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O NÓ BORROMEU NA FOBIA

CHARLES MELMAN

Vocês todos sabem, acredito, o que é a fobia, mas o


problema é o que vocês esqueceram : vocês esqueceram o tipo de
gozo organizado por esta constelação.

Eis como o evocarei : quando vocês eram crianças,


provavelmente deve ter acontecido de vocês se entregarem a esse
tipo de brincadeira que consiste em se trancar num lugar fechado
com um parceiro do sexo oposto; é importante nesta história que
haja um parceiro e que este seja do sexo oposto, que ela se situe
num espaço fechado e que seja para brincar de um encontro
suficientemente íntimo para de certa forma ser justificado pela
ameaça exercida fora deste espaço fechado por algum animal
ameaçador.

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O que é notável nessa brincadeira, que vocês


provavelmente devem ter praticado, é que ao tipo de encontro, de
ligação com esse parceirinho estava associada uma relação
amigável, ou ainda fraterna, suscetível também de ser a que une
um casal, ou enfim a de uma mãe em relação a seu filho; tratava-
se de um modo de relação em função do perigo, um modo de
solidariedade polivalente; e essa solidariedade revelava-se tanto
mais estreita porquanto, é claro, o perigo encontrava-se ali, a
porta, ameaçando-a e ao mesmo tempo justificando-a. Tratava-se
pois de um tipo de ligação que se pode seguramente qualificar,
neste jogo, de perversa, mas que implicava em todo caso e
forçosamente num trio (ménage-à-trois), uma vez que o erotismo
da situação ia de par com essa presença ameaçadora atrás da porta,
com essa coisa que podia portanto apresentar-se como
possibilidade, no final das contas, de um dos parceiros vir a
brincar com aquele que... possibilidade de se desviar de seu duplo
para brincar de alguma outra coisa com esse terceiro ameaçador.

O que acabo de evocar é uma situação comumente


encontrada nos jogos infantis e que parece exemplar do que é a
fobia, com a única diferença de que o fóbico não está mais
brincando. Não se trata, para ele, de uma brincadeira, mas do que
veio a se constituir como sua realidade.

Esta introdução coloca de imediato o acento sobre o modo


de relação a esse duplo, "o acompanhante", procurado na fobia e,
ao mesmo tempo, sobre o tipo de gozo especial, particular,
acionado por este dispositivo. E também uma maneira de lembrar
que a fobia, como a neurose, não está no outro; está, de uma
forma virtual ou não - isto não tem muita importância - um
pouco em cada um de nós.

Vou retomar a partir de agora essas questões desde uma


outra perspectiva, se assim ouso dizê-lo. Retomarei a luz do que a
mim se revelou de forma muito vivida a leitura de um livro de
psiquiatria de Legrand du Saulle, obra do século XIX consagrada a
fobia. Existe ali uma análise clínica bastante simples de

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circunstâncias que desencadeiam o que ele chama de acesso fóbico


e relativas particularmente aos espaços nos quais este se produz.

Como já tive ocasião de mostrar, os espaços que


desencadeiam o que chamamos de acesso fóbico - diz-se
"agorafobia", termo que introduz certas dificuldades -, apresentam
uma heterogeneidade que converge porém no sentido de uma
certa unidade, são largas avenidas, longas e amplas praças, salas de
espetáculo dos grandes teatros, eventualmente catedrais, ou
mesmo vãos de escadarias, de preferência quando desertos; mais
precisamente quando inexiste justamente a possibilidade de se
situar a partir da imagem de um semelhante. Note-se aqui esta
observação muito interessante de Legrand du Saulle a propósito
de um acesso de angústia desencadeado em alguém que se
encontra no último andar do mezanino de um grande teatro, ou
então numa catedral : este acesso de angústia surge quando
correlacionado com o buraco, ali, diante dele, sem que nenhum
detalhe físico ou arquitetural venha constituir um limite entre ele
e o buraco. Legrand du Saulle dizia que bastaria um bico de gás ou
uma cornija, ou então uma escultura que viesse a criar um relevo
entre ele e o fosso para que ele se sinta tranqüilizado; é o fato de se
encontrar diretamente exposto ao fosso, a esse buraco, que
desencadeia o acesso de angústia, Esse ponto merece ser destacado;
deixemo-lo porém de lado por enquanto.

