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PSICANÁLISE E CRIMINOLOGIA

AULA 1

Prof. Paulo Kohara


CONVERSA INICIAL

Ao nos propormos a pensar sobre a interface entre Psicanálise e


Criminologia, somos obrigados, antes de tudo, a nos situar, como psicanalistas,
no campo dos estudos sobre o crime.
Para esta etapa, propomos a introdução ao pensamento criminológico,
apresentando sua origem e diferentes abordagens criminológicas que tiveram
como centro o estudo do autor de crimes, incluindo, ao final, os primeiros estudos
psicanalíticos dedicados exclusivamente ao estudo do crime.

TEMA 1 – ORIGENS DA CRIMINOLOGIA E A ESCOLA POSITIVA ITALIANA

Hegemonicamente, reconhece-se que o campo da Criminologia é


inaugurado pelos estudos da escola positiva italiana, que tem em Cesare
Lombroso seu autor mais célebre. Os estudos de Lombroso e, por consequência,
a fundação da Criminologia como campo de estudo, preconizavam que a
compreensão, a prevenção e o controle do crime nas sociedades modernas
deveriam alicerçar-se na investigação científica sobre o autor de crime.
A partir de suas investigações, que tinham como objeto autores de crimes
condenados pela justiça, Lombroso observa que existiriam caracteres
(anatômicos e fisiológicos) comuns a esses sujeitos. Em sua mais notável obra,
O homem delinquente, de 1876, Lombroso categoriza as características
fisionômicas dos indivíduos analisados por meio de dados estatísticos,
verificando características como rugas, tamanho da barba, estrutura torácica,
tamanho dos membros, presença de tatuagens, entre outros. Após extenso
trabalho de catalogação dessas características, o autor realiza uma comparação
das semelhanças e diferenças entre as distintas categorias de delinquentes,
comparando-os não somente entre si, mas também com características,
conhecidas à época, do homem primitivo e de pessoas acometidas de doenças
mentais.
A partir dessas comparações, Lombroso postula a existência do
delinquente nato, que por meio da investigação científica experimental, poderia
ser identificado. Mais do que isso, o autor propõe que esse delinquente nato
assim o seria em razão de seu posicionamento inferior na escala evolutiva
humana. O delinquente nato padeceria de um atavismo, originário de um

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passado ancestral e presente na constituição orgânica desses indivíduos menos
desenvolvidos.
No que se refere ao interesse psicanalítico, cabe destacar que também
características comportamentais e psicológicas são observadas por Lombroso
em sua obra. Segundo o autor, os sentimentos afetivos do delinquente estariam
tomados por “um traço doentio, excessivo e instável” (Lombroso, 1876/2007, p.
113), que teria como consequência sua alienação social. Entregue a paixões
como o orgulho, a vaidade, a vingança e a crueldade, tais afetos adviriam de
uma necessidade constante de violência e do espírito selvagem (no sentido de
primitivo) do delinquente.
O álcool e o jogo seriam também prazeres que levariam os delinquentes
ao agir inconsequente – como causas e efeitos do crime, bem como meio de
socializar com outros delinquentes, planejando novas ações criminosas. “Depois
do prazer da vingança e a vaidade satisfeita, o delinquente não encontra deleite
maior do que o vinho e o jogo” (Lombroso, 1876/2007, p. 118). Lombroso
(1876/2007, p. 135) identifica no delinquente um indivíduo incapaz do “trabalho
contínuo e assíduo”, do remorso (p. 160), e do amor verdadeiro (p. 121), além
de ser dotado de uma forte inconstância mental (p. 136) e de uma baixíssima
capacidade intelectual:

Comenta-se que se os malfeitores célebres tivessem aplicado no


trabalho honesto a mesma inteligência e perseverança que aplicaram
no delito, teriam chegado a altas posições, mas não é o que acontece.
[…] Muitas vezes parece extraordinária a habilidade de alguns
delinquentes. Contudo, se olharmos bem, cessa toda a maravilha. Eles
se dão bem porque repetem frequentemente os mesmos atos.
Também os idiotas, em um movimento continuamente repetido, podem
parecer habilíssimos. (Lombroso, 1876/2007, p. 138-139).

