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Capítulo 1

A psicologia em
instituições médicas
tendência do século XIX m anteve-se por algum tem po, dife­
A renciando-se gradativam ente, sendo que as preocupações es­
tritam ente psiquiátricas foram se delineando com m aior clareza e
delim itando m ais explicitam ente suas fronteiras com a Psicolo­
gia. Tais fatos ocorreram ainda no interior da M edicina, mas já
caracterizada como especialidade psiquiátrica, particularm ente nas
instituições asilares e em seu correlatos, com o a M edicina Legal
ou a Higiene M ental. A principal evidência disso foi a criação de
laboratórios de Psicologia em diversas instituições psiquiátricas,
cuja produção foi principalm ente de natureza psicológica. O de­
senvolvimento dos saberes psiquiátrico e psicológico e suas decor­
rências práticas foram fatores fundam entais para que ambas as
áreas adquirissem contornos mais nítidos e, conseqüentem ente,
um a m aior delim itação entre si.
O país encontrava-se ainda na mesm a (e talvez pior) situação
que no século anterior, no que diz respeito às precárias condições
de saneam ento e saúde do povo brasileiro. Intelectuais e políticos
reclamavam da M edicina intervenções concretas por meio de um
projeto profilático, com a finalidade de erradicar, ou pelo menos
minimizar, as inúmeras doenças infecto-contagiosas que assolavam
o país. Esse movimento, no âmbito da M edicina Geral, estava inti­
mamente relacionado à questão da Higiene que, nos anos iniciais
do século XX, estava revestido de ampla responsabilidade frente à
realidade. É no bojo de tais fatos que tanto o pensam ento psiquiátri­
co quanto o psicológico encontraram fértil terreno para seus estu­
dos e para a aplicação de seus conhecimentos por meio da Higiene
M ental, instância derivada da Higiene em sua expressão geral. As
ligas de Higiene M ental foram, assim, importantes fontes de produ­
ção de pesquisa e de práticas relacionadas à Psicologia.
A Psicologia no Brasil

Para expor essa linha de desenvolvimento histórico da Psicolo­


gia, abordaremos a seguir as produções dos hospícios, incluindo a Liga
Brasileira de Higiene Mental; as produções relativas às intermediações
entre Psiquiatria e Direito, que foi um importante veio de desenvolvi­
mento da Psicologia, principalmente por meio da Medicina Legal, e
das teses de doutoramento das Faculdades de Medicina.

1.1. Os hospícios e algumas instituições correlatas


O sustentáculo das produções que serão apresentadas a seguir
foi o alienismo. Surgiu este na Europa, como área que se autonomizou
em relação à Medicina tradicional, estabelecendo como seu objeto de
estudo a “razão”, cuja compreensão não podería, segundo seus defen­
sores, situar-se na Anatomia ou na Fisiologia, pois teria aquela uma
natureza diversa. Ao alienismo veio somar-se, mais tarde, o organicismo,
que trazia a concepção de loucura como organicamente determinada.
O pensamento psiquiátrico brasileiro da época tinha como prin­
cipal característica o ecletismo, que conjugava o alienismo clássico,
especialmente de Pinei e Tuke, com o organicismo, em particular numa
de suas vertentes, a teoria da degenerescência, fortemente calcada na
concepção da determinação hereditária da loucura.
A teoria da degenerescência propunha ações que extrapolavam
os muros asilares, propondo a higienização e a disciplinarização da
sociedade. Considerava ainda a mdstência de uma hierarquia racial,
estando no ápice a raça ariana e na base a raça negra; muitos teóri­
cos acreditavam ser os negros mais propensos à degeneração por
sua inferioridade biológica.
No Brasil, essas duas correntes juntam -se numa só experiên­
cia, em que a exclusão do “louco” deveria ser compartilhada com a
prevenção “social” da loucura.
O alienismo havia sido, no século anterior, expressão da M e­
dicina Social, que incluía em seu projeto profilático a preocupa­
ção com a pobreza, a m arginalidade social, o crim e e a loucura.

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Leitura histórica sobre sua constituição

Com o solução apresentava-se a necessidade de um efetivo controle


sobre a m assa urbana, com vistas à sua disciplinarização. Nesse
contexto, ganha força a teoria da degenerescência.
Essas idéias são incrementadas na virada do século, com o
agravamento dos problemas urbanos, de tal maneira que o controle
das m assas im punha-se com o prem ente necessidade para um a
sociedade que alm ejava ingressar num efetivo processo de indus­
trialização. sobretudo no que diz respeito ao proletariado. Assim,
a articulação entre pensam ento psiquiátrico e controle do processo
produtivo revela-se explicitamente.
A preocupação com a “ordem ” urbana e com o “progresso”
baseia-se tam bém nos princípios positivistas, ainda fortem ente
arraigados no ideário brasileiro. A questão da “ordem ” assume gran­
de importância nessa conjuntura, devendo o asilo excluir do conví­
vio social aqueles que não se adaptassem às normas estabelecidas,
isto é, os “desordeiros” , estando incluídos nessa categoria os indiví­
duos engajados nos movimentos sociais organizados.
Tais concepções, embora majoritárias, não foram unânimes,
o que d em o n strarem o s ad ian te p e la e x p e riên c ia de U lysses
Pernambuco em Recife. Além desta, apresentaremos a seguir algu­
mas considerações sobre o Hospício do Juquery, o Hospital Nacio­
nal de Alienados, a Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro e
as Ligas de Higiene Mental.