Qual é esta unidade que podemos encontrar na


heterogeidade desses espaços ? Esses espaços estão todos
ordenados por linhas paralelas que desenham, instauram um
ponto de fuga, um ponto no infinito. Se um fóbico se deslocar
numa ruela de uma cidade medieval, ele não terá um acesso de
fobia. O que vou propor-lhes, portanto, é o seguinte : é a
emergência no espaço deste ponto de fuga, - o espaço é estruturado
por esse ponto que, de certa forma, lhes salta a cara ainda que, bem
entendido, vocês não o vejam, já que ele se situa no infinito - que
desencadeia a angústia. Há portanto uma dificuldade no termo
mesmo de "agorafobia", na medida em que é a emergência desse
ponto de fuga que desencadeia esse acesso de angústia no seu
estado mais puro.

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Note-se aqui que esta organização do espaço não é de todo


natural; trata-se de espaços altamente urbanizados e de uma
urbanização relativamente recente; pois a vida na Idade Média, o
espaço romano não tinham nada a ver com este tipo de espaço.
Quando se faz um passeio pelo Forum, percebe-se um espaço
heteróclito, uma acumulação de coisas, uma juxtaposição de
elementos, de lugares, de datas diversas. Esta organização centrada
do espaço é relativamente recente e pode ser atribuída às pesquisas
feitas pelos pintores dos séculos XV e XVI em torno da
perspectiva, ou seja, de uma certa possibilidade de construir o
quadro : qual ? É aí que se coloca a questão, pois as razões que eles
próprios encontraram funcionariam para nós unicamente como
álibis; quanto a mim, adiantaria a seguinte observação : a
dificuldade das pesquisas em torno da perspectiva residia no fato
de que para parecer "verdadeiro", era preciso aceitar uma
deformação dos objetos, uma vez que os objetos mais afastados
precisavam ser diminuídos, as formas deformadas; isto quer dizer
que era preciso aceitar que estivéssemos lidando com um mundo
de representação, com um mundo de semblante, para que
justamente parecesse mais "verdadeiro”, fosse mais "verdadeiro.”
As conclusões mesmas de Descartes, às quais Lacan atribui uma
grande importância, referentes a instauração do sujeito moderno,
o que quer dizer também do sujeito do inconsciente, conclusões
estas sobre o mundo enquanto não sendo outro senão o da dúvida
e sobre a verdade que vem então alojar-se no lugar onde se
mantém o ser, talvez não sejam estranhas a essas pesquisas
primitivamente feitas pelos pintores.

Na Idade Média, o espaço se lê indubitavelmente como um


grafismo; arriscarei dizer que o espaço do grafismo, o da escrita, é o
que precede o da colocação em perspectiva; seria preciso evocar
aqui o problema da iluminura; mas deixemos de lado esta
questão. Notemos entretanto que a catedral, ainda que na prática
possa ser fobogênica, não está do ponto de vista arquitetural
ordenada segundo um ponto de fuga no infinito, tanto mais não
fora pelo caráter ternário que lhe é essencial e pelo fato de que a

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luz ali se distribui de tal maneira que deixa em suspenso o que


poderia ser emergência desse ponto de fuga.

É no século XVIII, após a idade dita clássica, após o século da


razão, que as cidades passaram a ser construídas segundo projetos
organizados pelo ponto de fuga ao infinito. Uma cidade como
Rennes, reconstruída no século XVIII após o incêndio que
destruiu a cidade medieval, é uma cidade-caserna de grandes ruas
retilíneas, construções retangulares, perspectivas, praças, etc;
exatamente, portanto, com o que serviu aos pintores, mais ou
menos, para suscitar determinados sentimentos de estranheza.
Isto sem dúvida tem a ver com os problemas do poder absolutista;
a ordenação dos espaços, incluíndo-se aí o espaço ajardinado - a
famosa criação dos jardins a francesa onde a própria natureza é
submetida a tal dispositivo - sem dúvida tem a ver com o apogeu
do Rei-sol, mas deixemos também de lado esta questão.

