, na ao lado de sua residência, deixando
tentativa de que o significante opere uma Magnólia, na maioria do tempo, nos seus
mortificação, um apaziguamento do gozo. primeiros anos, em casa, sozinha, vendo TV.
É o que ela revela ao dizer que “sente um A mãe de Magnólia relata que ela
alívio”, assim como, ao tirar a roupa na nasceu de uma única relação sexual com
rua e jogar água no corpo, é poder um namorado. Ela, ao saber que estava
alcançar, segundo suas palavras, a grávida, vai procurá-lo, mas ele não
“sensação de ter um corpo”. reconhece a criança como sua filha e
Para tratar esse gozo que invade seu ameaça a mãe para não procurá-lo mais.
corpo, ela já chegou ao extremo, Ela passa a ser acusada pela própria mãe
recorrendo a tentativas de suicídio sempre de ser “mãe solteira”, até a sua expulsão
que se aproxima do ponto em que se de casa, ficando sozinha com sua filha.
depara com um impossível de ser Relata que viveu uma espécie de “loucura”,
abordado: ser filha de um não-desejo. batia muito na filha, queria livrar-se dela,
Já fez, durante o tratamento, apelo chegando a tentar matá-la.
à internação, para que algo desse gozo Magnólia completa assim a terceira
pudesse ser contido e lhe impedisse uma geração de mulheres abandonadas. A avó
passagem ao ato. materna também fora abandonada pelo
1
__________ Clínica
Corpo c sintoma

avô de Magnólia, o que fazia com que a Ela vai conseguir localizar, no
mãe de Magnólia fosse deixada nas casas percurso do tratamento, que foi nessa
de vizinhos para sua mãe trabalhar e, em ocasião em que se encontrava só, trancada,
uma dessas ocasiões, ela fora violada, fato que ela começa a conversar, a falar sem
jamais reconhecido por sua própria mãe. parar com algumas amigas (nomeadas por
Veremos como essa significação — um outro de imaginárias), com as quais
mulher abandonada, violada -— veiculada no estabelecia uma certa alteridade: “elas e
discurso familiar, nessas duas gerações, eu”. Essas amigas, por vezes, são reais,
retorna no real para Magnólia, dada sua fazem-lhe acusações e recriminações.
impossibilidade em significar algo de seu ser Será através delas que algo do sexual
e de seu sexo. Uma das últimas tentativas começará a ser abordado, e isso ela o fará,
mais recentes da mãe (Magnólia já estava em de acordo com sua estrutura — ela se
tratamento) de fazer com que o pai de interessará pelos encontros e intrigas
Magnólia a reconheça como sua filha e amorosas dessas amigas.
assuma responsabilidades (colocando o Na puberdade, conhece uma amiga,
nome dele nos documentos e dando uma uma menina de programa, com quem ela
pensão a ela) — será a ocasião em que assiste a um filme pornográfico. Decide
Magnólia intensifica suas auto-agressões e então ser uma menina de programa, como
retorna a falar dos episódios de violação, sua amiga. Ela então vai dizer ao padrasto
começando a importunar funcionários de sua intenção de tornar-se uma garota de
uma rede de TV (queria conhecer os astros) programa e este a espanca.
e a achar que está ficando negra como o pai. Após esse episódio, Magnólia inicia
outros, delirantes, em que homens que se
Magnólia e seu outro aproximam dela (seja para ajudá-la), ou
Magnólia explica-me as condições mesmo ela própria (começa a falar de si
de seu nascimento, tal como me foi para eles, abraça-os), tornam-se aqueles
relatado por sua mãe, repetindo-as como que vão abusar de seu corpo.
um papagaio. Recorre também à escrita, Magnólia vai falar sem cessar dessas
ao fazer e ler seu diário, na tentativa de histórias em que é violada (estuprada,
fixar algo. Tenta escrever uma história de disseram-lhe), obrigada a fazer aquilo
sua vida, para ser publicada em uma “nojento”, “que um homem colocou aquilo
revista, dando o testemunho de antes e que faz xixi nela”, que a forçou a fazer “coisas
depois de conhecer Jeová Deus. que ela não sabe bem o que é”, revelando
Ela vai estruturar seu nascimento um impossível de suportar e significar.
delirantemente, em uma ladainha que Os outros, os vizinhos, os colegas, a
demonstra não ter encontrado no Outro xingam de “prostituta, vagabunda de
algo que apaziguasse sua angústia mortal. zona” quando ela passa. Eles lhe batem na
Isso será causa de uma série de cara e mandam fazer coisas, ao que ela
acusações por parte dela, de não ter sido obedece imediatamente.
cuidada, da falta de amor e afeto dessa mãe Nessas histórias que conta
que abusou desse corpo, revelando um ininterruptamente, Magnólia demonstra
Outro que goza dela: ser tragada pela linguagem como um
objeto. É com essas histórias que ela tenta
foi trancada cm um quarto escuro de construir um Outro que nunca existiu. Um
quatro aos oito anos sendo tratada Outro localizado fora do corpo — paranóia
como um animal; sua mãe batia a — para o qual ela é um objeto: seja de
cabeça dela na parede e a enfiava ho
vaso, ela tirava meu sangue... — abandono, seja de violação; um objeto de
mostra-me a deformação. gozo do Outro. Assim, ela consegue barrar
um pouco as vivências esquizofrênicas, de
Suas reivindicações já geraram por desorganização pulsional no corpo.
parte dela denúncias no Conselho Tutelar, A literalidade das palavras muitas
pedidos de aposentadoria, cie benefícios, vezes a faz cometer atos, tais como, por
ou mesmo de publicação em sua religião exemplo, “tomar detergente para
(evangélica) do relato de sua experiência. desinfetar-se desses estupros”.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gl.-/. '■
Pápeis de Psicanálise v.l n. 1 abr. .2.004

Não aceita que Deus tenha inventado disse que ela só voltará para o céu se
“isso” que um homem e uma mulher fazem, cumprir a missão que lhe é destinada.
o que a leva a brigar com ele diversas vezes. Ele não lhe revelou todas elas, mas
Ela diz que não aceita, que “ijsso” não existe. serão 10.
Por diversas vezes, procura sua A primeira é ensinar sua mãe a
ginecologista para verificar se é virgem. Em amar, e a última tem a ver com seu
uma dessas ocasiões em que estava tomada padrasto e seu irmão. Há, portanto, um
pelos episódios de estupro, fica perturbada, longo trabalho a fazer, que deverá ser
pois pensa que estaria grávida e, após mantido assintoticamente.
exame negativo, fica comprovada a sua As pessoas mudam quando a
certeza: “isso não existe”. conhecem, aprendem a amar. Entre
Magnólia, como não dispõe do aqueles que cuidam dela, está sempre
Nome-do-Pai para nomear o desejo da mãe procurando um signo de que realmente
e regular algo da inexistência da relação gostam dela — ao impedirem que se façam
sexual, inventa sua teoria da transmissão: coisas ruins com ela, ao recebê-la em
“Deus enviou um anjo, que colocou um tratamento etc., conclui que é porque a
algodão na barriga da mulher”. amam, a desejam, suportando adiar sua
A necessidade de falar com essas volta para o céu. Outro ponto que lhe
amigas e dessas amigas, assim como das possibilita adiar esse ato é o argumento por
histórias de violação, foi diminuindo no ela enunciado de que “como anjo não
decorrer do tratamento, embora, em alguns poderia cometer tal ato”.
momentos, isso retornasse intensamente. Tal como a agressão, ela é
Primeiramente, ela falava sem cessar para empurrada a abraçar e, às vezes, a beijar o
qualquer um, envolvia e mobilizava todos à outro. Esse amor, no entanto, frágil que é,
sua volta (na rua, nos ônibus, nas pode reenviá-la à posição de objeto a ser
instituições por onde vagava), gerando uma espancado, violado. Aqueles que se
indignação em torno daqueles que a aproximam dela tornam-se “tios”, mas
escutavam. Pouco a pouco, pôde direcionar muitos se tornaram os que a violaram ou
essa falação àqueles que a atendiam. abusaram de seu corpo. Em relação
Magnólia então utiliza o dispositivo àqueles que a tratam, no entanto, ela tenta,
institucional, cada vez mais em sua vida, seja a todo o tempo, classificar seu amor,
comigo em diversos atendimentos diários, diferenciando-os: como pai, mãe...
seja com aqueles que a acompanham. Essa invenção significante — “anjo”
A medida que vai conseguindo — parece-nos ser uma tentativa de regular
abordar algumas questões sobre seu corpo a relação sexual que não existe. Enquanto
— mudanças corporais, cheiro, excreções, anjo, ela pode ser meio humana. A única
“misturação” (menstruação), sexo — e sobre mulher que não gosta de espelhos.
a origem, ela vai diminuindo a necessidade Enquanto anjo e meio humana, ela
dessa falação, e uma nova significação vai pode estar entre os humanos, pois ela
emergindo que poderá, assim, dar um deveria vir disfarçada. Essa é uma das
sentido à sua existência. funções da toalha/capa que utiliza — um
“disfarce de suas asas”. Essa toalha
Uma solução para ser amarrada ao pescoço não só lhe dá uma
Na impossibilidade de regular seu ser vestimenta para seu corpo, mas parece
e seu sexo falicamente, ou seja, através da também indicar algo da ordem do
metáfora paterna, nomear algo da incidência semblante.
da linguagem sobre o corpo, Magnólia vai No lugar da significação fálica que
inventar. Ela inventa ali onde o desejo da lhe falta vem o “anjo”, o que lhe dá uma
mãe não se colocou e, ao fazer essa invenção, existência especial junto aos humanos. E
ela tenta localizar-se no significante. por meio dessa nova significação que o
Ela é um ser “especial”: um anjo, ou sujeito se inventa, que lhe é permitido, por
melhor, meio anjo, meio humana. Ela tem vezes, temperar os efeitos intrusivos de um
encontros com o anjo Gabriel e esse lhe gozo não circunscrito pelo falo.
Ana Lydia Santiago

A MENINA-HOMEM

Introdução

o
caso que eu e Lúcia iremos apresentar e comentar,
esta noite, é o de uma adolescente de 13 anos de
idade, paciente internada em situação de crise no CPP-
Centro Psicopedagógico-FHEMIG, onde foi acompanhada
pela Residente Trícia Nogueira, que tem como Preceptora a
Dra. Maria Goretti Lamounier. Tanto a construção como o
comentário desse caso tiveram como suportes o material
produzido no âmbito da atividade da “Apresentação de
Pacientes com crianças e adolescentes” do NPPcri, realizada
iilliStl na Residência de Psiquiatria da Infância c da Adolescência
do CPP Esse material constitui-se de:
.... .

AMWWWt

• um relato sumário do caso elaborado pela Residente;


• a entrevista clínica realizada por Ana Lydia Santiago;
.......
• a transcrição da entrevista e a construção do caso —
tendo-se como referência apenas o texto da entrevista —
íSIStSB que, nessa oportunidade, ficou sob a responsabilidade de
< o. . ■. .

Lúcia' Mello. i : i ■ 1:::::: i 1: : :1; 3■; • : ; i : : : i: 1I : :: ; i

A menina-homem '
tftt
• j..
»♦ » • Essa conjunção “menina-homem” — que escolhemos •
filiB para identificar o caso dessa adolescente — exprime, de
*■***.
uma maneira surpreendente, a forma como esse sujeito se
tfitiíSIí apresenta no dia-a-dia. Ao entrar na sala para a entrevista,
Í®g a primeira imagem dela que temos diante dos olhos é a de
uma menina, alta, magra e esguia, penteada com duas
maria-chiquinhas trançadas e amarradas com gominhas
coloridas: Esse ar pueril logo contrasta com o seu modo de
uso da linguagem. A menina assenta-se diante da
entrevistadora e começa a responder às questões que lhe
são formuladas usando um tom de voz extremamente
grave, que é produzido pela contração dos lábios e a
a pronúncia das palavras com a boca praticamente fechada.
Dessa maneira, consegue a entonação de voz de um
* e » homem. Suas frases são todas formuladas no masculino,
tlltf
como, por exemplo, quando diz: “Eu estou vivo”. Durante
toda a entrevista, ela não se equivoca sequer uma vez no
...

Iti lltit uso dessa concordância.


