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Discentes:
Erika Gonçalves Cardim
Iani Fassa dos Santos
Maiza dos Santos Rodrigues
Nicole Stef Vieira Candeloro
Regiane Sedenho de Morais
Introdução
Com o passar dos séculos, novos conceitos e formas de intervenção foram sendo
construídos, considerando contextos sociais e políticos que, ainda que sejam considerados
avanços em termos de intervenção de forma humanizada, é necessário um constante pensar, a
fim de que as abordagens, tratamentos e intervenções sejam sempre atualizadas, considerando
as demandas sociais, etnográficas, políticas e, principalmente subjetivas, já que cada ser
humano é único.
O presente artigo tem como objetivo apresentar, com base nos conhecimentos
construídos ao longo das discussões na disciplina de Saberes e Práticas em Saúde Mental,
ofertada pela Escola de Enfermagem da USP - Universidade de São Paulo, campus Ribeirão
Preto, um breve histórico do conceito de loucura, bem como intervenções e abordagens
contemporâneas em Saúde Mental. Destacamos a importância de que tais reflexões sejam uma
constante no trabalho em saúde mental, a fim de inovar e promover a saúde mental em sua
totalidade.
No período medieval, também conhecido como idade das trevas, a conexão entre Deus
e os humanos, era intermediada pela Igreja. Tanto o conhecimento religioso quanto o
conhecimento sobre as anormalidades eram produzidos em mosteiros e difundidos pelas
instituições e pelos conhecidos doutores da fé cristã. O louco ainda era visto como possuído
pelo demônio e ainda era um ser maligno, perverso e perigoso. Como forma de expurgar seus
males, eram pressionados a confessar seus atos e comportamentos, o que era razão para serem
levados à fogueira ou exorcizados (Stone, 1999).
É somente a partir do Renascimento, quando o homem se torna o centro das atenções,
que a loucura é desvinculada da natureza sobrenatural e realocada enquanto uma transgressão
das regras sociais. Isto é, os loucos passam a ser vistos como aqueles que ameaçam a ordem
social por não terem controle sobre seus atos. A partir disso, são isolados da sociedade, ato
que ainda hoje permeia as internações contemporâneas.
Com efeito, os miseráveis passaram a ser recolhidos das ruas e institucionalizados nos
chamados hospitais gerais, os quais também serviam de pensões, prisões, reformatórios, entre
outros. Esses hospitais eram caracterizados enquanto instituições de caridade, no entanto
exibiam explícitos aspectos coercitivos, como a internação ou aprisionamento compulsório
e/ou forçado. Acolhiam o que a sociedade definia como escória social: mendigos, sarnentos,
crianças órfãs, “loucos”, epilépticos, etc. Ressalta-se que os sujeitos “válidos” eram obrigados
a trabalhar e aderirem às práticas religiosas cristãs, como orações e missas (Queiroz, 2019).
A loucura seguiu sendo considerada digna de confinamento, já que sua imagem estava
atrelada ao estranho, peculiar e violento. Foi apenas no século seguinte que a loucura adquire
status de doença mental. Segundo Birman (1978), com a criação dos hospícios/manicômios, a
loucura torna-se verdade médica. E dessa verdade surge o campo da psiquiatria.
Queiroz (2009) afirma que a proposta de Pinel se pautava no tratamento moral, ele
acreditava que através da reclusão/asilo, essa conjuntura poderia corrigir os erros mentais.
Ressalta-se que as contribuições de Pinel foram muito além das desamarras, ele fundou a
psiquiatria como uma especialidade médica a partir de uma síntese nosográfica sobre as
doenças mentais:
Nesse contexto, a função disciplinadora dos corpos é descrita por Foucault (1987)
enquanto “um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função adestrar”
(p.83). A padronização e o rigor das burocracias e regras se intensificam com o passar do
tempo, influenciando na perda da personalidade dos internos, o que Goffman (1974) definiu
como mortificação do eu. Segundo Gomes (2006), isso se caracteriza por:
Práticas padronizadas, perda do nome, confisco de bens pessoais, ou seja, a separação
entre pessoas e as suas coisas, exposição contaminadora, em que o sujeito é obrigado a
conviver com coisas com as quais não se identifica e mantinha certo distanciamento
(sujeira e alimentos estragados) (...) (Gomes, 2006, p. 42)
Sob o aval da psiquiatria, os manicômios erradicaram a autonomia dos internos,
tornando-os sujeitos mortos de personalidade, determinada como incapacidade mental, e
consequente, social:
Partindo deste ponto, o que se pode perceber é que os hospitais psiquiátricos, além de
não ter exata função em atender as demandas das pessoas internadas, se tornaram cada vez
mais espaços nos quais prevaleciam relações de poder, dominação, autoritarismo,
discriminação e opressão de todos os tipos. Contudo, esse modelo de tratamento da loucura
começa a ser questionado e iniciam-se reflexões sobre novas formas de enfrentamento desta
realidade.