O que nos interessa aqui, mais imediatamente, é o fato deste


ponto ao infinito, fobogênico, merecer que o individualizemos
como emergência no espaço do olhar - o que provoca, portanto,
no fóbico seu acesso de angústia é um lugar disposto de tal forma
que o que se encontra para ele presentificado ali é tanto o buraco,
quanto algo que tem valor de olhar; e nós podemos tomar as
linhas que vêm convergir para este ponto de fuga como um
número igual de raios luminosos oriundos deste olhar. Talvez
não seja por acaso que as teorias antigas colocavam a visão como
sendo comandada por raios provenientes do olho.

O que se passa quando emerge assim, no espaço, um objeto


a ? Uma dissolução do fantasma - o fantasma só se mantém, com
efeito, graças ao fato de que o objeto a não está ali, que não se sabe
onde ele está, que não se sabe de onde se é olhado, O que se
produz, pois, é uma dissolução do fantasma com seus corolários
inevitáveis, o esvaecimento do sujeito.

A partir do momento em que o objeto a emerge, não há


mais sujeito : ele é soprado; produz-se assim uma queda da
dimensão do imaginário, uma vez que esta dimensão só se

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sustenta na medida em que a janela do imaginário permanecer


firme, que seu quadro permaneça em pé. Esta queda da dimensão
imaginária tem por corolário uma queda do Eu; a este propósito
penso no caso desse "esfolado” de que falava Jean Bergès. Sempre
estamos expostos, é claro, ao risco da analogia, mas esta queda do
Eu se faz seguir de um efeito de paralisia; não temos como avaliar
suficientemente o quanto a motricidade, a possibilidade da
motricidade, ou mesmo a elegância da harmonia motriz está
relacionada com a pregnância deste Eu e com a representação que
fazemos dele no espaço. Em neurologia, quando são atingidos
centros que comandam estas funções, há perturbações
n eu rolog icam en te m anifestas, ev id en tes, e tam bém ,
simultaneamente, um efeito de paralisia motriz, de inibição; pois
com esta queda do imaginário, é também o espaço que se vê -
pluft! - enrolado como uma tela que se enrosca de súbito. Esta
descrição vém pois legitimar aqui o que acompanha o sentimento
de angústia : um sentimento de perda de identidade pessoal, um
sentimento de paralisia motriz, um sentimento de fim de mundo,
um sentimento de perda da libido.

É sem dúvida para se precaver contra este risco que se vê


assim exposto ao acesso de angústia, - não teríamos razão de dizer
fóbico; em se tratando aqui de angústia, não chegamos ainda a
fobia mais especificamente -, vai procurar um semelhante para se
servir dele, como foi muito apropriadamente evocado nestas
Jornadas, literalmente como de um Eu, este sim estável, com a
ajuda do qual ele poderá se deslocar. Ele se serve deste Eu, de seu
acompanhante como de uma máscara, como se pedisse
emprestado um automóvel, um veículo; colocando-se em
espelho em relação a esse acompanhante, ele pode sustentar este
eixo imaginário do famoso esquema L :

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Ao sustentar esse eixo im aginário a-a* com seu


acompanhante, ele sustenta o espaço, uma identidade, e pode
enfrentar a partir de então o que de outra forma para ele se
dissolveria.

Há uma questão que poderia constituir uma objeção ao que


proposto aqui : o problema colocado pelo Home 1 (Lar), o Heim 2.
Por que ele experimenta um sentimento de segurança no Heim,
no Home, uma vez que abolida a dimensão imaginária, o mesmo
não deveria ocorrer com relação a seu domicílio ? Para tanto é
suficiente lembrar de um fato seguidamente ignorado : o Home é
invariavelmente este lugar de certa forma habitado por um deus
Lare; o que faz com que nunca se esteja só ali, mesmo quando se
está sozinho. Se uma mulher ao voltar para casa for ver quem
está dentro dos armários, embaixo da cama, se no final das contas
estiver persuadida de que há alguém, ela terá toda razão, pois
sabemos que há alguém ali. Sabemos muito bem que há alguém
que pode eventualmente explicar o acesso de angústia
desencadeado pelo enclausuramento - desta vez, bem entendido,
no Home - pelo fato, singular e interessante reviravolta, de que é
a presença desse alguém, como o olhar no espaço de que
falávamos anteriormente, que se tornou desta feita, ali no Home,
excessivamente vivido : esse alguém está exageradamente ali,
temos medo de que ele pule em cima de nós.