Instituto de Psicanálise e Saúde Mfhial oe Minas Gerais
Pápeis oe Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

Entretanto, o que constitui o entrevista da “Apresentação de


aspecto crucial dessa conjunção Pacientes”. Um outro personagem
“menina-homem” é o que a paciente representou Luciano Szafir, dono de uma
testemunha, durante a entrevista, a discoteca, que juntou a história de todo
saber, a evidência de uma transformação mundo?Todos os personagens que
corporal sofrida nos últimos dois anos. Neném escolhe para ser são,
Ela não chega a detalhar o processo invariavelmente, do sexo masculino,
progressivo de sua transformação, mas pois, como diz, “ser homem é o que
indica que lhe aconteceu — e ainda sobressai de minha pessoa, de minha
acontece — algo no corpo, não apenas aparência”. Ela se vê como homem, sua
nos momentos identificados como de voz é de homem, é a voz que tem.
dilaceramento, mas, também, em outros Quando interpelada sobre o nome
momentos, que podem ser qualificados de mulher que se encontra em seu registro
como momentos de uma certa de identidade, responde: “Isso não tem
restauração do corpo. É a respeito dessa nada a ver comigo, com o que sou hoje.”
restauração que o depoimento dessa Neném sofreu uma transformação:
paciente parece-me exemplar e não será acordou em um mundo melhor, em uma
difícil constatá-la a partir da nova realidade, com um novo corpo, que
apresentação inicial que farei do caso, é feito de um material de ser humano
baseando-me exclusivamente naquilo proposto por Deus. Ela nasceu de novo,
que o próprio sujeito sabe a respeito do há menos de dois anos, em uma realidade
que lhe sobrevém. que define como mais viva, porém, mais
crua, porque é feita de ilusão. “Só quem
A transformação em “Neném Nen sente é que sabe.”
Dickman” Neném tem receio de revelar seu
Neném Nen Dickman é o seu nome. processo de transformação. Sente-se
Neném Nen Dickman não tem idade, é inseguro, teme os médicos e as pessoas,
filho de sua mãe, chamada Guiomar, com está sempre apreensivo com a
quem mora atualmente. Dentre os seus possibilidade de alguém vir a interferir
familiares, encontram-se duas primas, um em seus projetos, o que lhe seria um
primo, um tio e uma tia. verdadeiro flagelo. A realização desses
Neném Nen Dickman não se lembra projetos está prevista para o final deste
de nada. Um dia, deu um branco em sua ano e tem relação com uma transformação
cabeça, que nem ela mesma sabe explicar. social. No início, ocorreu a transformação
É como se tivesse acordado de um longo da carne. Em seguida, o batismo — tanto
sono. “Eu só me lembro do que sou agora”, o primeiro nome, Neném, quanto o
diz a paciente. “Para dizer a verdade, nem sobrenome de artista, Dickman, foram
sei se existia.” Qualquer referência ao que escolhidos por ele próprio e por Deus. Ele
teria sido, antes desse dia, considera um se criou. Criou a si mesmo e se educa, não
“erro grosseiro”. tendo mais necessidade de ir à escola para
Hoje, ela sabe que é Neném. E ser estudar.
Neném significa, precisamente, ser uma No momento em que se realiza a
pessoa muito importante, com entrevista com essa paciente, ela encontra-
experiência própria, experiência de vida. se em franco processo de transformação
É ser muito sábio, sem a ignorância das social. Segundo ela, esse processo tornará
coisas ruins da vida. Ser Neném é ter mais aprimorada sua comunicação com
uma tarefa para a vida futura, tarefa que pessoas importantes e ricas, particularmente,
não se pode revelar, a não ser o ponto com a Xuxa e sua filha, Sasha. Já existe uma
concernente aos personagens de teatro comunicação fecunda entre elas, que se
que vem encenando. Um deles foi posto realiza por meio de um tipo de intuição.
em cena, por exemplo, durante a Trata-se, mais especificamente, de
■■ ?y

_________ Clínica
Corpo e sintoma

1 ;c
’) *'■ pensamentos que se formam na mente de do nascimento de um bebê na família,
■ 2 t
'i ■<
Neném e nunca falham. Esses pensamentos rompe o eixo imaginário a—a’ que
coincidem com a realidade exata e, por isso sustentava a relação desse sujeito com o
mesmo, nunca dizem mentira. UUyxyyyy;. Outro materno. É possível supor a
15 i A certeza da paciente manifesta-se emergência de um interesse de algum
á 2
,i *■ em relação a essa comunicação telepática modo particularizado da mãe de L.N.P.
com pessoas eminentes, que acontece, por esse bebê recém-chegado. O desvio
não apenas no plano do pensamento, do olhar materno em direção a um outro
Jy
mas também por meio de idéias do além objeto é radical para o sujeito, no
que são grafadas e têm a função de sentido de fazer com que este deixe de
orientar sua nova existência. Assim,. existir. Desalojada, por um breve
.; - Neném também desenvolve sua momento, do lugar de objeto do Outro
comunicação por meio dos livros que materno, L.N.P. reage com o mutismo:
'escreve. Um deles, dedicado à Xuxa e pára de falar e, depois de um período
Sasha, será de grande utilidade para prolongado de silêncio, passa a emitir
Neném e para Xuxa também, que se apenas grunhidos, tal como um bebê
tornará sua tutora. Por tutora entende- balbuciando. L.N.P. adota, também, um
se um tipo dc mãe, com o poder de comportamento bastante regressivo,
decidir sobre o destino de sua vida. Xuxa agindo como se fosse um neném de
orientar-se-á pelos escritos desse livro — verdade.
que revelam a pessoa que advém com o É na medida em que não há um
nome de Neném — para decidir sobre o significante fálico para responder a esse
seu futuro. acontecimento de castração, ou seja, na
medida em que a metáfora paterna
Experiência de corpo: regressão tópica ao fracassa, que se assiste a uma disjunção
estágio do espelho do simbólico e do imaginário. O gozo,
A sintomatologia que justifica o supostamente localizado, temperado
encaminhamento dessa paciente para o pela significação fálica, encontrar-se-á,
tratamento está associada à sua então, disperso em diferentes
transformação corporal. L.N.P. torna-se localizações voluntariamente dolorosas
violenta cada vez que alguém se dirige a do corpo. Os sujeitos psicóticos dão
ela por seu nome próprio. Ela testemunho dessas experiências
transformou-se em “Neném”, um “homem dolorosas no corpo. Segundo Jacques-
de verdade”. Não quer mais usar calcinhas, Alain Miller, esse ponto é o que permite
nem roupas de mulher. Sua mãe lhe a Lacan postular que o defeito da
costura umas cuecas para mediar o metáfora paterna se traduz por um
problema, mas este aparece também na buraco no campo do imaginário. Os
escola, quando os colegas a chamam por acontecimentos de corpo isolados como
seu nome, no meio familiar e na afetando o corpo são todos reportados
vizinhança. ao que Lacan chama de regressão tópica
Essa atitude agressiva emerge ao estágio do espelho. Trata-se de uma
apenas quando a paciente está com 12 regressão local, ou seja, uma regressão
anos. Contudo, os dados relatados por no espaço e não no tempo.
ela, durante a entrevista, nos permitem O sujeito não se comporta como
localizar o desencadeamento de seu um neném porque regrediu ao tempo em
quadro psicótico quatro anos antes, no que era neném, mas é seu corpo que se
momento preciso do nascimento de um transforma na imagem global de um
primo. Durante os oito primeiros anos neném homem. É no texto “Uma questão
de vida, L.N.P., que é filha caçula, preliminar” que se encontra essa
permaneceu como a mais jovem da referência de Lacan à regressão — talvez
família. O fato, totalmente contingente, a única vez que ele faz uso desse conceito
NST T L r0 üÇ P 5 I Ç A AJ A II 5 F F S_A_J DL M C I, F A L Dl IVl I N A S G L p A1 S

Pãpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

— para mostrar que, quando o nó


metafórico falha, o imaginário retorna à
sua lógica interna, lógica que lhe é
própria. Assim, de acordo com o que
Lacan propõe no seu estágio do espelho,
a imagem corporal à qual o sujeito se
identifica tem valor de vida. Portanto, é
a imagem do neném homem que passa a
encarnar, para L.N.P., a potência vital do
que ela será no futuro, momento em que
se tornará presente, uma imagem para o
sujeito.
Lúcia Mello

A CONSTRUÇÃO DE UM CORPO

comentário do caso clínico “A menina-homem”,


O reúne o que adveio das palavras do sujeito, no
contexto da Apresentação de Pacientes realizada no CPP -
Centro Psicopedagógico de Minas Gerais; dos registros e
observações do corpo clínico que atende a jovem adolescente;
dos debates que se seguiram à entrevista, relevantes quanto
ao diagnóstico, à localização do sintoma do sujeito e ao
tratamento do real que, particularmente, ele propõe.
L. foi encaminhada ao CPP após agressões verbais e
ameaças de espancamento feitas à professora e aos colegas
porque estes a interpelavam no feminino usando um nome
de mulher que ela não reconhecia.
Afirma ser um menino e seu nome é Neném Nen
Dickman, nome criado por ela e por Deus. Esse processo
de transformação teve início quando L. estava com oito
anos de idade e com o nascimento de um sobrinho na
família. Quando comparece à entrevista, chama atenção
pelos cabelos cuidadosamente penteados em duas
pequenas tranças presas por elástico, contrastando com a
voz de timbre masculino. Quando se refere a si própria,
emprega rigorosamente substantivos e pronomes no
masculino, sem lapso, sem tropeço. Ela impõe à família suas
vontades, obrigando a mãe a confeccionar cuecas para seu
uso pessoal e admitir publicamente que ela é um menino.
O pai e um tio foram atendidos, anteriormente,
na rede hospitalar de Belo Horizonte, com o
diagnóstico de esquizofrenia.

O elemento nuclear
Eric. Laurent, em Estabilizaciones en las psicoses
(LAURENT, 1989:7-52.), elabora resenha comentada sobre o
desenvolvimento das teses lacanianas sobre essa clínica e indica
que, de 1936 a 1976, a cada 10 anos, houve uma reformulação
no ensino de Lacan sobre o enigma das psicoses. Na
diversidade dessa produção, Laurent informa que

... a atitude de Lacan era a de buscar o elemento


nuclear nas psicoses, tecido em torno do ciclo
pergunta-resposta. Assim, a pergunta essencial é:
quem sou eu? O sujeito não contesta essa pergunta
com projeções, mas articula, no lugar mesmo dessa
pergunta, uma resposta que provém do real. .
(LAURENT,1989:12.)
Instituto de Psicanálise e Saúoe Mental de Minas Gerais
EEH Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

As hipóteses sobre a psicose infantil elementos para a pesquisa sobre psicose


modificam-se profundamente no decorrer infantil e atualiza um debate sobre as
desse trabalho histórico, e as últimas diferenças entre paranóia c esquizofrenia,
contribuições sobre o gozo e o sintoma sobretudo quando a clínica aponta para o
permitem maior elucidação, lançam nova surgimento precoce do desencadeamento
luz sobre as soluções encontradas pelo psicótico. Mas, sobretudo, permite
sujeito psicótico para construir um corpo percorrer hipóteses trabalhadas em
diante do Outro mortífero e da fixidez de tempos diferentes da elaboração lacaniana.
um gozo avassalador. O- comentário toma como referencia
Desencadeamento é um termo três momentos cruciais, evidenciados
introduzido por Lacan, em “De uma na apresentação de pacientes: o
questão preliminar a todo tratamento desencadeamento, a metáfora delirante, a
possível da psicose”: fabricação de um eu, que foram indicados
no testemunho cia paciente a partir do
Para que a psicose se desencadeie, é elemento nuclear, tal como proposto
preciso que o Nome-do-Pai, foreluído, inicialmente por Lacan , como transtorno
isto é, jamais advindo no lugar do
Outro, seja ali invocado cm oposição
do ciclo pergunta-resposta. A pergunta
simbólica ao sujeito. (LACAN, 1998:584.) fundamental é: “Quem sou cu”?

Lacan aclara que é preciso que esse O desencadeamento


nome seja invocado por um pai real, algo Localizado quando a paciente
cm posição terceira, tendo por base o par contava com oito anos e a partir do
imaginário. O furo no significado resultará nascimento de um sobrinho, a “causa
na separação crescente do imaginário, “até acidental”, que tem importância porque
que seja alcançado o nível em que representa um elemento estranho, posto
significante e significado se estabilizam na que, como significante ímpar,
metáfora delirante55. Há algumas questões representando Um-pai, vem perturbar o
importantes neste parágrafo que o estudo eixo imaginário onde essa estrutura se
desse caso clínico permitirá articular. apoia até esse instante. Pela resposta
Se, no ponto de origem das provocada, pode-se inferir que, nesse
estruturas, o operador, Nome-do-Pai, momento, uma palavra qualquer, presente
constitui o nó do simbólico e do imaginário, na cena desse nascimento, ou um olhar que
a ausência da metáfora paterna resulta na se desloca para o sobrinho recém-nascido,
inibição^ das significações fálicas. A tenha representado para o sujeito a posição
disjunção entre simbólico e imaginário é o terceira, invocação do Nome-do-Pai. Pela
resultado dessa ausência fálica, e o gozo, natureza da resposta — o sujeito nomeia-
que seria também mediado pelo falo, se “neném” — ela não formula, por
encontra-se dispersado em diferentes analogia a Schreber, “como seria bom ser
localizações sobre um corpo. Os um neném”, ela o é, a partir desse
acontecimentos de corpo traduzem-se, na acontecimento, e, a partir daí, promove,
psicose, como o retorno aõ estágio do sucessivamente, um conjunto de
espelho, que opera sua lógica de remanejamentos significantes, que indica
desdobramento mortífero. Esses o curto-circuito no imaginário entre o
esclarecimentos feitos por Miller, em seu sujeito e o outro. Há uma escolha,
comentário sobre a “Questão preliminar” portanto, da palavra “neném”, como um
(MILLER,2002:60) contribuem para substantivo que posteriormente utilizará
orientar a leitura desse artigo como seu prenome. Indaga-se se “neném”,
fundamental, a partir das formalizações da além de surgir como um substituto de
segunda clínica de Lacan, e permitem, “Um-pai”, constitui uma resposta ao
também por sua orientação, situar a leitura buraco, ao vazio do significante paterno
do caso clínico da “menina-homem”. fundamental. Considerada a segunda
Essa clínica indica a possibilidade de hipótese, tem início aí a interlocução
organização em uma paranóia, fornece delirante, aquilo que Lacan desenvolve na
constituição do sintoma psicótico, a réplica, desse delírio indica uma tentativa de
localizada nos delírios e alucinações, tal construção da metáfora delirante, mas
como o esforço de réplica em Schreber, permite uma indagação: estaria presente
onde o sintoma surge como fenômeno de nesse caso a realização da criança psicótica
comunicação. Na, “Questão preliminar,” como fantasia materna?
Lacan situará o estágio de espelho, em que
o sujeito psicótico será conduzido a um A fabricação de um eu
desdobramento mortífero. Essa regressão Contrariamente a Schreber, a
imaginária será sucedida — como foi paciente não faz referência à transformação
demonstrado pelo estudo feito por Lacan sexual, no sentido do gozo sexual. O gozo
das “Memórias” — pela restauração transexualista operado, rigorosamente, não
imaginária, a erotização da imagem de si, produziu um menino ou um homem que
i(a), correspondendo à forclusão do se satisfaz com seu sexo, mas criou uma
significado fálico. existência, produziu um corpo onde não
havia nada. Nesse sentido, pode-se supor a
A metáfora delirante identificação psicótica ao objeto, à voz, tanto
Enquanto a conjunção corresponde de Deus quanto do homem.
à metáfora, a disjunção simbólico- O empuxo-à-mulher em Schreber,
imaginária corresponde à separação do nó na riqueza de seus detalhes, foi construído
metafórico que se desfaz. Se o registro do como desdobramento de uma fantasia, e
simbólico permite ao humano imaginar- devido ao abalo sofrido na identificação ao
se mortal, antecipar sua própria morte, a falo imaginário, e “por não poder ser o falo
forclusão do Nome-do-Pai conduz o sujeito que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser
à realização de sua morte no registro a mulher que falta aos homens”. Nessa
especular, cujo ponto extremo é paciente, o neném que falta à mãe será
apresentado nos delírios do corpo desdobrado em um personagem que porta
despedaçado da esquizofrenia. Na um sobrenome colhido de uma atriz,
paranóia, tomando ainda como referência sobrenome que não foi escolhido por causa
os delírios de Schreber ao tornar-se mulher da mulher, mas porque é um nome bonito,
de Deus, é evidenciada a fixidez do gozo e permite, como ela diz, “sobressair muito
do Outro conduzido ao infinito. É o nas artes”. As artes, nesse caso, são seus
esquema da assintota demonstrado no livros de memórias.
artigo “De uma questão preliminar a todo A construção de um delírio
tratamento possível da psicose” transexualista mostrou-sc, porém,
(LACAN, 1998:578) por Lacan, a dissolução insuficiente para operar a estabilização, e,
imaginária do sujeito, “entre o gozo por isso, foi preciso recorrer à proposta
narcísico de sua imagem e a alienação da de transformação social, tarefa apenas
fala em que o Ideal do cu assumiu o lugar mencionada na entrevista, mas enfatizada
do Outro”. Os delírios de transformação por ela como uma nova missão que deverá
sexual, construídos em diversas versões e cumprir e caminha ao lado de mais uma
que freqüentemente são reunidos como proposta: a letra, os livros de memórias que
delírios de “empuxo-à-mulher”, são escreve e que são dedicados a uma mãe e
conduzidos ao infinito e fazem existir a sua filha, imagens poderosas da TV.
relação sexual. Dessa maneira, respondem Quando a paciente revela seu temor da
duplamente à dissolução imaginária. ambulância que irá até sua casa, não se
Na paciente, o delírio de refere ao medo de ser levada ao hospital,
transformação parece ter caminhado mas teme por sua obra. Ela resguarda seus
muito rapidamente, de um neném livros de memórias e pensa que as pessoas
masculino até a personagem “Neném Nen que chegam de ambulância podem
Dickman”, cuja idade é atemporal, efeito danificar seus livros ou roubá-los.
da criação, produzido por ela e Deus. O O intenso trabalho dessa
criador, a criatura e o criado realizam o adolescente de 13 anos indica a
gozo narcísico de sua imagem. A natureza possibilidade de construção de um corpo,
Instituto pt Psicanálise c Saúdi Mínial jí Minas Gerais
Pàpeis oe Psicanálise v.l n.1 m. 2004