Hospício do Juquery9

Os prim órdios do Hospício do Juquery situam-se no Asilo


Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. Sua criação é obra
de Franco da Rocha, que empreendeu a reforma psiquiátrica em
São Paulo, denunciando a precariedade da assistência aos doentes

9 Sobre o Hospício do Juquery, sugere-se a leitura do valioso estudo constante do livro:


CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1986.
A Psicologia no Brasil

m entais e defendendo um a nova instituição, baseada em práticas


científicas, sobretudo no “asilam ento racional”.
O H ospício do Juquery foi construído fora da zona urbana,
sendo seu projeto arquitetônico de autoria de Ram os de A zevedo.
Em 1898 já funcionavam as colônias agrícolas; e suas depen­
dências foram várias vezes ampliadas ao longo do tempo, sendo
anexados o pavilhão para “crianças anorm ais” , o laboratório
histoquímico e o M anicômio Judiciário.
Franco da Rocha e seu sucessor, Pacheco e Silva, defendiam
a centralização da assistência psiquiátrica com o form a de gerar
condições para o estudo da loucura, com base na descrição, com-
jtaração e classificação, revelando concom itantem ente a preocu­
pação em dem onstrar a pertinência da teoria da degenerescência.
Segundo Cunha, a produção do hospício demonstrava que:
“o interesse se desdobra a partir de quadros nosológicos já configu­
rados e volta-se para a identificação das formas particulares das
‘doenças’naquela sociedade particular, como decorrência de uma
herança genética onde amalgamavam-se imigrantes, escravos e todo
tipo de sangue degenerado: o impacto do crescimento urbano no
crescimento da sífilis, deflagradora de um tipo determinado de pato­
logia mental (...); a loucura associada às características raciais e o
significado disto em sua apresentação na sociedade miscigenada do
país; a correspondência entre loucura e crime; a relação entre as
formas de doença mental e os padrões culturais ‘atrasados ’ como
(...) as religiões ‘primitivas’dos negros e dos pobres” (1986, p. 77).
O Juquery representou em São Paulo o pensamento psiquiá­
trico hegem ônico no Brasil, nessa época. Sua prática articulou-se
às necessidades trazidas pelo processo de industrialização que se
acelerava na cidade e teve uma dim ensão política que era a de
“conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores sociais
não enquadráveis nos dispositivos penais; permitir a guarda (...)
e a regeneração ou disciplinarização de ind/ resistentes às disci­
plinas do trabalho, da família e da vida urbana; reforçar papéis

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Leitura histórica sobre sua constituição

socialmente importantes para o resguardo da ordem e da discipli­


na, medicalizando comportamentos desviantes (...) e permitindo
que sua reclusão possa ser lida como um ato em favor do louco, e
não contra ele’’ (Cunha, 1986, p. 80).
O hospício vai gradativam ente abandonando sua preocupa­
ção com a loucura individual e assumindo tarefas de ordem social,
sobretudo no que diz respeito ao controle da força de trabalho.
Do ponto de vista prático, as técnicas “científicas” utilizadas
consistiam, por exemplo, em: alternância de banhos frios e quentes,
malarioterapia, traumaterapia, laborterapia e terapias medicamentosas.
A produção do Juquery circunscreve-se especificam ente no
âmbito da Psiquiatria, não trazendo contribuição direta para o conheci­
mento e a prática da Psicologia. Entretanto, sua preocupação com a
loucura abarca, sem sombra de dúvidas, o fenôm eno psicológico,
embora sua m aior contribuição seja a de demarcar mais nitidam en­
te as fronteiras entre a Psicologia e a Psiquiatria e, conseqüentemente,
demonstrar nesse caso um fator relevante para a compreensão do
processo de autonom ização da ciência psicológica.
É necessário reconhecer, entretanto, que am bas as áreas
tratam , sob enfoques e fundam entos diversos, fenôm enos de uma
m esm a natureza e que é inquestionável que, apesar das frontei­
ras, há intersecções tanto do ponto de vista do objeto de estudo
quanto do ponto de vista prático. Som a-se a isso que suas p rodu­
ções situam -se num a dada realidade, sendo que cada uma, a seu
m odo, busca responder às suas dem andas.

Hospital Nacional dos Alienados

Após a proclamação da república, o Hospício Pedro II passou a


ser chamado Hospital Nacional dos Alienados10 e sua administração

10 Sugere-se a leitura de: COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro,


Documentário, 1976.

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A Psicologia no Brasil

transferida ao Estado, em substituição à Santa Casa de Misericórdia.


Em 1902, após a detecção de inúmeros problemas na instituição, foi
nomeado para sua direção Juliano Moreira, cuja prática inaugura “uma
psiquiatria cujos fundamentos teóricos, práticos e institucionais cons­
tituíram um sistema psiquiátrico coerente” (Costa, 1976, p. 26). Esse
hospício pode ser visto como o primeiro no Brasil que tratou a loucu­
ra do ponto de vista eminentemente médico. Nomes consagrados como
Henrique Roxo, Afrânio Peixoto e Maurício de Medeiros contribuíram
com a constituição da prática psiquiátrica instalada na instituição.
Em 1907, sob a direção de Juliano Moreira, é criado o prová­
vel segundo laboratório de Psicologia no Brasil (o primeiro teria sido
no “Pedagogium”, em 1906), denominado Laboratório de Psicologia
Experimental da Clínica Psiquiátrica do Hospital Nacional dos Aliena­
dos11. Esse laboratório foi chefiado por Maurício de Medeiros, construído
sob a influência de Georges Dumas, com quem Medeiros trabalhou em
Paris, no laboratório de Psicologia do Hospital de Saint’Anne.
Nesse hospício, também sob a direção de Juliano Moreira, res­
ponsabilizou-se Heitor Carrilho pelo setor que deveria abrigar os “cri­
minosos loucos”, gérmen do Manicômio Judiciário, criado em 1921.
O Hospital Nacional dos Alienados foi, como o Juquery, um
asilo modelo para o pensamento psiquiátrico da época, representando
a tendência vigente em que o ecletismo tomou-se posição pratica­
mente hegemônica. Para ele confluíram médicos cariocas e baianos,
representando as orientações de Teixeira Brandão e Raimundo Nina
Rodrigues respectivamente, sendo que ambas as tendências tiveram,
apesar de suas particularidades, como seu principal fundamento a
M edicina Social e seus motivos de natureza sócio-política.
Ao contrário do Juquery, no entanto, nesse hospício é explí­
cito o vínculo com a Psicologia, concretizado na existência do labo­
ratório. Nesse sentido, o Hospital Nacional dos Alienados pode ser
visto como uma instância produtora desconhecimento psicológico,