1. N.d.T. : Mantemos a palavra no original (Home - Lar) a fim de preservar a


assonância com Heim.
2. N .d.T.: Em alemão no original.

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No acesso de angústia, esse espaço do Home não deve ser


entendido, sem sombra de dúvida, como um espaço regido pelo
imaginário, mas como um espaço - e é isto talvez que lhe confira
sua propriedade singular - cujo poder benéfico se esgota, como
sabemos, com a distância que é tomada em relação a ele, como um
espaço que se sustenta unicamente por meio de uma forma de
simbolização. Esse lugar é legitimado por qualidades que não
dependeriam tanto da dimensão imaginária, mas sim do fato de
estar recoberto por uma simbolização possível; o que explica,
eventualmente que o poder benéfico deste lugar se esgote
rapidamente a medida que nos afastemos dele.
Sendo assim, surge a questão : quais são as condições de
emergência do acesso de angústia ? Por que, ao passo que todos
nós nos deslocamos mais ou menos prazeirosamente neste tipo
de espaço que descrevemos, alguns se mostram particularmente
sensíveis, vulneráveis a esse tipo de dispositivo ?
Por que isto lhes produz este efeito ? Pois a angústia,
podemos dizer depois do que foi teorizado por Lacan, sabemos o
que é.

A angústia se produz enquanto que para um ser-falante -


não digo um sujeito - vem a presentificar-se o Outro nesta
demanda enigmática, sem limite, hiante, a qual o ser-falante não
sabe como satisfazer, em relação a qual ele não sabe o que deve
sacrificar para apaziguar essa presença, para se ordenar em relação
a ela e, da mesma feita, restabelecer um limite, uma fronteira, algo
adquirido de uma vez por todas em relação ao que se impõe assim
como hiância. "Isto é a fronteira, mais além, a Ti. Aqui, sei o que é
de mim, mas entre nós há esta borda estabelecida.”
Para quem está sujeito a esses acessos de angústia, o espaço
se apresenta como algo onde o solo está sempre prestes a vir
furtar-se sob seus pés; ele não pode pensar : "Sim, é ali que
começa"; pois uma vez fora de casa, esta hiância, este buraco não
possui mais limites, pode fazer afundar o solo sob seus pés.
Tínhamos anteriormente destacado a importância do valor
contra-fóbico do que pode constituir um traço entre o ser-falante e
o fosso : neste caso, não estamos mais expostos sem nenhuma
balaustrada.

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Mas por que, afinal de contas, é o olhar neste caso que


emerge no espaço ? Pois o olhar não é o único objeto a. Se, mais
precisamente, trata-se aqui do olhar, é que, podemos pensar, ele
não pagou ao Outro o tributo simbólico que dá um status sexual e,
ao mesmo tempo, uma identificação sexuada. Dito de outra
forma, estamos diante de alguém que não se coloca no espaço a
partir de uma imagem de si próprio, de um status tanto
imaginário como simbólico garantindo sua circulação : uma
circulação onde se paga o necessário para ter uma carteira de
identidade, para ter o direito de circular, justamente.

O acesso de angústia se organiza em torno do que seria um


convite do Outro a castração, mas numa situação em que o ser-
falante sente-se totalmente entregue, sem que nada sirva de limite
e possa garantir simbolicamente que o preço teria sido pago de
uma vez por todas. Já que foram evocados legitimamente no
decorrer destas Jornadas as relações entre a pulsão escópica e a
oralidade no caso da fobia, podemos ver aqui como a relação ao
Outro é vivida como uma espécie de boca. Para o fóbico, o
dispositivo é tal que, ainda que ele pague, não está garantido,
nesta história toda, que tudo foi resolvido, que era exatamente isto
que se esperava dele.

Aí reside, sem dúvida, a razão pela qual uma mulher


apresenta tão facilmente o que eu chamaria de uma pincelada
fóbica, na medida em que seu status, justamente, apresenta essa
dificuldade particular de se ver avalizada por uma sanção
simbólica - a não ser que possa derivar no sentido da maternidade;
uma mulher enquanto sustentada unicamente por uma posição
feminina é questionada quanto a sua imagem e a seu status
simbólico, uma vez que ela nunca estará totalmente convencida
de que tudo foi resolvido, que ela pode ficar tranqüila,
experimentando constantemente esta inquietação : será que pagou
efetivamente como devia ? Será que pagou corretamente, uma
vez que não se encontra, em contrapartida, celebrada pelo que
seria um status simbólico de mulher ? É sem dúvida por esta
razão que se pode ver como existe tão facilmente numa mulher
esta espécie de pincelada fóbica, em relação a qual eu me permitia

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dizer que ela constituía uma espécie de polidez, na medida em


que é uma forma de dizer ao parceiro que, de fato, se ela se
mantém numa posição feminina, ela tem um preço a pagar : esta
fragilidade, esta inquietação mesma.