Aproveitemos a interpretação lombrosiana de desqualificar, inclusive,


virtudes intelectuais notórias de autores de crimes para introduzir, desde já, uma
reflexão crítica sobre sua abordagem e de seus pares. Uma questão a se
destacar com relação ao que também se convencionou nomear de Antropologia
Criminal é que a tomada do autor do crime como objeto de estudo, embora possa
nos soar natural e ecoe interesses presentes até hoje em compreender a
"natureza do criminoso" (vide o grande interesse do público em geral por filmes,
séries e documentários que têm como personagens a figura do serial killer), tem
como ponto de partida uma percepção, ideológica e não científica, de que o autor
de crimes teria sua existência determinada ontogeneticamente, ou seja, anterior

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ao cometimento do crime e diferente daqueles que não os cometem. Essa
distinção entre nós e os autores de crimes ignora que o próprio conceito de crime
não é natural e imutável, mas sim histórica e socialmente determinado, sendo
que o que hoje pode ser considerado crime não necessariamente o será no
futuro ou em outra sociedade. Como consequência dessa premissa implícita, a
existência dos crimes seria de exclusiva responsabilidade desses indivíduos,
cabendo aos demais o conforto de se entender como "cidadãos de bem" e o
dever de identificar e punir “bandidos”.
Abordemos agora a influência da Antropologia Criminal no contexto da
produção nacional e como essas premissas, no seio de uma sociedade
escravocrata como a brasileira, acabaram por articular-se ao racismo.

TEMA 2 – ANTROPOLOGIA CRIMINAL NO BRASIL E O "RACISMO


CIENTÍFICO"

A Antropologia Criminal no Brasil teve como seu principal expoente e


precursor o médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues, professor
catedrático de medicina legal, cujo nome até hoje batiza o centenário Instituto
Médico Legal da Bahia. Em 1894, Nina Rodrigues publica a obra As raças
humanas e a responsabilidade penal, a qual, influenciada pela obra de
Lombroso, propõe a tese da diferenciação da responsabilidade penal no país em
função dos diferentes “estágios evolutivos” das “raças”. Ao observar as
características raciais dos autores de crimes no Brasil do final do século XIX e
apropriando-se do conceito lombrosiano de que a pré-disposição para o crime
seria uma característica inerente ao indivíduo menos evoluído, Nina Rodrigues
passa a associar o grau de evolução da espécie às raças, concluindo ser a raça
branca parâmetro máximo de evolução da espécie em detrimento a negros e
indígenas. Com relação aos mestiços, Nina Rodrigues argumenta que estes
poderiam ser divididos em três tipos:

• os superiores – nos quais predominariam os caracteres da raça branca


civilizada;
• os comuns – indivíduos aproveitáveis para determinados tipos de
trabalho;
• os degenerados – portadores de anomalias físicas e psíquicas
irremediáveis.

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Segundo Nina Rodrigues, o crime e a violência no casos dos mestiços
comuns e degenerados seriam inerentes à sua condição racial primitiva e não
decorrentes de seu livre arbítrio. Como consequência, para esses casos a
repressão criminal não teria qualquer condão de reparação, restringindo-se ao
papel de defesa social contra indivíduos perigosos – ainda que, em seu
entendimento, tratassem de pessoas inimputáveis, ou seja, sem
responsabilidade por seus atos.
O que não era considerado pelos antropólogos criminais, e que fica mais
evidente nos estudos de Nina Rodrigues, é que o foco de seus estudos na
identificação de padrões entre os autores de crime condenados ignora a
seletividade do próprio sistema penal em definir esse universo de pesquisa. É
importante destacar que o Brasil analisado por Nina Rodrigues era (e ainda é)
um país de tradição escravocrata, o que, objetivamente, nos obriga a observar
que toda violência, exploração, sadismo e crueldade cometidos por brancos
contra negros, indígenas e seus descendente (“mestiços” ou não), no mínimo
até 1888 1, apenas seis anos antes da publicação de “As raças humanas e a
responsabilidade penal”, não era crime. Os crimes que de fato eram perseguidos
pela sociedade brasileira analisada por Nina Rodrigues eram apenas aqueles
cometidos por negros, indígenas e “mestiços” contra brancos, o que não é
analisado ou problematizado pela metodologia da escola positiva. Para nossos
fins, é importante destacar que também a psicanálise não está imune a esse viés
ao analisar o crime (ou mesmo o próprio psiquismo humano), o que
procuraremos demonstrar e alertar ao longo deste estudo.
Cabe destacar ainda que mais do que ignorar variáveis históricas, o que
no caso brasileiro significa ignorar toda violência não tipificada como crime
cometida por europeus contra populações originárias, africanas e seus
descendentes em solo brasileiro por séculos, a teoria proposta pela antropologia
criminal vem legitimar, a posteriori, a perpetuação dessa violência, revestindo-a
de um pretenso conhecimento científico. Ao justificar a repressão criminal sem
qualquer pretensão de reparação ou ressocialização de indivíduos
supostamente degenerados, a obra de Nina Rodrigues produz uma
“cientificização” do racismo, uma vez que, no frigir dos ovos, essa teoria serve

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Ano da abolição da escravatura.