11 Sobre isso, ver: PENNA, A. G. Apontamentos sobre as fontes e sobre algumas das figuras
mais expressivas da Psicologia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FGV, 1986.

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Leitura histórica sobre sua constituição

tendo abrigado profissionais que, em seu laboratório ou fora dele,


produziram relevantes obras psicológicas, como Maurício de Medeiros
e Plínio Olinto. Isso remete à questão de que a Psiquiatria no Brasil,
em sua manifestação institucional, assumiu parcela da produção psi­
cológica, vinda não somente da tradição passada, quando não havia
qualquer forma de delimitação entre as duas áreas de saber, mas tam­
bém pelo fato de que a Psiquiatria necessita do intercâmbio com o
conhecimento psicológico, fomentando e sediando sua pesquisa.
Por fim , deve-se dizer que a im possibilidade de acesso aos
docum entos que registram a produção do laboratório, pois esses
encontram -se perdidos, com prom ete sobrem aneira a avaliação
m ais profunda da participação desse hospício e de seu laboratório
na história da Psicologia no Brasil.

Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro

Fundada no Rio de Janeiro na década de 10, a Colônia produ­


ziu extensa contribuição à Psicologia por m eio de seu fértil labo­
rató rio 12, criado em 1923.
Esse laboratório foi transform ado em Instituto de Psicologia,
subordinado ao M inistério de Educação e Saúde Pública, em 1932.
Em 1937 foi incorporado à Universidade do Brasil, para contribuir,
segundo Penna, com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras,
de Educação e de Política e Economia.
Havia também na Colônia a Escola de Enfermagem, que con­
tinha em seu currículo a disciplina Psicologia, ministrada por Gustavo
Rezende e Nilton Campos.
Criado por Gustavo Riedel, diretor da Colônia, o laboratório foi
patrocinado pela Fundação Gafffée-Guinle. Sua finalidade, juntamente

12 Sobre esse laboratório, ver: PENNA, A. G. Sobre a produção científica do Laboratório de


Psicologia da Colônia de Psicopatas, no Engenho de Dentro, in: História da Psicologia, n° 1,
Rio de Janeiro, FGV, 1985.

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A Psicologia no Brasil

com um a exposição de m otivos e até m esm o um a definição da


função do psicólogo, foi assim expressa por O svaldo N. de Sou­
za G uim arães: “atualm ente todo Instituto destinado ao estudo,
cura e profilaxia das m oléstias m entais deve ter, com o auxiliar
indispensável, um la boratório de p sicologia, a cargo de um
p sicólogo profissional. Este torna-se, então, valioso colabora­
dor do médico, para eficiência de tal Instituto” (G uim arães, apud
Penna, 1985, p. 28). Para a direção do laboratório foi cham ado o
psicólogo polonês W aclaw R adecki.

f O laboratório, que contava com sofisticados equipamentos


vindos de Paris e Leipzig, “funcionava como instituição auxiliar
j médica; (2) como auxiliar das necessidades sociais e práticas; (3)
como núcleo de pesquisas científicas; (4) como centro didático para
form ação de psicólogos”. (Penna, 1985, p. 30).

A extensa produção do laboratório demonstra, em relação aos


asilos já estudados, um imenso avanço em direção ao reconheci­
mento da autonomia científica e prática da Psicologia no Brasil.
Explicita-se aí, com clareza, que a Psicologia é vista como campo
próprio de conhecimento e ação, ao mesmo tempo em que é reco­
nhecida sua íntima relação com a Psiquiatria.

Do ponto de vista da produção do laboratório, além da quan­


tidade de pesquisas e ensaios, três elementos apresentam -se como
particularmente significativos: a preocupação com a formação de
psicólogos e a difusão do conhecimento psicológico; o trabalho clí­
nico e a aplicação da Psicologia a questões relativas ao trabalho.

O laboratório da Colônia contribuiu com uma das primeiras


referências, no Brasil, da perspectiva psicoterápica, num momento
em que tal campo de ação, quando existia, limitava-se à Psiquiatria.
É possível tomar como hipótese que esse tipo de trabalho, ainda que
incipiente, tenha lançado algumas bases para, mais tarde, tomar-se
um dos mais importantes campos de atuação da Psicologia no país,
o qual só nas décadas seguintes viria a ter contornos mais definidos
como possibilidade de aplicação psicológica.