Talvez possamos também compreender por que a fobia


constitui tão facilmente um ponto de fascinação para a histeria.
Somos inclinados a dizer, com efeito, que a fobia realiza o que a
histérica sabia sem que jamais pudesse tê-lo visto : que no Outro,
finalmente, não há senão uma espécie de animal; a tarefa
essencial seria de poder domesticá-lo, encantá-lo. Há no
dispositivo histérico algo que dá lugar a fobia sob a forma de uma
certa verificação, de uma certa verdade; como se a histérica
sempre tivesse sabido que, em última instância, é assim mesmo
que acontece. Portanto, o fato de que existem os que vêm verificá-
lo por experiência própria, por tê-lo provado e que, da mesma
feita, vêem-se atribuir um status totalmente diferente quanto a
sua feminidade - status totalmente deslocado - dá conta, sem
dúvida, da razão pela qual há tão facilmente na posição histérica
esta singular afinidade com a posição fóbica, ou mesmo essa
idealização da posição fóbica.

Observe-se ainda que esta tensão que vale para a mulher,


ligada ao fato de não estar totalmente em dia, ligada a esta
ausência de reconhecimento simbólico em relação ao Outro, pode
valer para outros casos, em outras circunstâncias, por exemplo
para o transplantado. Com as migrações culturais que conhecemos
bem, o transplantado se encontra numa posição idêntica; ele
experimenta essa insistência e o sentimento de um certo mal-estar
em relação a sua imagem. De que mal-estar se trata ? O de ter uma
imagem que cria uma mancha na paisagem. O que é estranho
neste caso, é que se esta imagem constitui uma mancha, ela se
propõe, portanto, como sendo ela própria, no espaço, um ponto de
olhar, um ponto de olhar totalmente fraudulento, ilegítimo; é por
esta razão que um sujeito nestas condições terá infalivelmente o
sentimento de estar sendo olhado; sentimento ilegítim o,
porquanto o olhar não deveria estar ali previamente, ele não se
situa no lugar desde onde ele é ollhado, e se ele se situasse no

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lugar desde onde ele estivesse sendo olhado, ele não estaria
absolutamente ali enquanto mancha. O fato dele próprio ser um
ponto de olhar, uma espécie de segundo sol - para retomar
algum as evocações schreberianas que em si não são
necessariamente psicóticas - estará infalivelmente na origem
também de um sentimento de grandeza : se tudo o olha, é que ele
deve ser alguém, ele vale bem mais que nada. Nunca deixamos de
encontrar esta conjunção neste tipo de dispositivo, conjunção na
qual o sentimento de indignidade não se separa do sentimento de
grandeza e de exceção.

Para não deixar de dar uma palavra a respeito do pequeno


Hans, creio tratar-se de um caso especial, bastante particular, um
caso talvez muito mais complexo do que poderíamos evocar. De
fato, é uma história de ramificações muito densas, um "micélio"
muito espesso; o pequeno é de uma sabedoria muitíssimo rica,
assim como destacavam Jean Perin e Jean-Claude Penochet. Entre
o professor Freud e o cavalo gerador de angústia, há uma relação
que não é unicamente a do "cavalinho” com que Freud teria
presenteado Hans; trata-se, com efeito, de apreender também o
fato de que nesse casal, para esses pais que estiveram ambos em
análise com Freud, e para o próprio Freud, a questão da castração,
a questão de sua legitimidade se colocava. De que lado devia-se
colocar ? É do lado dos homens ou das mulheres que esta questão
podia legitimamente ter permanecido pendente, em aberto ? Pois
que temos todo o direito de pensar que a legitimidade da castração,
e isto em toda a continuidade da psicanálise até Lacan, a questão
da castração como apta a curar, o complexo de Édipo como
curativo, é uma questão que permaneceu em aberto, pendente.
Com relação a fobia do pequeno Hans, quando se considera a
escolha do animal que ele fez figurar em seu brazão, podemos
dizer que no brazão, trata-se do animal que nós avocamos. Será
que, como evocava a bela explanação de Pascale Belot-Fourcade,
isto asseguraria da mesma feita a filiação com esse animal ? Será
que nos tornamos assim parte de sua família? Pois todo o
problema reside na família, na filiação.

