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Jacques-Alain Miller
Vou explicar, primeiramente, meu título. É preciso que eu corrija o que foi
impresso no programa. Não se trata de “A salvação pelo dejeto”, mas “... pelos
dejetos”, no plural. Convém ser exato, pois essa fórmula é, de fato, uma
citação. É de Paul Valéry. Com essa fórmula “a salvação pelos dejetos” ele
define o surrealismo, a via escolhida pelo surrealismo. E digo “a via” no sentido
do Tao. É o caminho. É também a maneira de fazer, de se colocar, de se
deslizar no mundo, no discurso, no curso do mundo que é discurso.
E me parece muito justo dizer que André Breton prometeu a salvação pela via
dos dejetos. Mas é ainda mais justo dizê-lo de Freud. Aliás, a promessa
surrealista nunca teria sido proferida se não tivesse havido antes a psicanálise,
a descoberta freudiana que foi, como se sabe, primeiramente, a desses dejetos
da vida psíquica, os dejetos do mental que são o sonho, o lapso, o ato-falho e
mais além, o sintoma. Mas também a descoberta de que levando-os a sério, e
mais ainda, estando atento a eles, o sujeito tem chance de se salvar.
Sublimação
O que é o dejeto? O termo tem muitas ressonâncias para aqueles que, mesmo
que rapidamente, percorrem o ensino de Lacan. É o que é rejeitado e
especialmente rejeitado ao cabo de uma operação onde só se retém o ouro, a
substância preciosa a que ela leva. O dejeto é o que os alquimistas chamavam
de caput mortuum. É o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se
eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer enquanto que o ideal
resplandece. O que resplandece tem forma. Pode-se dizer que o ideal é a
glória da forma, enquanto o dejeto é informe. Ele prevalece sobre uma
totalidade da qual ele é só um pedaço, uma peça avulsa.
É por essa via que, nesta manhã, percebi a sublimação como o meio por onde
o gozo, forçosamente autista, do Um, entrelaça-se com o discurso do Outro e
vem se inscrever no laço social. Não vejo porque não estender essa ideia a
ponto de se dizer que é apenas através da sublimação que o gozo faz laço
social.
Ah, não estou esquecendo que é preciso a produção de um objeto suscetível
de ser, como se diz, elevado à dignidade da Coisa! É neste sentido que o coito
não é nele mesmo um ato e não funda, como tal, nenhum laço social. Isto foi
visto, de outro modo, por Jean Jacques Rousseau em seu segundo discurso,
quando ele descreve os acasalamentos ocasionais de sua humanidade
primitiva, pré-social. A sexualidade só se socializa quando ligada à reprodução,
no quadro simbólico, suscetível de elevar a criança, como objeto, à dignidade
da Coisa. Por falta dessa inserção simbólica, ela é rebaixada à indignidade do
objeto. E ela traz essa marca no que aparece como seu destino.
Entretanto, pode ser que o gozo do Outro social ganhe corpo, que o gozo
consiga ser identificado no lugar do Outro, que ele não se evapore, que não se
torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa. É quando,
pode-se dizer, ou subentender, ou ser persuadido de que “o Outro goza de
mim”. Tal é o axioma que resume, no dizer de Lacan , a posição subjetiva que
a psiquiatria reconheceu sob o nome de paranoia. No dizer de Lacan tal como
eu entendo, tal como o interpreto, o que não é dizer “tal e qual”.
A paranoia, essa de que falo, num sentido mais amplo, “paranoia moderada”,
se posso dizer assim, a paranoia é consubstancial ao laço social. Ela é
presente e ativa desde o estádio do espelho, matriz do imaginário. A mínima
cadeia significante, o significante o mais elementar, obscuro oráculo simbólico,
veicula essa paranoia. E pode-se dizer que essa paranoia motiva também toda
defesa contra o real.