uma existência, e pelo caminho da escrita, LAURENT, E. EstabHizaciones en tas psicosis. Argentina:
Manantial, 1989.
talvez um sintoma que conduza à
MILLER, J. A. “Biologie lacanienne et événement des corps".
estabilização. Sobre essa questão, relembro In: La Cause Freudienne, Revue de Psychanalyse,- n.44.
Lacan, quando diz que a estabilização Paris,2002.

ocorre quando significante e significado


podem conjugar-se em uma construção
delirante.
O sujeito psicótico evidencia que o
Outro não existe como saber-todo, mas o
paradoxo é que, ao mesmo tempo, esse
Outro tem um corpo que quer gozar e que
tem necessidade do sujeito para gozar. Ele
demonstra o impossível, o que não cessa
de não se escrever. A questão fundamental Y
da clínica da psicose, a partir da forclusão
e da pergunta que constitui o elemento
nuclear, é encontrada no intenso trabalho
de produção das respostas que o sujeito
constrói sem o recurso do falo simbólico e
a partir do real.
A fabricação de um eu parece ser
uma tarefa ainda em curso para esse
sujeito, que, em sua ação agressiva, impõe
um corpo ao outro que o persegue e
devasta. Considerada a hipótese de uma
tarefa ainda em curso, há probabilidade
de outras ações agressivas visando à
unificação do sujeito?
O caso clínico indica, em sua
particularidade, a posição da criança
psicótica como objeto da fantasia materna.
Nesse sentido, a fantasia não é do sujeito,
mas do Outro, diante dela não há dialética,
mas uma presença e uma ausência real
para o sujeito, deixando-lhe a alternativa
de produzir-se como um sintoma.
Esse exemplo clínico permite
fmalmente uma reflexão sobre a instigante
pergunta com a qual Lacan encerra sua
“Alocução sobre as psicoses da criança”
(LACAN,2001:368.): “Quando verão que
o que prefiro é um discurso sem palavras?”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVARENGA, E. “Estrutura e figuras do empuxo-à-mulher".


Abrecampos, Instituto Rau! Soares, Belo Horizonte, v.2,
Periódico, 2002.

LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento


possível da psicose". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998. Wgf

. A locução sobre as psicoses da criança. In: Autres


écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001.
UM ACONTECIMENTO DE CORPO

* * Hospital Universitário São José recebe alunos em


1-J estágios supervisionados, em parceria com o Núcleo
de Pesquisa em Psicanálise e Medicina do Instituto de
Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Atualmente, o
atendimento se faz na clínica pediátrica, que recebe, de um
modo geral, crianças com problemas médicos, para as quais
surge a demanda de cuidados psicanalíticos.
Entretanto, nosso pequeno sujeito, Felipe, chega ao
hospital trazido por sua mãe, que procurava atendimento
psicológico para seu filho, que não estava bem na escola:
“Evita as situações que exijam raciocínio e deixa sempre os
exercícios inacabados”. A mãe é então encaminhada para o
atendimento de uma estagiária de psicanálise, e seu filho,
para outra.
Felipe tem oito anos e está na segunda série. Tem
brigado com os colegas de escola que fazem qualquer
alusão ao fato de ele usar uma sonda. A última dessas
brigas foi quando um deles disse que quem usa sonda é
burro. Quanto à mãe, diz-se fraca “para enfrentar tudo
que ainda tem por vir”. Ela sempre quis ter um menino;
“qualquer um que viesse estava bom, o importante era ter
saúde”.
Quando Felipe nasceu, pressentiu que algo estava
errado. Disseram que o bebê deveria ficar no hospital para
exames. Em um primeiro momento, não souberam dizer sc
a criança era homem ou mulher, e o pai não aceitou a
deficiência do íilho. Quando o médico conclui: “é homem
mesmo, mãe”, ela sai escondida para registrar o filho em
seu nome. Muda então de casa e esconde a criança do pai,
pois teme que ele comente que o filho nasceu com
hipospádia, doença considerada grave. “Ele tem a mim,
ficaremos só nós dois, para que pai?”
Nas entrevistas, a mãe deixa clara a sua preocupação
com a sexualidade de seu filho, o medo de como vai ser
“quando ele se tornar homem”. Conta que pegaram Felipe
aos beijos e abraços com uma menina na Igreja: “Enquanto
a mãe da menina brigava comigo e com ele, a única coisa
que eu pensava era que meu filho é homem”.
Uma má-formação genital é algo que se mostra
monstruoso.

1 NSTITUTQ DE PsiCANÃUSf F SaÚDE MENTAL DF MlNAS GERAIS

F1H Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

O pai de Felipe não é diferente do real, não é indiferente à eficácia da


pai do menino que tem o genótipo de metáfora. A mãe de Felipe queimou tudo
Turner, habitualmente desenvolvendo de real que existia do pai; que efeitos isso
fenótipo feminino, caso descrito por produzirá para Felipe?
François Ansermet: embora o fenótipo O primeiro desenho que ele
seja feminino, o cirurgião decide que será apresenta é de uma família de pássaros:
mais fácil “fazer” um menino; o pai foge pai, mãe e filho. O segundo desenho ilustra
para o outro lado do Atlântico, relata-nos o prédio do hospital. Descreve o primeiro
Ansermet. Nas hipospádias, embora não andar, faz o mesmo com o segundo,
haja ambigüidade genital, pode nomeando as salas. Tentando desenhar o
acontecer um erro médico. Felipe, ao terceiro, diz: “lá eu ainda não fui muito,
nascer, fica no hospital para exames que não me lembro como é lá”.
definiriam sua anatomia sexual. Não No primeiro encontro com a
houve erro, mas, parece, dúvida. A analista, Felipe mostra a sonda, que está
ambigüidade que ele apresenta ao nascer presa à sua perna. “Eu não consigo fazer
é um real difícil de suportar. xixi sem ela”. Questionado pela analista
O nascimento de uma criança sobre essa situação, responde que
evidencia um real sem mediação.
Esperamos um menino ou uma menina; queria fazer xixi em pé, porque
homem faz assim; homem que faz
se acontece algo da ordem de uma xixi sentado é bicha, igual ao Lacraia,
ambigüidade nesse sentido, o desejo homem que virou mulher.
oscila, o simbólico balança (porque o
Outro participa na atribuição do sexo). Quando a mãe, para que ninguém
Entretanto, do ponto de vista da veja a sua sonda, quer que ele entre no
psicanálise, todos nascemos na banheiro feminino com ela, Felipe insiste:
ambigüidade, e teremos que nos haver “Vou no banheiro de homem”.
com o insondável da escolha entre ser Felipe usa o recurso ao imaginário
homem ou mulher. para construir uma posição viril: homem
Os três tempos do Édipo não se faz xixi em pé; o que ele ainda não sabe
reduzem a ser a versão narrativa da é que fazer xixi assentado não faz dele
metáfora, que está na cultura. Eles dão uma mulher, homem não vira mulher,
as condições reais das diferentes funções só no mito. É a operação da castração que
do pai. No primeiro tempo, o menino vai garantir que o órgão se torne um
se coloca na posição de falo da mãe. A atributo viril.
proibição se encontra no segundo tempo A legitimação da posição viril vem
e consiste na intervenção que deverá pela identificação ao pai. O pequeno Hans
produzir a ruptura dessa identificação é o paradigma que temos em Freud dos
do menino com o falo materno. A função impasses do sujeito na assunção da
do pai não é só proibir, é fazer o possível. posição viril, ligada à carência paterna;
Dentre o possível, está a incidência dessa- embora o pai de Hans estivesse com ele,!
operação também sobre a mãe. Quero era um pai muito simbólico. A pergunta
destacar que o primeiro e o segundo de Hans sobre a significação de seu pênis
tempo podem prescindir do pai real. surge com a masturbação, trazendo a
Basta o significante do Nome-do-Pai. ameaça de castração.
Este é necessário no terceiro tempo, Na “Conferência de Genebra sobre
para a normalização da posição sexual o Sintoma” (LACAN,1998:6-12.), Lacan dá
no varão. toda a importância ao encontro do sujeito
A saída do Édipo para o menino se com sua própria ereção, encontro que não
dá pela identificação com a figura paterna. é auto-erótico, mas o mais hetero que
Nesse terceiro tempo, requer-se a existe. A fobia de Hans vem do fato de
intervenção efetiva do pai. Lacan o disse que ele constata subitamente que tem um
muito claramente, aí não é possível pequeno órgão que muda, se movimenta.
prescindir do pai. O pai, enquanto alguém Órgão que a criança pensa pertencer ao
exterior de seu corpo e que sempre traz regras do jogo, para ganhar da analista?
algo de traumático para ela. Onde mora, há muitas cobras soltas no
O interesse pelos genitais e por sua mato, mas ele vai lá com os amigos, não
atividade leva a uma organização genital tem medo. Provoca um Pit Buli, mas se
infantil, em que, para ambos os sexos, o defende com um pau; o cachorro engasga
que está presente não é uma primazia dos e vai embora. Tudo isso seria uma
órgãos genitais, mas a primazia do falo, tentativa de fazer a virilidade pelo ideal?
colocando em jogo, portanto, uma Quando Felipe começa a aparecer
organização a partir da oposição fálico- como sujeito desejante, o “só nós dois”
castrado. da mãe vacila e abre espaço para a divisão
No caso de Felipe, não temos dela entre mãe e mulher: “Será que fiz
nenhum relato de ereção ou masturbação, bem em afastar os dois”?
parece que seu pequeno órgão não pode Chama a atenção não ter
se agitar. Seu contexto não é como o de aparecido o recurso da fobia, diante das
Hans: “Vamos cortar”. Talvez, pudéssemos expectativas das cirurgias, daquilo que
falar de uma mutilação. O que sabemos o outro vai fazer com seu corpo. Felipe
de Felipe é que ele coloca o pênis em uma se submete, desde bebê, a várias
série: “saquinho-pintinho-sacolinha”. cirurgias, até agora sem sucesso
definitivo, e o relato que temos da mãe
Eu sei também que o nené nasce com é o de que ele vai tranqüilamente parai
o saquinho, eu acho que é uma coisa a sala de cirurgia. Depois da última, ele
que serve para fazer xixi. chega eufórico: “Tirei a sonda, estou
fazendo xixi em pé, estou urinando pelo
Sabemos que o único casal que
pênis, consegui”. Felipe faz um esforço
existe para a criança é aquele formado
para construir um corpo que não seja
pelo pai e pela mãe. Felipe conta à analista
para a mãe, para a ciência; sair do corpo
que, na sua viagem à Bahia, conheceu mortificado doente oferecido ao Outro.
índio de verdade, e que o casamento de Tenta não responder ao fantasma da
índio é assim: um gosta do outro. A mãe com seu corpo. A mãe dificulta para
mulher sobe o morro com uma pedra, do ele, afirma demais o defeito, como um
tamanho dessa sala, e o homem sobe o falo mortificado. Felipe tenta não ficar
morro e só rola a pedra de lá. Noutra nesse lugar. Ri porque o colega também
sessão, relata longas histórias sobre seus quer uma sonda. Evita a angústia,
passeios com o pai. cuidando da mãe, protegendo-a.
Uma das condições para uma Segundo a analista, é muito gentil com a
criança entrar em análise é o seu mãe, por exemplo, explicando as coisas
sofrimento e o insuportável desse que ela não sabe. Talvez denegue um
sofrimento para seus pais. Para Felipe, pouco essa castração real para ir
quando alguém faz uma cirurgia, a cabeça podendo simbolizá-la. No jogo do
fica confusa: não a dele, a da mãe. Para Shopping, durante a sessão, mesmo
ele, é assim: seu pintinho era pequeno, quando passa o valor certo para comprar
fez a cirurgia para consertar. Mas como a algo, não aceita que não tenha troco,
mãe, ele também não fala o que sente, e, pega o dinheiro de volta e diz: agora
em alguns momentos, entra no banheiro quero o troco. Também na escola, o que
para chorar escondido da mãe. Felipe ele mais gosta de fazer é “a continha de
responde a esse real do seu organismo, mais”. Quando crescer, quer também
até agora, de uma forma muito corajosa colocar mais um nome junto ao seu.
— como o Pedrinho de M. Lobato, Por tudo isso, Felipe encontra-se,
personagem de que mais gosta na vida. ainda, tentando estabelecer uma distância
Operou o “saquinho” e não pode andar em relação à mãe e tendo que construir
de patins, de bicicleta ou jogar bola, por um caminho que possa sustentá-lo à
causa da sonda, mas faz isso tudo. “Não distancia do pai. Depois da puberdade,
tem problema”, diz ele. É como burlar as veremos o uso que ele poderá fazer disso
no encontro com o Outro sexo. A
hipospádia reforçará o efeito de obstáculo
do desconhecido, característico de toda
busca sexual? Reforçará o embaraço com
o ter, característico do homem lacaniano?
O menos do órgão valerá como uma
reduplicação da castração?