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Nada impede, todavia, que o animal possa constituir-se em


brazão e que se diga ao mesmo tempo que o avocamos em sua
energia, em sua face e que o combatemos; encontramos aqui as
ambigüidades próprias aos totens; são as mesmas ambigüidades
quando, por exemplo, damos um ursinho a uma criança para que
ela brinque; é uma coisa absolutamente fabulosa : damos a
representação de um animal que não é essencialm ente
tranqüilizador, contudo é o que damos a criança para acompanhá-
la em seu sono; o que mostra muito claramente como o problema
do animal contra-fóbico, ou seja do animal fobogênico
transformado em fetiche, é algo que praticamos; evoquemos ainda
o caso dos animais domésticos de que nos rodeamos; trata-se aí
também de algo que praticamos constantemente sem que se pense
muito a respeito.

No que se refere ao pequeno Hans, a evocação do complexo


de Édipo não é o que o cura, como observa Lacan, mas em todo
caso, é o que o fez tomar o trem, o que fez subir numa série de
carriolas, que o fez embarcar, o que significou um progresso com
relação ao fato de que até então ele não podia se mover, de que
estava paralisado. É a partir dali que ele aceitou entrar nos
transportes coletivos, que ele partiu para a grande viagem, ou seja,
ele aceitou renunciar a uma das duas posições. Ele fez-se homem
do lado das mulheres; seja como for ele deu um jeito e partiu
seguindo a vida.

Como entender então - já que passei da angústia a fobia - a


criação desse animal ? De onde ele sai ? Deslocamento, diz Freud,
escolha do primeiro objeto que passa. Mas por que não seria uma
imagem paterna ? Por que o cavalo não é uma metáfora do nome-
do-pai ?

Duas observações permitem apreender esta diferença :


primeiramente, o cavalo não está morto. Hans teme que ele caia
ou morra; para que o pai possa vir a funcionar nesse lugar, é
primordialmente enquanto pai morto. Segundo, a questão, a
partir de uma observação que me ocorreu ao longo das
intervenções nestas Jornadas, é : por que o animal ?

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O que deve nos surpreender a este respeito, é que esse


animal emerge no espaço da realidade, ou seja num lugar
absolutamente diferente daquele onde se mantém o pai morto.
Na realidade : não é nem uma visão, nem uma alucinação, nem
uma falsa percepção. É uma percepção na realidade.

Dito de outra forma, o que vem funcionar aí como objeto


fobogênico, caracteriza-se e distingue-se do que seria o pai morto,
primeiro por estar vivo, segundo por não estar de forma alguma
no lugar onde se mantém esse pai.

É, portanto, como se de alguma forma o sujeito pagasse um


tributo ao Outro, mas desta feita um tributo que não seria mais de
ordem simbólica, e sim de ordem imaginária, com a invenção do
animal fobogênico. Uma relação erótica - diga-se claramente,
erótica - que conhecemos bem vai se estabelecer com esse animal.
Evocávamos anteriormente a brincadeira infantil, ou seja, algo
próximo do que estava em jogo no caso do pequeno Hans : "Ui!
Que medo!... Sim, mas eu queria dar mais uma olhadinha, ver...
ele ainda está ali ?... mas não muito perto..."

A fobia apresenta-se pois como se a amputação do espaço


viesse de forma inesperada constituir o tributo que o fóbico seria
conduzido a pagar, ainda que, neste caso, ele venha juntar-se ao
que de nossa parte constitui uma relação geral ao espaço. Com
efeito, para nós, enquanto neuróticos, existem lugares sagrados
que respeitamos; admitimos sem problema que existam no espaço
lugares protegidos por limites que tratamos de não transpor, mas
são lugares estritamente delimitados. Há, portanto, para nós
também, neuróticos, uma certa forma de tributo que é pago no
imaginário, o problema do fóbico é que esse tributo não tem
limites : isto pode se estender até as bordas de seu domicílio; dito
de outra maneira, ele pode de certa forma tudo oferecer.