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Leitura histórica sobre sua constituição

M erece referência tam bém a contribuição do laboratório à


organização do trabalho, que se m ostra claram ente definida, parti­
cularmente no que se refere à utilização de testes para fins de sele­
ção e orientação profissional. Foram realizados estudos e pesquisas
sobre fadiga em “trabalhadores menores", seleção de candidatos à
aviação militar, psicometria e questões profissionais etc. Além disso,
é necessário dizer que o trabalho no laboratório, junto com outros
que se realizavam em outras instituições, traz um a nova caracterís­
tica às contribuições que até então as instituições psiquiátricas da­
vam à problem ática do trabalho, cuja principal finalidade era exer­
cer o controle e a disciplinarização do proletariado urbano fora dos
muros da fábrica. A partir daí, a Psicologia penetra no interior do
processo produtivo, com um caráter estritamente técnico-científico,
por meio da intervenção direta nos processos seletivos e no estabe­
lecimento de contingências e normas nas relações de produção, com
base no saber psicológico.
Um destaque especial deve ser dado à importância da presen­
ça de Radecki nesse laboratório e, por decorrência, na história da
Psicologia no Brasil. Foi ele o autor de grande parte dos trabalhos
produzidos no laboratório, quando não colaborador ou orientador. Foi
ele quem ministrou inúmeros cursos e conferências, com influência
significativa na divulgação e difusão da Psicologia no país. Suas
realizações constituem -se na quase totalidade da produção do labo­
ratório, devendo-se a ele também, provavelmente, a marcante cultura
psicológica presente nos trabalhos produzidos, em que são freqüen-
tes citações e referências a: Ribot, Claparède, W illiam James, Janet,
Forel, B abinski, B ernheim , K ráepelin, B leuler, M inkow ski e
Kretschem er, dentre outros, devendo-se salientar a significativa
presença da Psicanálise,
Finalmente, deve-se reafirmar que a Colônia de Psicopatas do
Engenho de Dentro foi uma das mais importantes instituições que
geraram condições para o estabelecimento da Psicologia no Brasil,
quer pela consolidação desta área do saber como ciência, quer em
relação ao reconhecimento de sua autonomia teórica e prática.

ei
A Psicologia no Brasil

Liga Brasileira de Higiene Mental


e instituições correlatas

A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1923,


por G ustavo R iedel, tendo em seus quadros os m ais em inentes
psiquiatras e intelectuais da época. Segundo Jurandir Freire Costa,
o objetivo inicial da Liga idealizada por Riedel era a m elhoria da
assistência ao doente mental.
A partir de 1926, porém, esse objetivo foi cedendo lugar ao.
ideal eugênico13, à profilaxia e à educação dos indivíduos. A preo­
cupação transferiu-se do indivíduo “doente” para o “norm al”, da
cura para a prevenção, ampliando seu raio de ação para a sociedade
como um todo, definindo a ação psiquiátrica como prática higiênica,
apoiada na noção de eugenia.
Essa concepção contribuiu para uma interpretação racista da
sociedade brasileira, que tendia a atribuir os problemas sócio-econômi-
cos às questões raciais, especialmente à presença de “raças inferiores”,
numa explícita referência aos negros que, junto com o clima quente,
eram responsabilizados pelo atraso do país. Essas idéias desemboca­
ram na defesa do “embranquecimento da raça brasileira” e, posterior­
mente, na busca da “pureza racial”.
No bojo dessa discussão, a problem ática educacional ocupou
lugar privilegiado, sendo que a ignorância era vista como um a das
m ais graves doenças sociais. Juntam ente com essa questão e a
ela relacionada integra-se a problem ática das relações de traba­
lho; temas que estiveram diretam ente articulados ao pensam ento
da Liga e constituíram -se em objetos de estudo e alvos de ação.
A Liga reconhecia a Psicologia como ciência afim à Psiquia­
tria e estimulava sua produção. Nesse sentido, foi criado um laborató­
rio de Psicologia, cuja direção foi inicialmente confiada ao francês
Alfred Fessard e posteriormente a Plínio Olinto, que foi sucedido por

13 Eugenia, conceito criado por Galton, significa o estudo dos fatores responsáveis pela
elevação ou rebaixamento das características raciais, do ponto de vista físico e mental.

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Leitura histórica sobre sua constituição

Brasília Leme Lopes. Além disso, a Liga propôs em 1932, ao M i­


nistério da Educação e Saúde Pública, a presença obrigatória de “gabi­
netes de Psicologia” junto às clínicas psiquiátricas, sendo a proposta
acolhida em instruções do referido ministério. Anualmente a Liga
realizava as “Jornadas Brasileiras de Psicologia”, cujo objetivo era
difundir pesquisas puras e aplicadas nessa área do conhecimento.
Preocupação com a Psicologia teve também a Liga Paulista de
Higiene Mental, fundada em 1926, por Pacheco e Silva, funcionando
em moldes semelhantes à sua correspondente nacional. Na Liga
Paulista, a Psicologia aparecia expl icitamente articuladta às questões
relativas à organização do trabalho, como instrumento de obtenção
de conhecimento a respeito das funções psicológicas presentes no
exercício profissional, tais como: funções psicomotoras, memória,
atenção e julgamento; tais elementos articulavam-se, na prática, à apli­
cação da Psicologia à seleção e orientação profissional. Como ilus­
tração, vale a pena citar um trecho de Bonifácio Castro Filho14:

“A higiene mental nas oficinas e nas profissões em geral é um fator


de grande prosperidade para a indústria, porque assegura um me-
Ihor rendimentq. Ela pode ser realizada pela orientação profissio­
nal e pela seleção psicológica dos operários, tendo por efeito:

I o) a eliminação nas oficinas de certas classes de profissionais psi-


copatas que constituem um peso morto e um grave prejuízo para a
coletividade;
2°)jcolocar os indivíduos em seus devidos lugares, de acordo com
as aptidões mentais, condições que favorecem o êxito do trabalho ”
(Castro Filho, apud Cunha, 1986, p. 189).