LACAN/J."Conferência de Genebra sobre o Sintoma". In: Opção


Lacaniana. São Paulo, dez. 1998.
Cristiane Barreto Napoli

"0 MENINO E 0 PINTO DO MENINO"*

O caso Felipe: algumas considerações e uma leitura**

TJelipe chega ao hospital. Sua vida, no decorrer dos


JL seus oito anos, é de uma constante labuta entre as
várias cirurgias, idas e vindas aos médicos, aos hospitais.
Desta vez, em busca do serviço de psicologia. Essa
indicação é feita por uma amiga de sua mãe, diante do
sofrimento e de uma preocupação da mesma: “com o
estado emocional do filho, a questão dele pode afetar sua
cabecinha”.
O que se presentifica no caso apresentado é
menos a ambigüidade sexual — não se trata de uma
genitália ambígua, nem de um pseudo ou
hermafroditismo verdadeiro, não envolve decisões
médicas drásticas, como, por exemplo, a mudança de
sexo, ou a escolha do sexo — seu problema clínico não
é considerado, pela medicina, um distúrbio da
diferenciação e maturação sexual. E o que se destaca é
um desconcertante medo vivido pela mãe sobre a
posição sexual do filho, ou melhor, se a garantia do
bom desempenho do filho, enquanto homem, poder
vir a ser prejudicada em função de uma hipospádia***.
Uma dificuldade para ser homem. Esse momento, da
instalação desse significante, do estabelecimento
diagnóstico, marca sua chegada ao mundo,
instaurando, logo “ao nascer”, um acontecimento de
corpo. Há um real em jogo.
A ética da psicanálise tem por princípio não
retroceder diante do real da experiência, e cada caso
impõe sua delimitação e lança suas perguntas. Felipe
tem um problema que chama atenção por incidir sobre
um órgão, não um qualquer — o pênis. Poderíamos
também dizer: Felipe tem um órgão que incide sobre um
problema. O problema da solução edípica materna.
Qual a incidência dessa sua preocupação,
sintomática, sobre a vida do filho?
I Instituto oe Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais_______
| Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

A antomia e o destino de uma mulher: A [i(a)].O fato é que, para ser investido, o
mulher e uma solução edípica objeto deve estar em conformidade com
A criança — menino ou menina — o eu, diz Freud, em “Sobre o narcisismo:
ocupa uma posição junto à mãe diante da uma introdução”. Investir de uma
falta, em uma relação permeada de imagem narcísica, que julga ocultar a
conflitos, muito, longe de uma fusão falta sentida pela mãe. Contudo, é justo
paradisíaca. Os conflitos internos da mãe aí que se instala uma brecha no Outro
vêm à baila com o nascimento de um filho. materno — a idéia é simples: se a criança
Manifestações, as mais diversas, de se identifica com a criança imaginária,
discordância entre o que se esperava do que responde à falta da mãe, só pode
filho — a sua cria imaginária, idealizada situar a mãe como faltosa do que ela julga
— e o que nasce — “real demais” — são ter que preencher. E, então, a
recorrentes: estranheza, susto, desinteresse problemática da castração que se esboça.
radical, depressão, delírios pós-parto. O E, detidamente, podemos acompanhar
fato é que o nascimento do pequeno ser Freud em sua construção da sexualidade
desperta do sonho, é um acesso ao objeto, e das diferenças impostas pelas
encontro com o real. conseqüênciás psíquicas da diferença
As reações enlouquecidas, nos dias anatômica dos sexos. Prescreve Freud
que se seguem ao parto, constatadas em três saídas diante da descoberta cia
algumas mulheres, diante da mínima castração, a saber: a escolha da neurose,
imperfeição do bebê, não são raras, e o complexo de masculinidade e a
podem ser notadas exemplarmente no feminilidade — que é determinante da
caso da mãe de Felipe. Ela “intuiu que renúncia do amor da menina por sua
havia algo errado”, antes mesmo de mãe, do seu voltar-se da mãe para o pai.
ouvir o anúncio dos médicos de que ele Lacan mantém esse esquema
ficaria um tempo no hospital. O proposto por Freud, mas indo além em
problema detectado — uma hipospádia. suas soluções, equacionando a vertente do
O médico enuncia: “é homem mesmo, ser o falo — no lugar do ter ou não ter
mãe”. A mãe interpreta. Sai escondida, freudiano — à questão sobre a função do
registra o filho apenas em seu nome e filho, reafirmando a idéia de que este
trata de eliminar os vestígios do risco tampona a falta, responde ao lugar do
de o pai pôr-se a falar, contar para os desejo — o que não significa estar situado
outros. Decidida, ela se dedica a como objeto causa do desejo da mulher,
esconder, tamponar o que se propondo o órgão viril do parceiro como
transformara em seu aterrorizante podendo vir a ocupar a função de
segredo. Um segredo do seu corpo, semblante fálico.
talvez: homem com um “probleminha”. Retornando ao nosso ponto de
A leitura que quero sustentar, nesse investigação: a menina diante do desejo
caso, permitir-me-á fazer um recorte, não originário do pênis, frustrado pela mãe,
percorrendo o tratado da psicanálise sobre dirige com esmero seu apelo ao pai. Tal
a sexualidade feminina, as contribuições anseio pelo pênis, nostalgia da “falta a
lacanianas e seus avanços, mas localizando ter”, nostalgia de algo que jamais tivera,
um crucial aspecto na tentativa de uma como nomeia Lacan, só estabelece uma
escuta dessa mãe “Felipiana”. posição feminina, se é substituído pefo
A mãe de Felipe preocupa-se, desejo de um filho. A equivalência
porque, para ela, o “filho homem” tem simbólica de “filho - pênis” deverá
uma função especial na economia psíquica, estabelecer-se, e, ainda, um outro giro, em
um lugar preciso na sua solução edípica. que um sólido objetivo se instala — pela
Uma condição se impõe ao desejo vertente de um desejo, “deliciosamente
da mãe, qual seja: a de que ela revista a feminino”, dizia Freud, o desejo do pênis,
criança de um imaginário, permitindo, surge o desejo de ter um filho do pai. Para
ao mesmo tempo — reconhecê-la e Freud, importa mais o “um filho”, e
suportá-la — enquanto abjeto “a”, menos o “do pai”. Logo, se o que Freud
113

estabelece é frágil por deixar “as chaves Rolam-se as pedras, e é inevitável


da feminilidade aos cuidados do desejo pensar em Sísifo e seu castigo. O mito
de ser mãe” (ANDRÉ,1986:198.) — ele o diz que Sísifo fora ordenado pelos juízes
faz por atribuir ao filho um significante do inferno a empurrar um rochedo até
da identidade feminina, à falta de um o cume de uma colina e de lá empurrá-
outro. lo para qüe caísse. Assim, ele nunca
E, portanto, de maneira singular, alcança o topo, pois, antes de chegar, é
que esse caso nos apresenta uma mulher empurrado pelo enorme peso da pedra
atormentada, também, por uma que cai, para que ele comece tudo de
atualização da sua questão com a novo. Um suplício, comentado por J. A.
sexualidade, em várias nuances da sua Miller, (MILLER,2001:11.) como algo
solução edípica, como: que fala a cada um de nós e útil para
1. É pequeno, mas vai crescer. Cito- demonstrar várias coisas: “a ‘coragem
a: “talvez eu fosse como meu filho é hoje.” viril’ de Kippling, o ‘absurdo da condição
2. Pênis - Filho. humana’ segundo Albert Camus.” E,
3. Passagem da mãe para o pai: ter segundo Felipe? Podemos tomá-lo, na
um filho do pai. sua versão, como o paradigma mesmo do
As respostas do seu gesto inicial suplício — as intervenções sobre seu
protegem sua estratégia — “É meu. De corpo que nunca terminam. As cirurgias
mais ninguém”. O grande segredo e a remarcadas, desmarcadas. Ele não fala
dedicação exclusiva aos cuidados do filho da dor.
parecem revelar que ela revive algo do Assim como na clínica, às vezes, é
seu embaraço edípico. preciso ocupar-se da mãe, para poder
Mais do que isso —- não poderíamos desocupar-se dela, é dêdicar-se à escuta do
pensar em algo que interroga essa mulher filho.
e o desejo do seu próprio pai em relação
a ela? Ter um filho homem. Afinal, “toda A psicanálise com criança chega ao
lembrança vinda do pai é exterminada hospital, ou “Felipe tem problema na
por ela.” Sofre de uma dor reeditada, ou cabecinha?”
de uma decepção, com o pai, na Aparentemente, não. Felipe, no seu
emergência de ter “recebido” um filho encontro com o analista, mostrou-se “ativo,
homem — “com defeito”? alegre, conta que passou de ano, está na
E vale ressaltar que é na sua segunda série, que tem amigos, que gosta
tentativa de apagar a participação do de nadar”. Não esconde a sonda, para o
homem nessa concepção que se instala o desespero da sua mãe, assim como não
fracasso necessário à boa saída de Felipe deixa de se arriscar nas brincadeiras
— é mesmo como “filho da mãe”, e em perigosas, como jogar futebol na posição
relação a isso, que ele recua e reivindica de goleiro.
— “quero ter o nome dele”, “quando Apesar dos seus flagelos cirúrgicos,
crescer quero ter três nomes”. Conta que incidem sobre as coisas do “faz pipi”
histórias inventadas dos seus passeios com — e é por aqui que as coisas se complicam,
o pai e constrói sua ficção do romance na emergência de algo no real — ainda
familiar, quando relata à analista sua ida à mais em um caso em que a vivência com
Bahia; “a criança inventa lá onde o Outro a mãe é de uma intensa captura
nada diz” (ANSERMET, 2003:161.). Cito: imaginária — como ele mesmo diz: a
Conheceu dois índios de verdade, conta cabeça dele não estava confusa, “mas a
que foi na tribo deles. Diz que lá os minha mãe diz que a dela está”. Do seu
casamentos entre eles acontecem quando problema, ele indica o corpo — “o seu
um gosta do outro, no entanto, no dia do pintinho era pequeno e ele fez cirurgia
casamento, a mulher tem que levar uma para consertar.”
pedra nos ombros, do tamanho desta sala, Ele encara essa situação mais ou
e subir o morro. O marido chega lá em menos assim: se a falta está inscrita no
cima e só rola a pedra. corpo, só resta se apropriar dela. A sua
^1 Instituto de Psicanálise ,e Saúde Mental de Minas Gerais
I Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