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apenas para justificar a violência cometida contra corpos de pele não branca
mesmo após a abolição da escravatura.
Por fim, devemos observar que o pensamento de Nina Rodrigues segue
refletindo e influenciando o funcionamento hegemônico da política de Segurança
Pública no Brasil até hoje, bem como auxilia a compreender a seletividade do
nosso Sistema de Justiça Criminal e o perfil do público encarcerado no país. Até
mesmo o propalado "bandido bom é bandido morto”, sedimentado como ideal de
segurança em parte significativa da população, tem como alvo imaginário os
autores de crime pobres, de pele não branca, cujos crimes nosso sistema de
perseguição penal secularmente insiste em priorizar. Autores de crimes
bilionários contra o sistema financeiro no Brasil têm mais empatia da população
do que ladrões de galinha ou de aparelhos celulares. Em etapa posterior,
abordaremos também como o próprio sistema punitivo que impulsiona esse
imaginário pode ser posto em análise pela metapsicologia freudiana. Por ora,
sigamos por essa introdução ao campo da Criminologia, apresentando as
contribuições da “criminologia clínica” na qual, historicamente, começam a se
inserir os achados psicanalíticos.

TEMA 3 – CRIMINOLOGIA CLÍNICA

A partir de uma postura clínica, de origem médico-psicológica, a corrente


criminológica da Criminologia Clínica passa a abordar o crime como algo a ser
diagnosticado. A partir desse diagnóstico, seria possível propor uma "terapia"
quanto à ressocialização do infrator e se estabelecer um prognóstico quanto a
eventual reincidência. Nos termos do célebre criminólogo francês Jean Pinatel,
o objetivo da Criminologia Clínica seria analisar o delinquente, formular uma
hipótese sobre sua conduta futura e elaborar um programa de medidas capazes
de evitar uma eventual recidiva (Pinatel, 1960, p. 10).
Partindo do conceito de crime desenvolvido pela escola positiva, e
baseada no saber médico hegemônico, a criminologia clínica, em sua vertente
tradicional, mantém como paradigma a busca da causa do crime no organismo
de um suposto sujeito criminoso, mas acaba gradativamente por afastar-se da
antropologia criminal por associar o comportamento criminoso não a uma
condição essencial de selvageria ou atavismo, e sim a uma disfunção, em
analogia as disfunções orgânicas sujeitas a intervenção médica e, por

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consequência, abrindo frente para um possível tratamento penitenciário, uma
função terapêutica da pena.
Pela proximidade cultural e por sua influência no campo da Psicologia,
destacamos dentro dessa perspectiva criminológica a obra do argentino José
Ingenieros, pioneiro da Criminologia Clínica na América Latina, titular da Cátedra
de Psicologia Experimental na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
de Buenos Aires e fundador da Sociedad de Psicología na Argentina. Embora,
ao longo de sua vida não tenha se dedicado exclusivamente ao tema,
”Criminologia”, de 1907, foi o primeiro tratado do ramo publicado no continente.
Apesar de manter o conceito positivista de degeneração como central na
caracterização do sujeito criminoso, Ingenieros propôs que o estudo do indivíduo
delinquente não pode ser outro senão o estudo de seu funcionamento psíquico.
Assim, segundo suas conclusões, o temperamento criminal se trataria de uma
síndrome psicológica. Outra contribuição relevante da obra de Ingenieros refere-
se à etiologia da degeneração, introduzindo a ideia de que tal condição da qual
padecem os sujeitos criminosos poderia ser adquirida como consequência do
sistema social, e não apenas ter origem genética ou fisiológica.
Com relação ao autor, destacamos ainda que, embora a criminologia
tradicional seja de vertente positiva, clínica e comumente associada a uma
perspectiva conservadora de sociedade, Ingenieros foi um dos fundadores
do socialismo na Argentina, tendo sua obra, para além do campo criminológico,
versado sobre temas como a identidade latino-americana e o anti-imperialismo,
com grande influência sobre a juventude à época. O destaque biográfico sobre
o aparente paradoxo entre a visão criminológica do autor e sua visão de mundo
no campo político é relevante, porque a reflexão sobre o crime é sempre
carregada de paixões associadas aos valores, mais conservadores ou mais
progressistas, de sociedade e de política do indivíduo. Assim, alertamos para
que você possa, desde já, se desprender dessas concepções preestabelecidas
sobre o crime eventualmente associadas à sua perspectiva política e possa nos
acompanhar a partir dos próximos temas e etapas por concepções que se
afastarão gradativamente das noções de crime familiares ao senso comum que
introduzimos até aqui.