Essas idéias buscavam na Psicologia não apenas fundam en­


tação teórica e corpo de técnicas úteis às suas finalidades de
higienização social do trabalho e da família, como também prenun­
ciavam um outro tipo de prática que se aproximava da prática clínica

14 CASTRO FILHO, B. Higiene Mental nas fábricas, apud CUNHA, M. C. P., obra citada.

M
A Psicologia no Brasil

da Psicologia no m om ento subseqüente, pelas denom inadas “clí­


nicas de higiene m ental”, cuja finalidade era de origem profilática
e, portanto, voltada para o indivíduo “norm al” .
A isso deve-se acrescentar o papel desempenhado pelo Institu­
to de Higiene de São Paulo, cuja ação foi semelhante à da Liga Brasi­
leira de Higiene Mental. Esse instituto foi dirigido, a partir de 1926, por
Geraldo Paula Sousa, que organizou um grupo de estudos de Psicolo­
gia Aplicada, do qual participaram médicos, educadores e engenhei­
ros; os estudos aí realizados versaram sobre a Psicologia do Trabalho
e deram também origem ao “Serviço de Inspeção Médico-Escolar”, no
qual foi criada uma escola especial para crianças com deficiência men­
tal e, em 1938, uma clínica de orientação infantil, provavelmente uma
das primeiras no país, chefiada por Durval Marcondes.
A concepção psiquiátrica das Ligas de Higiene Mental, em ­
bora fortemente arraigada nas idéias correntes na Psiquiatria brasi­
leira, não era contudo unânime. Segundo Freire Costa,

“na mesma época, Odilon Galotti, no Rio, James Ferraz Alvim, em


São Paulo, e Ulisses Pernambucano em Recife (...) orientavam suas
pesquisas numa direção totalmente oposta à higiene social da raça.
Para esses psiquiatras, que mantinham também ligações com a
L.B.H.M., a higiene mental continuava a ser aquilo que Riedel havia
desejado que fosse: melhoramento e humanização da assistência.
psiquiátrica aos doentes mentais” (1976, p. 63).

O pensamento e a ação das ligas são expressões de uma concep­


ç ã o autoritária de mundo, representada na Psiquiatria principalmente
pelo pensamento alemão, nas figuras de Rudin, Hoffmann e Meggen-
dorfer, continuadores do organicismo de Kráepelin. Pretendia-se, em
nome da ciência, abarcar o controle da sociedade e, para tal, defendia-
se e estimulava-se a pesquisa e a aplicação da Psicologia como meio
auxiliar para seus finsàÉ interessante notar que a Psicologia encon­
tra-se, nesse contexto, como detentora de um saber e de um corpo de
técnicas, particularmente a psicometria, relacionada às práticas es-
pecificamente psicológicas, numa versão bastante próxima das atuais?]

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___________________________________________________ Leitura histórica sobre sua constituição

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O Movimento Psiquiátrico de Recife % *' ^"vv
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Esse movimento erigiu-se sobre o alicerce representado pelas
idéias e ações de Ulysses Pernambucano, caminhando na contra­
mão do pensam ento psiquiátrico corrente na época e contribuindo
significativamente para a Educação (que será especificamente abor­
dada no próxim o capítulo).
Form ado na Faculdade de M edicina do Rio de Janeiro,
Pernambucano foi discípulo de Juliano M oreira; porém, sua prática
distanciou-se da Psiquiatria organicista preponderante nos meios
acadêmicos e institucionais de então. Nomeado, em 1924, diretor
do Hospital de Doenças Nervosas e M entais de Recife, aboliu os
calabouços^e as camisas-de-força, implantou a praxiterapia, criou o
Pavilhão de Observações, o Laboratório de Análises e o Pavilhão de
Hidroterapia, tendo também criado o sistema de “internato acadê­
m ico” para os jovens médicos estagiarem.
Teve Pernambucano participação fundamental na implanta­
ção da “Assistência a Psicopatas de Pernam buco”, assim composta:
serviços para doentes mentais não alienados, com ambulatório e
hospital aberto; serviços para doentes mentais alienados, com hos­
pital para doentes agudos e colônia para doentes crônicos; M anicô­
mio Judiciário; Serviço de Higiene M ental, com Serviço de Preven­
ção das Doenças M entais e Instituto de Psicologia. Sobre o Serviço
de Higiene M ental, afirma João M arques de S á 15:

“Creio mesmo que o Serviço cie Higiene Mentalfoi o responsável pela


suspensão da intetferência da polícia sobre os cultos afro^brasileiros^
As seitas africanas tiveram em Ulysses e no mestre Gilberto Freyre os
mais ardentes defensores, passando a receber certo grau de controle
científico do serviço de Higiene Mental” (1978, p. 20).

A referência acima a “controle científico” relaciona-se prova­


velmente aos estudos realizados por Pernambucano sobre os africanos

15 SÁ, J. M. Abertura do Ciclo de Estudos Ulysses Pernambucano, in: Ciclo de Estudos


Ulysses Pernambucano. Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1978.