postura com o corpo, suas brincadeiras ao falasser. Campo da inexistência da


apontam para o bom uso do ter e relação sexual.
testemunham a marca decorrente do Lacan define o corpo no seu
Outro simbólico e do desejo da mãe, da seminário RSI como sendo “alguma coisa
determinação do seu destino sexual. que presumimos que tem funções especi­
Recusa ir ao banheiro de mulher e quer ficadas nos órgãos” (MILLER,2001:57.). O
porque quer fazer xixi em pé. Felipe relata corpo com que se deparou Freud, esse que
dois episódios muito interessantes: mostra continua sendo tratado pelos analistas, é
a sonda ao analista e diz, achando graça, um corpo da ruptura que o gozo impõe à
que um menino da escola disse que queria unidade, não é o corpo da imagem
uma igual à dele. Ou de que um colega organizadora, de um sistema.
havia dito que “quem tem sonda é burro”. Para um menino, o encontro com o
A outra indicação é o modo de ele se pai é um apoio, decisivo, por vezes, para a
referir ao pênis, aqui é o Felipe que nos identificação viril que corresponde ao seu
ensina**** — diz do saquinho — ou seja, é sexo. A entrada da castração, livrar-se da
uma bolsa, um apêndice, intumescente — identificação ao falo imaginário materno
enche, esvazia, e certamente é também corresponderia, então, ao processo de sua
um estorvo ter a sonda dependurada, identificação masculina. Por um lado,
presa à sua perna. O sintoma está existe a determinação simbólica, mas há
relacionado às suas vivências subjetivas. o organismo, tal qual apreendido pela
Farage localiza que ele não está bem na imagem, logo, uma determinação da
escola, evita as situações que exigem ordem do imaginário é articulada ao
raciocínio e deixa sempre os exercícios registro simbólico, pois, afinal, a diferença
inacabados. Destaco a sua forma de sofrer, sexual também se pauta pela imagem do
silenciosa, diante das suas crises de dor corpo, na vertente do sexo como o sexo
— chora escondido da mãe, quando em da identificação. No caso de Felipe, temos
uma das crises, é levado ao médico, nega uma equação: ser homem = fazer xixi em
que sentia dor, percorre os hospitais — pé. Esse é um bom exemplo para ilustrar
de um ao outro, preservando o uma diferença entre os sexos e os ideais
tratamento da única função da sua mãe depositados na linguagem. Normas que
— cuidar dele — o desejo da mãe de fazem sulcos e ecoam na imagem do
cuidar de um filho doente — ser o falo. corpo. Mas existe um resto não
Para a psicanálise, existe uma metaforizado pela vertente edípica, do
disjunção entre o organismo e a Nome-do-Pai. E esse resto é um dos
linguagem, entre o organismo e a aspectos desse corpo. Daí a tentativa de
declaração subjetiva de pertencer a um ir para além e articular a criança à
sexo. Contudo, a anatomia é marcada pelo sexualidade feminina. Na direção de uma
signifícante, é afetada pelo simbólico, pela análise, “a localização do gozo em uma
linguagem. E a linguagem “é um ficção qúe permita à criança responder ao
órgão de gozo no corpo humano” gozo da mãe, isto é, da mulher...”
(MILLER, 2001:54.). Ao ser falante, que (DRUMMOND, 2002:42.)
anatomicamente nasce homem ou mulher,
cabe realizar a assunção subjetiva do sexo, O troco: uma demanda de análise?
construir o trajeto da sexuação rumo à As conseqüências pós-cirúrgicas, o
diferença sexual na qual ele se inscreverá, sucesso da última cirurgia endereçam
dirigir-se ao lado homem ou mulher. uma série de indagações ao analista,
Obviamente, essa, assunção implica as geram uma abertura às questões sobre o
atribuições delegadas ao sujeito pelo Outro sexo, ao que resta inacabado. Questões
— uma marca da sua inscrição. Trata-se do “bicha” — indagar-se sobre o estorvo
de uma operação lógica delicada, de cada do sexo, duvidar, sou homem?
um em sua relação com o falo, Perguntar-se o que é ser um homem? —
representante da falta que indica a via da índices de separação da posição tão
sexualidade — do real traumático inerente assujeitada à mãe.
Relato duas passagens: NOTAS

1. “Eu tô fazendo xixi em pé! Eu * Título de um conto infanto-juvenil de Wander Píroli.

tentei fazer xixi em pé e consegui!...” “ À Maria Aparecida Farage, por ter dado voz ao caso Felipe
— tê-lo acolhido e feito circular no espaço ético — da supervisão
afirma categoricamente que não quer e do ensino e pesquisa do Núcleo de Psicanálise com Criança —
fazer xixi sentado porque homem que faz IPSM/MG. Que o traço do Felipe tenha transmitido sua coragem.
xixi dessa forma é bicha. Questionado Hipospádia é uma malformação congênita, caracterizada
sobre o que é ser bicha, responde, sem pela abertura anormal do orifício por onde sai a urina (meato
urinário), em diferentes locais na parte de baixo (face ventral)
nenhuma dúvida: “homem que não quer do pênis, ou mais raramente na bolsa escrotal. Na maioria dos
ser homem; homem que gosta de casos, é acompanhada por uma alteração da pele (prepúcio)
que.recobre a glande (cabeça do pênis), sendo que o prepúcio
homem”. passa a ter o formato de um capuz.
2. No decorrer da mesma sessão, Em alguns casos, ao ficar ereto, o pênis apresenta
curvatura para baixo, em direção à bolsa escrotal. 75% dos
utiliza a palavra bicha novamente e, dessa casos são da forma distai, cujo tratamento cirúrgico é menos
vez, define: complicado e tem probabilidade de sucesso na primeira cirurgia.
A idade ideal para a cirurgia é entre os seis e 18 meses de vida.
A correção cirúrgica é tecnicamente difícil, existem
Ué, quando o homem nasce ele é mais de 300 técnicas disponíveis. 0 tratamento cirúrgico visa:
criança, quando ele é grande é permitir que o paciente urine em pé, melhorar estética, evitar
homem, quando ele vai ao show e consequências psicológicas de órgãos genitais malformados,
permitir que no futuro tenha função sexual normal. Existem
um homem tira a camisa, aí ele vai e
complicadores frequentes, dentre eles, 20 a 40% necessitam de
quer namorar com ele, ele se veste outras operações devido a vazamentos (fístula), estreitamentos
de mulher, é igual ao Lacraia, ele é (estenose) ou necrose na nova uretra, infecções urinárias.
homem, não é mulher. E homem que Normalmente, as cirurgias complementares para efetuar as
virou mulher! correções dessas complicações devem ser feitas com intervalo
de, no mínimo, seis a nove meses. 0 resultado final parece o de
uma circuncisão e ocorre 12 meses após a cirurgia, mas sofre
No momento lógico seguinte, ele modificações, melhorando seu aspecto durante a puberdade.
Merece ser destacada a diferença existente entre a
começa a exigir o troco. Sempre, mesmo deformação (defeito na forma) e a malformação (defeito morfológico)
quando não teria nada para receber, de um órgão. No caso de Felipe, as cirurgias fracassadas, os
adiamentos e o que se prolonga também nos efeitos subjetivos sobre
quando brinca no jogo com o analista, em
essa criança, em função desse adiamento, não são situações que se
que ele tem dinheiro para comprar as desenvolvem sem problemas. E, entre outras questões, merece
coisas - quero troco! atenção o atendimento oferecido pela rede pública de saúde.

Lacan reconta uma história dos ““ Devo essa construção a uma pergunta, sempre insistente,
em Ana Lydia Santiago: "o que o caso ensina?"
chistes freudianos muito engraçada em 0
Eu na teoria de Freud e na Técnica da
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ANDRÉ, S. O que quer uma Mulher? Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
... numa padaria, [um homem]
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pretende que não tem nada com que da origem, a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de
pagar — ele estendeu a mão e pediu Janeiro: Contra Capa, 2003.
um doce, ele devolve o doce e pede
BROUSSE,M.H. (Org.). El cuerpo em psicoanálisis. Seminário de
um copo de licor, ele o toma, pedem- Investigación. Espacio de investigación Madrileno. Escueia Lacaniana
lhe que pague o copo de licor e ele de psicoanálisis dei Campo freudiano, Madrid, 2001.
diz — dei um doce no lugar. — Mas
DRUMM0ND, Cristina. "Quero ser uma menina: uma aplicação
este doce, o senhor também não da psicanálise". Opção Lacaniana, São Paulo, n.34, Out. 2002.
tinha pagado. — Mas não o comi. Há
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FREUD, S. Algumas conseqüências psíquicas da distinção
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Cada um se introduz, clandesti­ standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
namente, fraudulentamente, no balcão Freud, V.19).

das trocas. Foi preciso, diz Lacan, que, ___________ . "Sexualidade feminina". Rio de Janeiro: Imago,
1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
em um dado momento, algo entrasse na completas de Sigmund Freud, V.21).
roda da troca, e era preciso que a troca
____________ . "Sobre o narcisismo: uma introdução". Rio de
já estivesse estabelecida. Se existe Janeiro: Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, V.14).
psicanálise, é porque continuamos
pagando pelo cálice de licor que bebemos LACAN, J. O eu na teoria de Freude na técnica da psicanálise.
0 seminário, Livro 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
com o doce que não tínhamos comprado.
_ _____ . "A significação do falo". In: Escritos. Rio de Janeiro:
Há um troco nas negociações e transações Jorge Zahar, 1998. p.692-703.
na economia do gozo em jogo — o jogo MILLER, J. -A. Elementos de biologia lacaniana. Belo
entre Felipe e um analista. Há um troco. Horizonte: Publicações Curinga-EBP/MG,2001.
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POS-FR EU DIANOS
Sandor Ferenczi

UM PEQUENO HOMEM-GALO*

ma antiga paciente que participava a esse título das

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U pesquisas psicanalíticas me mostrou o caso de um
menininho suscetível de nos interessar.
Tratava-se de um menino com então cinco anos, o
pequeno Arpad, que, segundo os dizeres unânimes de seus
próximos, tinha tido até a idade de três anos e meio um
desenvolvimento mental e físico perfeitamente regular e
tinha sido uma criança inteiramente normal; ele falava
correntemente e dava provas de inteligência em suas proposições.
Bruscamente, sobrevém uma mudança. Durante o
verão de 1910, a família vai para uma estância de águas
austríaca na qual ela já havia passado o verão precedente e
alugou um alojamento na mesma residência. Desde a
chegada, o comportamento da criança mudou de modo
singular. Anteriormente, interessavam-lhe todos os
acontecimentos que podem atrair a atenção de uma
criança no interior e no exterior de uma casa; desde então
seu interesse não se dirigiu senão a uma única coisa: o
“galinheiro” que se encontrava no quintal da casa de
campo. De madrugada, ele se precipitava para perto das
aves, contemplava-as com um interesse infatigável e imitava
seus gritos e suas maneiras, chorando e gritando quando o
forçavam a se afastar do lugar onde ficava o galinheiro.
Entretanto, mesmo longe do galinheiro, ele só fazia “gritar
cocoricó” e “cacarejar”. Ele se corhportava assim durante
horas sem se cansar, não respondendo às perguntas senão
com seus gritos de animais, e sua mãe se pôs seriamente a
temer que a criança desaprendesse a fala.
Essa bizarrice do pequeno Àrpad persistiu durante as
férias todas. Em seguida, quando a família voltou para
Budapeste, ele recomeçou a utilizar corretamente a
linguagem humana, mas sua conversação versava quase que
exclusivamente sobre os galos, as galinhas e os frangos, no
máximo sobre as gansas e os patos. Sua brincadeira habitual,
que ele repetia inumeráveis vezes por dia, era e continuou
sendo a seguinte: ele moldava galinhas e galó§ amarrotando
papel-jornal e os colocava à venda, depois ele pegava um
objeto qualquer (em geral, uma pequena escova fina), que ele
batizava de faca, levava sua “ave” para debaixo da torneira'(aí
onde a cozinheira tinha realmente o costume de degolar os
frangos) e cortava o pescoço de seu frango de papel.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pàpeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004 \

