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AULA 1
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passado ancestral e presente na constituição orgânica desses indivíduos menos
desenvolvidos.
No que se refere ao interesse psicanalítico, cabe destacar que também
características comportamentais e psicológicas são observadas por Lombroso
em sua obra. Segundo o autor, os sentimentos afetivos do delinquente estariam
tomados por “um traço doentio, excessivo e instável” (Lombroso, 1876/2007, p.
113), que teria como consequência sua alienação social. Entregue a paixões
como o orgulho, a vaidade, a vingança e a crueldade, tais afetos adviriam de
uma necessidade constante de violência e do espírito selvagem (no sentido de
primitivo) do delinquente.
O álcool e o jogo seriam também prazeres que levariam os delinquentes
ao agir inconsequente – como causas e efeitos do crime, bem como meio de
socializar com outros delinquentes, planejando novas ações criminosas. “Depois
do prazer da vingança e a vaidade satisfeita, o delinquente não encontra deleite
maior do que o vinho e o jogo” (Lombroso, 1876/2007, p. 118). Lombroso
(1876/2007, p. 135) identifica no delinquente um indivíduo incapaz do “trabalho
contínuo e assíduo”, do remorso (p. 160), e do amor verdadeiro (p. 121), além
de ser dotado de uma forte inconstância mental (p. 136) e de uma baixíssima
capacidade intelectual:
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ao cometimento do crime e diferente daqueles que não os cometem. Essa
distinção entre nós e os autores de crimes ignora que o próprio conceito de crime
não é natural e imutável, mas sim histórica e socialmente determinado, sendo
que o que hoje pode ser considerado crime não necessariamente o será no
futuro ou em outra sociedade. Como consequência dessa premissa implícita, a
existência dos crimes seria de exclusiva responsabilidade desses indivíduos,
cabendo aos demais o conforto de se entender como "cidadãos de bem" e o
dever de identificar e punir “bandidos”.
Abordemos agora a influência da Antropologia Criminal no contexto da
produção nacional e como essas premissas, no seio de uma sociedade
escravocrata como a brasileira, acabaram por articular-se ao racismo.
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Segundo Nina Rodrigues, o crime e a violência no casos dos mestiços
comuns e degenerados seriam inerentes à sua condição racial primitiva e não
decorrentes de seu livre arbítrio. Como consequência, para esses casos a
repressão criminal não teria qualquer condão de reparação, restringindo-se ao
papel de defesa social contra indivíduos perigosos – ainda que, em seu
entendimento, tratassem de pessoas inimputáveis, ou seja, sem
responsabilidade por seus atos.
O que não era considerado pelos antropólogos criminais, e que fica mais
evidente nos estudos de Nina Rodrigues, é que o foco de seus estudos na
identificação de padrões entre os autores de crime condenados ignora a
seletividade do próprio sistema penal em definir esse universo de pesquisa. É
importante destacar que o Brasil analisado por Nina Rodrigues era (e ainda é)
um país de tradição escravocrata, o que, objetivamente, nos obriga a observar
que toda violência, exploração, sadismo e crueldade cometidos por brancos
contra negros, indígenas e seus descendente (“mestiços” ou não), no mínimo
até 1888 1, apenas seis anos antes da publicação de “As raças humanas e a
responsabilidade penal”, não era crime. Os crimes que de fato eram perseguidos
pela sociedade brasileira analisada por Nina Rodrigues eram apenas aqueles
cometidos por negros, indígenas e “mestiços” contra brancos, o que não é
analisado ou problematizado pela metodologia da escola positiva. Para nossos
fins, é importante destacar que também a psicanálise não está imune a esse viés
ao analisar o crime (ou mesmo o próprio psiquismo humano), o que
procuraremos demonstrar e alertar ao longo deste estudo.
Cabe destacar ainda que mais do que ignorar variáveis históricas, o que
no caso brasileiro significa ignorar toda violência não tipificada como crime
cometida por europeus contra populações originárias, africanas e seus
descendentes em solo brasileiro por séculos, a teoria proposta pela antropologia
criminal vem legitimar, a posteriori, a perpetuação dessa violência, revestindo-a
de um pretenso conhecimento científico. Ao justificar a repressão criminal sem
qualquer pretensão de reparação ou ressocialização de indivíduos
supostamente degenerados, a obra de Nina Rodrigues produz uma
“cientificização” do racismo, uma vez que, no frigir dos ovos, essa teoria serve
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Ano da abolição da escravatura.