53
A Psicologia no Brasil

no Brasil e que o fez conhecido também como antropólogo, Esses


estudos foram inicialmente influenciados por Nina Rodrigues, cujo
teor era marcadamente racista, considerando as manifestações cultu­
rais negras como sintomas da degenerescência mental, em função da
inferioridade racial. Ulysses Pernambucano, entretanto, distanciou-se
dessa concepção, passando a repudiá-la e dirigindo seus estudos para
caminhos opostos ao pensamento de Raimundo Nina Rodrigues.
Pernam bucano fundou a Liga de Higiene Mental de Pernam ­
buco que, segundo Freire Costa, teve caráter bastante diferente das
demais ligas, sendo essa fiel aos objetivos inicialmente propostos
por Riedel para a Liga Brasileira de Higiene Mental, ou seja, a busca
de melhoria na assistência aos doentes mentais. Na Liga, Pernambucano
criou um a “Escola para A norm ais” que, em 1964, passou a ser
dirigida pela APAE. Em 1936, ele criou o Sanatório de Recife, no
qual foi também instalada uma “Escola para Anorm ais” .
Preocupou-se também Pernambucano com a formação de pro­
fissionais da área de saúde mental, tendo realizado vários cursos inten­
sivos de especialização, com a finalidade de promover a formação prá­
tica de “monitores de saúde mental” e “auxiliares psicólogos”, sendo
essa última função ocupada principalmente por professoras diplomadas
pela Escola Normal. Acrescenta-se a isso o serviço de estágio que le­
vou inúmeros discípulos de Ulysses à atuação na área de saúde mental.
Pernambucano pode ser considerado como pioneiro do m ovi­
m ento que mais tarde veio a ser conhecido com o A nti-Psiquiatria,
m uito em bora a pouca divulgação sobre seu pensam ento e obra,
em seu próprio país, não tenha perm itido que tal m ovim ento pu­
desse reconhecê-lo.
A doença mental era por ele concebida como situação exis­
tencial, resultante da dinâm ica do processo psicológico, conside­
rando-o sujeito como agente desse processo e admitindo os fatores
sociais como co-determ inantes. O punha-se esta visão ao orga-
nicismo, que via a doença mental como causada pela constituição
orgânico-genética do sujeito, e que era antes determ inante que
determ inada pelas condições sociais. Essa concepção justifica a

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Leitura histórica sobre sua constituição

denominação de “Psiquiatria Hum anista”, conferida por Jamesson


Freire Lima ao trabalho de Pernambucano.
Do ponto de vista da produção especificamente psicológica,
o movimento de Recife veio contribuir em particular com seu Insti­
tuto de Psicologia, mais tarde denominado Instituto de Seleção e
Orientação Profissional. Do que foi aqui exposto, é possível apontar
elementos que se ligam direta ou indiretamente à Psicologia propria­
m ente d ita, d evendo d e sta c a r-se a p reo c u p a ç ão de U lysses
Pernambuco com a formação de profissionais na área psicológica
que, inclusive, teve relação com seus propósitos educacionais. Acres­
centa-se a isso a preocupação educacional em geral e psicológica
em especial que teve com crianças com deficiência mental.
De form a geral, podemos dizer que esse psiquiatra adotou
em seu trabalho uma perspectiva muito próxim a à Psicologia na sua
m aneira de conceber e atuar sobre a doença mental.
Seus estudos sobre a cultura afro-brasileira foram não ape­
nas contribuições à Antropologia, mas podem ser tam bém adm iti­
dos como Psicologia Social, 11a medida em que buscaram articular
cultura e psiquism o.

1.2. Medicina Legal, Psiquiatria Forense


e Criminologia
A concepção psiquiátrica vigente na época, com o já visto,
pretendia abarcar as questões sociais e sobre elas exercer seu
controle, com vistas ao estabelecim ento da ordem no espaço u r­
bano, costum eiram ente palco de conflitos, o que im plicava na
elim inação da “desordem ” que, por sua vez, significava id entifi­
car e envidar m eios efetivos de controle sobre os elem entos
“desordeiros” . É por esse m otivo que o com bate ao alcoolism o,
jogo, prostituição e crim e ganharam terreno no interior da P si­
quiatria, que procurou articular doença m ental e crim inalidade,
com base na teoria da degenerescência.

55
A Psicologia no Brasil

Assim, Psiquiatria e Direito integraram-se por meio da M edi­


cina Legal, da Psiquiatria Forense e da Criminologia, sob a influên­
cia do organicismo, além das idéias de Spencer, Darwin, Galton,
Comte, W undt e, especialmente, de Lombroso.
M édicos como Oscar Freire, Afrânio Peixoto, Artur Ramos e
o jurista Evaristo de M oraes são alguns daqueles que dedicaram
grande parte de seus trabalhos à M edicina Legal, com significativa
produção bibliográfica. Deve-se destacar o papel de Heitor Carrilho,
cuja contribuição foi não apenas teórica, mas fundamentalmente no
campo da prática institucional da Psiquiatria Forense.
Carrilho iniciou seu trabalho como psiquiatra no Hospital
Nacional dos Alienados, encarregando-se da Seção Lom broso, que
abrigava os “crim inosos loucos” . Por seu esforço, foi criado em
1921, no Rio de Janeiro, o M anicôm io Judiciário, do qual foi dire­
tor; além disso, contribuiu com a criação de outras instituições
sem elhantes em vários pontos do país. Foi ainda m em bro do C on­
selho Penitenciário, diretor do Serviço N acional de Doenças M en­
tais, presidente da Sociedade B rasileira de N eurologia, P siquia­
tria e M edicina Legal e catedrático de C línica Psiquiátrica na
Faculdade Flum inense de M edicina.
Heitor Carrilho foi contundente crítico do Direito Clássico e gran­
de defensor do Direito Positivo16, que procurava enfocar o crime sob o
foco da determinação individual e não social. Dessa maneira, o Direi­
to Positivo acabava, em última instância, psicologi-zando ou indivi­
dualizando o ato criminoso e sua interpretação. Nas palavras de Carrilho:

“Não é possível fazer direito penal sem o concurso dos médicos e


dospsychiatras que, com os seus conhecimentos de bio-anthropologia
e de psychologia, podem penetrar toda a personalidade dos delin­
quentes, exhaminando-lhes as differentes taras, definindo-lhes ofeito

16 Sobre isso, ver: FRY, P. Direito Positivo Direito Clássico: a psicologização do crime no
Brasil no pensamento de Heitor Carrilho, in: FIGUEIRA, S. A. (org.) Cultura da Psicaná­
lise. São Paulo, Brasiliense, 1985.