Ele mostrava como o galo sangrava por causa dos toques voluptuosos que ele
e imitava com perfeição, com o gesto e com praticava sobre seus órgãos genitais. A
a voz, a agonia da ave doméstica. resposta, dada, aliás, de maneira mal
Quando se vendiam frangos no agradecida, foi que, de fato, a criança
quintal, o pequeno Àrpad não ficava no gostava de brincar atualmente (aos cinco
lugar, ele corria para a porta, entrava e anos) com seu pênis, que o puniam até
saía, e não tinha sossego enquanto sua mãe freqüentemente e que não era também
não comprasse um. Ele desejava “impossível” que alguém o tenha
manifestamente assistir à sua degolação. ameaçado um dia, “para se divertir”, de
Entretanto, ele tinha muito medo dos castração; aliás, era exato que Àrpad tinha
frangos vivos. esse hábito desagradável há “bastante
Seus pais várias vezes perguntaram tempo”; quanto a saber se ele já o tinha
à criança porque ela tinha tanto medo de durante aquele ano de latência, não
galo e Àrpad contava sempre a mesma podiam me dizer nada.
estória: um dia ele foi ao galinheiro e Poderemos ver pelo que se
urinou no seu interior; foi então que um seguirá, que efetivamente Àrpad não
frango ou um capão de penas amarelas (às escapou posteriormente dessa ameaça;
vezes, ele diz marrons) veio morder seu podemos então reter como verossímil a
pênis, e Ilona, a empregada, tratou de seu hipótese segundo a qual foi a ameaça
machucado. Em seguida, cortaram o sofrida no meio tempo que provocou um
pescoço do galo, que “morreu”. estado emocional tão intenso quando ele
Ora, os pais da criança efetiva­ reviu a cena de sua primeira experiência
mente se lembram desse incidente que terrificante na qual a integridade de seu
teve lugar por ocasião do primeiro verão pênis havia, da mesma maneira, sido
passado na estância de águas, quando ameaçada. Naturalmente, não podemos
Àrpad tinha apenas dois anos e meio. Um excluir uma outra possibilidade, a saber,
dia, a mãe escutou o pequeno dar gritos que mesmo esse primeiro pavor teve um
terríveis e ela soube pela empregada que caráter tão excessivo por vir na
ele tinha um medo medonho de um galo seqüência de uma ameaça de castração
que havia tentado abocanhar seu pênis. anterior e que a emoção ao rever o
Como Ilona não estava mais a serviço da galinheiro deve ser tomada por conta do
família, foi impossível estabelecer se crescimento da libido que se produziu
Àrpad tinha sido realmente ferido nesse meio tempo. Infelizmente, foi
naquele momento ou se (como sua mãe impossível reconstituir melhor essas
se lembrava) Ilona lhe havia feito um circunstâncias e nós devemos, por
curativo apenas para tranqüilizá-lo. conseguinte, nos contentar com a
O que é notável nessa estória é que probabilidade dessa relação causal.
-a ressonância psíquica desse aconteci­ Meu exame pessoal da criança não
mento sobre a criança tenha aparecido revelou nada de surpreendente ou
depois de um período de latência de um anormal. Desde que ela entrou em minha
ano inteiro, quando da segunda estadia sala foi precisamente entre o grande
na casa de campo, sem que nada no número de bibelôs que lá se encontravam
intervalo tenha passado que possa um pequeno galo tetraz de bronze que
explicar aos próximos do pequeno o atraiu sua atenção; ele o trouxe para mim
retorno súbito de seu medo das aves e seu e me perguntou: “Você pode me dar?” Eu
interesse por elas. No entanto, eu não me lhe dei papel e um lápis com o qual ele
deixei parar por essas denegações e fiz à logo desenhou (não sem destreza) um
roda do pequeno uma questão galo. Então eu o fiz me contar sua estória
suficientemente justificada pela com o galo. Mas ele já estava cansado e
experiência psicanalítica, a saber, se quis voltar para seus brinquedos. A
durante esse período não se tinha investigação psicanalítica direta não era
ameaçado a criança — como acontece então possível e eu tive de me limitar a
freqüentemente — de lhe cortar o pênis fazer anotar as proposições e os
comportamentos significativos da criança testemunham, na maior parte, um prazer
por essa senhora que se interessava pelo pouco corrente em fantasiar torturas cruéis
caso e que podia, enquanto vizinha e nas aves. Sua brincadeira típica — a
conhecida da família, observá-la durante imitação do estrangulamento de frangos
horas. No entanto, eu mesmo pude me — já foi mencionada; eu devo ainda
assegurar de que Arpad possui uma acrescentar que em seus “sonhos de aves”
grande vivacidade de espírito e mesmo ele vê geralmente frangos e galos “mortos”.
não deixa de ter dons; é verdade que sua Contarei agora literalmente algumas de
atividade mental e seus talentos estão suas proposições características:
singularmente centrados sobre a gente
emplumada do lugar onde fica o Eu gostaria de ter, diz ele um dia
bruscamente, um galo vivo depenado.
galinheiro. Ele cacareja e faz cocoricós de Ele não teria asas, nem penas, nem
maneira magistral. De madrugada, ele rabo, só unia crista e ele deveria
acorda toda a família — um verdadeiro poder andar.
Chanteclair — ao som de um vigoroso
cocoricó. Ele tem o sentido musical, mas Ele brinca na cozinha com um
não canta senão canções em que tratam frango que a cozinheira acaba de matar.
de galinha, frango e de outras aves De repente, ele vai ao cômodo vizinho,
domésticas; em particular, ele adora essa pega na gaveta do armário um ferro de
canção popular: frisar c grita: “Agora eu vou furar os olhos
cegos desse galo morto”. O momento em
Para Debreczen eu devia ir, um peru que se degola a ave é geralmcnte uma festa
eu devia aí comprar. para ele. Ele é capaz de dançar “horas”
E depois: Vem, vem, vem, meu
pintinho!, e também: em volta do cadáver dos animais, tomado
Sob a janela há dois pintinhos dois por uma excitação intensa.
galinhos e uma franguinha. Alguém lhe pergunta, mostrando-
lhe o galo degolado: “Você gostaria que ele
Ele também sabe desenhar —já foi acordasse?” — ME como! Eu mesmo o
feito menção a isso — mas ele desenha degolaria imediatamente”.
exclusivamente pássaros com grandes Ele brinca freqüentemente com
bicos, e isso não sem uma grande batatas e cenouras (que ele qualifica de
habilidade. Vemos também em que frangos), brincadeira que consiste em
direções ele busca sublimar seu potente cortá-las em pequenos pedaços com uma
interesse patológico por esses animais. faca. Ele quer a qualquer preço jogar no
Seus pais, .vendo que suas interdições não chão um vaso decorado com galos.
produziam nenhum efeito, finalmente No entanto, seus afetos com
tiveram que se acomodar com suas respeito às aves não se compõem
manias e consentiram em lhe comprar simplesmente de ódio e de crueldade,
como brinquedos diversos pássaros de eles são nitidamente “ambivalentes”.
material inquebrável com os quais ele se Muito freqüentemente, ele abraça e
entrega a todos os tipos de jogos acaricia o animal morto, ou ainda,
imaginários. cacarejando ou piando sem parar, ele
Em geral, Arpad é um menino “alimenta” sua gansa de madeira com
alegre, mas muito insolente, se batem nele milho, como ele viu a cozinheira fazer.
ou o chingam. Ele chora raramente, e Um dia, ele jogou de raiva sua boneca
nunca pede desculpas., Fora esses traços de inquebrável (uma galinha) no fogareiro
caráter, há nele sinais indiscutíveis de ' porque ele não conseguia rasgá-la, mas
verdadeiros traços neuróticos; ele é foi logo retirá-la, limpou-a e acariciou-a.
medroso, ele sonha muito (com aves Os animais de seu livro de imagens
naturalmente) e tem freqüentemente um sofreram por outro lado uma sorte
sono agitado (pavor noturno?). menos feliz: ele os rasgou em pedaços e
As proposições e ações de Arpad naturalmente não pôde ressuscitá-los, o
anotadas por minha correspondente que o chateou bastante.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
Pápeis de Psicanálise v.l w.l abr. 2004

Se tais sintomas surgissem num Os órgãos sexuais das aves lhe


doente mental adulto, o psicanalista não interessam, aliás, vivamente. A cada ave
hesitaria em interpretar esse amor e esse doméstica que se degola é preciso lhe dar
ódio excessivos pelas aves como uma explicações sobre o sexo dela; trata-se de
transferência de afetos inconscientes que um galo, de uma galinha ou de um capão?
se referem de fato a seres humanos, Um dia ele se precipita à cabeceira
verdadeiramente a parentes próximos, de uma moça gritando: “Eu vou lhe cortar
mas que são recalcados e não se podem a cabeça, eu a colocarei na sua barriga e
manifestar senão dessa maneira desviada eu lhe comerei inteira”.
e disfarçada. Ele diz uma vez inesperadamente:
Interpretaríamos em seguida “os
desejos de depenar e de cegar” o animal Eu queria comer a ‘mamãe marinada’
(por analogia com frango marinado);
como símbolos de “intenções castradoras” colocaríamos a mamãe para cozinhar
e compreenderíamos o conjunto dos numa panela, então seria a mamãe
sintomas como uma reação à angústia que marinada e eu poderia comê-la. (Ele
inspira ao doente a idéia de sua própria grunhe e dança) Eu lhe cortaria a
cabeça e a comeria assim.(Ele
castração. A atitude ambivalente acompanha suas palavras com gestos
conduziria o analista a suspeitar de que como se ele comesse algo com uma
sentimentos contraditórios se equilibram faca e um garfo).
mutuamente no psiquismo do doente; e
em razão de numerosos fatos da Depois de tais desejos canibais, ele
experiência psicanalítica, seria necessário tem, em seguida, de maneira oposta,
supor que essa ambivalência se relaciona acessos de arrependimento, nos quais, de
com o pai que, apesar de respeitado e maneira masoquista, ele deseja ser
amado, é ao mesmo tempo odiado por cruelmente castigado. “Eu queria
causa das restrições sexuais que impõe. queimar”, ele exclama. E depois:
Enfim, a interpretação psicanalítica se
enunciaria da seguinte forma: o “galo” Que quebrem meu pé, que o
ponham no fogo. Eu queria abrir
significa o “pai” nesse conjunto de minha cabeça. Eu queria cortar
sintomas.** minha boca para não tê-la mais.
No caso do pequeno Arpad, nós
podemos nos poupar a pena do trabalho E para que não seja mais possível
de interpretação. A obra do recalque não duvidar que ele pretende designar sua
foi ainda capaz de dissimular própria família por galo, galinha e
completamente a significação real dessas pintinho, ele declara um dia bruscamente:
bizarrices; o fenômeno primitivo, o “Meu pai é o galo!” e de uma outra vez:
recalcado, transparece ainda em seu
discurso, e até mesmo ele se apresenta às Agora eu sou pequeno, agora eu sou
um pintinho. Quando eu for maior,
vezes abertamente com uma franqueza e eu me tornarei uma galinha. Quando
uma brutalidade espantosas. eu for ainda maior, eu me tornarei
Sua crueldade se manifesta um galo. Quando eu for muito
freqüentemente no encontro de seres grande, eu me tornarei um
cocheiro.(O cocheiro que conduz o
humanos e muito freqüentemente ela visa carro parece impressioná-lo ainda
à região genital dos adultos. mais que seu pai.)
“Eu vou dar um soco no seu cocô
(sic!), no seú traseiro”, ele gosta de dizer a Depois dessa confissão que a
um menino um pouco mais velho. criança fez sem constrangimento nem
“Eu vou lhe cortar o ‘meio5”, ele diz pressão, nóà compreendemos um pouco
outra vez ainda mais claramente. melhor a intensidade de sua emoção
Ele está freqüentemente preocupado quando ela contemplava incansavelmente
com a idéia de cegueira. “Pode-se deixar a atividade no galinheiro. Todos os
alguém cego com fogo ou com água?”, segredos de sua própria família sobre os
perguntou ele um dia à vizinha. quais ela não obtinha em casa nenhuma
_________________________________________________________________ Estudos
PÓS-FREUDIANOS :
123

informação, ela podia então olhá-los Agora nós compreendemos melhor


totalmente à vontade; os “animais sua raiva sem fim contra o galo que queria
caridosos” lhe mostravam sem disfarce fazer com seu pênis o que os “grandes”
tudo o que ela queria ver, e ameaçavam; da mesma maneira que a alta
principalmente a atividade sexual estima que ele dirigia a esse animal
incessante dos galos e das galinhas, a sexuado qüe ousava fazer tudo o que o
postura de ovos e a eclosão da nova teria enchido de um medo horrível; nós
ninhada. (As condições de alojamento de compreendemos também os cruéis
seus pais são tais que o pequeno Àrpad castigos aos quais ele se condenava (por
sem dúvida alguma pôde escutar fatos causa de seu onanismo e de seus
desse gênero em casa). Em seguida, cie fantasmas sádicos).
foi obrigado a satisfazer sua curiosidade Como para completar o quadro, ele
assim despertada contemplando começa nesses últimos tempos a ficar
insaciavelmente os animais. muito preocupado com pensamentos
É igualmente a Arpad que devemos religiosos. Os velhos judeus barbudos lhe
a confirmação de nossa hipótese segundo inspiram um grande respeito misturado
a qual seu medo doentio do galo deve ser com medo. Ele pede à sua mãe para fazer
atribuído, em última análise, a uma ameaça entrar esses mendigos em casa. Mas, se
de castração incorrida por ter praticado o algum deles vem, ele se esconde e o
onanismo. observa a uma distância respeitosa;
Uma manhã ele pergunta à vizinha: quando este se afasta, Arpad abaixa a
“Diga-me, por que as pessoas morrem?” cabeça,, dizendo: “Eu sou um galo
(Resposta: “Porque elas ficam velhas e mendicante”. Os velhos judeus lhe
cansadas.”) interessam, diz ele, porque eles vêm da
“casa de Deus” (do templo).
Hum! Então minha avó era velha? Em conclusão, nós contaremos uma
Não! Ela não era velha e ela, no última declaração de Àrpad, mostrando
entanto, morreu. Oh! Se há um
Deus, por que ele me faz sempre que não foi em vão que ele observou por
cair? (Ele pensa: tropeçar, uma tanto tempo as atividades galináceas. Ele
queda, cair baixo.) E por que ele faz diz, um dia, à vizinha, da maneira mais
as pessoas morrerem? séria: “Eu me casarei com você, você e sua
irmã e minhas três primas e a cozinheira,
Depois ele começa a se interessar não, melhor mamãe, no lugar da
pelos anjos e pelas almas que lhe cozinheira”.
declararam não ser mais do que contos. Ele quer, pois, verdadeiramente,
Ele fica gelado de pavor e diz: “Não! Não tornar-se um “galo”.***
é verdade! Existem anjos. Eu vi um que
levava as crianças para o céu”.Em seguida, TRADUÇÃO: Cristina Drummond
ele pergunta assustado: “Por que as REVISÃO: Ornar Duane
crianças morrem? Quanto tempo podemos
viver?55 Ele não consegue se acalmar senão
com dificuldade. - ■
Descobriram depois que naquela
NOTAS
manhã mesmo a empregada tinha
bruscamente levantado a coberta de sua ‘NT - Essa é uma tradução da versão francesa do original
alemão, "Un petit homme-coq (1913)" que está em:
cama e, vendo-o tocar seu pênis, ela o havia FERENCZI, Sandor. Oeuvrescomp/ètes, Paris: Editions Payot,
ameaçado de cortá-lo. A vizinha se esforçou 1970, v.II, p.72 e segs.

para tranquilizar a criança, ela lhe diz que ‘-Num grande número de análises e de sonhos de neuróticos,
descobrimos atrás de uma forma animal a figura do pai. Ver
não lhe fariam nenhum mal e que, aliás, Freud: "Análise de uma fobia num menino de cinco anos" e
todas as crianças faziam o mesmo. Ao que Mãrchenstoffe in trãumen.
0 caso do jovem Àrpad (que eu publiquei num primeiro
Àrpad respondeu, indignado: “Não é
número da revista Zeitschrift für ãrztliche Psychoanalyse) é
verdade! Nem todas as crianças! Meu papai reutilizado pelo professor Freud numa de suas obras recentes.
Seguindo a demonstração de Freud, nós podemos admitir que
nunca fez isso!”
Instituto de Psicanálise f Saúde Mental oe Minas Gerais
[ Pápeis de Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

o culto e o sacrifício de animais são manifestações deslocadas


de afetos ambivalentes (respeito e medo). A pulsão primitiva
tem como objetivo afastar o pai odiado, mas mais tarde é a
intenção oposta, o amor, que vem se expressar. E a mesma
ambivalência que se manifesta em relação ao pai no totemismo
dos primitivos atuais, nos sintomas dos obsessivos e no interesse
considerável, tanto positivo como negativo, que as crianças
dirigem aos animais.
Freud qualifica o pequeno Arpad de caso raro de
totemismo positivo (S. Freud, Totem e tabu} (NT francês: Essa
nota constitui um parágrafo suplementar no artigo húngaro
que é posterior à aparição de Toteme tabu o à redação do artigo
alemão traduzido aqui).