Mas é por meio das experiências de Franco Basaglia e seu grupo, na Itália, que se
inicia um movimento de democratização acerca da saúde mental. Esta não vem com a
intenção de remodelar as estruturas vigentes, mas sim um rompimento com a cultura
manicomial, promovendo inclusive o fechamento destas instituições. (KantorskI et.al, 2021).
Em resposta a esse processo, antigos manicômios foram abolidos por meio da Lei 180,
conhecida como Lei Basaglia, aprovada na década de 70. Esta lei propunha o trabalho mais
humanizado no sistema de saúde, especialmente no acompanhamento psiquiátrico dos
indivíduos. Para Amarante (2003), apud Yasui (2006):
Vários eventos foram importantes para a construção deste processo, tais como V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria (1978), I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e
Instituições com a presença de Basaglia, I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II
Congresso Nacional do Movimento dos trabalhadores em Saúde Mental (1987). Vale destacar
este último, o qual deu origem ao Manifesto de Bauru e que representou a fundação do
movimento antimanicomial, firmando junto à sociedade um compromisso sobre as questões
da loucura e seus tratamentos (Luchmann e Rodrigues, 2007).
Em meio a este processo, surge a luta antimanicomial, cujo lema se tornaria por “uma
sociedade sem manicômios”. Alguns desfechos dessas ações de lutas foram a lei número
10.216 de 06 de abril de 2001, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica” ou “Lei Paulo
Delgado”, em que também se estabelece a criação dos CAPS - Centros de Atenção
Psicossocial.
Então é forçoso, quando cuidamos, saber qual é o projeto de felicidade, isto é, que
concepção de vida bem sucedida orienta os projetos existenciais dos sujeitos a quem
prestamos assistência. Como aparece ali, naquele encontro de sujeitos no e pelo ato de cuidar,
os projetos de felicidade a quem estamos cuidando? Que papel desempenhamos, os que
queremos ser cuidadores, nas possibilidades de conceber essa felicidade, em termos de saúde?
Que lugar podemos ocupar na construção desses projetos de felicidade de cuja concepção
participamos? (Ayres, 2004, p. 85).
Estudo realizado por Bustamante e Mccallum (2014), cujo objetivo foi realizar uma
reflexão sobre o cuidado, mostrou a importância de se compreender o cuidado no sentido das
práticas cotidianas construídas em diferentes contextos e que envolvem uma diversidade de
maneiras de cuidar. Dentre essas práticas, a sabedoria prática seria valorizada e incluída nas
práticas de saúde. As autoras discutem que valorizar a sabedoria prática presente no cuidar
pode aproximar os profissionais (incluindo os pesquisadores) dos usuários dos serviços de
saúde.
De acordo com Deegan (1988), o recovery não se associa à remissão total do que se
conhece por sintomas, nem ao retorno ao estado anterior do sujeito, no entanto, se associa a
restituição diária de esperança, desenvolvimento de autoconfiança e retomada do controle
sobre a própria vida. Segundo Davidson e Schmutte (2020) o conceito trata-se da busca por
objetivos ser mais significativa do que os efeitos do sofrimento, refere-se à recuperação
comportada a realidade do sujeito que aceita e supera desafios diários e, a reconstrução e
desenvolvimento de conexões sociais, ambientais, espirituais, pessoais em conjunto com o
fortalecimento para enfrentar os efeitos da discriminação que intersecciona a vida desses
indivíduos.
De acordo com Rufato et al. (2021) o apoio entre pares ocorre quando pessoas com
vivências desafiadoras atingem níveis de êxito em sua condição e dão suporte a outras pessoas
que vivenciam questões semelhantes. A realização do suporte entre pares no ambiente de
saúde mental pode promover mudanças significativas em nível cultural das instituições, visto
que promove restauração das pessoas como cidadãos plenos de direitos e atuantes em suas
comunidades. Com o estabelecimento desta rede de apoio, os indivíduos constroem espaços
seguros de acolhimento para compartilharem experiências e ainda divulgarem estratégias de
lidar com suas singularidades (Kantorski et al., 2017). De acordo com Gillard (2019) entre os
benefícios deste suporte estão: capacitação dos indivíduos em relação às suas experiências,
aumento de expectativas em relação ao futuro dos pares e o senso de empoderamento,
autonomia e fortalecimento de tomada de decisão.