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apenas para justificar a violência cometida contra corpos de pele não branca
mesmo após a abolição da escravatura.
Por fim, devemos observar que o pensamento de Nina Rodrigues segue
refletindo e influenciando o funcionamento hegemônico da política de Segurança
Pública no Brasil até hoje, bem como auxilia a compreender a seletividade do
nosso Sistema de Justiça Criminal e o perfil do público encarcerado no país. Até
mesmo o propalado "bandido bom é bandido morto”, sedimentado como ideal de
segurança em parte significativa da população, tem como alvo imaginário os
autores de crime pobres, de pele não branca, cujos crimes nosso sistema de
perseguição penal secularmente insiste em priorizar. Autores de crimes
bilionários contra o sistema financeiro no Brasil têm mais empatia da população
do que ladrões de galinha ou de aparelhos celulares. Em etapa posterior,
abordaremos também como o próprio sistema punitivo que impulsiona esse
imaginário pode ser posto em análise pela metapsicologia freudiana. Por ora,
sigamos por essa introdução ao campo da Criminologia, apresentando as
contribuições da “criminologia clínica” na qual, historicamente, começam a se
inserir os achados psicanalíticos.
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consequência, abrindo frente para um possível tratamento penitenciário, uma
função terapêutica da pena.
Pela proximidade cultural e por sua influência no campo da Psicologia,
destacamos dentro dessa perspectiva criminológica a obra do argentino José
Ingenieros, pioneiro da Criminologia Clínica na América Latina, titular da Cátedra
de Psicologia Experimental na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
de Buenos Aires e fundador da Sociedad de Psicología na Argentina. Embora,
ao longo de sua vida não tenha se dedicado exclusivamente ao tema,
”Criminologia”, de 1907, foi o primeiro tratado do ramo publicado no continente.
Apesar de manter o conceito positivista de degeneração como central na
caracterização do sujeito criminoso, Ingenieros propôs que o estudo do indivíduo
delinquente não pode ser outro senão o estudo de seu funcionamento psíquico.
Assim, segundo suas conclusões, o temperamento criminal se trataria de uma
síndrome psicológica. Outra contribuição relevante da obra de Ingenieros refere-
se à etiologia da degeneração, introduzindo a ideia de que tal condição da qual
padecem os sujeitos criminosos poderia ser adquirida como consequência do
sistema social, e não apenas ter origem genética ou fisiológica.
Com relação ao autor, destacamos ainda que, embora a criminologia
tradicional seja de vertente positiva, clínica e comumente associada a uma
perspectiva conservadora de sociedade, Ingenieros foi um dos fundadores
do socialismo na Argentina, tendo sua obra, para além do campo criminológico,
versado sobre temas como a identidade latino-americana e o anti-imperialismo,
com grande influência sobre a juventude à época. O destaque biográfico sobre
o aparente paradoxo entre a visão criminológica do autor e sua visão de mundo
no campo político é relevante, porque a reflexão sobre o crime é sempre
carregada de paixões associadas aos valores, mais conservadores ou mais
progressistas, de sociedade e de política do indivíduo. Assim, alertamos para
que você possa, desde já, se desprender dessas concepções preestabelecidas
sobre o crime eventualmente associadas à sua perspectiva política e possa nos
acompanhar a partir dos próximos temas e etapas por concepções que se
afastarão gradativamente das noções de crime familiares ao senso comum que
introduzimos até aqui.
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TEMA 4 – CRIMINOLOGIA CLÍNICA MODERNA
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qualquer, só se diferenciando dos demais por uma maior aptidão para ato
criminoso; a personalidade criminosa seria descrita por meio de traços
psicológicos agrupados em determinada característica; esta, por sua vez,
englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença
afetiva, sendo esses os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as
variáveis, como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais,
as razões aparentes, e as necessidades, seriam responsáveis pelas diferentes
modalidades desse ato; por último, a personalidade criminosa, considerada na
sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços
constitutivos e adaptabilidade social.
Tendo como parâmetro a classificação de Maranhão, em especial no caso
dos delinquentes ocasionais e sintomáticos, observamos que perturbações
externas (no casos dos primeiros) ou internas (no caso dos segundos)
resultariam na conduta criminosa, em que, ao menos em tese, seria
circunstancial. Ao menos dentro desse universo, o autor de crime não se
diferencia de qualquer outro cidadão, exceto com relação às perturbações,
externas ou internas, as quais foi exposto. Os traços psicológicos dos autores
de crime, sendo comuns a qualquer sujeito, devem ser analisados de forma
dinâmica articulando traços constitutivos e condições de adaptabilidade social
ofertadas na história de vida do sujeito.