“*NT- Coqde viiiage-. homem que seduz ou pretende seduzir as


mulheres por sua aparência avantajada. {Lepetit Roberb
Papéis de Psicanálise . -
v.l. n.l (abr. 2004) -. - Belo Horizonte : Instituto de Psicanálise
e Saúde Mental de Minas Gerais, 2004.
V.
Anual
ISSN: 1806-3624

1. Psicanálise - Periódicos 2. Sexualidade - Infância I. :


Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

CDU: 159. 964


CDD: 150. 195

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Cristina Druinmond

Secretaria Editorial deste número


Maria Rachel Botrel
Ornar Duane
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Hélène Deutsch

UM CASO DE FOBIA DE GALINHAS*

u gostaria de falar de um caso de fobia no qual o


E animal que suscita a angústia fóbica é raramente
objeto de fobia. Os cachorros, os cavalos e os gatos são os
receptáculos mais freqüentes da angústia fóbica. Às vezes o
são também animais grandes e poderosos que têm um
papel nos contos e despertam fantasias e medos nas
crianças. Outras vezes, são pequenos animais rastejantes
ou aranhas, cobras, etc., que provocam um sentimento
de estranheza inquietante e, em certas circunstâncias,
graves angústias.
Nosso paciente havia sofrido durante anos de uma
fobia de galinhas particularmente penosa para ele, pois,
nascido e criado no campo, ele queria ser fazendeiro e
não podia exercer esse ofício por causa de sua fobia; ele
tinha tido hteralmente que deixar o lugar a seu inimigo
e se refugiar na cidade para dar um outro destino a
suas angústias.
Quando ele consultou para um tratamento
analítico, já estava praticamente curado de sua fobia. Esse
rapaz de 20 anos veio a partir da demanda de sua
família, que tinha descoberto que ele era um
homossexual manifesto e exigido que ele submetesse sua
perversão a uma análise. O paciente não concordava de
forma alguma com isso. Estava totalmente satisfeito com
sua homossexualidade e insistia sobre a parte masculina
agressiva de suas relações com os homens, se bem que
toda a sua personalidade manifestava um caráter doce,
muito claramente feminino. Os objetos de seu amor eram
sempre jovens elegantes que, segundo sua descrição,
eram do mesmo tipo que ele. Nós chamamos narcísico
esse tipo de escolha de objeto: ama-se no outro a
semelhança consigo mesmo.
Essa escolha de objeto era, para dizer a verdade,
um pouco surpreendente porque, desde o primeiro
tempo da análise, pareceu claramente que as raízes de
sua homossexualidade se encontravam na fixação a um
irmão 10 anos mais velho que ele. Não foi senão
quando a análise desembaraçou os nós de sua vida
psíquica que esse fato paradoxal pôde encontrar sua
explicação.
Instituto de Psicanálise e Saúoe Mental de Minas Gerais
126 Pàpeis oe Psicanálise v.l n.1 abr. 2004

O paciente não se lembrava mais de irmão mais velho. Resultou disso uma
ter estado doente nos cinco ou seis briga entre os dois irmãos porque nosso
primeiros anos de sua vida. As primeiras jovem amigo não queria de forma alguma
dificuldades neuróticas só apareceram ser uma galinha. Mas ele teve que ceder a
durante o período de latência, em reação seu irmão mais forte, que continuava a
a um acontecimento traumático. Eu queria apertá-lo na mesma posição. Tomado por
novamente insistir aqui sobre o fato de que uma raiva desmesurada, ele se pôs a chorar
esses acontecimentos traumáticos podem e berrar: “Mas eu não quero ser uma
certamente provocar o desencadeamento galinha!”
de uma neurose, mas que eles são muito A partir desse momento, o
raramente a única e última causa da menininho começou a perder uma grande
doença. No tratamento analítico, eles são parte de sua liberdade de movimento. Ele
indicadores, limites, marcos que conduzem se sentia obrigado a fazer grandes desvios
a fontes inconscientes mais profundas às para evitar as galinhas, o que, numa
quais eles devem seu efeito, às vezes, sua fazenda, não se passava sem dificuldades.
origem. Não era ainda o medo das galinhas que o
A experiência traumática de nosso levava a evitá-las assim, mas o medo dos
paciente constituía tanto o clichê de sua ataques sádicos de seu irmão mais velho,
neurose púbere posterior quanto o de sua que, lembrando dessa brincadeira e dos
perversão e, no estudo desse caso protestos do pequeno contra o fato de ser
extremamente interessante e instrutivo, eu uma galinha, o gozava cada vez que uma
colocarei esse acontecimento no centro e galinha aparecia gritando: “É você!”
na base de nossa reflexão. Pois, para a Enquanto no princípio ele evitava as
análise, ele era o ponto de partida que gozações de seu irmão, pouco a pouco, ele
conduzia não apenas aos estádios começou a evitar as galinhas. Foi assim que
posteriores de seu desenvolvimento como a angústia devida às zombarias do irmão
também aos tempos pré-históricos de sua se transformou em medo de animais
infância desaparecidos sob amnésia. A inofensivos com os quais ele tinha até então
análise mostra quase sempre que tais se relacionado bem. Cada vez que ele
acontecimentos — quer eles tenham ou queria sair de seu quarto, uma pessoa de
não soçobrado na amnésia — não têm confiança devia prender as galinhas no
efeito patogênico senão na medida em que galinheiro e vigiar para que nenhuma
um terreno favorável lhes preexiste. estivesse nas paragens. Era preciso todas
A experiência de meu paciente essas precauções para que o menininho,
nunca havia sucumbido à amnésia, mas ele ainda apavorado, ousasse sair da casa. Com
não tinha tido acesso à significação mais o olhar inquieto, ele estava sempre
profunda desse episódio para o espiando com medo de que o bicho-papão
desenvolvimento de sua vida psíquica. O — sob a forma de uma galinha —
laço entre o acontecimento aparentemente aparecesse em seu carripo visual. Quando
inofensivo e as dificuldades neuróticas ele avistava uma, era tomado por uma
posteriores não pôde, por isso, ser grande angústia. Esse entrave à sua
estabelecido, senão com a análise. liberdade durou mais ou menos dois anos.
Num quente dia de verão, o Depois, a fobia desapareceu totalmente e
menininho de sete anos brincava com seu a análise revelou que esta liberação tinha
irmão, já adulto, no quintal da fazenda em coincidido com a partida de seu irmão, que
que ele havia nascido e crescido. Ele deixou a casa da família para estudar.
brincava no chão, agachado, quando seu Durante a puberdade, nosso
irmão mais velho saltou bruscamente sobre paciente se tornou particularmente difícil
ele por trás, o agarrou fortemente pelo de educar e, depojs de um incidente
tronco e gritou: “Eu sou o galo e você é a- desagradável com a governanta francesa,
galinha”. foi enviado para uma escola da cidade. Ele
Tratava-se manifestamente de uma se instalou na casa de um professor ao qual
agressão sexual lúdica da parte de seu ficou muito ligado. Quando, depois de
_________________________________________________________________Estudos
PÔS-FREUDIANOS| 127

vários meses ele voltou para casa para Depois veio uma fase em que a
passar as férias, foi novamente tomado pela educação empreendida por sua roda
fobia de galinhas — depois de uma parecia coroada de sucesso. O menininho
interrupção de seis anos —, de sorte que abandonou suas “porcarias”, se tornou
apenas ousava deixar seu quarto. muito limpo e deu a impressão de ter
A fobia diminuiu progressivamente, renunciado aos prazeres anais. Começou
ele foi pouco a pouco sarando, por a se masturbar e podia parecer que ele
conseguinte, mas ele se desviou então do tinha assim conseguido passar do estádio
sexo feminino e se tornou, como eu lhes anal ao estádio genital. Mas a análise
disse, um homossexual manifesto. revelou que a masturbação não visava, por
Consideremos agora um pouco outras vias, senão as sensações de
mais de perto a história de sua infância prazer anal. Em suas manipulações
antes do acontecimento traumático. Dos masturbatórias, ele sabia se pegar de tal
três filhos, ele era de longe o mais novo forma que, no lugar de encostar com o
e o perfeito “chuchuzinho” da mamãe. dedo na parte posterior, ele encostava seu
Era inseparável de sua mãe, sempre na pênis sobre o períneo na parte da frente e
barra da sua saia, e a acompanhava em obtinha assim sensações anais. Suas
todas as suas ocupações. Acontecia que fantasias permaneciam centradas sobre sua
as galinhas, muito tefhpo antes da cena mãe, a quem ele representava munida de
com seu irmão, tinham desempenhado um pênis: nesse jogo, seu próprio pênis
um papel importante em sua atividade era um órgão que pertencia à mãe, assim
fantasmática. Sua mãe se ocupava com como o havia sido seu dedo em suas
um interesse particular do galinheiro. O fantasias anteriores. Nessa fase, ele tinha
pequeno tomava ativamente parte nisso, certamente uma posição passivo-anal, mas
se regozijando quando um ovo era posto a escolha de objeto era heterossexual. Foi
e olhava com interesse sua mãe tocar as o acontecimento vivido com o irmão que
galinhas para controlar a postura dos marcou uma virada na escolha de objeto.
ovos e a incubação. Ele próprio gostava Com essa agressão, a posição passivo-anal
muito de ser tocado por sua mãe e, predisponente à homossexualidade já
quando ela lhe dava banho, o lavava ou tinha tomado uma orientação homossexual
lhe dispensava outros cuidados, ele lhe e o irmão tinha sido colocado no lugar da
perguntava freqüentemente, para se mãe. O jogo com o irmão tinha plenamente
divertir, se ele também iria botar um ovo ativado sua disposição homossexual
e se ela não queria controlar isso com o passiva. A análise mostrou que desde antes
dedo. Se o prazer do tocar, no início, se desse acontecimento, observando o galo
ligava aos órgãos genitais, ele deslocou que saltava sobre uma galinha, nosso
em seguida, progressivamente — talvez paciente tinha-se identificado com esta e
por relação com o tocar das galinhas — que, se ele havia protestado com tanta
essas sensações de prazer para a parte emoção contra o ato de seu irmão no jogo
posterior. Tocava seu ânus, retinha suas do galo e da galinha, era precisamente
fezes ou ainda botava ovos fecais porque rejeitava conscientemente esse
perfeitamente formados em todos os papel passivo que ele desejava
cantos do quarto, muito feliz em fazer inconscientemente. A cena com seu irmão
esse dom de amor à sua mãe e muito tinha, para ele, a significação do ato sexual
espantado em não vê-la acolher esse dom entre o galo e a galinha, ou seja, entre seu
com a mesma satisfação de quando ele irmão e ele, e seu grito: “Eu não quero ser
vinha das galinhas. Nessas brincadeiras, uma galinha!”, tinha como conteúdo real:
ele próprio tinha um papel duplo: era a “Eu nego meu desejo homossexual
mãe que o tocava, o apalpava e introduzia passivo”. A fobia de galinhas, tal como
seu dedo e a galinha tocada que botava mostrou a análise, não era senão a
o ovo. Esse jogo anal tinha, em grande seqüência dessa tendência à denegação.
parte, caído na amnésia e só voltou à Eu gostaria de mencionar aqui um
memória no curso da análise. outro elemento desse acontecimento
^1 Imstituto oe Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
H Pàpeis oe Psicanálise v.l n.1 ab». 2004