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TEMA 4 – CRIMINOLOGIA CLÍNICA MODERNA

Ao longo de seu desenvolvimento, a Criminologia Clínica deixa de manter


o conceito de degeneração em seu centro. Ainda que a conduta criminosa
continue a ser interpretada como resultado de uma disfunção, a concepção
moderna abre-se para uma maior multiplicidade de fatores endógenos e
provenientes do meio social como causas do comportamento criminoso. Assim
a disfunção deixa de ser algo necessariamente imanente ao criminoso,
afastando-se um pouco mais das concepções da Antropologia Criminal.
Ampliam-se, por consequência, as possibilidades do discurso de
ressocialização, que poderá abordar múltiplas frentes de atuação.
Na esteira da criminologia clínica moderna encontramos nos escritos de
Odon Ramos Maranhão (Psicologia do Crime, 1981), médico e então professor
titular do Departamento de Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de
Direito da USP, uma proposta de classificação dos delinquentes em:

• ocasionais – possuem uma personalidade bem construída e socialmente


ajustada, porém mediante a um agente externo forte, rompe seu equilíbrio
psíquico e comete o delito;
• sintomáticos – nos quais a prática do delito possui nexo causal com a
perturbação do agente, seja ela permanente ou transitória. Trata-se de
um delito sintomático, pois “a prática criminosa está vinculada a
perturbação”;
• essencial – possui deficiência de caráter, vive em função do crime, não
possui capacidade de julgamento, delinquente nato, comportamento
cronicamente antissocial. São reincidentes e não possuem lealdade, não
são capazes de amar e não possuem sentimento de culpa.

Como pudemos observar na Criminologia Clínica de Maranhão, abre-se


espaço para a classificação de delinquentes mais acessíveis ao trabalho de
ressocialização. Embora de notória influência psiquiátrica, Pinatel ressalva de
que não haveria, nos criminosos em geral, tipos psicopatológicos classificáveis
dentro das categorias psiquiátricas tradicionais e sim, no máximo, conjugações
de traços de personalidade, agrupados de modo específico, como ilustra a
classificação de Maranhão. Como resume Celina Manita (1997), em
conformidade com a leitura de Pinatel, o criminoso é um homem como outro

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qualquer, só se diferenciando dos demais por uma maior aptidão para ato
criminoso; a personalidade criminosa seria descrita por meio de traços
psicológicos agrupados em determinada característica; esta, por sua vez,
englobaria os traços de agressividade, egocentrismo, labilidade e indiferença
afetiva, sendo esses os elementos responsáveis pelo ato delituoso, enquanto as
variáveis, como o temperamento, as aptidões físicas, intelectuais e profissionais,
as razões aparentes, e as necessidades, seriam responsáveis pelas diferentes
modalidades desse ato; por último, a personalidade criminosa, considerada na
sua globalidade, seria dinâmica em relação aos seus diferentes traços
constitutivos e adaptabilidade social.
Tendo como parâmetro a classificação de Maranhão, em especial no caso
dos delinquentes ocasionais e sintomáticos, observamos que perturbações
externas (no casos dos primeiros) ou internas (no caso dos segundos)
resultariam na conduta criminosa, em que, ao menos em tese, seria
circunstancial. Ao menos dentro desse universo, o autor de crime não se
diferencia de qualquer outro cidadão, exceto com relação às perturbações,
externas ou internas, as quais foi exposto. Os traços psicológicos dos autores
de crime, sendo comuns a qualquer sujeito, devem ser analisados de forma
dinâmica articulando traços constitutivos e condições de adaptabilidade social
ofertadas na história de vida do sujeito.
Entretanto, a leitura psicopatológica, de matriz psiquiátrica, de Maranhão,
ainda mantém espaço para o delinquente nato, não necessariamente
degenerado, mas ainda portador de uma deficiência de caráter essencial,
crônica, que os distinguiria dos demais cidadãos de caráter normal. A tradição
médico-psiquiátrica, ao analisar a etiologia da conduta criminosa, embora amplie
e identifique nuances dentre as motivações que a sustentam, não supera o
antagonismo social com a figura do delinquente e, consequentemente, não é
capaz de afastar o anseio de parte da população de que o enfrentamento ao
crime passe por um encarceramento perpétuo dos delinquentes, ou outra
solução mais definitiva.
Outras escolas criminológicas abandonaram o foco de seus estudos no
indivíduo e serão apresentadas em etapa posterior. Entretanto, para concluirmos
essa introdução sobre o pensamento criminológico orientado pelo estudo dos
indivíduos, apresentemos também o princípio do que se convencionou nomear