56
Leitura histórica sobre sua constituição

mental, mostrando a fatalidade biológica que os levou à prática de


reações anti-sociais, desvendando-lhe a constituição, o temperamento
e o caracter, para a obra admirarei da regeneração de que lhes care­
cem, em benefício próprio e no da collectividade” (Carrilho, apud
Fry, 1985, p. 123).

Essa interpretação psicologizada do crime articulava-se às


idéias correntes, imputando ao criminoso a etiologia da criminalidade
e isentando de responsabilidade as condições sociais; a sociedade
era vista com o vítim a do indivíduo crim inoso, com isso referen­
dando a noção de saneam ento da sociedade pela exclusão dos
“desordeiros” e pela regeneração dos indivíduos.
Carrilho desenvolveu em seus artigos uma série de elementos
necessários para a prática do Direito Positivo, particularmente no que
diz respeito à interpretação psicológica e psiquiátrica do crime, tais
como: taxonomias, categorias e classificações das doenças mentais,
com base na idéia de que cada caso é singular e único, devendo assim
ser individualmente estudado e, da mesma maneira, decidida sua pe­
nalidade. Defendia ele a elaboração de um “psychobiogramma”, isto
é, uma ficha de informações bio-psíquicas, para cada preso; indo mais
longe, defendeu a idéia de que todo cidadão deveria ter essa ficha,
justificando a medida como meio de prevenção da criminalidade, sendo
que esta, junto com a ficha datiloscópica, poderia servir como ele­
mento de identificação do indivíduo criminoso.
Carrilho contribuiu também no exame e no relatório que fun­
damentaram o primeiro caso de inim putabilidade de um criminoso,
Febrônio índio do Brasil, por ter sido este considerado “louco” .
Grande contribuição a essas áreas do saber veio também de
Afrânio Peixoto. Sua tese de doutoramento já apontava para essa
temática: “Epilepsia e Crim e”, orientada por Nina Rodrigues. Do
vasto e amplo conjunto de obras de Peixoto, destacam-se: “Elem en­
tos de M edicina Legal” (1910); “Psicopatologia Forense” (1916);
“Sexologia Forense” (1934) e “Novos Rumos da M edicina Legal” e
“Criminologia”, ambos sem referência precisa de data.

57
A Psicologia no Brasil

Pode-se dizer, em termos gerais, que a Medicina Legal, a Psi­


quiatria Forense e a Criminologia demonstram a importância da Psi­
cologia com o um a de suas ciências auxiliares e, nesse sentido,
contribuíram para seu desenvolvim ento.,E ntretanto, apesar do
reconhecim ento, a Psicologia permanecia como instância pertinente
à Psiquiatria; pode-se dizer que, se de um lado, a Psicologia desen­
volveu-se no interior dessas áreas, por outro lado, só indiretamente
essas aplicações contribuíram para o processo de auto-nomização da
prática psicológica, tanto que só recentemente a Psicologia e o psicó­
logo têm sido reconhecidos no âmbito do poder judiciário, i

1.3. Teses de Doutoramento das Faculdades


de Medicina
Muitas teses vistas na parte I deste trabalho, as quais trata­
vam de temas psicológicos, foram gradativamente aumentando em
número com a aproximação do final do século. Nelas, salientam-se
temas como: inteligência, emoção e psicofisiologia.
Esse aumento no número de teses que tratavam de questões
psicológicas ocorreu principalmente a partir de 1890, quando já se
percebem claramente delineadas as tendências da Psicologia da época,
nesse momento já considerada ciência autônoma.
Em 1890, foi apresentada a tese “Psicofisiologia da percep­
ção e das representações”, por José Estelita Tapajós, em que a ten­
dência psicofisiológica da época aparece evidenciada.
Pelo menos três teses são apresentadas com a denominação
“Das Emoções”, apresentadas por Veríssimo Dias de Castro (1890),
M anuel Pereira de M elo M orais (1891) e Adolfo Porchat Assis
(1892). Segundo Pessotti17, a prim eira delas destaca-se por tratar

17 PESSOTTI, I. Dados para uma História a Psicologia no Brasil, in: Psicologia, ano 1, n° 1,
maio de 1975. Sobre esse assunto, ver também: LOURENÇO FILHO, M. B. A Psicologia no
Brasil, in: Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 23, n° 3, setembro de 1971.

58
Leitura histórica sobre sua constituição

mais objetivam ente os dados e por utilizar-se de uma linguagem


mais rigorosa que as demais.
A tese de Odilon Goulart, “Estudo psicoclínico da afasia”, de
1891, é talvez o primeiro estudo relacionado à Psicologia Clínica,
segundo Pessotti.
De Alberto Seabra, a tese “A memória e a personalidade”, de
1894, constituiu-se num estudo pioneiro sobre a memória, anunciando
a preocupação com uma temática que seria largamente pesquisada nos
anos subseqüentes, particularmente pelos laboratórios de Psicologia.
Nesse contexto, não se pode deixar de fazer referência à figura
de Raimundo Nina Rodrigues, médico baiano, professor da Faculda­
de de Medicina da Bahia e grande produtor de pesquisas, que fez com
que essa faculdade fosse considerada, na época, como um dos mais
importantes centros de pesquisa do país. Exerceu ele forte influência
sobre toda uma geração de médicos, os quais, de uma maneira ou de
outra, contribuíram para o desenvolvimento da Psiquiatria e Psicolo­
gia no Brasil, dentre eles: Afrânio Peixoto, Juliano Moreira, Oscar
Freire de Carvalho, Flam ínio Fávero e A rtur Ramos. Foi Nina
Rodrigues um dos mais importantes e veementes defensores da teo­
ria da degenerescência, tendo produzido uma vasta obra em que
procurava demonstrar as articulações entre inferioridade racial e de-
generação psíquica, abordando, dentre uma grande amplitude de te­
mas, as manifestações religiosas de base afro-brasileira, que eram vis­
tas como manifestação de primitivismo, inferioridade e degeneração.
Nessa linha, e orientada por Nina Rodrigues, encontra-se a
tese de Oscar Freire, defendida em 1902, denom inada “Etiologia
das formas concretas da religiosidade do norte do Brasil”.
A tese de Henrique Roxo, “Duração dos atos psíquicos elemen­
tares”, de 1900, traz a defesa da Psicologia como propedêutica da Psi­
quiatria, o que mostra o reconhecimento da autonomia entre as duas
áreas de conhecimento, além de estabelecer um parâmetro definidor
das relações entre elas. Essa idéia justifica a presença de laboratórios
de Psicologia nos hospícios, o que viria a ocorrer logo depois.
A Psicologia no Brasil