ocorrido com o irmão. O paciente contou paciente, a sensibilidade ao ser tocado era
em análise, sem fazer ainda o laço com o provavelmente deslocada dessas partes do
acontecimento, que tinha em torno do corpo para a zona que, na cena com o
tronco uma zona tão coceguenta que a irmão, tinha desempenhado um papel
mínima coisa, experimentando uma correspondente ao destino da libido, que
roupa, ou ao menor contato com essa zona, tinha passado da mãe para o irmão.
ele era tomado de risos loucos Eu tenho a impressão de que essa
incontroláveis e que quando ele brincava forma de excitabilidade da pele, com
antigamente com seus colegas, ele morria reações afetivas particulares e tão
de rir quando tentavam fazer cócegas nesse desenvolvidas em nosso paciente, tem a
lugar. Na análise, essa hipersensibilidade mesma origem em toda cócega. E, com
pôde ser ligada à cena com seu irmão. efeito, notável que, na maioria dos
Quando dessa cena fatídica, seu irmão o indivíduos, as regiões coceguentas típicas
havia mantido enlaçado por trás nesse sejam aquelas que têm a prevalência nos
nível do corpo que pertencia à zona cuidados e nas limpezas da primeira
coceguenta. Esse abraço, como nós infância. Parece que a essas regiões do
sabemos, tinha provocado uma satisfação corpo se amarram lembranças de prazer
a seus desejos libidinais passivos. Mas ligadas ao erotismo da pele, vividas na
simultaneamente foi despertada uma primeira infância e recalcadas na
violenta defesa contra essas tendências seqüência. A cócega é, portanto, ao mesmo
passivas. O riso provocado pelas cócegas tempo, revivescência e recusa do prazer.
era a expressão da satisfação, a Voltemos a nosso paciente. A cena
reminiscência do que tinha sido prazeroso com seu irmão significava para ele
nesse acontecimento, mas era um riso que, uma cena de sedução homossexual,
por causa da defesa, se tornava desprazer, acontecimento para o qual ele estava há
um prazer já recusado, de alguma muito tempo preparado e predisposto em
maneira, uma espécie de prazer triste. suas fantasias inconscientes. Sua luta
Pelo que nosso paciente podia se consistia numa defesa contra a realização
lembrar, a cena.com o irmão não se desse desejo, defesa contra sua própria
acompanhava de sensações de cócegas, homossexualidade passiva que se
mas nosso paciente guardou a lembrança manifestava na fobia das galinhas.
física na zona do abraço que, despertado Reflitamos no conjunto do processo
pelos contatos posteriores, levava cada vez e lembremos dos dois casos exemplares de
à descarga alegre — o riso — e ao mesmo fobia animal: a fobia dos cavalos do
tempo à defesa como outrora no grito: “Eu “pequeno Hans” e a fobia do lobo na
não quero ser uma galinha!” “História de uma neurose infantil”
Ele tinha sido vencido no combate (Freud).
com seu irmão, e é como lembrança de sua O pequeno Hans tinha recalcado a
submissão passiva, depois de ter pulsão hostil contra o pai, ele tinha
renunciado a se defender que apareceram deslocado suas tendências agressivas
suas síncopes posteriores, quando lhe contra o pai para um objeto animal
faziam cócegas. Acrescentemos que, em apropriado e esperava no presente a
suas relações com sua mãe, o paciente já vingança do poderoso animal, ou seja, uma
tinha tido fortes sensações de prazer agressão contra sua pequena pessoa. A
quando ela o tocava. Esse prazer de ser angústia era nele um sinal de alarme
tocado — seu erotismo da pele era diante de seus perigos interiores, angústia
visivelmente muito desenvolvido — da qual o conteúdo era: “Se você quer
concernia também outras partes do corpo matar seu rival, seu pai, você será castrado
que eram objeto de cuidados e da atenção por ele”, e o perigo da castração era
de sua mãe. Esses lugares enxugados, exprimido pelo conteúdo: “Você será
portanto, tocados, quando se faz a limpeza mordido pelo cavalo”>E característico que
das crianças, se encontram sob o queixo, esse perigo ameaçador seja jogado no
nas axilas e nos calcanhares. Em nosso mundo exterior.
O pequeno Homem dos Lobos O paciente também solicitou seus favores,
também projetava um perigo interior no mas foi despachado porque ele era muito
mundo exterior. Nele, no entanto, o perigo jovem. Ele não aceitou muito facilmente
residia na relação homossexual passiva essa recusa. Num acesso de raiva, agrediu
com o pai (contida no desejo inconsciente a governanta por trás e tentou violentá-la
de ser comido pelo pai). Nele também o nessa posição. Depois de uma violenta cena
perigo interior foi deslocado para um familiar, foi decidido que o rapaz irritável
animal. Mesmo que o processo seja mais deixaria a casa.
complicado, sua angústia também Esses acontecimentos da puberdade
correspondia, como o mostra Freud, à revelam que o paciente já tinha estado
angústia de castração. A castração, que é anteriormente em rivalidade com seu
para Hans uma ameaça de vingança e de irmão. A mãe tinha provavelmente
castigo, se torna, no pequeno Homem desempenhado um papel nessa rivalidade,
dos Lobos, a condição da satisfação e a análise trouxe índices sobre o fato de
inconscientemente desejada. Para ser que, em sua vida fantasmática, as
amado por seu pai como o é a mãe, é observações do galo e da galinha se ligavam
preciso sacrificar seu órgão genital a seu pai e à sua mãe. Temos também a
masculino. impressão de que o homenzinho não tinha
O que se passa no presente com a suportado se ver recusado por sua mãe e
fobia de galinhas de nosso paciente? Ele que era por essa razão que ele tinha
partilha com os dois outros, o pequeno operado essa inversão para uma posição
Hans e o Homem dos Lobos, o fato de feminina. Verdadeiramente, se esse
deslocar o perigo interior para o mundo processo de inversão se realizou tão rápido
exterior. Mas, nele, o mecanismo de e tão facilmente, era porque uma forte
projeção funciona de outra maneira. Ele disposição anal o havia preparado. Essa
isola essa parte de sua personalidade que primeira organização edipiana normal, tal
é portadora de sua posição passiva em como nós a colocamos acima, permanecia
relação ao irmão. A galinha, à qual eleja uma simples hipótese fundada sobre certos
havia se identificado anteriormente, índices sem que a análise tenha podido
corresponde precisamente a essa parte prová-la com certeza. De imediato, a
dele mesmo isolada e projetada no análise descobriu que a relação com a mãe
exterior. A galinha é, de alguma forma, o tinha uma forma pouco viril: de um lado,
espelho de sua tendência feminina. Cada ele se identificava com ela, e, de outro, ele
vez que ele se vê nesse espelho, ou seja, esperava dela uma satisfação anal. Dessa
quando ele vê uma galinha, ele é tomado relação ele passou diretamente para a
de angústia diante de suas próprias relação com seu irmão, e seu pai não teve
tendências pulsionais que devem ter nele em nenhum momento um papel decisivo
também a mesma conseqüência que no na análise.
pequeno Hans e no Homem dos Lobos: a O acontecimento com a governanta
castração. foi decisivo para seu destino posterior. A
Lembremos que sua analidade recusa que ele suportou da parte da
primitiva trazia uma disposição à mulher reforçou suas tendências
homossexualidade passiva: seu irmão, homossexuais. Ele voltou à escola,
atacando-o por trás, não faz mais do que sublimou aparentemente sem dificuldades
mobilizar e consolidar essa disposição. neuróticas, mas toda a sua conduta traía
A angústia das galinhas desapareceu de nitidamente tendências passivas. ’
maneira característica quando o irmão Aos 16 anos, em visita a seus pais,
deixou a casa — prova de que o perigo teve um novo acesso fóbico. Ele deixou
real para seus desejos libidinais se precipitadamente a casa e voltou à cidade.
situava, na realidade, em sua relação No dia de seu retorno, conheceu um belo
com seu irmão. rapaz, se dirigiu para ele de um modo
Durante a puberdade, o irmão teve extraordinariamente agressivo, lhe contou
ç uma ligação com a governanta francesa. suas aventuras homossexuais (que ele
Institui? de Psicanaiise e Sauoe MrxTAL de Minas Gerais
130-M Papeis oe Psicamàlise v.l n.l abr. 2004

nunca tinha tido) e seduziu ativamente o tenha terminado por uma reversão para a
rapaz, também homossexual. A partir heterossexualidade e que, se eu acreditar
desse momento ele teve toda uma série de nas notícias que recebo de tempos em
experiências homossexuais análogas, nas tempos dele e de seu modo de vida
quais desempenhava sempre o papel do exterior, o paciente permaneceu
sedutor ativo. heterossexual.
E preciso compreender como se A solução terapêutica se revelou,
passa essa mudança súbita em seu nesse caso, tão interessante, que eu não
comportamento: fugindo anteriormente posso impedir-me de lhes reportá-la
de sua própria passividade, ele tinha, ém rapidamente.
sua angústia, recalcado toda moção O paciente veio à análise insistindo
homossexual e preferido antes tomar vivamente sobre sua auto-satisfação. Era
medidas fóbicas do que sofrer a irrupção um rapaz de tipo feminino narcísico,
dessas moções. Mas a libido homossexual para quem a única forma possível de
refreada podia se impor com uma relação de objeto consistia em investir
condição: que ele assumisse o papel ativo suas capacidades de amor limitadas num
e não passivo em sua homossexualidade. objeto semelhante a ele. No momento em
Para fazê-lo, ele deveria se identificar que tinha começado sua análise, ele se
com a mãe sedutora e não com a mãe dizia “apaixonado” por um comediante.
seduzida. Ele atingia assim dois objetivos. Esse comediante, o tipo mesmo da
Primeiramente, ele podia manter sua escolha de objeto narcísica, era a
atividade, ele não tinha necessidade de encarnação de todas as qualidades que o
renunciar à sua virilidade nem ao órgão paciente desejava encontrar em si
viril. Em segundo lugar, depois de ter mesmo. Ele queria ser comediante, o
feito uma escolha de objeto narcísica, ou homem amado o era. O ser amado era
seja, estabelecer relações amorosas com terno como uma mulher e generoso
jovens que se parecessem com ele, ele como um homem, pronto a todos os
podia, por meio desse desvio, sacrifícios e, entretanto, preocupado em
identificando-se com os outros, gozar manter sua personalidade, etc. Ao
passivamente da experiência. mesmo tempo, o paciente devotava uma
Mas o último choque que tinha igual admiração à sua própria pessoa, era
liberado sua homossexualidade foi o tão satisfeito e arrogante como se ele
seguinte: quando de sua última visita a sua tivesse realmente todas essas qualidades
casa, ele tinha ficado sabendo que seu que ele pretendia encontrar naquelq que
irmão era um homossexual manifesto. Essa ele amava.
descoberta provocou o despertar de sua Na análise, essa soberania narcísica
fobia. Mas, ao mesmo tempo, desde seu foi um pouco abalada. Ele abandonou a
retorno à cidade e sob o efeito dessa notícia, análise, mas logo escreveu cartas
ele abandonou a angústia de sua própria desesperadas, suplicando-me para retomá-
homossexualidade e — identificando-se lo, pois estava, dizia ele, completamente
com seu irmão — torna-se homossexual “perturbado”. Na sua volta, ele teve o
ativo. Ele só tinha que dizer para si mesmo: seguinte sonho: ele apaga a luz de
“Eu não preciso mais temer a agressão de cabeceira (ele já está sonhando) para
meu irmão porque eu próprio me tornei dormir. No mesmo instante, sente uma
o agressor”. pressão em seu pescoço, um aperto em sua
As perspectivas terapêuticas de uma garganta, uma forma pesada aperta todo
tal análise, na qual o analisante aceitou seu corpo, tenta lhe esmagar o peito. Ele
sua perversão estando inteiramente se defende, as duas formas se mordem em
convencido de estar com boa saúde e não sua luta, caem da cama no chão e
se submetendo ao tratamento senão pela continuam os socos, arranhões, gravatas,
demanda de seus próximos, são etc. Ele consegue alcançar o interruptor,
extraordinariamente desfavoráveis. E acende a luz, vê nesse instante uma forma
muito surpreendente que “essa” análise feminina vestida de preto passar
furtivamente e sabe então que ela é a produto final de um processo muito
instigadora do combate. Ele sente suas complexo. Sua “posição feminina” era
forças desaparecerem na luta e sabe que certamente precocemente determinada
vai morrer. Na pessoa de seu adversário por disposições (relação anal com sua mãe,
reconhece um rapaz de suas relações. Ele etc.), mas o resultado final era devido a
diz: “Eu me suicidei” e pensa então: “Isso um ódio violento contra o pai ou o irmão,
é o que eu mereço”. Ele sabe muito bem grande e potente (a mulher na origem do
que o outro o matou e, no entanto, afirma combate no sonho). Na luta, ele devia
que é um suicídio. Finalmente, ele se diz: submeter-se reconhecendo sua fraqueza
“E muito nobre de minha parte levar a (combate galo-galinha), e de inimigo, no
culpa”, e acorda. início, transformar-se em amoroso
Toda esta cena de luta no sonho impotente.
lembra, em sua interpretação analítica, a O sonho mostrava, no entanto,
cena de Os Elixires do diabo, de E.T.A. claramente, que essa luta entre ele e o
Hoffmann", na qual Médard e Victorin, “outro” continuava em sua vida interior.
encarnações da divisão do eu, lutam um O “outro” nele, que o maltratava e acabava
contra o outro. O paciente vive a analogia por matá-lo era a parte sádica de sua
e me reconhece na silhueta feminina do personalidade, e, ao mesmo tempo, seu
sonho como a instigadora de seus conflitos próprio juiz, declarando: “Ele não merece
surgidos na análise. Ao “rapaz” ele nada melhor”, dava sua sentença e o
associou seu encontro na véspera com um condenava ao suicídio.
homem de seu conhecimento que ele Vemos aqui a crítica interna reinar
sabia ser um homossexual sádico como déspota e supomos, então, com
agressivo que atormentava e explorava razão, que ela foi a causa justificadora do
seus objetos. O paciente o desprezava retorno da agressão sobre ele próprio.
absolutamente e evitava sua companhia. Ora, a posição masoquista que resultava
Na conversação, esse “rapaz” lhe havia disso se tornava perigosa para o eu, pois
dito que ele não andava bem, que sofria ela o ameaçava novamente da perda da
de depressão e de angústia. Dois virilidade, tal como havia feito o desejo
pensamentos atravessaram o espírito do libidinal feminino original. Nós já
paciente. Um era: “Isso é o que você reconhecemos na fobia a defesa contra
merece”, e o outro: “Como eu”. esse perigo, mas compreendemos agora
Essas associações traíam nitidamente que a fuga fóbica valia também como
sua identificação com o rapaz. Enquanto castigo que comportava novamente o
que, até agora, ele se colocava no mesmo perigo de castração. O castigo e a
plano de seus parceiros amorosos que satisfação do desejo libidinal feminino
correspondiam a seu ideal do eu consciente tinham as mesmas conseqüências fatais e
e se sentia assim semelhante a eles na deviam em seguida ser rejeitadas pelo eu,
admiração narcísica de si mesmo, o sonho como isso se produzia, aliás, com os
traía uma identidade mais profunda, mecanismos fóbicos.
recalcada, reemergindo no presente sob a Em nosso paciente, o combate
influência da análise (a mulher interior tinha-se resolvido no curso do
instigadora), com o que era mau, sádico e tempo numa série de compromissos
agressivo nesse homem. No sonho, ele aparentemente bem-sucedidos e o
descarregava toda a sua raiva e paciente tinha compensado sua
agressividade contra o inimigo que o desvirilização psíquica com um narcisismo
atacava, contra o parceiro sádico que era soberano. A análise relançou o combate
também seu duplo, seu eu recalcado e até as raízes mais profundas do conflito.
compensado. A paz interior foi abalada, o muro de
O quadro aparentemente claro e proteção narcísica ruiu, e o processo de
transparente de sua posição passiva se cura pôde então começar.
complica aqui. O que nós tínhamos Lembrem da paciente que sofria de
descoberto em sua fobia se mostrou ser o uma fobia de gatos. Nós vimos que uma

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