As vozes são uma espécie de mensagem codificada, que em alta intensidade, são
sentidas enquanto intrusivas, agressivas e insuportáveis (as vozes de comando) - ideações
suicidas e até mesmo violentas em relação a outras pessoas. Ao longo dos grupos de
ouvidores, das experiências compartilhadas e da reprodução da voz interna (narrativa), esses
ouvidores constroem interpretações - a partir de investigações conscientes e inconscientes -
que acalentam o sintoma do “ouvir vozes”.
Nota-se que há uma marca forte da experiência de internação, da interferência religiosa, dos
preconceitos, das explicações mágicas até mesmo demoníacas.
A partir das concepções trazidas por Paul Baker (2009), evidencia que as pessoas
constroem significados diferentes para suas vivências, discorrem sobre que o HVM sugere
seis pressupostos fundamentais sobre a audição de vozes: (1) qualquer pessoa pode vivenciar
este fenômeno, visto que ouvir vozes está ligado à natureza do ser humano; (2) a aceitação aos
diversos sentidos dados às vozes é necessária, e está intimamente ligada ao sucesso do
processo de recovery; (3) Apropriação da experiência, bem como ampliar a compreensão dos
sentidos atribuídos às vozes, são aspectos importantes para o ouvidor; (4) A audição de vozes
precisa ser vista dentro dos contextos vivenciais; (5) Desenvolver aceitação das vozes é mais
útil do que tentar eliminá-las; (6) Grupos de suporte entre pares auxiliam na construção de
estratégias de lidar com as vozes e na atribuição de sentidos, bem como o empoderamento dos
ouvidores (Baker, 2009). Evidencia-se, neste sentido, que criar um vínculo entre especialistas
pela experiência (ouvidores de vozes) e os especialistas pela profissão, seria o modo mais
fidedigno de compreender e manejar tais vivências, promovendo respeito, direitos humanos,
dignidade aos que ouvem vozes e conhecimento aos profissionais e familiares dos ouvidores.
Os autores seguem esclarecendo que o problema mais significativo não está em ouvir vozes,
mas no relacionamento que os sujeitos estabelecem com suas vozes, bem como, a força e
influência que estas têm sobre eles (Corradi-Webster et al., 2021).
Para Pratt et. al. (1999), apud Hirdes e Prado Kantorski (2004), o conceito de
recuperação representa um importante ganho em reabilitação psiquiátrica, pois, em função de
muitas condições serem de longa duração, os profissionais ou as pessoas com doenças
mentais não utilizavam a expressão cura: “Atualmente, o conceito e a importância de
recuperação de doenças mentais severas é aceito e reconhecido por muitos setores e
representa a promessa de esperança para o futuro. Ressalta-se que, para muitas condições,
recuperação significa cura.” (Hirdes e Prado Kantorski, 2004; p. 219).
Quanto à organização dos serviços, o usuário é capaz de descobrir seus pontos fortes,
suas habilidades e como potencializar isso dentro das comunidades.
Conclusão
Partindo da realização deste trabalho, da leitura dos textos e das palestras oferecidas
pela disciplina em questão, o que se pode perceber é que a “loucura” e o “louco” tiveram ao
longo do tempo diversos tratamentos, no entanto, o que marca essa temática é principalmente
a violência, a negligência e a exclusão. Tendo em vista essa problemática, as mudanças
resultantes ao longo da história, em especial, o movimento da reforma psiquiátrica, muda de
forma significativa a visão e a forma de tratamento de pessoas com transtornos mentais, ainda
que longe do ideal. O que se percebe é que há uma busca constante sobre quais os fatores
imprescindíveis para uma real reabilitação psicossocial. Esta, quando balizada também pelas
demandas e especificidades do paciente, aproxima-se de algo mais eficaz e humanizado.
Contudo, tal trabalho deve-se a diversos atores, sendo, além dos profissionais de saúde, os
direitos do paciente, participação da família e da comunidade, inclusive dos possíveis
empregadores.
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