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de criminologia psicanalítica, campo que tem a marca indelével de um crime que
chocou a sociedade francesa na terceira década do século passado.

TEMA 5 – O CASO LEFEBVRE E AS ORIGENS DA CRIMINOLOGIA


PSICANALÍTICA

Em agosto de 1925, a sexagenária Marie Félicité Elise Lefebvre chocou a


sociedade francesa ao assassinar sua nora, grávida de um neto seu, com
disparo de revólver na cabeça. O disparo ocorreu em um carro que era dirigido
pelo filho da sra. Lefebvre, esposo e pai das vítimas. Nos tribunais, Lefebvre não
mostrava arrependimento, convicta de que o assassinato de sua nora e neto
tratou-se de um dever, “como se destrói o joio, se arranca o mau trigo ou se mata
um animal selvagem” (Alexander; Staub, 1934, p. 219). Lefebvre foi condenada
à morte, mas posteriormente sua pena foi comutada à prisão perpétua.
Embora a Criminologia Psicanalítica não se restrinja à análise do autor de
crime e de suas motivações, devemos reconhecer que essa é também uma de
suas vocações e que é a partir dessa perspectiva que começam a ser publicados
trabalhos psicanalíticos dedicados exclusivamente ao crime. O caso da senhora
Lefebvre então inaugura essa tradição, inicialmente despertando o interesse de
Marie Bonaparte, discípula de Freud e uma das fundadoras da Sociedade
Psicanalítica de Paris. Após entrevistar Lefebvre na penitenciária de Lille, em
1927, Bonaparte publica o artigo “Le cas de Madame Lefebvre". A partir das
então recentes descobertas da psicanálise, a autora explora ao longo do artigo
o aspecto incestuoso do homicídio. Alguns anos depois, em 1931, as conclusões
de Bonaparte seriam retomadas pelo psicanalista Franz Alexander (outro
discípulo de Freud) que conjuntamente com o magistrado Hugo Staub publica O
criminoso e seus juízes, primeira obra de fôlego a intentar aplicar a psicanálise
no campo da Criminologia.
O que se destaca no crime cometido pela sra. Lefebvre, na análise desses
psicanalistas, é o caráter edipiano do assassinato:

Uma mulher jovem, estrangeira, chegou e roubou seu filho. A


suposição popular de que uma relação ilícita entre mãe e filho possa
ter sido a razão do crime é verdadeira psicologicamente, apesar
mesmo de não estar justificada por atos. De fato o crime pode ser
explicado somente como resultante da situação de Édipo. (Alexander;
Staub, 1934, p. 220-221).