Defendida em 1907, a tese de M aurício Campos de Medeiros,


“M étodos em Psicologia”, veio demonstrar a penetração da Psico­
logia científica no país e a preocupação m etodológica com a produ­
ção de conhecimento nos patamares do rigor científico.
A tese de Plínio Olinto, de 1911, denominada “Associação
de idéias” , é demonstrativa da já indubitável produção científica da
Psicologia no Brasil.
Em 1931 findou a obrigatoriedade da defesa de teses de dou­
toramento em M edicina, sendo que do início do século até essa data,
foram apresentadas pelo m enos vinte e duas teses referentes a
temas psicológicos só na Faculdade de M edicina do Rio de Janeiro.
Deve-se também destacar, dentre essas teses, o primeiro tra­
balho fundamentado na Psicanálise, que foi a tese “Da Psicanálise:
a sexualidade nas neuroses”, de Genserico Aragão de Sousa Pinto,
defendida em 1914.
Essas teses, particularmente após 1890, constituem-se numa das
mais importantes evidências da conquista gradativa de autonomia da
produção psicológica no Brasil, assim como explicita o caráter científi­
co de que são revestidas. Embora produzidas como teses em Medicina,
pode-se dizer que muitas delas constituíram-se em estudo de natureza
estritamente psicológica, diferenciadas da psiquiatria e, mais que isso,
contribuindo para a defesa da Psicologia e para o esforço de demons­
trar sua especificidade, estabelecendo os meios para produzi-la.
Muitos dos autores dessas teses, como M aurício Campos de
M edeiros e Plínio Olinto, tornaram-se, posteriormente, reconheci­
dos pela vasta contribuição teórica e prática para o estabelecim ento
da Psicologia como ciência e profissão no Brasil.

1.4. À Guisa de Síntese


Do ponto de vista global, é possível dizer que a M edicina veio
a ser, nesse período, um importante substrato para o desenvolvimento
da Psicologia no Brasil, mantendo um a tradição iniciada no fim do

60
Leitura histórica sobre sua constituição

período colonial e ao mesmo tempo a superando. A evolução do pen­


samento psicológico no interior da Medicina até o século XIX prepa­
rou o terreno para que o conhecimento e a prática da Psicologia se
desenvolvessem a tal ponto que fizeram delinear-se com m aior
clareza seus contornos, tendo assim contribuído para a penetração
da Psicologia científica e sua definição com o campo autônom o de
conhecim ento e ação, o que veio a se concretizar nas décadas ini­
ciais do século XX.
A criação de laboratórios de Psicologia nos hospícios é uma
das mais importantes evidências desse processo, sendo que estes,
na condição de instâncias auxiliares à Psiquiatria, vieram a ser rele­
vantes produtores de estudos e pesquisas eminentem ente psicológi­
cos. Esse fato demonstra que a Medicina, produzindo conhecimento
psicológico em seu interior, veio contribuir para que a Psicologia
construísse seu próprio espaço.
À produção dos hospícios som am -se as teses de douto­
ram ento das Faculdades de M edicina, m uitas das quais foram de
autoria de m édicos que se dedicaram , m ais tarde, à pesquisa psi­
cológica nos referidos laboratórios. A contribuição trazida pelas
teses foi, com efeito, m uito sem elhante à dos hospícios, na m e­
dida em que, por dentro da M edicina, trabalhos cada vez m ais
característicos da P sicologia foram produzidos. Isso se revela,
por exem plo, pelas preocupações específicas com as condições
que definiram a autonom ia científica da Psicologia, dentre elas,
a questão m etodológica.
Por outro lado, percebe-se a im portância dada ao conheci­
m ento psicológico como instrum ental para a M edicina Legal, a
Psiquiatria Forense e a Crim inologia. Entretanto, se aí a Psicolo­
gia foi considerada por sua contribuição, não se a vê, contudo,
como área autônom a em relação à M edicina, particularm ente na
sua dimensão prática.
Podem os dizer, portanto, que a Psicologia produzida no in­
terior da M edicina o foi essencialm ente sob o enfoque de ciência

61
A Psicologia no Brasil

auxiliar à Psiquiatria; todavia, nesse contexto, já ficava reconhe­


cida, pelo m enos em tese, sua condição de ciência e, consequen­
tem ente, sua autonom ia. Não se pode afirm ar que a conquista.de
autonom ia da Psicologia em relação à M edicina tenha ocorrido
por um projeto estabelecido “a p rio ri” ; antes, foi seu próprio de­
senvolvim ento e sua adequação às necessidades geradas pelos
problem as sociais brasileiros que estabeleceram as condições para
que tal ocorresse.

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