Entretanto, a leitura psicopatológica, de matriz psiquiátrica, de Maranhão,
ainda mantém espaço para o delinquente nato, não necessariamente
degenerado, mas ainda portador de uma deficiência de caráter essencial,
crônica, que os distinguiria dos demais cidadãos de caráter normal. A tradição
médico-psiquiátrica, ao analisar a etiologia da conduta criminosa, embora amplie
e identifique nuances dentre as motivações que a sustentam, não supera o
antagonismo social com a figura do delinquente e, consequentemente, não é
capaz de afastar o anseio de parte da população de que o enfrentamento ao
crime passe por um encarceramento perpétuo dos delinquentes, ou outra
solução mais definitiva.
Outras escolas criminológicas abandonaram o foco de seus estudos no
indivíduo e serão apresentadas em etapa posterior. Entretanto, para concluirmos
essa introdução sobre o pensamento criminológico orientado pelo estudo dos
indivíduos, apresentemos também o princípio do que se convencionou nomear
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de criminologia psicanalítica, campo que tem a marca indelével de um crime que
chocou a sociedade francesa na terceira década do século passado.
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Para que vocês compreendam melhor como os autores chegaram a essa
conclusão, além de retomarem seus estudos sobre o complexo de Édipo e sobre
o complexo de castração nas mulheres, é importante conhecer um pouco da
história da sra. Lefebvre, para além da história de seu crime. Durante a infância,
sua mãe esteve grávida por duas vezes, momentos que, em suas lembranças,
não foram recebidos de forma amistosa (Alexander; Staub, 1934, p.222).
Durante a segunda gravidez, sua brincadeira preferida com o irmão consistia em
simular rituais religiosos ligados aos funerais de pintinhos que ela própria
matava.
Na adolescência, Lefebvre começa a ter problemas de saúde e é
acometida por uma diarreia crônica. Tornava-se triste sem causa visível e, por
razões fúteis, caía em crises de choro por simples observações feitas por sua
mãe. Na vida adulta, tem um casamento de conveniência e sofre muito durante
as duas gestações que teve, principalmente de dor nos rins. Com a proximidade
da menopausa, volta a apresentar os sintomas da adolescência, acrescidas de
diversas outras perturbações nervosas, sensações dolorosas e contrações do
estômago. Seu filho mais velho então se casa contra sua vontade. A partir de
então, surgem seus sintomas mentais que culminarão no assassinato da nora
(Bonaparte, 1927).
Na interpretação de Bonaparte, passagem ao ato dos desejos criminosos
da sra. Lefebvre teve como estopim a gravidez de sua nora, o que reforça a
interpretação de que as motivações do crime cometido eram inconscientes e
ligadas a uma insatisfatória solução do complexo de castração da autora.
Cumpre lembrar que em Freud (1917/1996), o elemento fundamental para a
estruturação psíquica deriva do terror da castração que tem como resultado a
solução do pacto edípico e inibição da libido em direção ao seu objeto primário.
Nas mulheres, o terror da castração seria substituído pela noção de "inveja do
pênis”, o que no decorrer do Édipo teria em uma de suas formas derivadas o
desejo de ter um filho. Nas palavras do próprio Freud (1917/1996, p. 137):
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ainda, aprendemos que ambos os desejos estavam presentes na sua
infância e que um substitui o outro. De início, haviam desejado um
pênis, como os homens; depois, num estádio posterior, embora ainda
infantil, surgiu em lugar deste, o desejo de um bebê.
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da época, Bonaparte destaca que sem saber todos se interessavam pelo caso
Lefebvre. Isso porque, dentro de toda mãe, bem no fundo do inconsciente, há,
ainda que não expresso, um pouco de Jocasta e de sra. Lefebvre (Bonaparte,
1927, p. 161).
NA PRÁTICA
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destes, 19 se transformaram em processos efetivos, dos quais apenas três
chegaram à fase de julgamento (Peres; Neto; Domenici, 2015).
O adensamento da compreensão de que o autor de crime não se distingue
essencialmente de qualquer outro cidadão que gradativamente foi se revelando
nos estudos criminológicos, com contribuição da criminologia psicanalítica, ainda
não alcança, hegemonicamente, a população em geral. Sem a difusão desse
conhecimento, ainda é distante em nosso horizonte a construção de uma justiça
criminal mais justa e eficiente.
FINALIZANDO
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REFERÊNCIAS
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