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Para que vocês compreendam melhor como os autores chegaram a essa
conclusão, além de retomarem seus estudos sobre o complexo de Édipo e sobre
o complexo de castração nas mulheres, é importante conhecer um pouco da
história da sra. Lefebvre, para além da história de seu crime. Durante a infância,
sua mãe esteve grávida por duas vezes, momentos que, em suas lembranças,
não foram recebidos de forma amistosa (Alexander; Staub, 1934, p.222).
Durante a segunda gravidez, sua brincadeira preferida com o irmão consistia em
simular rituais religiosos ligados aos funerais de pintinhos que ela própria
matava.
Na adolescência, Lefebvre começa a ter problemas de saúde e é
acometida por uma diarreia crônica. Tornava-se triste sem causa visível e, por
razões fúteis, caía em crises de choro por simples observações feitas por sua
mãe. Na vida adulta, tem um casamento de conveniência e sofre muito durante
as duas gestações que teve, principalmente de dor nos rins. Com a proximidade
da menopausa, volta a apresentar os sintomas da adolescência, acrescidas de
diversas outras perturbações nervosas, sensações dolorosas e contrações do
estômago. Seu filho mais velho então se casa contra sua vontade. A partir de
então, surgem seus sintomas mentais que culminarão no assassinato da nora
(Bonaparte, 1927).
Na interpretação de Bonaparte, passagem ao ato dos desejos criminosos
da sra. Lefebvre teve como estopim a gravidez de sua nora, o que reforça a
interpretação de que as motivações do crime cometido eram inconscientes e
ligadas a uma insatisfatória solução do complexo de castração da autora.
Cumpre lembrar que em Freud (1917/1996), o elemento fundamental para a
estruturação psíquica deriva do terror da castração que tem como resultado a
solução do pacto edípico e inibição da libido em direção ao seu objeto primário.
Nas mulheres, o terror da castração seria substituído pela noção de "inveja do
pênis”, o que no decorrer do Édipo teria em uma de suas formas derivadas o
desejo de ter um filho. Nas palavras do próprio Freud (1917/1996, p. 137):

Se penetrarmos profundamente na neurose de uma mulher, não


poucas vezes deparamos com o desejo reprimido de possuir um pênis,
como um homem. Chamamos a esse desejo de ‘inveja do pênis’ e
incluímo-lo no complexo de castração. [...] Em outras mulheres não
encontramos esse desejo de um pênis; é substituído pelo desejo de
um bebê, cuja frustração, na vida real, pode levar à eclosão de uma
neurose. É como se tais mulheres houvessem compreendido (embora
isso não possa ter atuado como motivo) que a natureza dá bebês às
mulheres como substitutos para o pênis que lhes negou. Com outras,

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ainda, aprendemos que ambos os desejos estavam presentes na sua
infância e que um substitui o outro. De início, haviam desejado um
pênis, como os homens; depois, num estádio posterior, embora ainda
infantil, surgiu em lugar deste, o desejo de um bebê.

Na análise de Bonaparte (1927, p. 190), ele destaca que a gravidez da


nora da sra. Lefebvre ocorre poucos anos depois de sua menopausa. A mesma
mulher que já havia lhe tomado o filho contra sua vontade mostrava-se agora
fértil e potente para produzir um bebê que ela não era mais capaz de fazê-lo. Na
interpretação tanto de Bonaparte quanto de Alexander e Staub, o crime cometido
tinha correlação com a brincadeira infantil na qual a pequena Lefebvre atuava a
morte de bebês durante a gravidez de sua mãe. Sua sintomatologia ao longo da
vida, compatível às somatizações histéricas, reforçavam a interpretação de
solução insatisfatória do complexo de castração. Ao ver reeditada a situação
traumática mal resolvida na infância, dessa vez com a nora se apresentando na
posição de rival e ostentando seu ventre uma potência que ela novamente era
incapaz de suplantar, Lefebvre opera um acting out, realizando em ato seu
sintoma neurótico que remonta a relação idealística com seus objetos primários,
o crime até então interditado contra sua mãe fálica e castradora.
Outro aspecto a reforçar a interpretação psicanalítica do crime refere-se
à identificação da sra. Lefebvre com sua própria mãe. Como apontam Alexander
e Staub (1934, p. 229-230):

Atrás da gravidez de sua nora, Mme. Lefebvre achou-se na situação


de quando era pequena, vendo sua mãe no mesmo estado, podendo
observar esse fato, mas sem a possibilidade de se encontrar no mesmo
estado, tal qual como teria obtido em menina, se conseguisse realizar
seus desejos de Édipo. Em outras palavras, a nora realizou o que Mme.
Lefebvre tinha desejado, quando em criança, […] isto é, a filha que
agora estava grávida e não a mãe! Assim Mme. Lefebvre conseguiu
identificar-se com sua própria mãe e reagiu por isso do mesmo modo
que ela receava, no seu inconsciente, sua mãe teria agido contra ela,
sendo assim que ela teria reagido, seguindo os ditames de seu Super-
Eu. (Grifo nosso).