Digo então, na linha que abri nesta manhã, que a paranoia constitui a
consistência da personalidade. É a paranoia, tal como eu acabo de dizer - ao
mesmo tempo ampliada e temperada - que estabiliza, é ela que unifica e que
dá densidade à instância que a psicanálise designa como eu. Sem essa
paranoia o eu não seria mais que um bric-à-brac de identificações imaginárias.
Sou levado a dizer, portanto, que é a paranoia que socializa o sujeito pela
suposição no Outro de uma vontade de gozo, uma vontade que não pretende
se empregar para o bem do sujeito.
É essa imputação de vontade malévola que o Outro social, ali onde ele é
representado pelas instâncias legais, se empenha incessantemente em
desmentir. De todos os lados, por todas as vozes inumeráveis do povo
administrativo que ele multiplica, ele só diz uma coisa: “eu quero o seu bem”. É
preciso muito pouca personalidade para que se possa botar fé nisso.
Esse pouco de personalidade é sem dúvida o traço comum desses que vêm se
entregar às instituições de cuidado, que os acolhem, gratuitamente, de braços
abertos e com a boca em coro sob a égide implícita do “eu quero o seu bem”.
Aqueles que podem crer nisso são os rebotalhos da vontade de gozo. Se o
laço social é de essência paranoica então a dificuldade de se inserir é da
ordem da debilidade. Isso se chamamos de debilidade o deslizamento subjetivo
do discurso até a posição fora do discurso que a psiquiatria fixou com o termo
esquizofrenia.
Estas jornadas são bem vindas, pois era urgente esclarecer a clínica e a
pragmática da desinserção, já que os psicanalistas, ao menos os que se ligam
ao Campo Freudiano, tornaram-se narodniki apaixonados. Narodniki – essa
palavra não se traduz, é do russo – designam aqueles que iam até o povo, no
impulso de um movimento que dominava a inteligência russa no final do século
XIX, início do XX. Pois bem, comparo o movimento dos CPCT (Centro
Psicanalítico de Consulta e Tratamento) aos narodniki. Essa foi a boa nova: os
analistas saem de seus consultórios. A postura tradicional queria, com efeito,
que o analista esperasse em seu consultório que as demandas lhe chegassem.
Atitude passiva, expectante, que consiste em receber. No lugar disso, adota-se
um método de provocação institucional visando suscitar as demandas,
suprimindo os obstáculos que se poderia qualificar de imaginários.
Devo dizer que lancei sobre esse método um olhar retrospectivo, não se vê
nada ali que uma associação de psicanalistas não poderia fazer desde que ela
aceitasse financiá-lo a fundo perdido. Não vejo nada nesse método que seja
repugnante, pois a gratuidade estaria compensada pela limitação da duração.
Mas acrescentou-se um elemento –escrevi “nós” acrescentamos um elemento,
me declaro culpado - acrescentou-se um elemento que mudaria tudo. Essa
nova instituição seria financiada pelas subvenções públicas. Erro fatal. Era
interpor entre o analista e o povo uma instância terceira: o estado, suas
administrações. A operação consagraria assim, acreditava-se, o
reconhecimento pela sociedade dos benefícios da ação psicanalítica. Mas num
mesmo golpe, forçava-se o CPCT a ser como Arlequim, servidor de dois
mestres, o discurso do analista e o discurso do mestre. Pote de barro contra
pote de ferro. O discurso do analista fracassa contra o ferro do discurso do
mestre. A experiência demonstra o poder das formações coletivas e a
fraqueza, a fragilidade, a debilidade do psicanalista quando ele quer se inserir
diretamente.
Porque ele proíbe a fantasia, o discurso do mestre crê na saúde mental. Esse
ideal é proibido ao analista que oferece uma via inédita, mais precária e, no
entanto, mais segura: a salvação pelos dejetos.
¹ MILLER, J.A. Le salut par les déchets. In: Mental: Clinique et pragmatique de
la désinsertion en psychanalyse, n.24. Clamecy, avril 2010.