Quando destacamos o erotismo da relação com este lugar, e


poderíamos dizer também com este buraco, constatamos o
seguinte : quando fazemos uma escalada, no alpinismo, com o

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que estamos jogando senão justamente com aquilo que se


encontra ali eminentemente presentificado como algo suscetível
de nos tragar; sabemos, em todo caso, que nisto residia uma das
distrações preferidas de nosso ancestral, daquele que nos serve
hoje de referência. "Você vai a praia ou a montanha ?" Existem
numerosos e diversos exemplos onde se trata, com toda
evidência, de vir a jogar com uma borda e a nivel do que pode
muito rapidamente bascular no sentido do heroísmo e da façanha.

Para retornar, enfim, ao título desta conferência,


colocaremos a seguinte questão : teríamos condições, apoiando-
nos no nó borromeu, de apreender o que se passa na fobia ? Se é
que o manipulamos de forma correta, será que essa manipulação
do nó borromeu é suscetível de esclarecer-nos ?

O que acabo de expor está inteiramente centrado no


seguinte : dos três círculos, um, o do Imaginário, encontra-se
soprado Se o círculo do Imaginário encontra-se soprado, os dois
outros, o Real e o Simbólico são, como o sabemos, destacados do
resto. Sem querer antecipar sobre o que Contardo Calligaris deve
nos comunicar, eu diria que este momento onde surge a angústia,
ou seja, onde o círculo do Imaginário vê-se soprado e onde
Simbólico e Real são dissociados, poderia levar alguns a pensar
que existe aqui algo da ordem da psicose; os três circulos estão
dissociados; estamos numa situação que parece próxima da
psicose. Por que, então, neste caso não há psicose ? Não há psicose
por que tudo leva a pensar que, para o fóbico, o recalque originário
operou e que Real e Simbólico se mantêm perfeitamente. Tudo
leva a pensar que é ele, na sua livre escolha de ser-falante, que de
certa forma não quer pagar o tributo por razões diversas - não
iremos retomar a questão de saber se. isto é inteiramente
determinado ou se depende de seu livre arbítrio. É ele que,
aparentemente, não quer pagar : dito de outra forma, ele pensa
que a castração não é um bom négócio; e depois, quem poderia
condená-lo por pensar assim ?

1. N.d.T. : "Soufflé" no original. Devemos pensar aqui a algo como "retirar uma
peça do jogo", palavra que se usa freqüentemente no jogo de damas, por exemplo.

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Tentemos pois uma utilização deste nó que tenha


essencialmente valor como meio de verificação.

Poderíamos pensar que o que se produz na fobia seria que o


círculo do Real viria recobrir o círculo do Imaginário e que, sendo
assim, tudo ocorreria como se o círculo do Simbólico viesse
organizar esse tipo de entrelaçamento; isto é, se pudermos,
seguindo Lacan, tomar todos esses círculos como sendo
equivalentes e organizar então um outro modo de cruzamento.

Podemos também dar-nos conta do que segue : sabemos o


quanto a dimensão do imaginário é refratária, em condições
normais, a percepção da castração; Lacan particulariza e distingue
perfeitamente a que ponto o campo escópico é seguramente o
terreno onde a castração, em função mesmo da imagem, de sua
totalidade, é com a maior facilidade praticamente escamoteada.
Na fobia, veríamos como ao mesmo tempo entre o Imaginário e o
Real, aparece no campo do Imaginário a hiância da castração com
um limite que, em razão mesmo da qualidade desses círculos, fica
sem fronteiras, já que seria necessário uma sanção do simbólico
para que haja limites; em contrapartida, no caso da fobia, é então
no terreno do simbólico que a castração estaria menos
evidenciada.

O que tento evocar-lhes através desta apresentação é o fato


de que na fobia há manifestamente uma relação ao semelhante, a
esse famoso acompanhante que, ousaria dizer, é próxima da
perfeição : um não vai sem o outro; e isto à nivel de um tipo de
troca permanente, como na brincadeira infantil que eu evocava.
Todas as relações são possíveis aqui, a amizade, a fraternidade, a
relação mãe-filho, etc...

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