Impulsionado simultaneamente pela instância psíquica primitiva com


relação ao desejo do falo/bebê e pela instância psíquica repressora do superego
em identificação com sua própria mãe, o crime/sintoma emerge como uma
solução de compromisso entre forças reprimidas e repressoras.
No que se refere ao campo da Criminologia, a principal contribuição que
a interpretação psicanalítica oferece desde seus primeiros trabalhos é a rejeição
da noção do delinquente nato, essencialmente diferente do cidadão comum.
Diante de um dos crimes mais brutais experimentados pela sociedade francesa

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da época, Bonaparte destaca que sem saber todos se interessavam pelo caso
Lefebvre. Isso porque, dentro de toda mãe, bem no fundo do inconsciente, há,
ainda que não expresso, um pouco de Jocasta e de sra. Lefebvre (Bonaparte,
1927, p. 161).

NA PRÁTICA

A percepção do crime na prática, seja pela população em geral, seja pelos


legisladores ou pelos responsáveis pela justiça criminal, demonstra que os
diferentes pressupostos apresentados ao longo desta etapa (e outros que ainda
serão apresentados) se sobrepõem nos discursos e decisões sobre o que fazer
com o autor do crime.
É decorrente da crença arraigada na população de que existem os
delinquentes natos e a ideia de que o endurecimento das penas é a melhor
resposta para o enfrentamento do crime. Se o criminoso é irrecuperável, as
medidas mais adequadas ao seu controle seriam a execução ou a prisão
perpétua, uma vez que em liberdade ele reincidiria em atos delituosos. Ademais,
a consciência de que única chance de se manter em liberdade seria não ser
preso poderia inibir o delinquente nato a seguir seus impulsos. Pesquisa
publicada em 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontava que
57% da população concordava com a expressão “bandido bom é bandido morto”;
em pesquisa publica pelo Instituo Datafolha em 2018, 57% eram favoráveis à
pena de morte; pesquisa de 2022 publica pelo Ipec (ex-Ibope), aponta que 73%
dos brasileiros são a favor da prisão perpétua.
Com relação à associação histórica, no Brasil, do delinquente aos
indivíduos negros e pardos, tipificando como crime a violência por eles cometida
e legalizando a violência cometida sobre seus corpos e seus reflexos são
observados na Política Pública de Segurança ainda hoje. O 14º Anuário de
Segurança Pública identificou que, no Brasil, de três presos, dois eram negros;
e que de dez pessoas mortas pela polícia, oito eram negras. De acordo com os
dados do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria
Pública de São Paulo divulgados pela imprensa, mais de 90% das mortes
decorrentes de intervenção policial são arquivadas sem nem mesmo ir a
julgamento (Alessi, 2016). De 510 casos de autos de resistência ocorridos no
Rio de Janeiro entre 2010 e 2011, com 707 mortos, 355 viraram inquéritos,

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destes, 19 se transformaram em processos efetivos, dos quais apenas três
chegaram à fase de julgamento (Peres; Neto; Domenici, 2015).
O adensamento da compreensão de que o autor de crime não se distingue
essencialmente de qualquer outro cidadão que gradativamente foi se revelando
nos estudos criminológicos, com contribuição da criminologia psicanalítica, ainda
não alcança, hegemonicamente, a população em geral. Sem a difusão desse
conhecimento, ainda é distante em nosso horizonte a construção de uma justiça
criminal mais justa e eficiente.

FINALIZANDO

De maneira geral, o pensamento criminológico, em sua origem, seja com


suas hipóteses evolutivas, raciais ou de matriz psiquiátrica, colaborou para tornar
a figura do delinquente artificialmente diferente do cidadão comum, o que, por
sua vez, contribui para a legitimação social de políticas criminais cada vez mais
cruéis e implacáveis, em espelho à figura do delinquente nato sedimentado no
imaginário coletivo.
Ao longo desta etapa, procuramos apresentar como a investigação sobre
esse autor de crime ao longo do tempo, na medida em que vai se afastando dos
vieses culturais concernentes à concepção de crime e anterior à aplicação do
método científico, passa a dissolver gradativamente a fronteira que separa o
autor de crime de qualquer outro cidadão, tarefa na qual a psicanálise possui
contribuição decisiva.
Posteriormente, continuaremos avançando para uma melhor
compreensão do pensamento criminológico e das contribuições psicanalíticas, e
esperamos que você se interesse em prosseguir conosco nessa jornada!

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REFERÊNCIAS

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